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Christopher Lasch

A Demolição do Homem - Konrad Lorenz


Obras Escolhidas - Vol. 1 - Magia e técnica, arte e política
- Walter Benjamin
A Razão Cativa - As ilusões da consciência: de Platão e

o m1n1mo eu
Freud - Sérgio Paulo Rouanet
• Recordar Foucault - Div. Autores > •
• A Revolução Molecular - Félix Guattari
• À Sombra da Maiorias Silenciosas ~ Jean Baudiíllard
• Discussão da Servidão Voluntária - E. de La Boétie

Coleção Primeiros Passos


Sobrevivência psíquica em tempos difíceis
• O que é Existencialismo - João da Penha
• O que é Polltica Cultural - Martin Cezar Feijó
• O que é Pós-M.oderno - Jair Ferreira dos Santos Tradução:
João Roberto Martins Filho
l:'- edição 1986
3:'- edição

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A mentalidade
da sobrevivência

A normalização da crise

Em uma época de inquietações, segura do desfrute de con-


fortos materiais desconhecidos em épocas passadas e todavia .
obcecada por idéias de desastre, o problema da sobrevivência
faz sombra às mais altas considerações. A preocupação com a
sobrevivência, traço proeminente da cultura americana desde o
início dos anos 60, assume várias formas, graves ou triviais. ·
Encontra a sua expressão mais insidiosa e característica, a sua
expressão definitiva, na ilusão das guerras nucleares vencíveis;
mas, de forma alguma, se esgota na antecipação de calamidades
capazes de abalar a Terra. Ela entrou de forma tão profunda
na cultura popular e no debate político que todos os temas,
por mais efêmeros e sem importância, apresentam-se como uma
questão de vida ou àe morte .
Uma revista de esquerda, Mother Jones, anuncia-se como
um "guia de sobrevivência" à "Idade das Trevas política"
trazida pela eleição de Ronald Reagan. Uma estação de rádio
de Los Angeles, desejosa de espalhar "bondade, alegria, amor e
felicidade", recomenda-se aos seus ouvintes como "a sua estação
de sobrevivência nos anos oitenta". A Samsonite, fabricante de
malas, faz propaganda de sua última maleta como " a sobre-
vivente". Um título do New York Times alude a uma tentativa
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de limitar a substituição das mú ico grovodu no lugar dos reçado às donas-de-casa - Sobreviver como mulher, ou como
músicos ao vivo, conduzida pela F cl ro I Americana dos Mú- manter sua cabeça erguida, sua coragem alta e nunca ser pega
sicos, como uma "batalha pela sobrcviv ncin ". Uma longa dia- com o moral baixo - adota o mesmo tom, retratando a vida
tribe antifeminista, publicada com a fonful'l'u httbitual dos meios cotidiana como uma sucessão de pequenas emergências. "Sejam
de comunicação, apresenta-se como um guia de sobrevivência elas antiquadas ou avançadas", as mulheres têm "uma coisa
para o homem maltratado. Um treinador d basguete elogia um em comum", segundo Betty Canary: "estão determinadas a so-
de seus pupilos por sua capacidade de aprender com os erros breviver". Betty Friedan recorreu ao mesmo tipo de exagero
e de "sobreviver" a eles. O mesmo cronista esportivo que relata retórico em A Mística Feminina, mas sem nenhum intuito hu-
esse tributo medita sobre a "sobrevivência" do basquete univer- morista, quando denominou o lar de classe média "um confor-
sitário como grande esporte de espectadores. tável campo de concentração". Os que têm uma visão um pouco
Em Yale, um " Comitê Estudantil de Salvamento" exorta mais amena das instituições domésticas perguntam-se, não obs-
os pais a enviar a seus filhos e filhas um " kit de sobrevivência" tante, se a família sitiada e encolhida ainda fornece as condi-
(" alimentação rápida e nutritiva em embalagem bem humora- ções " para a sobrevivência emocional do indivíduo em nossa
da") a fim de auxiliá-los a suportar o "período mais crucial e sociedade de massa".
torturante (sic) de todo o ano acadêmico - os exames finais! " . A trivialização da crise, ao mesmo tempo que testemunha
A Associação Americana de História publica um panfleto des- um difuso sentimento de perigo - uma percepção de que nada,
tinado a auxiliar a mulher a enfrentar a discriminação : Um sequer um simples detalhe doméstico, pode ser visto como ga-
Manual de Sobrevivência para a Mulher (e outros) Historiadora. rantido - também serve como uma estratégia de sobrevivência
Um paciente de herpes explica como superou o medo da mo- em si. Quando a impiedosa retórica da sobrevivência invade a
léstia ao confiar em seus companheiros de sofrimento: "Quando vida cotidiana, ela intensifica e libera, simultaneamente, o terror
você se solidariza com os outros, é como se estivesse com sobre- do desastre. A vítima das circunstâncias enfrenta a crise prepa-
viventes de uma inundação ou de um campo de prisioneiros" . rando-se para o pior e convencendo-se de que o pior deve ficar
Uma resenha sobre as memórias de Henry Kissinger traz o pro- além das expectativas. Bertold Brecht já dissera que os que
fético título, "Mestre da Arte da Sobrevivência". Michael Sellers, riem ainda não escutaram as últimas más notícias. Mas, hoje,
filho do ator Peter Sellers, diz aos repórteres: "Meu pai apegou- o riso - o que ajuda a entender por que ele tem amiúde um
se freneticamente - mesmo depois de um ataque cardíaco em som cavernoso e por que boa parte do humor contemporâneo
1964 - à idéia de que era um sobrevivente e . . . viveria até tem a forma da paródia ou da autoparódia - vem de pessoas
os setenta e cinco" . Outro ator, George C. Scott, fala de si que estão perfeitamente a par das más notícias e, no entanto,
próprio como um "sobrevivente" de uma profissão implacável. fizeram um esforço determinado para continuar a sorrir. "Deixe
Jason Robards Jr. , após enfrentar o alcoolismo, um acidente de o sorriso ser o seu guarda-chuva". Stanley Kubrick satirizou
automóvel quase fatal e um longo período de descaso da crítica, esse dito encorajador no subtítulo de seu filme Dr. Strangelove:
maravilha-se com o " mistério" pelo qual "pessoas como George Como Aprendi a Deixar as Preocupações e a Amar a Bomba.
(Scott) e eu tenhamos sobrevivido" . Um crítico teatral celebra Os editores de Mad também fazem sátira, mas defendem o oti-
as reprises de Private Lives, de Noel Coward, e The Caine Mu- mismo infundado como a única atitude lógica num mundo lou-
tiny , de Herman Wouk, num artigo, "Sobreviventes" que tam- co, louco, louco, · 1ouco, ao estabelecer como seu porta-voz a
bém saúda o retorno de Elizabeth Taylor e Richard Burton aos figura de Alfred E. Neumann com seu esgar idiota e seu "O
palcos da Broadway. quê? Eu, preocupado?".
Erma Bombeck apresenta a sua última coletânea de artigos Nada se ganha, entretanto, insistindo nas más notícias. O
como um livro "que trata da sobrevivência". Outro livro ende- artista sobrevivente as toma como garantidas; está além do de-
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sespero. Ele se esquiva dos relatos de novos desastres, alertas sobre uma nova crise. Quando acumulam-se as crises públicas
sobre a catástrofe ecológica, advertências sobre as possíveis con- não resolvidas, perde-se o interesse na possibilidade de que se
seqüências da corrida armamentista nuclear, recusando-se a dis- possa fazer alguma coisa frente a elas. Assim, também, as de-
criminar entre os eventos que ameaçam o futuro da humanidade núncias sobre as crises servem com freqüência apenas para jus-
e_ os fatos ~ue meramente põem em perigo a sua paz de espí- tificar as reivindicações dos administradores de crises, atuem
rito. Ele brmca com a avalanche infindável de más notícias eles na política, na guerra, na diplomacia ou simplesmente na
na televisão e nos jornais, queixa-se de que estas o deprimem administração do stress emocional.
e depois se exime da necessidade de distinguir entre os vários Uma réplica a essas afirmações insiste em que as questões
tipos e graus de más notícias. Ele se protege de seu impacto de genuína sobrevivência - política energética:;' .política ambien-
além disso, desprezando os que as divulgam como profetas d~ tal, corrida armamentista nuclear - devem ser decididas de
ruína e do de&alento - misantropos e desmancha-prazeres forma política, cooperativa e democrática, em vez de serem
amargurados por desilusões pessoais ou uma infância infeliz tratadas como temas técnicos pertencentes apenas a um pµnha-
intelectuais de esquerda desiludidos pelo colapso de suas expec: do .de especialistas. No entanto, é mais característico da menta-
tativas revolucionárias, reacionários incapazes de se adaptar aos lidade contemporânea da sobrevivência que ela se afaste das
tempos de mudança. questões públicas e preocupe-se com as crises previsíveis da
O risco da guerra nuclear, a ameaça da catástrofe ecoló- vida cotidiana, onde as ações individuais ainda parecem ter
gica, ª, lembrança do genocídio dos nazistas contra os judeus, algum impacto mínimo no curso dos acontecimentos. A vida
o poss1vel colapso de toda a nossa civilização geraram um am- do dia-a-dia passou a apresentar-se como uma sucessão de crises
plo e extenso sentimento de crise, e a retórica da crise penetra não necessariamente porque seja mais arriscada e competitiva
agora as relações raciais, a reforma das prisões, a cultura de do que costumava ser, mas porque coloca as pessoas diante de
massa, a administração fiscal e a "sobrevivência" pessoal coti- tensões passíveis de resolução, enquanto a esperança de prevenir
diana. A lista de livros recentes sobre a sobrevivência deveria o desastre público parece tão remota, para a maior parte das
incluir os que tratam da ecologia e da guerra nuclear, do holo- pessoas, que entra em seu pensamento apenas na forma de uma
causto, da tecnologia e da automação e uma torrente de "estu- melancólica súplica em favor da paz e da fraternidade.
dos sobre o futuro", para não mencionar a avalanche de ficção
científica que toma o apocalipse eminente como sua principal
premissa. Mas tal lista deveria também incluir a vasta litera- A vida cotidiana reinterpretada à luz das situações extremas
~ura psiquiátrica sobre a adaptação e a produção sociológica
igualmente enorme sobre as vítimas e a "vitimologia". Deveria A palavra "sobrevivência" assumiu hoje tantos significados'
abrigar livros que relatam "estratégias de sobrevivência para as diferentes - como "tradição", "problema", "nostalgia", pala-
minorias oprimidas", "sobrevivência na selva executiva" e "so- vras que sofreram uma expansão e uma degradação similares
brevivência no casamento". Reforçada por outros meios - - , que é necessário um esforço considerável apenas para sepa-
cinema, rádio, televisão, jornais e revistas - tal propaganda do rá-las. O tema da sobrevivência pode descrever a dificuldade
desastre tem um efeito cumulativo quase exatamente oposto ao de equilibrar o orçamento; pode aludir ao medo do envelheci-
efeito ostensivamente pretendido. A infiltração da retórica da mento, ao temor da morte por câncer, ao receio de sucumbir
crise e da sobrevivência na vida cotidiana desvigora a idéia de às drogas, ao alcoolismo ou a outra forma de degradação pes-
crise e deixa-nos indiferentes a apelos fundamentados na asser- soal; pode estar relacionado à dificuldade de se manter um
ção de que algum tipo de emergência exige nossa atenção. Nada casamento. Pode transmitir um sentimento de espanto frente à
pode fazer nossa atenção desviar-se com mais rapidez que falar constatação de que nada durará, num mundo de bens disponí-
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veis ou uma identificação com os sobreviventes de Auschwitz A nossa percepção não apenas do passado e do futuro,
e T~eblinka, do Arquipélago Gulag, de Hiroshima e Nagasaki. como do presente, coloriu-se com uma nova consciência dos
· Pode expressar a percepção de que somos tod~s sobreviventes, extremos. Pensamos em nós mesmos, simultaneamente, como so-
no sentido em que atravessamos tempos negros e que emergi- breviventes e como vítimas, ou vítimas em potencial. A crença
mos no lado mais remoto da grande linha divisória histórica, cada vez maior em . que somos todos vítimas, de uma ou de
marcada pela experiência de assassinato em massa do século XX, outra forma, de eventos que fogem de nosso controle deve muito
que separa a nossa época das idades mais antigas e inocentes. de sua força não somente ao pensamento geral de que vivemos
O último desses significados ajuda a explicar o temor do- num mundo perigoso dominado por grandes organizações, mas
minante da nostalgia. Qu~lquer coisa que se diga contra ou a à memória de eventos específicos da história ·do . século XX nos
favor de nossa época, ela está gravada com uma consciência quais as pessoas foram vitimadas em escala maciça. Tal como
desconhecida, senão totalmente insuspeitada, nas fases anterio- a idéia da sobrevivência, a idéia da vitimação, inapropriada-
res: a consciência de que os chamados homens racionais levarão mente aplicada aos infortúnios cotidianos, mantém acesa essa
a cabo o extermínio de populações inteiras se isso aprouver a lembrança e, ao mesmo tempo, amortece o seu impacto emocio-
seus propósitos e de que numerosos bons cidadãos, em vez de nal. O uso indiscriminado estende de tal modo a idéia de viti-
levantar um veemente protesto de ultraje e lamentação diante mação que ela acaba por perder seu sentido. "Nos tempos em
desses atos, irão aceitá-los como um meio eminentemente sen- que vivemos, todos estão expostos à possibilidade de um ataque
sato de abreviar uma guerra, de estabelecer o socialismo em um criminoso ou a um incidente desse tipo", escreve um especia-
país ou de livrar-se de pessoas supérfluas. Visto sob o prisma lista em vitimologia - matéria .que ele recomenda como uma
de nossa consciência contemporânea da maldade radical, como "nova abordagem nas ciências sociais". "A necessidade mais
a chamou Hannah Arendt - maldade tão profunda que soterra profunda do homem", continua, "é sobreviver, viver, trabalhar
qualquer categoria convencional de pecado e derrota as tenta- e divertir-se em comum sem dor ... O problema é que nos de-
tivas de fixar responsabilidades ou de imaginar uma punição frontamos em toda parte com a vitimação presente e possível,
adequada - , o passado evoca nostalgia tão intensa que a emo- vivemos no estado ou na condição de vítimas, de uma ou outra
çãó tem que ser ferozmente negada, reprimida e denunciada. espécie". William Ryan propõe uma definição igualmente ex-
A indagação de Hermam Kahn - "Os sobreviventes invejarão os tensa de vitimação em seu conhecido livro Blaming the V ictim
mortos?" - assombra o nosso tempo, não apenas porque des- ( A Culpa é da Vítima). No prefácio à edição revista, Ryan se
creve um futuro possível mas também porque descreve (embora desculpa por dedicar a primeira edição, em sua maior parte,
sem intencioná-lo) a nossa própria relação com o passado, sem- aos apuros dos negros e dos pobres. Ele chegou à conclusão de
pre que nos permitamos olhar para os horrores fartamente do- que quase todos são vulneráveis ao desastre: às "doenças catas-
cumentados já ocorridos no século XX, tão difíceis de suportar, tróficas"; à "manipulação deliberada da inflação e do <lesem-
em última análise, como os horrores que poderão vir.G
Encontra-se muitas vezes essa atitude panglossiana [o dr. Pangloss é
(3) Muitas pessoas, é certo, simplesmente apagam tudo i~so ~a le~- o otimista de Voltaire, no Cândido] entre os intelectuais acadêmicos
brança. Quando as lembramos, dizem que os nossos tempos nao. sao mais ascendentes, que estão eternamente se congratulando por terem escapado
violentos, sanguinárias e cruéis que outras épocas. O ~ssassma!o em do tradicionalismo estreito das pequenas cidades, do gueto étnico, ou do
massa não constitui nada de novo, insistem. Toda a tentativa de diferen- subúrbio de classe média. Aqui, a recusa a olhar para trás provém· não do
ciar o assassinato em massa do século XX dos registros anteriores de temor da nostalgia mas da completa indiferença, combinada a uma fé
guerras e. opressão - salientando-se, por exemplo, que ele é com fre- insensata no progresso. Tal otimismo absoluto e incondicional, entretanto,
qüência dirigido não contra as nações inim~gas _ou ?s "hereges" religiosos está gradativamente em extinção, pois requer um nível de futilidade emo-
e opositores políticos , mas contra categorias mteuas de I_>essoas decla- cional e de superficialidade intelectual, que a maioria das pessoas, mes-
radas supérfluas, cujo único crime consiste na sua existência - provoca mo os intelectuais acadêmicos, acha difícil sustentar por longos períodos
a réplica automática de que se "romantfza" o passado. de tempo.
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prego"; aos "impostos flagrantemente iníquos"; à poluição, às eliminação tecnológica das mulheres" - uma ".solução final
condições inseguras de trabalho e à "cobiça das grandes com- para o problema da Força Feminina" - , as feministas radicais,
panhias petrolíferas". de acordo com Mary Daly, "desenvolveram novas estratégias e
Como essas anotações sugerem, a vítima passou a gozar de táticas para. . . a sobrevivência económica, física e psicológica.
certa superioridade moral em nossa sociedade; tal elevação mo- Para fazê-lo, tivemos que entrar profundamente em nossos eus".
ral da vítima colabora para a inflação de retórica política que De forma mais ou menos semelhante, a reinvestigação da histó-
caracteriza o discurso do sobrevivencialismo. Muitos escritores ria judaica passou a centrar-se nas qualidades que permitiram
adotaram uma "postura de testemunha de acusação pública", aos '. judeus sobreviverem a séculos de perseguição. Depois do
como W arner Berthoff nota em seu estudo sobre a poesia e a Holocausto, o nacionalismo judeu identificou-se não com uma
ficção do pós-guerra. Identificando-se com os vilipendiados, es- missão moral transcendente, mas com a sobrevivência física do
forçando-se por falar em nome das vítimas e dos sobreviventes Estado de Israel. A pressão dos países vizinhos e da OLP, que
- "pessoas que vivem depois que os fatos decisivos acontece- baseou seu programa no objetivo explícito de liquidar o Estado
ram", nas palavras de Berthoff - jovens mulheres e homens judaico, intensificou, compreensivelmente, um compromisso com
irados expuseram as injustiças infligidas às minorias oprimi4as a interpretação mais estreita possível do sionismo. Enquanto
e exploradas. Os porta-vozes políticos desses grupos assumiram isso, os palestinos e seus defensores na Europa ocidental e nos
o. mesmo papel. Ao disputar a condição privilegiada de vítimas, Estados Unidos reivindicam que eles próprios são vítimas do
eles não apelam aos direitos universais do cidadão mas a uma "genocídio" israelense.
experiência especial de perseguição, que se supõe qualificar o Tais exageros acabam por derrotar os seus próprios objeti-
seu povo a falar sobre a injustiça com especial autoridade e a vos, com certeza. Acusações e contra-acusações de genocídio
exigir não somente os seus direitos como também a reparação tornam difícil situar os perigos que se colocam face à humani-
dos erros do passado. Eles se reivindicam - com boas razões, dade em seu conjunto, ou mesmo aliviar as injustiças sofridas
em alguns casos - vítimas, ou sobreviventes, de genocídio. A por grupos específicos. Um excesso de "soluções finais" deixou-
escalada retórica transforma o significado de injustiça; trans- nos cada vez mais insensíveis a esse tipo de apelo, mesmo quan-
forma a causa das minorias oprimidas numa luta pela mera so- do eles merecem ser ouvidos. Entretanto, a história do genocí-
brevivência. Nos anos 60, a passagem da luta pelos direitos civis dio do século vinte torna inevitável que qualquer pretendente
para o "poder negro" prenunciava o abandono dos esforços ao honroso status de vítima copiará o seu empenho dos exem-
para criar uma sociedade multi-racial, em benefício de uma plos máximos de vitimação. Deixando a propaganda de lado,
estratégia de sobrevivência negra. Os porta-vozes do poder negro não é mais possível pensar na vitimação sem pensar no exter-
acusavam os. brancos de estarem tramando a destruição da raça mínio dos armênios, dos kulaks, dos judeus e do povo do
negra através do control'e da .natalidade e dos casamentos inter- Camboja.
raciais. Nos anos 70, as feministas radicais levantaram .o gtitn
do "ginocídio". Em lugar de enfocar os traços distintivos dã
cultura n~ra ou os padrões característicos da feminilidade his- As grandes organizações como instituições totais
·tericamente condicionada como -"marcas da opressão", à manei-
ra de um radicalismo anterior, ou, por outro lado, como fontes A competitiva rixa generalizada nas grandes instituições
potenciais de um novo e ·florescente pluralismo cultural, os ç,ferece .a muitos uma outra ocasião para a reavaliação da expe-
porta-vozes das minorias sem direitos interpretaram a história riência ordinária à luz das situações extremas. A busca do su-
delas à luz da nova experiência do genocídio. Confrontadas cesso foi recompreendida como uma luta cotidiana pela sobre-
com uma sociedade dominada pelos homens, que planeja "a vivência. De acordo com um estudo efetuado pela Associação ·
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fo.mericana de Administração, A Etica do Sucesso em Transfor- instituição total, na qual desaparecem todos os traços de iden-
,r1ação, os americanos vêem, agora, o dinheiro não como uma tidade individual. Conforme Erving Goffman, o sociólogo das
n11edida de sucesso, mas como um "meio de sobrevivência". instituições totais - sistemas de controle total-, há uma "ten-
r)vros destinados a executivos, portando títulos como Sobrevi- dência em direção das instituições totais" em "nossos grandes
v•ênéia na Selva Executiva, enfatizam a importância do "senso siste_mas comerciais, industriais e educacionais". Durante os pro-
c,omum" ou do "instinto de sobrevivência" e chamam a atenção testos estudantis dos anos 60, os críticos radicais da universi-
piara a baixa "taxa de sobrevivência dos altos administradores". dade compararam-na repetidamente com um campo de detenção
:r,,Aanuais recentes sob,re o sucesso comparam as grandes organi- ou uma prisão. Historiadores e críticos que encetaram a revisão
z,ações com o gueto negro, "onde a sobrevivência. . . depende, do sistema educacional público insistiram nas características
e;tn larga medida, do desenvolvimento de uma saudável ·para- presidiárias das escolas públicas. O interesse renovado pela his-
t})óia cultural". Os que se oferecem como guias na selva das tória da escravidão negra, nos anos 60 e 70, surgiu, em parte,
cPrporações, como Chester Burger e Michael Korda, recomen- da comparação do escravismo nas grandes plantações com os
dam uma "estratégia de sobrevivência" baseada na vigilância, campos de concentração nazistas. Os sociólogos submeteram a
n.,a suspeita e na desconfiança. "Você precisa dispor de uma prisão ao mesmo tipo de reinvestigação, trazendo à luz livros
e~tratégia de longo alcance, precisamente como um plano de com títulos como Sobrevivência Psicológica e A Ecologia da
batalha militar. Você precisa de uma análise de sua situação Sobrevivência, enquanto o interesse popular pelas prisões enco-
e da de seus inimigos . . . Às vezes, é impossível sobreviver em rajou reportagens sobre rebeliões carcerárias e movimentos pelos
s~u ofício de executivo, não importando o que você faz ... direitos do preso, ao lado de uma torrente de filmes e programas
(fv1as) em talvez nove casos em dez, a sobrevivência é possível." de televisão exaltando a falta de recursos do prisioneiro sobre-
segundo Melville Dalton: "O indivíduo, na sociedade móvel das vivente confrontado com um meio circundante aparentemente
gr andes organizações, como os incautos animais, é também uma irresistível.
criatura indefesa que pratica a trapaça para se safar das ameaças A disposição de pensar nas organizações como instituições
ii;IVisíveis que o cercam". totais e na vida moderna em geral como uma sucessão de situa-
O darwinismo social há muito acostumou as pessoas à çõe.s extremas pode remontar aos campos de concentração e
iJéia de que apenas os mais aptos sobrevivem aos rigores da extermínio da Segunda Guerra Mundial, cuja consciência colo-
rr1oderna empresa de negócios; mas a consciência do século XX riu as percepções da vida social de forma muito mais profunda
de uma nova dimensão da brutalidade organizada - de campos do que em geral se entende. " Os testemunhos dos poucos que
de extermínio e sistemas políticos totalitários - deu um novo sobreviveram a essa experiência com vida são virtualmente mar-
stntido ao medo do fracasso e forneceu um novo imaginário cos de referência pelos quais pode-se medir outras tentativas de
c.apaz de elaborar a percepção subjacente da vida social como sobrevivência em nossos tempos", escrevem Stanley Cohen e
uma selva. 4 As grandes corporações tomam a aparência de uma Laurie Taylor em seu estudo sobre o encarceramento por longo

(4) Sob o governo Re!igan, o darwinismo social gozou um certo re- social, que exalta a sobrevivência das espécies acima do indivíduo, pro-
n~scimento. A "tradição dominante da ideologia conservadora" sustenta move uma ética de salva-vidas sob o lema "clarificação de valores" e
que "os menos aptos a sobreviver não devem ser protegidos pelo Estado", culmina num "coletivismo biológico da eugenia e da profilaxia social",
de acordo com o economista liberal Robert B. Reich; e esse tipo de con- na qual os cientistas e políticos iluminados reivindicam o direito de
s~rvadorismo, argumenta, recomenda-se aos americanos nos anos 80, "pois alocar os recursos escassos e de manifestar-se sobre o valor de sobrevi-
aP questões de sobrevivência assumiram, mais uma vez, um lugar central vência das idéias, crenças e práticas sociais em conflito. "Uma tendência
n~ consciência da nação" . No entanto, Louise Kaegi destaca corretamente sobrevivencialista ", escreve Kaegi, "fundamenta igualmente o Estado vi-
que o • sobrevivencialismo não é uma ideologia 'conservadora' e tampouco gilante 'partidário do livre-arbítrio' econômico, o Estado 'conservador' de
•1jberal'", A esquerda desenvolveu a sua própria versão do darwinismo segurança nacional e o Estado 'liberal' terapêutico ".
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prazo. Ao contrário da maioria dos estudiosos da sobrevivência, a uma cautelosa acumulação de reservas necessárias . a suportar
Cohen .. e Taylor tomam cuidado em diferenciar as situações ex- à vida diante das grandes pressões. O rebelde heróico, o guer-
tremas das tensões cotidianas, que perturbam a nossa paz de reiro e o astuto magnata, antigos protótipos da competição bem-
espírito mas podem ser resolvidas "sem ·afetar profundamente sucedida, cedem o seu lugar na imaginação comum ao esperto
. outras partes de nossa vida". Da mesma forma; Goffman chama veterano determinado não tanto a superar os seus oponentes,
a ·atenção para as diferenças entre as instituições totais e as como a sob;reviver a eles. O antigo código de combate, que
organizações que requerem apenas uma parte da atenção do enfatizava a dignidade da morte a serviço de uma causa meri-
indivíduo, em parte do dia. Ele também chama a atenção para . tória, perde a sua atração sob condições (a moderna tecnologia
suas similaridades, no entanto; e o efeito de seu pensamento, da guerra e do extermínio coletivo) que faze/11 a morte nem -
no conjunto, que combina um estudo das instituições totais, por doce nem apropriada. O sobrevivencialismo leva a uma desva-
um lado; com um estudo da vida cotidiana, por outro, acaba lorização do heroísmo. As situações extremas, escreveu Goffman,
por enfraquecer, inevitavelmente, a distinção entre situações · iluminam os "pequenos atos da vida"·, e· não as "altas formas
e*tremas e emergências do dia-a-dia. Uma vez que o imaginário da lealdade e da perfídia". As instituições totais organizam
do confinamento total tomou conta da imaginação contemporâ- maciços "assaltos ao eu", mas _ao mesmo tempo impedem a
nea, a tentação de estender esse imaginário a formas menores resistência efetiva, forçando os reclusos a recorrer, em vez disso,
d~ tensão e adversidade e de reinterpretar todo tipo de agruras à "recalcitrância", ao insulamento irônico ou à retirada, e à
à luz de Auschwitz revelou-se quase irresistível. Um estudo re- combinação de conciliação e falta de cooperação que Goffman
cente sobre os campos de concentração anunciava em seu título chamou "fingimento". As instituições totais fascinaram Goffman
a . questão que continua a absorver a imaginação no final do porque, entre outras razões, forçam os reclusos a viver um dia
século XX: "Como eles sobreviveram?". As respostas a essa de cada vez, desde que a absorção no imediato oferece a melhor
questão variam grandemente, como veremos no próximo capí- esperança de sobrevivência a longo prazo. O trabalho de Goff-
tulo, mas, no momento, é a própria indagação que nos interessa. man sobre as instituições totais baseava-se na mesma premissa
e uma pergunta que perpassa todo o nosso pensamento sobre que fundamentava seus estudos sobre a "preservação do eu na
os campos de extermínio nazistas; mas ela também está presente vida cotidiana": as pessoas revelam-se de maneira plena, mesmo
nas investigações históricas de outras minorias sujeitas à perse, sob as condições mais angustiantes, nos eventos sem heroísmo
guição e à ·discriminação, na. literatura psiquiátrica sobre o stress do intercâmbio cotidiano e não nos feitos da inteligência e da
e os "mecanismos de adaptação e em grande parte dos escritos coragem. As instituições totais e, acima de tudo, os campos ·de
populares sobre as tensões experimentadas no mundo dos negó-., extermínio fizeram-nos conscientes da banalidade do mal, na
, cios. A exposição direta ou vicária às situações extremas cercou famosa frase de Hannah Arendt; mas elas também nos ensina-
não apenas a opressão, e a adversidade mas a rivalidade e a ram algo sobre a banalidade da sobrevivência. Um sentimento
competição do dia-a-dia com um novo conjunto de _imagens, crescente de que os heróis não sobrevivem inspira o desencanto r -
alterando assim a forma como são experimentadas a opressão, com os códigos convencionais de masculinidade, aos quais já ;,
a adversidade e a competição. A advertência assume novos sig- aludimos no capítulo anterior. Não é apenas a masculinidade
nificados, em uni mundo no qual os campos de concentração que perdeu o seu valor de sobrevivência, no entanto, mas todo
permanecem como uma metáfora obrigatória para a sociedade o conjunto dos ideais supostamente antiquados de honra, desafio
como um todo. · heróico das circunstâncias e auto-superação. Como notou Vin-
A competição, por exemplo, centra-se agora não tan,t,o po cent Canby em sua crítica do filme de Lina Wertmüller, Pas-
desejo de levar vantagem; mas na luta para evitar. uma_ d~rrota : qualino Sete Belezas, o sobrevivente descobriu que "o' idealismo
arrasadora. A ânsia de arriscar tudo na busca da vitórià dá lu~a! é a autoderrota".
64 O M!NIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIVi!:NCIA 65

A crítica do sobrevivencialismo e a Guerra Fria Feher e Heller, "entre uma vida boa e a vida, meramente".
Segue-se que "a violência e as guerras não podem ser total-
Essa pesquisa preliminar sobre os temas da sobrevivência mente eliminadas de nossas ações se procuramos algo além da
pode sugerir a conclusão de que nossa sociedade sofre de falta sobrevivência".
de fibra, que ela precisa recuperar o seu senso de propósitos e Tanto o conteúdo desses argumentos como o fervor moral
voltar a dedicar-se aos ideais de liberdade nos quais se baseou. a eles subjacente lembram os ataques ao apaziguamento desfe-
A deterioração das relações soviético-americanas desde 1979, a ridos por Lewis Mumford e Reinhold Niebuhr, entre outros, no
escalada da corrida armamentista e a retomada da Guerra Fria curso da polêmica sobre a política externa, vinda à luz nas vés-
forneceram a esse tipo de discurso uma certa plausibilidade. peras da Segunda Guerra Mundial. Niebuhr achava difícil enten-
Desse modo, Phyllis Schlafly condena os defensores do desar- der "em que sentido a paz de Munique deva ser comemorada,
mamento nuclear como pessoas que não podem conceber um porque 'ao menos ela adiou a guerra' . J?. efetivamente verdadeiro
objetivo mais alto que a-mera sobrevivência. Norman Podhoretz que postergar uma guerra seja aumentar as chances de impedi-la
lastima a "cultura do apaziguamento" e a crescente ausência de de forma definitiva?". O liberalismo pragmático, como o deno-
inclinação a defender os interesses e a honra nacionais ameri- minava Mumford, perdera "o sentido trágico da vida''; Este se
canos. Sidney Hook, num ácido ataque à "estratégia da rendição recusava a defrontar-se com a real.idade da morte, na esperança
final", supostamente defendida por Bertrand Russell e, em tem- de que "os rápidos avanços da ciência no campo da higiene e
pos recentes, por George F. Kennan, afirma que esta se funda da medicina pudessem adiar cada vez por mais tempo aquela
na doutrina de que "a sobrevivência é a essência última da vida, ocasiãó desagradável". Em 1940, Mumford relatava um diálogo
o valor supremo". Em vez de se arriscar à guerra nuclear, Rus- com um liberal que lhe contou não poder apoiar uma decisão
sell e Kennan " aceitariam a -certeza da dominação comunista", política passível de levar à guerra de outros seres humanos.
na opinião de Hook. Citando Alexander Soljenitsin - "Para "Quando objetei que o fracasso em tomar tal decisão, na situa-
se defender, é preciso estar disposto a morrer" - , Hook de- ção internacional vigente, levaria cer_tamente à morte menos
fende que "se renovássemos a nossa coragem moral, a nossa frutífera desses mesmos seres humanos no prazo de seis meses
dedicação à liberdade, poderíamos evitar tanto a guerra quanto ou de seis anos, confessou que, para ele, . qualquer tempo adi-
a capitulação nos dias vindoutos". Por outro lado, "aqueles que cional poupado para o gozo privado da vida parecia um grande
dizem que a vida merece ser vivida a qualquer custo sempre ganho." Esse homem "cessara de viver num mundo significa-
escreveram para si próprios um epitáfio de infâmia, pois não tivo", concluía Mumford. "Um mundo significativo é aquele
há causa ou pessoa que eles não trairiam para permanecer com que carrega um futuro que se estende além da incompleta vida
vida". pessoal de um indivíduo; de tal modo, uma vida sacrificada no
O movimento pacifista viu-se recentemente alvo de ataque momento correto é uma vida bem gasta, enquanto uma vida
não apenas da direita mas de alguns poucos críticos da esquerda cuidadosamente entesourada ou ignominiosamente preservada é
que apresentam a mesma objeção a uma concepção "zoológica" uma vida desperdiçada por completo."
da política, como a denomina Cornelius Castoriadis. "Se nada Atualmente, o movimento pacifista atrai um ataque seme~
vale a morte, .. . então por nada vale a pena viver", escrevem lhanfe quando toma a sobrevivência como lema - Better red
Ferenc Feher e Agnes Heller numa edição recente de Telas, than dead (Melhor vermelho que morto) - , ou associa a si
uma de uma série de edições dedicadas à crítica inesperada- próprio com a oposição a qualquer forma de sacrifício pessoal.
mente virulenta do movimento pró-desarmamento nuclear. Ainda Essa atitude reflete uma relutância generalizada não apenas a
que a paz mundial se torne mais desej ável que nunca, numa morrer em uma guerra injusta mas a morrer por qualquer causa
época de armas nucleares, "há ainda uma contradição", segundo que seja; reflete a recusa aos compromissos morais e emocionais
66 O MÍNIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIV:eNCIA 67

que identifica a mentalidade da sobrevivência com a cultura do lógico - a disposição de nossas vidas por outros, sem o nosso
narcisismo. "Para o narcisista", escreve Russell Jacoby, "o sa- consentimento - acaba por privar-nos da própria capacidade
crifício é uma fraude , uma perda sem nenhum benefício". A de assumir a responsabilidade por decisões que nos afetam ou
política contemporânea, para estar seguro, fornece uma abun- de adotar qualquer postura perante a vida, exceto a de vítimas
dância de razões realistas para encarar o sacrifício sob este e sobreviventes. A experiência da vitimação, que justifica a
prisma. Quando as autoridades públicas exortam os cidadãos a resistência, também pode destruir a capacidade para a resistên-
diminuir o consumo de combustível para aquecimento e as em- cia, ao aniquilar o sentido de responsabilidade pessoal. B esse,
presas de serviços públicos respondem com o aumento dos pre- precisamente, o maior dano infligido pela vitimação: a pessoa
ços para compensar a menor demanda, a idéia de que o sacri- aprende a enfrentar a vida não como um agente moral, mas
fício é um embuste passa a fazer bastante sentido. Há uma unicamente como uma vítima passiva, e o protesto político de-
diferença, contudo, entre o tipo de descontentamento político genera em uma lamúria de autocomiseração. Testemunham isso
baseado numa consciência realista de que o sacrifício geralmente as inumeráveis variações do sempre popular tema esquerdista
recai sobre aqueles que menos podem suportá-lo e a perda da da injustiça de se "culpar a vítima". 5
própria capacidade do sacrifício, da lealdade e dos compromis- O movimento antibélico e o movimento conservacionista
sos pessoais. No filme de grande sucesso Amargo Regresso, com (estreitamente associados entre si, precisamente em sua crescente ·.
Jane Fenda e Jon Voigt, que captava a reviravolta dos senti- insistência no tema da sobrevivência) apelam a alguns dos
mentos populares contra a guerra, na esteira do Vietnã, um piores impulsos da cultura contemporânea, quando proclamam
veterano paraplégico faz uma preleção a uma assembléia de que " nada vale a morte", na expressão de um cartaz exposto
estudantes de segundo grau sobre os males da guerra. O estri- numa manifestação contra o alistamento no início dos anos 70.
bilho de sua alocução é que aqueles que vão lutar no Vietnã Quando Richard Falk recomenda um "compromisso moral com
- ali morrerão. Ainda que mais uma vez se possa argumentar, a sobrevivência" , ou quando Paul Ehrlich e Richard Harriman
corretamente, que a causa americana no Vietnã - e em todas convocam um "movimento pela sobrevivência", contra os con-
as ações policiais futuras incumbidas da defesa de interesses troles militares e das grandes corporações, eles dramatizam a
corporativos ou de um equivocado ideal de grandeza da Nação importância das questões ecológicas e tornam mais difícil que
- não justificava o sacrifício de vidas americanas, a atitude antes desconsiderar-se a preservação como um tema caro apenas
transmitida por esse filme ultrapassa a oposição ao imperialismo
para chegar a uma oposição a qualquer forma de sacrifício, com (5) Na época do protesto contra o Vietnã, uma estudante da Univer-
base não em princípios morais ou políticos mas numa espécie sidade de Iowa interrompeu um debate sobre a "nossa " política externa
para rejeitar a responsabilidade pela guerra do Vietnã que parecia estar
de recusa mais profunda que se apega à vida a todo custo. implícita no uso do pronome da primeira pessoa. "Não é a minha guerra",
B como se os realizadores de Amargo Regresso fossem incapazes disse ela, "é a guerra deles ; é o país deles; e não tem nada a ver co-
migo" . Na ocasião, pareceu-me que este desabafo representava um corre-
de imaginar algu~a forma de lealdade que pudesse justificar o tivo útil ao tipo de discussão conduzida pelos oponentes "responsáveis"
sacrifício da vida. O personagem representado por Voigt voltou à guerra, com o pressuposto implícito de que tais debates devexiam con-
para casa vindo do Vietnã, com ferimentos mais graves que os finar-se a um sistema de decisões políticas que incluía os intelectuais,
enquanto oposição leal. Ainda hoje penso assim. Entretanto, os aconteci-
imaginados por seus criadores, uma paralisia da vontade moral; mentos subseqüentes restringiram essa impressão, ao sugerir que muito
e esse exemplo mostra como, embora seja possível distinguir radicais que rejeitavam a guerra "deles", com muita freqüência, rejeita-
analiticamente entre a recusa a fazer sacrifícios por uma causa vam qualquer tipo de lealdade. Muitos deles recusavam-se a assumir
responsabilidades por qualquer coisa, com o argumento de que não ti-
indigna e uma capacidade de sacrifício prejudicada, do ponto nham nenhum controle sobre as "decisões que afetam a nossa vida". Ao
de vista histórico, elas sempre se mostram inseparáveis. O tipo fa zer esta afirmação, não quero dizer, evidentemente, que a oposição
atual à guerra do Vietnã ou à guerra nuclear possa ser reduzida a uma
de experiência histórica da qual o Vietnã representa o clímax patologia pessoal.
68 O M1NIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIVJ!:NCIA 69

aos amantes da natureza e aos fanáticos da vida selvagem. cleares, contudo, frustraram as intenções desse raciocínio. Elas
Infelizmente, reforçam também a formação mental que encara transformaram a prevenção de uma guerra total num imperativo
a preservação da vida como um fim em si, a mesma formação moral, não mais umá esperança zelosa. Mesmo aqueles que
mental que inspira a moderna tecnologia médica, por exemplo, defendem um maior desenvolvimento das armas nucleares de-
com seu zelo por estender a vida, sem preocupação com a sua fendem essa política com o argumento de que ajudará a impedir
qualidade. "Vários fatos nos dão esperança", escrevem Ehrlich uma guerra mais ampla. Até há bem pouco tempo, pelo menos,
e Harriman na conclusão de seu manifesto preservacionista era de conhecimento geral que ninguém podia esperar vencer
Como Ser um Sobrevivente, um livro pleno de predições alar- uma guerra nuclear e que a utilização do.s armamentos nuclea-
mantes sobre superpopulação, guerras globais e desastres ecoló- res, seja pelos rµssos, seja pelos americanos, equivaleria ao sui-
gicos. "O primeiro é que a própria sobrevivência é o tema. cídio nacional. Tal conclusão se fundamenta não em uma mora-
Uma vez que as pessoas o entendam, lutarão furiosamente por lidade "zoológica", mas no simples realismo: numa consciência
ela." Ao· contrário, o compromisso exclusivo com a sobrevivên- de que essas armas não podem ser usadas para garantir nenhum
cia parece mais passível de conduzir às montanhas. Se a sobre- objetivo nacional.
vivência é a questão preponderante, as pessoas concentrarão Mumford baseou seu raciocínio contrário ao sobrevivencia-
mais interesse em sua segurança pessoal que na sobrevivência lismo, é bom lembrar, na premissa de que este fracassava em
de toda a humanidade. Os que baseiam a causa da preservação visualizar um "futuro que ultrapasse a incompleta vida pessoal
da natureza e da paz na sobrevivência não somente apelam a do indivíduo". O advento das armas nucleares, como ele próprio
um sistema de valores degradado, como derrotam os seus pró- foi um dos primeiros a reconhecer, coloca um outro tipo de
prios objetivos. ameaça ao futuro. Quando se trata da guerra nuclear, ninguém
Seria um grande equívoco, porém, ver nos movimentos so- pode argumentar que a disposição a arriscar-se à guerra, hoje,
ciais contemporâneos apenas mais uma expressão de uma des- poderá salvar vidas amanhã. Ninguém pode acusar os críticos
prezível vontade de aferrar-se à vida a qualquer custo. A insis- da guerra nuclear, como Mumford acusava os oponentes à
tência de Soljenitsin em que a autodefesa implica uma dispo- guerra em 1940, de esquecer que uma vida sacrificada no mo-
sição a arriscar-se à morte, como veremos mais detidamente no mento correto é uma vida bem vivida. O sacrifício deixa de ter
próximo capítulo, funda-se numa compreensão arduamente con- sentido, se ninguém sobrevive. É precisamente a experiência da'
seguida sobre a situação dos indivíduos confrontados com a morte em massa e a possibilidade de aniquilação, entre outros
extrema adversidade; mas ela não se aplica necessariamente à processos, que desacreditou a ética do sacrifício e estimulou a
situação das nações confrontadas com a perspectiva da guerra expansão de uma ética da sobrevivência. O desejo de sobreviver
nuclear. Tampouco os enfoques morais de Niebuhr e Mumford a todo custo deixa de ser completamente desprezível sob con-
podem iluminar as condições internacionais de hoje, a menos dições que põem em xeque o futuro do conjunto da humanidade.
que se possa apreender o modo como estas diferem das exis- As mesmas condições tornaram a idéia do sacrifício temporário
tentes antes da Segunda Guerra Mundial. A crítica do pré-guerra insustentável. Convocar as pessoas a que entreguem as suas vi-
ao apaziguamento era dirigida diretamente contra o pensamento das numa guerra nuclear, com o argumento de que o futuro
veleitário de que um adiamento da guerra poderia, de alguma " ultrapassa a incompleta vida pessoal do indivíduo", constitui
forma, capacitar as democracias ocidentais a evitarem totalmente um absurdo moral.
a guerra. O argumento mais importante apresentado por Nie- A crítica do sobrevivencialismo só tem um apelo moral à
buhr e Mumford era o de que um adiamento do conflito levaria nossa atenção, nos anos 80, se ela se identifica com o movi-
meramente à "morte menos frutífera desses mesmos seres hu- mento pelo desarmamento nuclear e a preservação ambiental.
manos, no prazo de seis meses ou de seis anos". As armas nu- De outro modo, a defesa de uma moralidade supostamente ele-
11
70 O M1NIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIVl!:NCIA 71

vada - honra nacional, liberdade política, desejo de assumir riores - os portadores da percepção de se prepararem para o
riscos e fazer sacrifícios por uma causa meritória - irá em pior e da fibra moral para "vencer" - manterão o mundo em
geral revelar-se; a um exame mais detido, como outra variante funcionamento, após o apocalipse, talvez mesmo para recons-
da moral da sobrevivência, que aparentemente condena. Os que truí-lo sobre novas bases. Hoje, a ética da sobrevivência aparece
se recusam a descartar o recurso às armas nucleares, argumen- em sua forma mais desenvolvida não no movimento pela paz,
tando que um ataque soviético à Europa ocidental não poderia mas nos preparativos efetuados por aqueles que se orgulham
ser rechaçado sem ele, tiveram que defender a possibilidade de de sua capacidade de pensar o impensável - preparativos que
os Estados Unidos efetivarem uma guerra nuclear e "vencê-la". abrangem desde a pesquisa de alto nível para um sistema de-
Em 1960, Herman Kahn foi um dos primeiros a sustentar que fensivo impenetrável, que supostamente tornaria possível aos
os Estados Unidos poderiam fazer preparativos capazes de asse- Estados Unidos lançarem um ataque nuclear sem o temor de
gurar não apenas a sobrevivência física da população, ou de uma retaliação, até a construção de abrigos privados, bem-pro-
uma parcela significativa dela, mas os recursos materiais e cultu- vidos de espingardas alemãs de ar comprimido, bestas medie-
rais necessários à reconstrução do modo de vida americano. vais, trajes anti-radiativos, tanques de armazenamento para água
Hoje em dia, esse tipo de raciocínio, que deixa de lado a coibi- e combustíveis, alimentos desidratados e peças de automóveis,
ção e procura assegurar a vitória num conflito nuclear, parece com os quais alguns poucos indivíduos esperam tolamente pros-
ter-se tornado a política oficial americana. Os sobreviventes seguir com vida, enquanto a civilização se despedaça em torno
invejarão os mortos, neste enfoque, apenas se os americanos deles.
persistirem na crença equivocada de que uma guerra nuclear é
inconcebível e que seus esforços deveriam, por conseguinte, se
dirigir à prevenção do confronto e não à sobrevivência a ele.6 Descartar-se de tudo: a disciplina espiritual da sobrevivência
A crítica da Guerra Fria ao sobrevivencialismo, que perso-
naliza o movimento antibélico com uma condenação especial, Aqueles que acreditam em preparar-se para o pior e levam
ignora as expressões muito mais marcantes da ética da sobrevi- tal posição a sua conclusão lógica condenam o "pensamento do.
vência. Lamenta a compreensível falta de inclinação do indivíduo movimento pacifista", como o denomina Doris Lessing, não
comum a morrer por uma causa que tem pouco significado, porque este valoriza tão alto a sobrevivência, mas porque supos-
apenas para sustentar a possibilidade de que os indivíduos supe-

(6) Aparentemente, os Estados Unidos continuam comprometidos com nuclear ou prepará-la para sobreviver a um confronto atômico, e mesmo
uma política de contenção das armas nucleares. Mas o secretário da De- "triunfar•, sabotam a contenção e tornam a guerra nuclear mais provável,
fesa, Harold. Brown, anunciou ominosamente, em 1980, que "nós estamos Em março de 1983, o presidente Reagan afastou-se consideravelmente da
necessariamente conferindo maior atenção a como seria travada efetiva- contenção quando propôs um estudo tecnológico da "era espacial" que
mente uma guerra nuclear por ambos os lados, caso a contenção fra- tornaria desnecessário confiar no temor da retaliação para dissuadir um
casse" . Em abril de 1982, o secretário de Estado Alexander Haig, num ataque soviético"." Ele apresentou a nova política como "uma visão do
discurso na Universidade de Georgetown, defendia que "à contenção nu- futuro que oferece esperança", quan~ lia verdade esta não oferece nada,
clear depende de nossa capacidade de, mesmo após sofrer um maciço a não ser problemas: no mínimo, uma corrida armamentista nuclear inde-
ataque atômico, impedir o agressor de assegurar uma vantagem militar finidamente prolongada.
e triunfar num conflito". Até recentemente, a contenção era, em geral, A única maneira de "libertar o mundo da ameaça da guerra nuclear"
compreendida como dependente da destruição mutuamente assegurada, - o objetivo aparente de Reagan - é proibir os armamentos atômicos.
e não da capacidade de lutar uma guerra nuclear ou de impedir o outro Mesmo a contenção é precária, precisamente por ser tão difícil para os
lado de •triunfar". Ela depende apenas da capacidade para lançar um políticos aceitarem as suas limitações - conviver com uma estratégia que
maciço contra-ataque. Não exige a igualdade entre os Estados Unidos e torna as armas .nucleares politicamente inúteis - e .por ser tão atrativo,
a União Soviética; tampouco requer qualquer programa de defesa civil. portanto, o aguçamento de estratégias mais agressivas, ainda que anun-
Ao contrário, as políticas qi.te visam fazer a nação invulnerável ao ataque ciadas como "contenção", mas dirigidas a outra meta ilusória: a vitória,
invulnerabilidade e sobrevivência.
A MENTALIDADE DA SOBREVIV:E:NCIA 73
72 O M!NIMO EU

tamente corporifica um "desejo de morte". Poucos escritores Se os movimentos pacifista e conservacionista não detêm
articularam de modo tão claro como Lessing a moral que define monopólio sobre o sobrevivencialismo, tampouco monopolizam
a sobrevivência como o bem supremo. Ex-defensora do desar- u visão de um colapso iminente. Os críticos da "subcultura do
mamento, passou a acreditar que um programa de defesa civil mil ênio", como a denomina Charles Krauthammer em um artigo
adequado "protegeria as pessoas contra qualquer coisa, exceto que lamenta a imaginação apocalíptica de nossos tempos, busca-
um ataque direto". "A habilidade está aí", defende em uma ram as suas origens no fundamentalismo religioso e na versão
entrevista recente. Uma "fria análise dos fatos" indica que "po- secularizada do apocalipse supostamente pregada por alarmistas
demos sobreviver a tudo que .se possa mencionar". Ela assume como Bertrand Russell , Jonathan Schell, Paul Ehrlich, Robert
a posição de que os seres humanos "são supreinamente equipa- )ay Lifton e o Clube de Roma. Conforme Krauthammer, "os
dos para sobreviver, para adaptar-se e, mesmo, a longo prazo, profetas da ruína", que predizem o holocausto nuclear ou uma
para começar a pensar". crise ambiental extrema, ignoram "a capacidade humana para
Esse pseudo-realismo fundamenta-se na convicção de que adaptar-se" -a "elasticidade da natureza humana e a adapta-
a civilização européia chegou ao fim; que a sua morte deve ser bilidade das sociedades humanas". Aqui, mais um vez, o fogo
encarada, no geral, sem pesar; é que, de todo modo, a esperança é mal-dirigido. A visão apocalíptica aparece em sua forma mais
de revitalizá-la através da ação política é uma ilusão, "uma das pura não na asserção de que a corrida armamentista nuclear ou
mais poderosas falsas idéias desta época" - a nossa época, o o desenvolvimento tecnológico incontrolado possam levar ao fim
Século da Destruição, visto agora na perspectiva extraterrestre do mundo , mas na alegação de que um remanescente poupado
adotada na recente "ficção espacial" de Lessing, porque nos sobreviverá ao fim do mundo e construirá algo melhor. Não é
habilita a enxergar "de fora este planeta . . . como se fossem a predição da ruína que caracteriza a imaginação apocalíptica,
espécies totalmente enlouquecidas". À medida que decai a espe- agora ou no passado, mas principalmente a crença de que uma
rança na mudança política, a atenção se volta para o "negócio nova ordem nascerá das cinzas da conflagração vindoura, na
da sobrevivência", diz Lessing: aos "seus recursos e truques, e qual os seres humanos finalmente atingirão um estado de per-
pequenos expedientes". A obra recente de Lessing, como a maio-.
feição.
ria da ficção atual, dirige-se ao sentimento dominante de se Particularmente em sua forma secular moderna, a v1sao
viver num mundo no qual as exigências da sobrevivência coti- apocalíptica do futuro afirma a possibilidade da sobrevivência e
diana absorvem as energias, que poderiam ser dedicadas ante- da transformação humanas fundando-se precisamente no argu-
riormente a um ataque coletivo aos perigos comuns com que se mento de que os homens e as mulheres são infinitamente adap-
defronta a humanidade. Como outras fantasias antiutópicas, ge-
táveis e plenos de recursos. Assim, na obra de Lessing, a espe-
radas em crescente abundância por uma sociedade capaz de
rança de sobrevivência - humana ou . meramente pessoal -
destruir-se, os escritps de Lessing devem a sua força não tanto
baseia-se na reconstrução do eu, no desenvolvimento de poderes
à sua visão horripilante e ambígua do futuro (ambígua porque
mentais mais elevados e nunca explorados e na transcendência
pode ser tomada tanto como um alerta quanto como boas
das limitações biológica e das emoções humanas ordinárias.
vindas), mas à sua habilidade em captar o sentimento da vida
Martha Quest, a heroíca de A Cidade das Quatro Portas, inicia
cotidiana como já experimentado por habitantes de impérios
setentrionais decadentes, pessoas imersas numa época árdua. a "criação" de um novo eu acordando mais cedo de manhã,
"Sim, tudo isso era impossível", diz o narrador de Memórias de abandonando o conhaque da noite e desvinculando-se de seu
um Sobrevivente. "Mas, depois de tudo, eu aceitei o impossível." amante. "Quando se trata da sobrevivência, o sexo, incontro-
Como Herman Kahn, Doris Lessing aprendeu a pensar sobre o lável, pode ser controlado." O seu novo regime - o "mecanis-
impensável. . mo" da sobrevivência pessoal no " nível mais baixo" - prote-
O MtNIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIV1'.:NCIA 75
74

ge-a contra o "renascimento da mulher apaixonada", essa "mu- destino da humanidade. "Se você se prepara para sobreviver,
lher faminta, nunca saciada, jamais em paz, que necessita e você é digno da sobrevivência." Por outro lado, "aq~eles que
quer, e precisa ter" e a conduz aos maiores direitos da auto- podem, mas não se preparam, não merecem sobreviver e as
"programação". Ela avança sem dormir, luta contra si mesma, espécies serão aprimoradas sem eles".
despoja e exaspera a si própria e, nesse caminho, prepara-se Arquiindividualistas, Saxon e os seus não teriam muito a
para seguir a alienada mulher de seu amante, numa desciqa admirar na visão de Doris Lessing sobre uma nova ordem ba-
controlada rumo à loucura. Essa "tarefa de reconhecimento do seada no entendimento de que o "indivíduo não conta"; mas
novo território" dá a ela a consciência para "empregar seu corpo eles sustentam a mesma visão sobre a disciplina espiritual re-
como uma máquina para sair da pequena prisão sombria do querida para a sobrevivência . Cor~e o~, seuA l~ç_os; simplifique
cotidiano"; fornece-lhe a mais alta tecnologia da percepção, com suas necessidades; volte ao essencial. Voce nao pode perder
a qual os sobreviventes da "catástrofe" iminente - como se seu tempo com amigos que têm pouco potencial corno ~liados",
aprende no apêndice a esse romance, a primeira das visões apo- escreve Saxon. "A sobrevivência procura o n.º 1." Lessmg acre-
calípticas de Lessing sobre o faturo próximo - iniciam a vida dita, ao contrário, que a individualidade é uma ilusão suste~tada
outra vez e procriam uma raça superior de mutantes, crianças por criaturas que "ainda não chegaram a uma cornpreensao de
sobrenaturalmente dotadas que "incluem (toda a recente) histó- seus eus individuais como meras partes de um todo, ... partes
ria em si próprios e que a transcenderam". da natureza". Não obstante, essas atitudes opostas compartilham
Os defensores da preservação ambiental e do desarmamento uma insuspeitada afinidade. Ambas repu~iam as em?ções hu-
manas ordinárias e os laços de amor e amizade que distraem as
nuclear pintam um retrato sombrio do futuro a fim de chamar
a atenção para a necessidade da transformação social e política. pessoas dos propósitos "mais elevados". Ambas part~~ d? pri~-
cípio, com efeito, de que as exigências . da ~o~r~vi~en~i~ nao
Os verdadeiros milenários, por outro lado, separam-se de uma
deixam espaço para a vida pessoal ou a historia i~d:vidual.
ordem social fadada à destruição e combatem em proveito pró-
Acima de tudo, os sobreviventes têm que aprender a via1ar ~~m
prio. "Os sobrevivencialistas não se envolvem, de forma alguma,
pouca bagagem. Não podem vergar-se ao p~so de ~ma famil:8,
com a política nacional", diz Kurt Saxon. "Eles têm consciência de amigos ou vizinhos, exceto o tipo de amigos cuJa morte nao
de que, como parte de uma minoria inteligente, os seus votos
requer mais que um encolher de ombro~. A ba_gagem ~mocional
serão cancelados. . . pelos ignorantes." Os principais expoentes deve ser jogada pela amurada, se o navio precisa contmuar fluo
do sobrevivencialismo, como Saxon, Mel Tappan, e William Pier tuando . "Quando se chega à meia-idade", explica Doris Lessíng
não compartilham o misticismo sufista de Doris Lessing, mas a um entrevistador, " ... é muito comum olhar para trás e pensar
concordam com sua confiança na capacidade humana de adap- que boa parte do som e da fúria com os quais nos envol~emos
tar-se à penúria extrema, com o seu desprezo pela política e sua não eram tão necessários. Há quase sempre uma sensaçao de
crença na necessidade de uma elite 'moral. "A sobrevivência é enorme alívio, por se ter emergido de um grande redemoinho de
atualmente o tema mais importante", escreve Saxon em seu emocionalismo". A meia-idade trás a liberação não apenas do
jornal mensal, mas "apenas alguns o reconhecem". As "massas desejo sexual e do torvelinho emocional mas ~a ilusão d~ que
ignorantes" estão "condenadas" e "os mais capazes estão encer- "se se está em um violento estado de necessidade emocional,
rados em uma tecnologia interdependente". Somente uns poucos este é a nossa única necessidade ou estado emocional". Na
auto-selecionados construíram abrigos, armazenaram provisões e ótica de Lessing, que condensa a falsa maturidade e o pseudo-
fizeram-se auto-suficientes. A sua ampla visão faz deles os mem- realismo dos sobrevivencialistas, "realmente, a experiência mais
bros de uma elite que comanda não apenas o seu destino, como sa1,1dável e fascinante é ir até o fim, descartando-se de tudo"•
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Quem são os profetas da ruína? - a fim de atingir basicamente o mesmo resultado: "decretar
um paralelo com o que aconteceu na Europa, quando ~ Amé-
O que define a mentalidade do Juízo Final, injustamente rica estava sendo colonizada", como o coloca Stewart Brand,
atribuída aos conservacionistas e aos defensores do desarma- quando "novas terras significavam novas possibilidades (e) no-
mento, é a injunção de preparar-se para o pior, seja o aceitando vas possibilidades significavam novas idéias". Neófito inespe-
como a vontade de Deus ou o ponto culminante de algum rado da campanha pela colonização espacial, Brand, como Doris
grande desígnio histórico, seja entrincheirando-se para uma árdua Lessing, gravitou de um compromisso anterior com a paz e a
mas revigorante estação de adversidade, seja escapando de um ecologia para um entusiasmo pela conquista tecnológica do espa-
planeta condenado, rumo a uma nova fronteira do espaço exte- ço. Como editor do Whole Earth Catalogue, ele antes advogava
rior. Aqueles que planejam para o fim podem buscar a salvação as tecnologias caseiras, na esperança de tornar as pessoas inde-
na religião antiga, nas tradições místicas importantes do Oriente, pendentes dos aparelhos dispendiosos, destrutivas e explorado-
numa revitalização da tecnologia e do individualismo do século res, que exaurem os recursos naturais, poluem a terra e sua
XIX, no repúdio ao individualismo ou na viagem espacial; mas atmosfera, minam a iniciativa e fazem com que todos fiquem
todos concordam não somente em que o fim se aproxima, como cada vez mais dependentes dos especialistas. Em vez disso, o
também em que a previdência e o planejamento (tanto espiritual Whole Earth Catalogue sempre exortava as pessoas a isolar-se
como tecnológico) podem transformar o fim em um novo começo. nas montanhas, não tanto com o intuito de demonstrar que
Os que defendem, por outro lado, que a humanidade não tem poderiam viver erri harmonia com a natureza, mas com a inten-
chances de sobreviver ao fim, mas ainda tem uma oportunidade ção de sobreviver ao fim do mundo. Brand continua a se opor
de evitá-lo, desfazendo-se dos armamentos nucleares, desenvol- à espécie de sobrevivencialismo "paranóico", como explicou em
vendo tecnologias menos dispendiosas e adotando um modo de uma entrevista de 1980, mas agora ele rejeita a " auto-suficiên-
vida menos perdulário, recusam-se, corretamente, a consolar-se cia' ' apenas para abraçar o escapismo mais insidioso da viagem
com a fantasia de uma nova vida depois do apocalipse. Por espacial , a última expressão da psicologia da fronteira tão pre-
advertirem quanto às terríveis conseqüências que advirão do sente na cultura ocidental.
fracasso em transformar os nossos modos de vida, os conserva- Em um editorial que introduz a colonização espacial aos
cionistas vêem-se desconsiderados como profetas da ruína e vi- leitores de CoEvolution Quarterly, um periódico anteriormente
sionários apocalípticos; enquanto isso, os verdadeiros visioná- dedicado à preservação, à simplicidade voluntária e às tecnolo-
rios, exceto quando adotam ideologias direitistas inaceitáveis, gias de trabalho intensivo , Brand defende a idéia do "espaço
conquistam o reconhecimento por seu realismo e confiança. livre" numa linguagem remanescente das reivindicações do po-
e a fascinação de novas fronteiras, espirituais ou geográfi- pulismo do século XIX por "terra livre". Mas onde Kurt Saxon
cas, que fundamenta o apelo desse tipo de pensamento. A pre- vê o desafio da extrema adversidade como uma oportunidade
servação é impopular, porque rejeita a psicologia da fronteira de reviver a autoliberação individualista (" a melhor garantia
e o sonho da expansão ilimitada. O sobrevivencialismo, por individual de sobrevivência") , Brand , como Doris Lessing, o
outro lado, revive o velho sonho do império, a esperança de enfoca precisamente como um antídoto ao individualismo. "A
uma civilização em declínio que pode revigorar-se através da everidade do espaço obrigará à confiança de vida ou morte em
conquista, da expansão e da severa disciplina de um meio-am- cada um."
biente primitivo. Enquanto Kurt Saxon defende um retorno aos Outros entusiastas enfatizam que a viagem espacial pode
, fogões a lenha, às velas, à tração animal, aos arcabuzes e às encorajar a consciência planetária, o rompimento das barreiras
ervas medicinais, outros esperam utilizar a moderna tecnologia nacionais e a superação do provincianismo de um mundo divi-
em sua forma mais altamente desenvolvida - a viagem espacial dido em "repúblicas insulares". Argumentam também, obvia-
1 ·

78 O M1NIMO EU . A MENTALIDADE DA SOBREVIV:Jl:NCIA 79

mente, que as colônias espaciais resolveriam o problema da " disfarces tecnológicos de fantasias infantis". John Holt defendeu
energia, aliviariam a pressão da superpopulação e forneceriam a posição de que " os grandes problemas da terra deverão' ser
novos mercados. "Todos os -desastres com os quais nos defron- rnsolvidos na terra". No mesmo filão, E. F. Schumacher chamou
tamos, da guerra nuclear ao colapso ecológico e à maré de a atenção para o "trabalho que realmente precisa ser feito, no-
irracionalidade, têm um fator em comum: a pressão populacio- meadamente o desenvolvimento de tecnologias através das quais
nal", escreve Ben Bova em The High Road (A Estrada Superior) . a gente com~m, decente, trabalhadora, modesta e sempre humi-
O movimento pró-colonização do espaço exterior representa lhada pudesse melhorar sua sorte" . Dennis Meadows, um dos
"uma luta crucial contra . .. a fome, a pobreza, a ignorância e autores do relatório do Clube de Roma, concordou que a espe-
a morte. Precisamos vencer essa corrida, por uma razão "brutal- rança de "uma outra fronteira" bloqueava " a resposta construtiva
mente simples: a sobrevivência" . Mas é a promessa de um novo aos problemas aqui da Terra". George ~ald argumentou que
começo que faz da idéia da viagem espacial um fato tão atrativo as colônias espaciais levariam a despersonalização ao seu "último
às pessoas oprimidas pelo sentimento da exaustão da velha limite". Wendell Berry as viu como um "renascimento da idéia
ordem. Conforme concebidas pelo físico de Princeton, Gerard de progresso com toda a sua antiga ânsia pela expansão irres-
O'Neill, e explicadas em depoimentos perante comissões parla- trita, as suas concentrações totalitárias de energia e riqueza, o
mentares, em discursos na Sociedade do Futuro Mundial e outras seu descaso pelas preocupações de personalidade e comunidade".
organizações similares, e em seu livro The High Frontier (A " Tal como os utopistas que o antecederam", escreveu ele a
Fronteira Superior) , as colônias espaciais reviveriam o espírito Brand, "você imagina um nítido rompimento com todos os ante-
de aventura. "A raça humana encontra-se agora no limiar de cedentes humanos".
uma nova fronteira de ' cinco séculos atrás." O'Neill acrescenta Os que defendiam a colonização do espaço argumentaram
que "a humanidade poderia arrasar-se com a esc.assez de energia, que " a alternativa", como escreveu um leitor, " é o Apocalipse".
as pressões populacionais e o esgotamento das matérias-primas. Paul e Anne Ehrlich acusaram os conservacionistas de estreiteza
Tudo poderia tornar-se muito mais militarista e o mundo seria de visão por " rejeitar prematuramente a idéia das colônias espa-
cada vez mais um campo armado". Outro defensor da coloniza- ciais". Outros atribuíram o " clamor" contra a viagem espacial
ção espacial, Eric Drexler, cita a "profusão de perigos que se a um compromisso "ideológico" ou "teocrático" com as tecno-
colocam à sobrevivência das sociedades atrativas e à sobrevivên- logias de escala limitada, a uma crença doutrinária na "fi~it~de"
cia da própria civilização" e conclui que embora "o espaço como "requisito básico para um bom caráter" e a um pess1m1smo
possa não nos salvar, ele parece oferecer uma grande esperança". "ingénuo", "irresponsável" e "teológico". "Numa época de de-
O espaço "espera por nós", de acordo com Drexler, "terras esté- safio às fundações de nossa civilização industrial", escreveu
reis e· luz solar semelhantes às dos continentes da Terra um T. A. Heppenheimer, do Centro de Ciência Espacial, em Foun-
bilhão de anos atrás. Se existe um propósito de evolução, este tain Valley, Califórnia, "não nos cabe desconsiderar as tecnolo-
propósito diz vá·! " . gias mais importantes à nossa disposiçã~"· Paolo Sol~ri ~iu a
Quando Brand submeteu o projeto de O'NeiÜ sobre as colô- viagem espacial como um " novo passo imenso em dueç!o ao
nias espaciais aos leitores e amigos de CoEvolution -Quarterly e espírito". Buckminster Fuller a enfocou como uma extensao na-
solicitou críticas, deflagrou um debate que ajuda a diferenciar os tural do crescimento humano, "tão normal como o fato de uma
sobrevivencialistas, tanto no interior como fora do movimento criança sair do ventre materno, aprender aos poucos a ficar em
conservacionista, daqueles que ainda acreditam na possibilidade pé e depois correr ao redor, por suas própri_as pernas". _Nume-
d~ ação coletiva destinada a impedir o colapso da civilização, e rosos leitores expressaram reservas sobre a viagem espacial mas
nao apenas a preparar uns poucos sobreviventes para suportar a a viram como inevitável; a "crítica construtiva" dos conserva-
tormenta. Lewis Mumford rejeitou as colônias espaciais como cionistas, acreditavam. ajudaria a "humanizar" o programa. Do
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total dos que responderam ao convite de Brand, apenas 49 se t. 11111 filme recente de Louis Malle, Meu Jantar com André.
opuseram completamente à proposta das colônias espaciais, en- t 11 il 111111 g s retomam suas relações num restaurante de Nova
quanto 139 a aceitaram, com graus diversos de entusiasmo. Um l1111p11 • defendem as opções que os levaram a seguir rumos
leitor chegou mesmo a procurar convencer-se de que a constru- ti! •1 1 111 ·s. André viajou pelo mundo em busca de esclareci-
ção de colônias espaciais "estimularia a vida campestre e a 111111111 , piritual. Wally permaneceu em Nova Iorque, cavando
música rural , e a religião dos velhos tempos" . 1111l11tl h como escritor e ator e dividindo uma tediosa existência
il111111 11 ·a com sua namorada. Ele defende os confortos e con-
' 11 11 ·lt1s do dia-a-dia contra o desdém pelo insensato materia-
Sobrevivencialismo apocalíptico e apatia comum 11 111u pela cultura de massa demonstrado por André. Quando
1111 11 •I na que dorme sob um cobertor elétrico, provoca o escár-
O debate sobre a viagem espacial e outras fantasias sobre- 11 11 I · André. Segundo este, ligar um cobertor elétrico é "como
vivencialistas é uma discussão entre pessoas alarmadas pela de- f1111 111r um tranquilizante ou . . . sofrer a lobotomia de assistir à
terioração das condições físicas e sociais do planeta. Ela não f 1 1 v ·tio" . Wally responde: " a nossa vida já é bastante dura ,
tem interesse para os eternos otimistas que não vêem motivo 11 m " . "Eu apenas tento sobreviver", diz ele," .. . ganhar a vida" .
para alarme, que fecham os ouvidos aos relatos perturbadores Enquanto Wally se contenta com pequenos prazeres e obje-
ou que se aferram à esperança de que a humanidade conseguirá 1 v I limitados e atingíveis, André busca a transcendência espi-
se virar de qualquer jeito. Tampouco ela tem interesse para a 1 l l111 l , os estados mais elevados da consciência. Faz experiências
classe de pessoas, bem mais numerosa, que encara o futuro como 1•11 111 religiões orientais, exercícios espirituais de transformação
tão profundamente problemático que quase nunca suporta exa- d11 mente e retiros comunitários. Quer acordar o mundo ou, ao
minar a questão , preferindo preocupar-se, coerentemente, com 1,1 n s, salvar o melhor de nossa civilização quando o restante
temas mais imediatos e dóceis. As massas ignorantes, como as d lu entrar .em colapso. De volta a Nova Iorque, após uma
denomina Kurt Saxon, permanecem indiferentes ao planejamento 1 ngE1 ausência, ele a vê como o "novo modelo dos campos de
de longo prazo para a sobrevivência. Elas nunca tiveram muito • ncentração" - uma prisão habitada por "pessoas lobotomi-
interesse, igualmente, num programa governamental de defesa i udas" e "robôs". Ele e sua mulher "sentem-se como judeus na
civil ou na construção privada de abrigos para a sobrevivência, /\ lcmanha, no final dos anos 30". "Tivemos, na verdade, a sen-
em condomínios e coletivos de sobreviventes, ou em grupos como •ução muito desagradável de que nós realmente precisamos sair"
o Posse Comitatus ou o Survival, Inc. Também não mostraram - "escapar antes que seja demasiado tarde." "O mundo, agora,
interesse ativo pelo movimento conservacionista. Apóiam a le- bem pode tornar-se uma forma inconsciente e auto-suficiente de
gislação do meio ambiente, mas somente até onde esta não lavagem cerebral criada por um governo totalitário universal,
ameaça os seus assuntos. A sua "apatia" constitui motivo de cuja base é o dinheiro. " Sob tais condições, a única esperança
desespero, tanto· para os conservacionistas como para os adeptos é gue pequenos grupos de eleitos se congreguem em "ilhas de
da sobrevivência. Eles se preocupam com a sobrevivência apenas segurança onde a história possa ser lembrada e o ser humano
em seu sentido mais imediato. Entretanto, se comparada com possa continuar a existir, a fim de manter a espécie durante a
as fantasias apocalípticas postas em circulação pelos que se Idade das Trevas."
preocupam com a sobrevivência de longo alcance, a sua "apatia" O encontro entre André e Wally justapõe dois tipos de so-
parece bastante recomendável. brevivencialismo, ambos baseados na premissa não mencionada
O contraste entre essas duas atitudes, o ativismo apocalíptico e não examinada de que a crise da sociedade do século XX não
de uma elite sobrevivencialista auto-selecionada e a indiferença apresenta solução coletiva ou política. Reúne a banalidade da
dos cidadãos comuns frente às ideologias, sobressai com clareza existência cotidiana à banalidade da crítica social refinada , que
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denuncia uma sociedade de sonâmbulos e procura "despertar para as pessoas como W ally, parecem .servir meramente como
uma audiência sonolenta" com relatos alarmantes de catástrofe um teatro para a atuação de ideologias em conflito. O sobrevi-
iminente. "Vivemos em meio a uma praga". O câncer (causado, vencialista do cotidiano baixou os olhos, deliberadamente, da
segundo André, pelo "que fazemos com o meio ambiente") história para as imediações dos relacionamentos face a face.
atingiu "dimensões de verdadeira praga. . . Mas alguém o cha- Ele vive um dia de cada vez; paga um alto preço por sua ra-
ma assim? Quero dizer, na época da Peste Negra, quando a dical restrição de perspectiva, que impossibilita o julgamento
peste batia, as pessoas passavam o diabo". Um tip~ _de sobre- moral e a atividade política independente de forma tão efetiva
vivencialismo refugia-se no imediato; o outro, nas visoes apoca- quanto a atitude apocalíptica que corretamente rejeita. Permite-
lípticas do que está por vir. Ambos renunciaram à esperança, lhe continuar humano - o que não é uma façanha fácil, nestes
mas, enquanto André anseia abandonar o barc~ que afunda, tempos; mas o impede de exercer qualquer influência sobre o
Wally permanece na cidade onde cresceu, uma cidade saturada curso dos acontecimentos públicos. A sua própria vida pessoal
de lembranças. "Não havia uma rua, não havia um edifício que é tristemente rarefeita. Ele pode recusar a fantasia da fuga para
não estivesse ligado a alguma recordação em minha mente. Ali, a mo~tanha, para uma ilha deserta ou -para outro planeta, po-
eu estava comprando um terno com meu pai. Lá, eu tomava rém amda conduz a sua própria vida como se estivesse vivendo
um sorvete com soda, depois das aulas." Por sua vez, o des- num estado de sítio; pode recusar-se a ouvir sobre o tema do
prezo de André pela vida ordinária deriva de um sentime~to fim do mundo, mas, inconscientemente, adota muitos dos im-
terrificante de impermanência. "Um bebê pega em sua mao; pulsos defensivos a este associados. Os compromissos de longo
então, subitamente, eis esse homem imenso que o levanta ~o prazo e as ligações emocionais trazem certos riscos, mesmo nas
chão; depois, ele se vai. Onde foi seu filho? " As circunstâncias melhores circunstâncias; num mundo instável e impredizível,
contrastantes das vidas desses amigos sugerem que, embora um trazem riscos que as pessoas acham cada vez mais difícil aceitar.
sentido de lugar e um respeito pelos fatos comuns possam impe- Na medida etn que os homens e mulheres comuns não tenham
dir a imaginação de alçar vôo, eles também a impedem de consu- confiança na possibilidade de uma ação política coletiva - não
mir-se em vôos de fantasia apocalíptica. O próprio André per- tenham esperança de reduzir os perigos que as cercam - , eles
cebe nos novos " mosteiros", onde os sobreviventes se reunirão ocharão custoso ir adiante, sem adotar algumas das táticas do
para preservar o que restou. da civilização, um~ ::espéc~e ~-~ obrevivencialismo de linha dura; numa forma mais branda. A
paranóia elitista auto-satisfeita e crescente, uma ideia de eks Invasão da vida cotidiana pela retórica e pelo imaginário do
e 'nós' bastante deslocada ", que leva a uma " forma de certeza d sastre terminal leva as pessoas a fazerem opções individuais
autocontida e auto-ratificada". Com essas sensações, ele se vê m geral indistinguíveis, no seu conteúdo emocional, das opções
1 "com aversão por toda essa história" de sua própria busca pela r- alizadas por aqueles que orgulhosamente se referem a si mes-
1 transcendência mística. mos como sobrevivencialistas e que se congratulam por sua
A mentalidade do Juízo Final faz do sobrevivencialismo prcsciência superior do curso futuro da história.
1 cotidiano e ordinário de W ally um modelo de senso comum e
11 decência democrática. Sejam quais forem as suas limitações, este
retém um senso de lugar, uma lealdade às circunvizinhanças A estratégias cotidianas de sobrevivência
1 familiares e às suas ligações. Guarda algo daquilo que Hannah
Arendt denominou amor pelo mundo - vale dizer, as ligações Dessa maneira, o estilo mais ameno de sobrevivencialismo
e os ofícios humanos, que conferem solidez e continuidade às pr ·cisamente porque não é amparado por uma ideologia ou u~
nossas vidas. Mas, embora acalente as lembranças pessoais, essa programa político, ou mesmo por uma rica vida fantasiosa
atitude tem :p,ouca utilidade para a história e a política, que, (qu undo as fantasias mais compulsivas de nossa época identifi-
O M!NIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIVJ!:NCIA . 85
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cam-se não com a descrição realista da vida cotidiana mas com vés de uma autocompreensão mais profunda". Os manuais de
a visão da transformação apocalíptica), tende a dar lugar, em sucesso não estão sós quando exortam as pessoas a diminuir as
momentos de tensão pessoal ou de exaltada percepção imagin~- suas visões e a confinar sua atenção ao momento imediato. O
tiva, a um estilo mais duro. A vida cotidiana passa a assumir movimento do potencial humano, a literatura psiquiátrica e mé-
algumas das características mais indesejáv~is_ e sinistras do c?m- dica sobre a resistência, a crescente produção sobre a morte
portamento em situações extremas: restnçao das persp:ctt;~s recomendam a mesma estratégia para enfrentar as "crises pre-
às exigências imediatas de sobrevivência; auto-observaçao iro- visíveis da vida adulta". Centrar-se no presente serve não apenas
nica; individualidade multiforme e anestesia emocional. como pré-requisito para o "funcionamento" eficiente mas como
Enquanto o sobrevivencialista de primeira linha f ~z plano_s uma defesa contra a derrota. A primeira· lição que os sobrevi-
para O desastre, muitos de nós conduzimos as nossas vidas cott- ventes têm a aprender é a renúncia. Um jovem poeta descreve
dianas com se ele já tivesse ocorrido. Comportamo-nos c~mo se seu primeiro livro, adequadamente intitulado Reservations (Re-
em presença das "circunstâncias impossíveis", no "meto am- servas) , como uma coleção de "elegias a tudo, inclusive a mim".
biente aparentemente intolerável", nas "condiçõe~ extremas ~ Os seus poemas , diz ele, um tanto insinuamente, refletem um
imutáveis" da prisão ou do campo de concentraçao. Comparti- eu "com uma tênue ligação com seu meio circundante"· eles
lhamos o desencanto dominante com a "visão romântica das tentam "apreender o momento bastante longo para se' dizer
situações extremas", como a denominam Cohen e Taylor, em adeus, para deixar as coisas partirem, em vez de estar sujeito
seu estudo sobre o longo aprisionamento, "no qual o homem ao seu desaparecimento". O sobrevivente não pode se permitir
que resiste, que supera o seu meio circundant_e,_ ~ue se r~cusa repisar por muito tempo o passado, para que não deseje a morte.
a ser abatido, quaisquer que sejam as poss1b1hdades, . e um Ele conserva seus olhos fixos na estrada que está à sua frente.
herói". Alguma coisa desse romantismo sobrevive no, sei~ ~os Escora os fragmentos contra a sua ruína. Sua vida consiste em
sobrevivencialistas visionários, mas os restantes de nos nd1cu- atos e eventos isolados. Não tem história, não tem plano nem
larizamos o ideal John Wayne, sem que nos libertemos, entre- estrutura , como uma narrativa aberta. O declínio do modo nar-
tanto, das preocupações subjacentes ao estilo heróico de sobre- rativo, tanto na ficção como na literatura histórica - onde foi
vivencialismo. Deploramos ou rimos daqueles que se armam substituída por uma abordagem sociológica que procura recons-
contra o apocalipse, mas armamo-nos emocionalmente contra as truir os detalhes da vida cotidiana em épocas anteriores - , re-
flete a fragmentação do eu. O tempo e o espaço recolheram-se
investidas da vida cotidiana.
E tal o fazemos numa variedade de maneiras: por e~emp~o, no presente imediato, no meio circundante imediato do escritó-
concentrando nossa atenção nos obstáculos pequenos e imedia- rio , da fábrica ou do lar.
tos com os quais nos defrontamos todos os_ dias. "As p~sso~.s Os sobreviventes devem aprender o truque de observar-se
bem-sucedidas planejam suas vidas para os dias bem-sucedidos ; como se os acontecimentos de suas vidas estivessem ocorrendo
diz Michael Korda. "Avalie o seu desempenho pelo que voce com outros . . Uma das razões pelas quais as pessoas não mais
fez hoje, não pelo que fez ontem ou plan~ja faze: amanhã." se vêem como sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se
Os recentes manuais de sucesso, fazendo eco mconsc1ente ~ estu- vêem como sujeitos, de modo algum, mas como vítimas das
dos sobre O comportamento em situações extremas, en!a_tizam a circunstâncias ; e essa sensação de deixar-se guiar por forças
importância dos objetivos limitados ~ clar~mente de~1mdos ou externas incontroláveis inspira um outro modo de armamento
os riscos de repisar o passado ou de mvestlgar demasiado longe moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um
futuro. "No treinamento sensorial, concentramo-nos no que observador irônico, separado e confuso. A sensação de que isto
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denominamos o 'aqui e agora'." Tal abordagem, de acordo com não está acontecendo comigo ajuda a proteger-me contra a dor
um autor, promete "uma maior competência administrativa atra- e a controlar as expressões de ultraje ou rebelião que somente
1
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86 O M!NIMO EU A MENTALIDADE DA SOBREVIV1!:NC1A


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provocaria meus captores a torturas adicionais . Aqui, mais uma temporânea, contém ambigüidade insuspeitadas. Por um lado,
vez, uma técnica de sobrevivência aprendida nos campos de aponta para uma definição mais ampla do eu. Insiste correta-
concentração reaparece nos manuais de sucesso, onde é reco- mente na capacidade não desenvolvida de ternura no homem e
mendada como um método seguro de tratar com os "tiranos". de iniciativa e autoconfiança na mulher. Por outro lado reduz
Chester Burger, autor de Os Executivos sob Ataque e Sobrevi- º. i~divíduo, ao concebê-lo puramente como um produto do con-
vência na Selva Executiva, toma como suposto que a resistência d_1c10nam~nt~ ~ultu:al. Levado à sua conclusão lógica, descon-
aos superiores despóticos está fora de questão; mas também sidera a md1v1dualtdade como uma ilusão. Reduz a identidade
adverte seus leitores para não "bajular os tiranos". Em vez pessoal aos P!Péis sexuais e sociais que s~o impostos às pessoas
disso, exorta-os a "tentar uma qualidade de indifereHça" . por c~nvençoes que podem ser subvertidas, presumivelmente,
pelo. simples ato de assumir uma nova identidade ou "estilo
Você não pode permitir-se tomar essas situações (con- de vida".
flitos com superiores enciumados que procuram proteger
os seus 'pequenos impérios') de uma forma pessoal. Você . Uma. ,concepção de identidade infinitamente adaptável e
tem que recuar a fim de ver-se objetivamente como um mtercambiavel pode ajudar a libertar os homens e as mulheres
participante . . . Eu tento atuar como se eu fosse duas pes- de convenções sociais antiquadas, mas pode também estimular
soas : o participante e também o observador da situação . . . as manobras defensivas e o "mimetismo protetivo". Uma iden-
Tal técnica me possibilita a minimizar todo emocionalismo tidade estável permanece, entre outras coisas, como um lembrete
de minha parte que poderia desencadear alguma coisa no dos li~ites à adaptabilidade de cada um. Limites implicam vul-
outro sujeito. nerab1hdade, enquanto o sobrevivencialista procura tornar-se
invulnerável e proteger-se contra a dor e a perda. o desvincula-
O desempenho de um papel, outra estratégia reiteradamente mento emocional serve como mais um mecanismo de ·sobrevi-
recomendada pelos manuais de sobrevivência, serve não apenas vência. Uma tendência subjacente sempre presente nos recentes
para projetar uma imagem adequada de energia e confiança, manuais de sucesso, em muitos dos comentários sobre as situa-
como para proteger o eu contra os inimigos invisíveis, manter ções ~xtremas (com_o veremos, em mais detalhes, no capítulo
os sentimentos sob controle e controlar as situações ameaçadoras. posterior) e na poesia e na ficção atuais é o alerta insistente de
"Você tem que se sentir autoconfiante para poder inspirar con- que a proximidade mata. Assim, John Barth escreve romances
fiança e manter o controle", conforme Betty Harragan. "Uma povoados por "atores que não podem sentir as coisas" como
aparência de comando começa por representar um papel, uma 1osephine Hendin apontou em seu estudo sobre a litera;ura de
parte numa peça. . . A autoconfiança vem da prática, diante de ficção do pós-guerra - personagens guiados pela "ânsia de
qualquer audiência disponível." Nos " vastos sistemas atuais de matar qualquer proximidade em qualquer encontro". Nos ro-
racionalidade", de acordo com Melville Dalton, as pessoas têm mances ~e Robert Stone, como notou Hendin, "os amantes e
que recorrer ao que "os biólogos denominam 'mimetismo pro- os moralistas _são os primeiros a partir". Quando O protagonista
tetivo" '. O sobrevivencialismo estimula um sentido multiforme de Hall of M1rrors (A Sala dos Espelhos) identifica O corpo de
da individualidade, que se expressa na advertência rotineira sua se~horia, que se enforcou, tudo que pode pensar é: "Eu
para adotar a coloração protetiva do meio circundante, mas estou vivo, baby . .. Foi você que morreu, não eu. Não preciso
também, de forma mais ampla, em uma crescente rejeição dos de você. . . Sou um sobrevivente". No planeta imaginário de
papéis sociais prescritos pelas normas culturais "tradicionais". Kurt Vonnegut, os habitantes conduzem "guerras tão horríveis
Particularmente os papéis sexuais foram criticados como uma como qualquer das que você presenciou ou conheceu pela lei-
restrição arbitrária. à auto-expressão. O ataque aos estereótipos t~ra. Nada pod::Oºs fazer frent: a elas, por isso simplesmente
sexuais, como tantos outros aspectos da revolução cultural con- n.ao as olhamos . Quando alguem morre, os tralfamadorianos
88 O MtNIMO EU

"simplesmente encolhem os ombros" e dizem: "Assim são as


coisas". No livro de Robert Heinlein, Stranger in a Strange
Land (Um Estrangeiro numa Terra Estranha), o herói, único
sobrevivente de uma missão terráquea a Marte, volta à Terra
e se assombra com as emoções apaixonadas que encontra por
toda pàrte. "Como podem esses irmãos humanos sofrer intensa
emoção sem danos?" A questão, evidentemente, é que não po-
dem. A vida é· melhor em Marte porque lá não há emoção, nem
sexo. Na mesma vertente, Richard Brautigan escreve sobre ho-
mens que ficam tão frios como uma truta , enquanto William
Burroughs avidamente antecipa "toda uma geração ... que (não
sentirá) nem prazer nem dor".
O esgotamento da esperança em uma "ordem coletiva anti-
tética", conforme o autor de outro estudo sobre a literatura do
pós-guerra, Warner Berthoff, gerou uma escrita da "compensação
pessoal e da indenização dos sobreviventes", uma literatura "por,
para e, em grande parte, sobre os sobreviventes". O mundo do
escritor do pós-guerra, salienta Berthoff, consiste em "um imen-
so sistema burocratizado e conspiratório ao qual os homens e
mulheres estão essencialmente escravizados, tenham ou não cons-
ciência disso, e do qual não é possível escapar, a não ser por
um retraimento tão absoluto da individualidade, que a sua efe-
tivação natural seria o suicídio". O suicídio torna-se forma de
autodefesa num mundo percebido - não somente pelos escri-
tores como pelos homens e mulheres comuns ou, pelo menos,
por aqueles que instruem o homem comum na arte cotidiana da
sobrevivência - como um confortável campo de concentração.

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