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CARTOGRAFIA DA DANAÇÃO URBANA

Peter Pelbart (fragmentos)

Compreender a rua como um laboratório possante de criação foi o primeiro passo


para ser atravessada por outros modos de existência. A rua me trouxe de volta a
natureza, a imprevisível novidade que parece desenrolar-se do universo. O ato de
andar, observar lugares, pessoas, situações e a vontade de me infiltrar em um
determinado cotidiano - onde os códigos e as regras sociais, os valores morais são
outros, diferentes do lugar onde estou-, e experimentar as conexões e
desconexões que estes universos vão provocar em mim, passou a motivar meu
processo criativo. Neste tipo de convívio, cabem contradições, tensões, desafios,
desconstruções, desestabilizações - mutações. O Outro não é apenas o
dessemelhante - o estrangeiro, o marginal, o excluído - , é também uma sensação
de incompletude que nos mantém em suspenso, como inacabados, na espera de
nós mesmos. Um encontro que requer tempo, cumplicidade e uma vontade de
aproximar o que nos parece distante. Seguindo Michel de Certeau, acredito
existirem cantos de sombras e astúcias, no império das evidências da cidade, só
não percebe quem está na distância de uma classe que se 'distingue' do resto, e a
observação só capta a relação entre o que ela quer produzir e o que lhe é
resistente." A artista etnográfica, como se intitula, não é testemunha passiva, mas
sua infiltração capta os sujeitos em flagrante delito de fabular, diria Deleuze,
quando já se está para além do bem e do mal, da beleza e da feiura, do certo e do
errado, da verdade e da mentira - ali onde as existências, mesmo quando rodeadas
de riscos e abismos, pedem para "ser mais". É ainda uma ideia cara a Souriau:
existir significa existir mais, mais intensamente, expandir-se, fazer existir a seu
redor outras existências. É, pois, toda uma política do encontro, como diz a
artista, que dá o tom do trabalho. E, nessa política, ninguém sai ileso, pois justa-
mente trata-se de se deixar arrastar pela perspectiva alheia não para imitá-la ou
coincidir com ela, mas por meio dela tocar as virtualidades da sensibilidade e do
pensamento que em nós estão bloqueados ou cristalizados. Sim, um devir-tra-
vesti que não implica em uma troca de identidade, mas em uma contiguidade na
qual se "rouba" a força do outro sem que dele nada se tire, e assim se faça derivar
a força própria em uma direção antes impensável. Para tanto é preciso rasgar os
clichês que veem na sombra apenas a sombra. A artista fala de "ambientes opacos
e marginais da cidade de Salvador", "frágeis, precários, movediços, abandonados
ao tempo, que deles se apropria e constrói suas estranhas arquiteturas. Os projetos
urbanísticos contemporâneos falam constantemente em 'revitalização', como se
estes fossem lugares mortos, precisando de uma nova vida. Pretendo mostrar
justamente o contrário, que são lugares de grande vitalidade, povoados de
mistério, de lembranças e espíritos, de lendas criadas por seus habitantes". É o que
aparece nas situações, não apenas a sensualidade, os gestos, as falas, mas
universos repletos de personagens de todo tipo, entidades, deuses, maldições,
investimentos em lugares ou fontes, um povoamento do mundo que vai na
contramão da suposta sombra sombria que a "revitalização" pretenderia sanar.

***

Eis a miserável "glória" dos danados: não a grande claridade das alegrias celestes
bem merecidas, mas o pequeno clarão doloroso dos erros que se arrastam sob uma
acusação e um castigo sem fim." Em contrapartida, no Paraíso é a luz divina que
domina.

***
Ora, não me parece abusivo ler parte da trajetória de Virginia de Medeiros como
um esforço em restituir as condições de visibilidade dos "vaga-lumes" que
despertaram sua curiosidade e fascínio ao longo dos anos: travestis, prostitutas,
moradores de rua, bandidos, viciados, todos esses seres que vivem entre a sombra
das cidades e a luz dos bares ou do poder. Se alguns desses personagens habitam a
zona intermediária entre o limbo social e o holofote da polícia, ou entre a condição
de danados e o desejo de glória e esplendor, por mais efêmero que seja, o desafio
ao dar-lhes visibilidade é o de não cair no estereótipo obsceno ou na vitimização
piedosa. A obra de Virginia é uma resposta obstinada, cuidadosa, imaginativa a
esse desafio, mas na medida em que se instala de imediato entre o erotismo e o
afeto, entre a sensualidade sempre em pauta e a amizade sempre esperada, e que,
na sua infiltração prudente e ousada, sabe misturar-se, deslocar-se, extrair dali
uma luz que ninguém via, um calor que não aparecia, um modo de existência
cuja ternura ou positividade a caricatura e a desqualificação social obnubilavam.

***

É onde o corpo outro, utópico, se conecta com os espaços outros, heterotopias. A


pesquisa de Virginia de Medeiros não é denúncia, não é reportagem, não é
documento, não é idea- lização da marginália, mas travessia do presente vivo des-
ses "vaga-lumes" na hora exata de sua dança, quando nada parece deslocado do
mundo, já que cada detalhe do corpo ou do espaço que o rodeia, na sua desmedida
expandida e trans- bordante, dá uma noção da pífia medida do nosso mundo, ele
sim "deslocado". Como se, a partir dos sinais emitidos por esse corpo outro, a
partir desses espaços outros que ele povoa, dessas falas outras que dele emanam, e
dos dispositivos desenvolvidos por Virgínia de Medeiros capazes de os "colher",
se nos iluminasse nossa modorrenta existência à luz da intensidade dessas chamas
trêmulas e efêmeras, com as quais se mistura a "apresentação" amorosa e a
resistência "biopolítica", a astúcia e o desamparo, a alegria e a danação,
precisamente em um momento em que parece aplainar-se o relevo das existências
e a potência de emissão de signos que lhes pertence.

 PELBART, Peter Pál . Cartografia da Danação Urbana. In: Virgina de Medeiros. (Org.).
Studio Butterfly. 1ed.Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2015, v. , p. 23-32.

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