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Norma, moralidade e interpretacao: temas de filosofia politica e do direito Porto Alegre, 2009 uma interpretagao da palavra ‘ptiblico’ que corresponda mndicoes do momento e que seja, consequentemente, re2- mesmo modo, parece muito natural ndo separar a pro- da vida da protegao das condigbes que permitem aos éduos manterem-se em um estado de satide correto. O & satide, ou mais exatamente o dever de permitir ao io dos cidadaios o acesso aos meios de satide, faz par- te das tarefas do Estado. E exatamente nessa diregao que é preciso ir, em lugar desse individualismo ultrapassado que toma essa formula no sentido mais estreito, isso é, no senti- do de uma protecéo da vida contra as agoes de um homem armado com um cassetete ou com uma pistola prestes a agre- dir um terceiro. Hoje em dia, afirma Ely, as ameacas contra a propriedade e a vida vém menos da forca fisica que dos procedimentos juridicos inadequados que permitem alguns de apropriarem-se legalmente daquilo que é indispensé vida e a liberdade, e dispositivos sociais que impedem os in- dividuos de desenvolverem sua capacidade e potencialidade de tornarem-se proprietarios. Bay R Property ad com 42 - Norma, moralidade e interpretacéo. Entre a teoria da norma ea teoria da acao José Reinaldo de Lima Lopes Pretendo neste artigo apresentar esquematicamente duas diferentes maneiras de conceber 0 micleo de uma teoria do direito -uma teoria das normas e uma teoria da decisio -, para argumentar afinal que a escolha dessas perspectivas determi- na tanto a maneira como se ensina direito como a maneira de se debaterem questies juridicas e se tomarem decis6es juri- dicas na pratica, isto é no mundo nao académico, seja pelos profissionais seja pelos cidados comuns. Para fazer isto apre- sento primeiro um panorama da cultura juridica como a rece- ‘bemos (seco 1), em seguida apresento minha idéia dos tragos caracteristicos de uma teoria das normas (sesao 2) e de uma teoria da decisdo (seco 3), para afinal mostrar as conseqtién- cias relevantes na pratica (no ensino e no debate juridico). 1. O panorama da teoria do direito Durante as tiltimas décadas tem havido um deslocamento da teoria do direito de uma teoria das normas para uma teoria da decisio, ou talvez se possa dizer mais propriamente uma teoria da acdo. Pressuponho que a decisdo é uma forma de Norma, moralidade e interpretacio... - 43 ago: decidir é agir. A deliberagio que pode preceder a de- cisdo ¢ também constitutiva da decisao, e no caso do direito precisa ser explicitamente desenvolvida nas sentengas (a obri- gatoriedade da fundamentacao ou motivagao das decisdes). A deliberagao esclarece os motivos de quem decide, eos motivos sGo a fundamentacdo da sentenga. Dai os juristas usarem in- diferentemente a motivacdo, a fundamentaco ou a justifica- fo da sentenca. Uma decisao ¢ sempre compreensivel pelos ‘seus motivos - como todas as ages, alias. Ora, decidir uma questo juridica nao é o mesmo que decidir um problema ma- tematico. Decidir uma questo ou caso juridico é deliberar, mas resolver 0 problema matemitico nao. E essa sutil e nem sempre reconhecida diferenca entre as das coisas, entre 0 ra- ciocinio que por si mesmo resolve um problema matemitico € 0 raciocinio juridico que resolve um problema juridico, que pode lancar uma primeira luz sobre a teoria juridica como te- oria da acao. Embora usemos as palavras decisao e resolucao para a resposta a questées tanto matematicas quanto praticas, a natureza dos problemas ¢ completamente diferente, o que por si jd indica que a natureza das duas decisdes ou solugdes, é completamente diferente também. Ao nos concentrarmos no que sao as normas antes que no que fazem os juristas com as normas, teremos do direito uma certa idéia: a idéia de que o direito é uma ‘coisa’, algo, talvez mesmo um texto, O jurista parece exercer a atividade de descrever ou falar sobre os textos (as proposicdes juridi- cas). Ao nos concentrarmos na teoria da decisio, chamamos a atengao para 0 que fazem os juristas, e, portanto, teremos do direito a impressiio de que se trata de um fazer, na minha opinido num deliberar sobre as agdes a partir das regras juri- dicas, O jurista parece exercer a atividade de decidir. As duas visdes geram, portanto, objetos tedricos distintos e, por isso, mesmo podem ser avaliadas como mais ou menos adequadas ‘ao seu objeto e como mais ou menos adequadas a realidade & qual se referem. Nao nego que haja uma espécie de doutrina ‘4A. Norma, moralidade e interpretacéo. ou teoria das normas por trés do pensamento juridico, o que estou sugerindo é apenas, por enquanto, que as duas teorias tém alcances diferentes e que talvez a teoria da deciséo seja mais abrangente ~ e, portanto, melhor como teoria do direito = do que uma teoria das normas. Dessa forma, uma teoria da decisdo carrega consigo uma certa teoria da norma, mas ndo esgota o direito na teoria das normas. De fato, 0s juristas valem-se de teorias das normas dema- neira intuitiva, na medida em que a especificidade das nor- mas juridicas lhes ¢ indispensavel e Ihes aparece como algo ja dado. Eles usam mesmo uma doutrina das fontes do direito existente em disposigdes expressas a respeito da lei como fon- te e fundamento de decisdes juridicas (como por exemplo 0 art. 5%, I, da Constituigao Federal, o art. 126 e 127 do Codigo do Processo Civil, e outros diversos diplomas do ordenamen- to juridico). Eles também se valem de uma doutrina feita por outros juristas que explicam essas disposices legais. Ja foram também incorporadas em lei e pela “ciéncia” juridica as técni- cas de solugao de antinomias (os problemas de anterioridade da lei, de revogacao parcial, e outros como os do art. 2°. da Lei de Introdugao ao Cédigo Civil). Dessa forma ha ja elementos suficientes para dar aos juristas indicagdes de qual ¢ a ‘teo- ria’ das normas adotadas. Embora em momentos importantes ossam surgir dtividas sobre qual a lei a aplicar, os juristas sa- bem que devem aplicar o direito positivo, incluindo também 08 critérios que o proprio direito positivo Ihes dé para integra- rem o corpus de normas que devem aplicar. © que realmente 08 juristas fazem nao é, portanto, sendo decidir conforme & lei vigente em seu meio eno seu tempo.’ A distincéo entre teoria da norma e teoria da decisao tem relevancia teérica e pratica. Embora ambas possam ser tra- tadas como teorias, ou seja, como abordagens especulativas 1 Como smelhante Norma, moralidade e interpretacio... - a5 a respeito do fenémeno juridico, os resultados de uma e de ‘outra sao diferentes. Se nos concentrarmos em fazer uma teo- ria das normas nao espelharemos o que fazem os juristas pro- priamente, Quando me refiro & relevancia pratica de nossas teorias sobre o direito refiro-me tanto a uma relevancia didatica quan- toa uma relevancia no exercicio da atividade. Na medida em que encaramos o direito como um saber especulativo sobre um objeto dado (a norma), tendemos a ensiné-lo de um jeito. Se o encararmos de outra forma, como um deliberar segundo regras, tendemos a encaré-lo de outra forma. Nao surpreende, pois, que tendo majoritariamente aderido a teoria da norma, nossas faculdades de sejam freqiientemente acusadas de nio oferecerem nada de pratico aos alunos, ou seja, nada de especialmente itil a eles. Mesmo as matérias ditas prati- cas, tendem a oferecer-Ihes conceitos, nao habilitagSes. Por outro lado, se temos do direito uma idéia pratica, isto é se admitimos que a verdadeira teoria do direito ndo é uma teoria descritiva das normas, mas uma “teoria da deciséo”, nossa posicao diante de um problema juridico qualquer é a de quem precisa justificar sua ago, motiva-la antes que explicé-la. A decisdo precisa mais de justificaco ~ na qual, naturalmente a pardfrase (ou ‘explicagao da norma’) joga um papel funda- mental - do que de explicacio. E um processo mais de expli- itacdo de um juizo, do que de exposigio de um pensamente. ‘Aquilo de que vou falar talvez se enquadre na distingao feita por Bobbio e referida por Atienza (2000, 52) segundo a qual existe uma légica das normas e uma légica dos juristas. A primeira tem por objeto as relagdes logicas entre normas, a segunda tem por objeto as formas de argumento utilizadas. Mas em que a teoria da ago ou da deciséo no Ambito do di- reito difere da teoria da norma? E afinal em que consiste uma teoria das normas? Esse constitui o néicleo da secao seguinte do artigo: mostrar 0 que foi a teoria da norma esposada por varios autores ao longo do século XX. O autor mais exemplar 46 - Norma, moralidade e interpretacio. de todos foi, naturalmente, Hans Kelsen. Com ele a teoria da norma ganhou consisténcia e expresso jamais alcancadas an- tes, Estou falando de juristas e uso a palavra de forma ampla. Nao penso em primeiro lugar ou exclusivamente no jurista académico, no professor ou no fildsofo do direito. Refiro-me aquela espécie mais comum entre nés, o profissional do direi- to, o qual estudou direito em uma faculdade e depois dedi- cou-se a profissao de resolver conflitos tanto como advogado quanto como juiz, aquele que fez um curso na forma hoje co- mum, para escapar de ser um rébula ou legul 2. A teoria das normas A teoria das normas tem em geral como ponto de partida © objeto central de reflexo uma espécie de ontologia da nor- ‘ma juridica organizada em toro de alguns pontos. Primeiro, giram em torno da pergunta: O que é a norma juridica? A pergunta ganhou especial importncia em fun- Gao de circunsténcias hist6ricas especiais: tratava-se de uma tentativa de isolar o direito das influéncias religiosas (isto é, dos discursos das religiGes institucionalizadas) que tanto mal haviam causado, como guerras civis e perseguicées politicas € ideolégicas, morte de inimigos da {8 ortodoxa e assim por diante. Se 0 discurso moral pudesse ser mais claramente iso- lado do discurso religioso (tarefa a que se dedicaram os jus- naturalistas) e se ainda dey o direito pudesse também ser isolado do discurso moral, talvez fosse possivel minimizar os estragos sociais que se haviam conhecido ao longo da histé- tia? gu a famosa Questo seexplica al é 2 esbicr da lei ea questio termina com uma regra compreensivel (racional),voltada paraa manutengio do bem comum (de uma rocedente da Norma, moralidade e interpretagio. O que é a norma juridica? A essa pergunta a resposta te- 6rica mais ouvida é em primeiro lugar que se trata de uma norma dotada de sancao em si mesma ou no sistema (ordena- mento juridico) em que esta inserida. Isso marca a distingso specifica entre normas juridicas e normas morais (ou ainda das normas técnicas e das normas légicas). Em segundo lugar, a norma juridica pertence a um con- junto organizado de normas: um ordenamento ou sistema normativo. Normas juridicas sao as normas que pertencem a tal ordenamento por pedigree, por serem produzidas dentro desse ordenamento e na forma determinada por tal ordena- ‘mento, por procederem de uma certa autoridade, a autorida- de juridica, Em terceiro lugar assemelha-se a quaisquer outras nor- ‘mas porque é um imperativo. Normas em geral so coman- dos, ordens, mandamentos de alguém. Normas juridicas, por- tanto tém um alguém por trés, esse alguém € 0 soberano, 0 Estado, o poder politico. Normas juridicas se distinguem de outras normas porque em caso de desobediéncia ou descum- primento 0 sujeito a quem se dirigem sera de algum modo punido: hé uma sangao imposta pela autoridade publica. Em quarto lugar os juristas dessa vertente perguntam-se pelo cardter obrigatério dessas normas, ou seja, por sua va- lidade. Visto que sao percebidas como ordens apoiadas em sang6es e visto, no entanto, que empiricamente qualquer um se dé conta de que as normas juridicas si descumpri- das sem que por isso deixem de valer, surge para os teéri © embaracoso problema da relagao entre validade e eficécia. A validade, ou seja, o carter obrigatério das normas juridi- cas, depende de serem efetivamente cumpridas? Nesse caso, como saber quando deixam de ser obrigatérias? O que fazer com todas as caracteristicas de um mandamento dado porum ito determinado a outro sujeito determinado no caso dos ordenamentos estatais, em que 0 sujeito determinado se con- brigtrins. .48-- Norma, moralidade e interpretacdo. verte num abstrato Estado e 0 sujeito obediente se converte no abstrato cidadao? As diferentes correntes de tedricos das normas aceitam em geral que a validade depende da eficécia, mas divergem quanto as solug6es dadas as questdes postas no pardgrafo anterior. Conforme a validade dependa integral, 1 ou nulamente da efic istas. Ao fim, porém, fica sempre por resolver qual € 0 limite dessa relagao. Kelsen, por exemplo, sugere de maneira clara, mas nao definida, que a validade depende de algum grau de eficdcia, Alf Ross cai na pura e simples descrigao dos comportamentos: 0s comportamentos que Ihe interessam so 0s dos profissionais do Estado encarregados da sancio, logo © direito é ndo propriamente comando, mas obediéncia pura e simples, 0 fato ndo qualificado do poder. No entanto, visto que os profissionais do Estado sao profissionais por um fato nao-bruto;’ fica sempre o incémodo de dizer por que afinal alguém é ou nao juiz. (Quinto trago que se pode mencionar: uma teoria das nor- mas é geralmente associada a uma concepeio do direito como poder, isto é como capacidade de imposicéo da prépria von- tade a outrem (Max Weber). Se as normas sao propriamente comandos ou ordens de alguém para alguém, é natural que © objeto central da doutrina juridica seja subjetivista e indivi- dualista. Subjetivista porque as normas so equiparadas & ex- pressdo de uma vontade: essa vontade s pode pertencer a um sujeito real ou ficcional, dizem os teéricos da norma. O suj real é 0 legislador empirico, digamos: o st John Searle, na filosofia em geral sea por Neil MacCormick, na dirt, entretanto, 0 assnto & velo comes foi sofistiendamne Norma, moralidade e interpretacéo. mesmo nos casos em que evidentemente ndo hé um alguém ico, a linguagem usada para falar das normas é sempre ‘lagfo que se imagina é de cardter bindrio: alguém manda ~ alguém obedece. Por conseqiiéncia, outra caracteristica das teorias de que estamos falando é que o direito é visto como um elemento de controle de alguém sobre alguém. O direito controla, ou mais expressamente, constrange e restringe comportamentos. Essa perspectiva ndo enfatiza as normas como guias de conduta auténoma, ou como orienta- ges para a acao. Ja que se trata de ordens seguidas de sanco, ej quea sangio é percebida como uma conseqiiéncia negativa a ser evitada pelo cumprimento da norma, o direito passa a ser concebido como se fosse dirigido ao homem mau, ao de- lingiiente, ao transgressor. Normas so formas de controlar os desviantes, os transgressores. Nao orientam no que fazer, mas, dizem o que nao fazer, pela sancio. Finalmente, pode-se dizer que a teoria das normas é and- loge, no campo do direito, Alingii possa ser um importante saber a respeito do da, Bla fornece uma espécie de Iégica ou gra da linguagem sem, ela mesma, ser uma gramatica de alguma um discurso. Em outras palavras, a Igualmente, uma teoria das normas nao é pritica. Embora faca sentido em si mesma, se for entendida como aquilo que 0 jurista deve saber para exercer sua atividade, incorre em um problema sério, Ela fala de fora, mas néo hal a fazer direito. Eles continuam a fazé-lo, mas nao dependem de uma teoria das normas para fazé-lo, ou pelo menos nao depende da teoria das normas que se tornou corriqueira entre nés. A ilustracio melhor deste problema é dada na seguinte afirmacio de Veach: “Afinal de contas, para um homem que deseja dirigir tum carro, seria uma experiéncia bastante frustrante se seu instrutor sistematicamente se recusasse a dizer he © que fazer, limitando inteiramente suas observacSes a ‘uma anélise da linguagem usada nos manuais de direco eevitando qualquer comentério quanto ase asinstrugses que efetivamente constam do manual eram para ser se- guidas ou ndo."(Veach sd, 42) ‘Uma teoria assim apresenta algumas dificuldades, descri- tas por Hart em seu O conceito de direito. A mais evidente & que realmente nao da conta de todas as formas de aco su- jeitas a normas, nas quais as normas nao correspondam cla- ramente a essa forma de comando, imperativo ou ordem. O primeiro caso em que a reconducao de todas as normas jur cas a sangao parece nao funcionar muito bem dé-se no ambito da invalidade ou nulidade dos atos juridicos. A invalidade ou nulidade nao é uma sancio, nao ¢ uma punico propriamen- lade é mais parecida com uma falta de vigor para atingir seus propésitos. O ato nulo ou anulavel nao é o ato que leva & punigao de alguém, mas o ato que nao consegue valer como... Uma compra e venda de iméveis requer nao apenas 0 consenso dos agentes e 0 prego do negécio, mas também uma forma especial (a escritura puiblica). Mesmo que as par ram comprar e vender, se ndo usarem a escritura publ bem aconselhados e assessorados por algum advogado ter- minarao por concluir o negécio. Os sujeitos nao foram capa- zes, incorreram no que John Austin chamou de uma infelicity. Nao se explicam facilmente dentro da teoria das normas de constitutivo (como por exemplo: “o Brasil é uma repiiblica’ Regras constitutivas, que Hart veio a chamar de regras secun- darias, so as que definem os propésitos, as finalidades, as, formas do jogo. Nao sio regulativas, isto é, ndo profbem ou punem jogadas, comportamentos, ages. Regras constitutivas sdo normas de validade propriamente: isto vale por aquilo, x vale y. Dizer: a bola que alcanga a rede passando entre as tra- 1 Regias de carder const Norma, moralidade e interpretacéo... - 51 vves vale gol, nao tem o mesmo cardter de dizer, a jogada com a mao durante a partida impée ao time do jogador que usa a mio uma punicao qualquer. Isso é bastante diferente da viséo de quem deseja realizar uma ago, uma atividade ou guiar sua propria vida nao pelo comando de alguém, mas segundo um padréo que Ihe parece um bom critério. Para esses, a regra éuma medida com a qual avaliar sua prépria agi ‘Uma segunda dificuldade é apontada também por Her- bert Hart. Se explicarmos tudo a partir de um sujeito que manda e impde regras (chamemo-lo Rex, diz Hart), por que continuamos a segui-las quando esse sujeito morre? Elas nao eram comandos de Rex? Se continuamos a segui-las, 0 que seguimos afinal: as regras ou as ordens de um morto? Seguimo-las por temor, ou porque simplesmente nos acostu- mamos? E se surgirem ditvidas a respeito de como seguir a regra-comando, como as resolveremos? Consultando o morto ouaum que fala com os mortos? Essa é uma pequena série de problemas quando se trata a regra juridica como um coman- do para o qual nao ha razdes de obedecer a nao ser o temor de uma autoridade. Quando a norma juridica é 0 centro da teoria, e quando se caracteriza fundamentalmente pela idéia de sangdo, os sujeitos 4 regra nao agem no sentido préprio, apenas reagem. A concepsao do sujeito é behaviorista. Com © passar da historia, a sempre mais importante idéia de que vivemos sob as leis e nao sob as ordens de individuos leva-nos arreflexdo sobre como garantir que nao estejamos apenas ene- cessariamente sujeitos a ordens de loucos, predadores, crimi- nosos? Em outras palavras, a teoria da norma juridica como um simples comando nao permite entender uma razao pela qual obedecemos, nem uma razio pela qual interpretamos as, rnormas em casos duvidosos. Finalmente, deixando em segundo plano a acdo e a deci- sfo, a teoria das normas da a impressio de que essas nao sao racionalmente reguladas e, talvez ainda mais importante, nao 5 Aborde ese mesmo tema em Lopes (200) 52- Norma, moralidade e interpretacso. se prestam a tarefa de ensino dessa atividade que é decidir segundo 0 direito. Isso porque a teoria das normas concebe a cigncia como um discurso sobre alguma coisa, ¢ desse ponto de vista, a ciéncia do direito sé pode ser um discurso sobre as rnormas. caso mais exemplar e conseqiiente dessa maneira de pensar é o de Hans Kelsen. Em sua forma de compreender, 0 discurso sobre a norma pode ser cientifico, mas a decisio singular nao € senao um ato de vontade aplicada a um caso. Isso 6a atribuicdo de sentido nos casos concretos (pelo proprio agente, ou por alguém que entende ou julga a acdo). Para ele ha uma distingao entre o sentido cognoscitivo de interpretar (fixagao de sentido da norma) e a aplicagao ao caso concreto, que nao é uma tarefa propriamente cognoscitiva (Kelsen 1979, 467), Assim, quem olha o ordenamento sem ter de aplicé-lo vé intimeras solugGes possiveis (intimeros sentidos, num quadro geral). No entanto, quem o olha como agente é obrigado a es- colher um s6 sentido. Essa escolha, para Kelsen, é um ato de vontade, néo de conhecimento. Essa perspectiva ¢ perfeitamente coerente com seu modo de entender as coisas. De fato, como ele pretende fazer uma teoria do direito 4 moda de uma lingiiistica geral das nor- mas, a realizacao concreta do direito nao é de seu imediato interesse. Nesse sentido, a légica aplicada ao direito nao the serve de instrumento, pois a rigor, a légica é capaz apenas de juizos analiticos, e a decisdo singular é um juizo sintético, Isso se expressa claramente em sua Teoria geral das normas, quando diz: “a conclusao nao ¢ movimento do pensamento que conduza a uma nova verdade, sendo apenas faz explicita uma verdade que jé é implicada na verdade das premissas.” (Kelsen 1986, 291) A conclusao do raciocinio fica sempre na esfera do pensamento, isto é, do universal. O julgamento juri- dico (do juiz que condena ou absolve, mas também das partes de um contrato, ou do homem comum que se orienta pelas normas) é sempre singular. Recordemos os classicos: é pos- sivel pensar no universal, mas s6 é possivel agir no singular. Norma, moralidade e interpretacéo... - 53 (Ora, sea decisao juridica for uma aco, como postulei no ini- cio, ent3o é claro que uma teoria das normas, que pretende concentrar-se sobre 0 universal, nao retrata 0 que fazem os juristas, nem explica como o fazem. Dai o resultado realmente insatisfatorio da interpretacao na perspectiva de Kelsen e sua potencial confluéncia com o decisionismo. ‘Ora, 0 problema é que do ponto de vista dos juristes, 0 direito existe para indicar e permitir solucSes concretas a ca- sos juridicos. Como expressava a filosofia cléssica da ago, € bem possivel pensar universalmente, mas s6 é possivel agir singularmente. Nao ha varias solugées possiveis, do ponto de vista do agente, mas uma sé, a melhor para aquele caso. Isso nao é tematizado dessa forma por uma teoria que poe em suspenso a razdo de ser (pratica) de um sistema juridico. Como resultado, a decisio propriamente dita parece lancada a0 mar de sargacos da irracionalidade individual, do apetite, do capricho, ou da racionalizacéo pura e simples (racionali- zago como esforgo consciente de justificar atitudes tomadas em resposta a impulsos inconscientes, sejam eles psicol6gicos, sejam eles ideolégicos). No fundo, essa espécie de teoria ndo se indaga pelo‘o que éseguir uma regra’ de forma auténoma. O comportamento de quem segue uma regra € percebido, para os cultores da teoria da norma, como o comportamento de alguém que reage a um castigo: trata-se de uma abordagem de caréter behaviorista. Ora, 0 comportamento de seguir uma egra é mais fundamen- tal do que 0 de obedecer alguém. Regras légicas, regras gra- maticais, regras mateméticas, sio todos exemplos de regras gue se seguem, sem que seja por razGes instrumentais ou por medo. A despeito disso, a teoria da norma continua a ser um modelo muito comum. Mesmo quando seu autor procura distanciar-se dela é corriqueiro que seus comentadores 0 di- vulguem ainda sob uma perspectiva de teoria da norma. Veja- se 0 caso relativamente recente de um teérico grandemente 54- Norma, moralidade e interpretacio. popularizado no Brasil como & Robert Alexy. Alexy varias vezes dé a entender que sua teoria é uma teoria da légica dos juristas, ou mais propria e expressamente da razdo pratica: “A argumentagao juridica é concebida como uma atividade lin- giiistica. (...) O discurso juridico é um caso especial do discur- 50 pratico em geral.” (Alexy 1989, 34). Qu ainda: “Isto [que a argumentacao juridica é um caso especial do discurso pratico] se fundamentava: (1) em que as discussdes juridicas referem- sea questées pratica, isto é, a questdes sobre o que ha de ser feito ou omitido, ou sobre o que pode ser feito ou omitido e (2) estas questdes so discutidas do ponto de vista de uma pretensio de correo. Trata-se de um caso especial porque a discussdo juridica (3) tem lugar sob condigées de limitagao do tipo mencionado.” (Alexy 1989, 206-207). No entanto, a es- pécie de debate que sua divulgacao gera no Brasil é freqiien- temente sobre a teoria das normas: a pergunta pela ontologia das normas passa a envergar a roupagem das perguntas sobre a ontologia dos prinefpios (uma espécie de norma) e das re- gras (outra espécie). Tudo pode ainda girar em tomo da teoria das normas, ou mais propriamente em torno da ontologia das normas, como se principios ou regras fossem coisas cuja natu- Teza se pudesse distinguir e uma vez distinguidos pudessem ser ensinados como objetos distintos. O resultado disso & que se passa a concentrar atencao nas normas outra vez. Os alunos passam a ter a impressdo que o importante é saber distinguir uma regra de um principio, e que uma vez feita a distingao, todo o arsenal conceitual da légica das normas torna-se mais facil de ser aplicado.s Por diversas razSes, algumas propriamente te6ricas ~ ou seja, relativas as deficiéncias explicativas de uma teoria das normas ~ e outras praticas ~ ou seja, relativas as circunstin- cias em que as autoridades democraticas surgem e decidem, a teoria das normas como teoria geral do direito vem sendo posta em dtivida e substituida por outras teorias gerais, que 6. Sobre os problemas no ensino do direito ver Lopes (2006) esobre a excessivacon- fianca na distingao entre principios e regras ver Lopes (2003), Norma, moralidade e interpretacéo... - 55 vou chamar de forma bastante genérica de teorias da deci- sio. Nao se trata, claro, de teorias decisionistas, que so muito mais préximas as teorias da norma como ordem do que das teorias do direito de que tratarei a seguir. 3.A teoria da decisio Teorias diferentes comecam quando jé nao se poe no cen- tro da investigagio uma diferena especifica da norma juri- dica, mas 0 problema mais geral do seguir uma regra. O que é seguir uma regra? Como pode alguém seguir uma regra como pode algum juiz aplicar uma regra juridica? Uma teoria da decisdo desenvolve-se na medida em que © foco de atencdo volta-se para o processo deliberativo e es- capa vagarosamente da forca atrativa da teoria das normas. Essa novidade foi impulsionada ou de certa forma apoiada por uma série de mudangas na prépria filosofia, a mais im- portante das quais a meu ver, que falo aqui sem ser fildsofo no sentido profissional e técnico do termo, é a variada gama de filosofias da linguagem, ou de maneira mais geral, filosofias cujo centro de reflexdo deslocou-se do ato simples e isolado do conhecer uma norma, para o ato mais cotidiano (e quase imperceptivel de tao cotidiano) do seguir a norma. Note-se que a palavra seguir (usada também em outras linguas, como o‘suivre une régle’, ‘to follow a rule’, ‘seguire una regola’ etc.) indica essa idéia de que a regra é um indicador de um cami- nho no qual nos iniciamos e que devemos, se entendemos a regra, continuar por nossa prépria conta. Essas diversas filo- sofias deslocaram o centro de gravidade de suas preocupa- ges da tensdo sujeito-objeto, para outro centro de gravidade: 0 da linguagem como atividade regrada e como condigéo de possibilidade primeira da cooperacao social humana. Justa- mente por no ser filésofo profissional ouso aqui colocar lado a lado correntes que os filésofos apartam como se carregas- sem em si uma vis repulsiva em relagao umas com as outras. '56- Norma, moralidade e interpretacdo, Na primeira vertente & de especial interesse a filosofia de Karl-Otto Apel, o verdadeiro pai da ética do discurso. O que Apel faz, a0 projetar uma operacao de resgate do criticismo kantiano, é rejeitar de Kant os tracos solipsistas do pensa- mento. Nao se trata de refletir sobre o sujeito voltado para os objetos do mundo (0 mundo das coisas, na azo pura, ou 0 mundo das ages, na razo prética), mas do sujeito que pensa em meio aos outros sujeitos valendo-se de uma razio comum, encarnada na lingua. Dai Apel falar de uma pragmatica trans- cendental. A linguagem e a comunidade lingiiistica ideal so de carater transcendental (Apel 2000, 249). Em sua concepio, A possibilidade de um acordo miituo quanto a critérios (paradigmas, padrdes) da decisio correta (.) pressupoe [a seu ver] que o proprio acordo mituo lingti 4 a priori vinculado a regras que ndo podem ser fixadas 86 por ‘convensdes’, mas que vem, na verdade, possibilitar as convengdes. (Apel 2000, 279-280) Por isso, Apel vale-se da distingio entre a comunida- de ideal de comunicagao e a comunidade real de comunica- Go. A comunidade ideal fornece aos falantes um ambiente em que esto pressupostas regras estruturais ou gramaticais do discurso em que todos nos envolvemos. Na comunidade real essas regras pressupostas balizam a realizacdo dos dis- cursos singulares. As regras, portanto, nao sio apenas cons- trangimentos e limites, mas condicées de possibilidade da co- municacio: so constitutivas dessa possibilidade (Apel 2004, 112-114). As regras légicas so 0 caso mais fundamental dessa implicagio entre regras e comunicagao: “A validacao légica de argumentos ndo pode ser testada sem que se suponha em principio uma comunidade de pensadores que estejam ca- pacitados ao acordo mituo intersubjetivo e a formagao de consensos. Mesmo 0 pensador realmente solitério s6 pode explicar e testar realmente sua argumentagdo 4 medida que logra intemalizar 0 didlogo de uma comunidade de argumen- taco potencial no didlogo critico ‘da alma consigo mesma’ Norma, moralidade e interpretagio... - 57 (Platao).” (Apel 2000a, 451). A linguagem, sendo sempre lin- guagem comum (de uma comunidade ideal e de uma comu- nidade real), afasta a idéia de um sujeito isolado (solipsista) confrontado com um mundo que ele tem de criar do zero por sua propria atividade de pensar. A linguagem fornece, por- tanto, 0 caso exemplar do pensamento, mas sendo ela social por definicdo, © pensamento para se realizar precisa seguir regras conhecidas de todos. Desta forma, seja quem for que esteja dentro dessa comunidade, e em qualquer posicao, est to sujeito a regras quanto o outro. A regra perde, portanto, 0 cardter forte e unilateral de comando e de limite & ago, para transformar-se em guia e condicdo de possibilidade da acéo mesma. Torna-se um instrumento de ago auténoma. ‘Uma segunda vertente vem a ser a filosofia hermenéuti- ca. Naturalmente ha na filosofia hermenéutica correntes ain- da tributarias de formas de pensamento idealista ou mesmo solipsista semelhantes as que estiveram na origem da teoria do direito como doutrina dos comandos, tanto por algum traco psicologizante (entender o outro e entender um outro como problemas centrais da hermenéutica), quanto por um traco idealizante (entender uma forma objetivante do pensa- mento alheio). Hé, no entanto, uma linha expressa na obra de Paul Ricoeur, cujo propésito ¢ escapar do psicologismo e do idealismo. Ricoeur tem 0 expresso projeto de estabelecer uma ponte enire a filosofia analitica de matriz angléfona e a filosofia hermenéutica continental e ele o faz tomando por base o conceito de sentido. O que se entende nos processos de compreensao reciproca sao sentidos, no pessoas, nem coisas ideais. Os sentidos so, como ele diz, 0 ‘permanente do dis- curso’, isto é, aquil. que nao se confunde com o evento (empi- rico e contingente) pelo qual o sentido se expressa, transmite e fixa, Sentidos so produtos da aco humana, naturalmente, mas néo hé aco propriamente humana sem sentido. Logo, toda agdo se realiza num ambiente de sentido, que de certo modo a pré-existe. Ora, pode-se entender perfeitamente que 58 - Norma, moralidade e interpretacso, normas juridicas sao a expressdo de sentidos juridicos das agdes humanas. Qualquer aco humana pode ser compreen- dida juridicamente se a ela forem atribuidos sentidos juridi- 0s, tais como a permissao, a proibicdo, a obrigacao.’ Nesses termos, a tarefa da hermenéutica juridica liga-se diretamente ao ato de julgar uma agio, apreendendo seu sentido juridico, antes que ao ato de conhecer uma norma para depois aplicé- Ia. Assim como alguém vale-se habitualmente de uma lingua para produzir discursos, lingua na qual produzira os discur- sos, mas nao conhece a lingua em um momento diferente do momento em que a usa, também aqui alguém age juridica- mente (como cidadao ou como jurista) valendo-se imediata- mente das normas sem que haja uma disjuntiva entre o ato realizado segundo as normas e seu conhecimento das normas. Em outras palavras, discursos so singulares e contingentes, mas realizam-se por meio de linguas abstratas e permanentes. Linguas sio linguas apenas na medida em que permitema re- alizagao de discurso, e discursos sao discursos apenas quando veiculados por meio de linguas. Em outras palavras, decis6es regradas sao decisdes, e regras so 0 que permite decisdes re- gradas, mas ambas se implicam. A filosofia hermenéutica nessa perspectiva permite-nos compreender melhor 0 que se da no processo do agir segun- do regras. Em sua filosofia da ado, em que entende toda acao como acio significativa, sujeita, pois, a regras como 0 discur- so, Ricoeur chama a atenco para o fato de que a filosofia da ago (0 que venho chamando neste texto de uma teoria da aco) ndo se confunde nem com a ciéncia da acéo nem com a ética. Distingue-se das ciéncias porque nao explica a acto como um movimento ou um comportamento visto de fora, sobre o qual fala algum observador (Ricoeur 1988, 9). Distin- gue-se da ética porque nao tem por objeto proprio de reflexéo nem a idéia de um fim dltimo (ao qual todas as razSes podem ou devem se dirigir), nem esta particularmente interessada Norma, moralidade e interpretacio. na valoracdo moral do bem (0 desejavel) em si (Ricoeur 1988, 47-48). A filosofia da acao compreende o agir humano, nem explica causalmente (de fora), nem o julga moralmente. O re- levo dado na filosofia da aco é para os conceitos de intencao, fim, razao de agir, motivo, desejo, preferéncia, escolha, agente e responsabilidade, todos eles também titeis na reflexao ética (Ricoeur 1988, 10). Ao separar a filosofia da acao das ciéncias da aco, a filosofia de Ricoeur lanca luz sobre a natureza mes- ma do processo deliberativo implicado em cada acai. Uma terceira vertente, talvez a mais importante, é justamente a da filosofia analitica angléfona, especialmente inspirada no chamado segundo Wittgenstein, o das Investi- gases filoséficas. Essa tradigao analitica voltada & filosofia moral deu intimeras contribuigdes na segunda metade do século XX, sendo de mencionar muito especialmente a obra de Richard Hare. Nessa linha sou particularmente sensivel & contribuicdo de John Searle, o qual levou a filosofia da lingua- gem a um patamar novo, ultrapassando mesmo a contribui fo de John Austin (How to do things with words) nao tanto pela novidade absoluta do foco, quanto pela insisténcia do lugar constitutive ocupado pela linguagem no universo humano. Tanto em Speech acts quanto em The social construction of reality temos em Searle uma contribuigao esclarecedora dos fatos institucionais. Estas so apenas as referéncias filoséficas mais préximas responsdveis por um contexto ao lado do qual também surgi- ram as novas teorias do direito. Essas novas teorias assumem como problema central, para voltar & expressio de Bobbio, a ‘T6gica’ dos juristas, isto & 0 que é agir conforme o direito, 0 que é seguir uma regra. E esse problema central, o de seguir uma regra, é um problema no apenas do seguir as regras juridicas, mas o de seguir quaisquer regras: regras légicas, regras gramaticais, regras ou convengdes sociais e assim por diante. Em qualquer atividade regrada, em qualquer pratica social regrada, ha problemas de acao, decis4o, aplicacao. Isso 60 - Norma, moralidade e interpretacéo. muda 0 foco da teoria. J4 nao se trata mais, ou sobretudo, de uma ontologia das regras jurfdicas, mas de uma filosofia da agio segundo regras juridicas. ; Normas ou regras sao formas de ingresso em praticas sociais, isto é, atividades humanas em que se compartilham sentidos de aco. Uma dessas praticas mais evidentes é a propria atividade de falar uma lingua. As normas grama- ticais so ou nio séo normas? Caso sejam, por que 0 $40? Alguém as impSem aos falantes? Como? Por que, depois que saimos da escola e ndo tememos mais a vara de marmelo da professora, continuamos a seguir as regras da lingua? Seré que tememos a vara de marmelo da Academia Brasileira de Letras? Sera que seguimos as regras gramaticais por simples temor? Seré que seguimos as regras da légica formal por simples temor? Serd que alguém nos vigia permanentemen- te para seguirmos essas regras? Embora nao se possa falar ‘uma lingua sem Ihe seguir as regras (a gramatica), uma teo- ria geral da gramatica nao habilita ninguém a falar qualquer Iingua. Essa distingao entre seguir as regras porque as encaramos como guias de aco, e seguir as regras porque tememos as conseqiiéncias esta na base da divergéncia entre Hart e Kel- sen. A teoria de Kelsen é uma teoria das regras juridicas cen- trada no cumprimento por temor. Hart distingue claramente ‘0 cumprimento por simples temor da perspectiva interna de quem segue uma regra: ‘Uma sociedade que tenha direito inclu aqueles que vem as regras de um ponto de temo, como padirdes de comportamento aceitos, e néo como simples previsbes confidveis do que lhes acontecera, nas maos das autor- dades, se as descumprirem. Mas também i sobre os quais, ou porque sa0 malfeitores ou vitimas in s do sistema, tais regras sero impostas, pela forca ou pela ameaca da force; estes estdo pre: pados com as regras apenas enquanto fonte de po: unico. (Hart 1997, 201) Norma, moralidade e interpretacéo... ~ 61 Ele distingue, pois, duas perspectivas: a interna, isto é, a de quem aceita a regra, e a externa, a de quem da regra vé apenas a san¢o. A primeira perspectiva consiste em seguir uma regra, a segunda nao. A segunda consiste em evitar a sangao e nao apenas em desobedecer a uma regra para obe- decer outra regra que se pode justificar de forma mais ade- quada. * Comego por um exemplo, o do préprio Hart, cujo papel inovador parece-me irrecusdvel. A despeito de os problemas que ele enfrenta em The concept of law serem ainda muito se- melhantes aos da teoria da norma, como bem esclareceu Bar- zotto (2007, passim), hd um ponto de sua obra que merece destaque como 0 ponto de partida da nova teoria. Hart foi talvez uma espécie de Moisés da filosofia juridica contempo- inea: trouxe-nos até a fronteira da terra prometida da razo pratica, sem entrar nela, avistando-a de longe. Na verdade, Hart abandonou a teoria das normas no sentido behavioris- ta, mas manteve-se dentro de uma teoria geral do direito, como bem mostra Shapiro: 0 ponto de vista de Hart preten- de-se ainda tedrico, nao pratico, mas dentro do ambito ted- rico pretende-se hermenéutico, nao behaviorista. Esse ponto de vista é, porém, ainda assim externo (Shapiro 2006-2007, 1160-1161). Ora, justamente o horizonte que Hart viu, e que nos ajudou a investigar, encontra-se num ponto polémico de seu texto. Trata-se da sua répida, mas fundamental referén- cia & pratica social. O tema pode parecer menor, lateral ou pouco importante, mas ele é, a meu ver, extremamente signi- ficativo. A prética social, como o jogo de xadrez ou qualquer outro jogo, consiste em formas regradas de aco, embora nao formas regradas 4 maneira do comando ou da ordem (Hart 1997, 56-57). Tanto na prética social quanto no jogo de xa- drez.a figura do soberano, do legislador, de rex é muito me- nos importante, para nao dizer mesmo inexistente. Eo que é 5 Nese: termes, na po conhecer a verdade do angumento de Shapiro: ¢ homem mats que i (para evitarasangSo) nfo 60 ipo de quem segue une ra 62 Norma, moralidade e interpretacio. a pratica social ou 0 jogo de xadrez? E algo préximo, sendo mesmo igual, ao que Wittgenstein chamou de forma de vida, ou jogo de linguagem? Dentro de uma teoria da norma os exemplos de pratica social e jogos parecem insuficientemente explicados. Por qué? Justamente porque pratica e jogos - a despeito de nao nasce- rem em drvores - nao precisam ou mesmo no pressupdem um soberano, um pai, um comandante a nos dizer o que fazer, um mestre e senhor com uma palmatéria levantada perma- nentemente a nos ameacar. Quem deseja cumprir 0 direito, nessa perspectiva da pratica social, ndo é um delingiiente cuja vida é pautada por fugir das sangoes. Quem deseja cumprir 0 direito é 0 homem honesto que deseja entrar num jogo. Quer saber as regras do jogo para jogé-lo, nao para burlé-las. Vocé quer entrar no jogo? Bem, isso joga-se assim. Quer fazer parte dessa sociedade democratica, liberal, moderna? E assim que se faz. Dessa perspectiva o direito é uma pratica regrada, par- ticularmente regrada, sobre uma area ampla da vida humana Certamente diz respeito as interagdes humanas em geral, mas ndo se aplica a certos niveis de nossa vida. Nao nos diz como devemos amar nossos amigos, nossos pais e nossos filhos."® Para falar com a velha tradigao kantiana, obriga-nos ao respei- to, mas nao & afeicao. ‘A porta entreaberta por Hart esté bastante clara no trecho em que ele afirma o seguinte: © uso de regras de reconhecimento implicitas, por tri- bunais e por outros, ao identificar regras particulares do sistema é caracteristico do ponto de vista interno. Os que as usam assim manifestam, por isso mesmo, sua propria 5 bora as storia a Wittgenstein sem potas no vo de Hart elas sf0 68 senciis. Ses proprio eemplo do ogo de xadtes mostra» proximidade de sua visio com aquela de 20 capitulo sobre cetcimo com relacio Bs fears ao problema sua tranemssdo diz que Wittgenstein fem hes a5 [losis importantes observagbes sobre sina? Tras © Se 10 Aristételes dave conta disso a dizer que a justica existe propriamente centre pessoas cjes elagbes 80 governadas pela lee onde as relagBes nfo ao dessa ratureza ndo pode haver propriamentenjst agar para jus- {igs entre marico e mulher do que entre paie Norma, moralidade e interpretagao... - 63 aceitagdo delas como guias e com essa atitude vem um vocabulério diferente das expresses naturais a0 ponto de vista externo. Talvez, sua forma mais simples seja a expresso “é de direito que..”, que encontramos na boca i ‘mas das pessoas comuns que 0. Isso, da mesma forma que €a linguagem de quem esté valiando uma situagao em funcao de regras que ele re- to.com outros, como adequadas a seu propo- ta atitude de aceitacio compartilhada de regras hé de ser contrastada com a de um observador que registra ab extra o fato de um grupo social aceitar certas regras, que ele mesmo nao aceita. (Hart 1997, 102) Notemos duas coisas importantes no trecho. A primeira é © famoso ‘ponto de vista interno’, isto 6, o ponto de vista de quem usa a regra (0 ponto de vista pratico, de que fala Sha- iro 2006-2007), ponto de vista completamente diferente da- quele que fala da regra (0 ponto de vista externo). A segunda é a referéncia a ‘aceitacao compartilhada’ (shared acceptance). do se trata apenas de um fato externo, mas de um fato ~ se quisermos ~ no qual o que é partilhado é um sentido da agao. Exatamente, alls, como se dé no uso da lingua para realizar discursos. As linguas sao sistemas compartilhados, visto néo haver propriamente linguas privadas (isto é, individuais). Te- mos ai dois elementos importantes, quais sejam: uma pratica social (a shared acceptance) e 0 uso (ponto de vista interno, 0 ponto de vista pratico ou o ponto de vista da primeira pessoa) da propria regra. esse ponto de vista ja no basta falar das diferengas en- tre normas juridicas e normas morais, ou mesmo de direito natural e direito positivo. O proprio Hart reconhece que afinal de contas os sistemas juridicos tém um minimo de direito na- sorque se o direito diz respeito as interagdes humanas, algumas coisas seriam absurdas em qualquer forma de vida social humana (por exemplo, estabelecer como obrigagao que cada um mate seu vizinho! Essa espécie de regra implicaria afinal a autodestruigio, antes que a autopreservacio de um 64 - Norma, moralidade e interpretacao. grupo social). O que ¢ relevante é que normas existem como condigao necesséria de interacao, de praticas sociais cuja con- tinuidade é garantida porque sio praticas regradas. Qualquer um pode entrar no ‘jogo’ e dar continuidade a ele desde que tenha entendido as regras do jogo. Assim como foi possivel caracterizar uma teoria da nor- ma com tracos particulares, convém indicat os tracos mais ti- picos das teorias da decisao. O primeiro deles é sem diivida a centralidade dos proble- mas de aplicacao do direito. Exatamente aquilo que as teorias danorma descartaram, ora dizendo que se tratava de algo irra- cional, nao suscetivel de um ‘ciéncia normativa’ propriamente, ora relegando a aplicaco a uma zona de penumbra do contexto aberto de toda norma, a teoria da deciséo toma como elemento central: saber direito é saber decidir segundo o direito, e ensi- nar direito é ensinar a decidir segundo o direito. O proceso deliberativo é ele mesmo o coracéo da teoria da deciséo. Dessa forma, a aplicacio e a necesséria compreenséo das normas é © que se deve descrever, explicar e até mesmo prescrever. Em ‘outras palavras, uma teoria juridica da deciséo desloca 0 foco de visio dos juristas de uma metafisica das regras pata 0 uso das regras. A pergunta central dessas teorias jé no diz: “o que i 1 que é decidir segundo o direito?” sta é uma boa deciséo segundo o direi- to?” Como 0 uso é adequado ou inadequado, certo ou errado, conveniente ou inconveniente? Ensinar e aprender direito pas- sam a ser vistos como transmitir usos adequados das regras juridicas. Naturalmente a teoria das fontes do direito limita ou determina o universo das regras a serem usadas. As fontes do direito sio o limite, as fronteiras do jogo. Mas essa teoria da deciso pode ser tal que permita uma porosidade entre nogdes ‘mais restritas (por exemplo, uma nogao legalista) e nogdes mais abrangentes (por exemplo uma nogao cultural) de fontes do di- reito. Isso, entretanto, nao altera o cardter normativo do direito e muito menos ainda Ihe afeta o carater pratico, Norma, moralidade e interpretacao... - 65 Um segundo trago caracteristico é 0 tratamento do as- sunto do ponto de vista do agente, do ponto de vista prati- co. Neste sentido, a decisdo segundo a regra é sempre uma decisao justificavel e por isso mesmo criticavel pela regra mesma. A regra volta a ser régua e medida das ages ou decis6es." Regra como medida é entao usada pelo agente tanto para determinar e guiar sua aco, quanto para medi- Ia ou confronta-la com um padrao (retitude, conformidade, legalidade, constitucionalidade). Estando 0 agente dentro de um grupo que pretende ter uma pratica compartilhada = 0 direito de determinada sociedade ~ a regra Ihe serve de guia. Ele inicia sua aco guiando-se pela conformidade com o direito e caso seja chamado a explicar sua decisio da razées, isto é, justifica-a por referéncia a esse padrao. Os outros, que também entendem a regra e a utilizam, os que fazem parte dessa comunidade juridica, desse grupo que compartilha esses sentidos e essa pratica, podem usa- la também para criticar a decisdo alheia. Mostram como a deciséo nao se justifica segundo aquela regra. Tanto quem age quanto quem critica a ago alheia valem-se das regras como critérios de decisao. Nestes termos, a teoria da decisio (segundo o direito) é uma reflexio sobre o discurso de aplicagao, de justificacéo, de razSes para agir e razSes para decidir. A teoria da deciséo € uma teoria do raciocinio a partir de regras (regras juri cas, no caso do direito). A justificacdo no é tratada como ‘racionalizagio’ no sentido negativo do termo, ou seja, como simples encobrimento das razdes de agir, encobrimento das raz6es ‘mas’ por raz6es ‘boas’ e publicaveis; racionalizago no é tratada como uma forma de mentira, digamos. Justi- ficacio é a exposigao das diversas passagens do pensamen- to de quem aplica e usa a regra. A justificacao tem fungao analitica nessa altura. O discurso de justificagao é 0 discurso 1 Base € um objeto longamente desenvolvido em Lopes (200). 66 - Norma, moralidade e interpretagzo. natural da ago explicada:” quando se pergunta a alguém ‘o que estas fazendo’, ou ‘por que fizeste isto’, a resposta nao é uma descrigo de coisas alheias que se passaram em algum. lugar neutro e alheio (sua cabeca, seu coragao, suas entra- has). Trata-se de levar a sério o que Paul Ricoeur chama de “o discurso pelo qual o homem diz o seu fazer” (Ricoeur 1988, 11). Nao se trata de expor simples fatos, mas de expor intengdes, finalidades ou narrativas, isto é, uma série de fa- tos com uma ordem compreensivel por alguém que também 6 capaz de aco. A resposta, mesmo dada na linguagem des- uma resposta pelas razSes que o levaram a escolher tal ou qual curso de aco. No caso do direito, essas razdes, so normativas, naturalmente, ¢ também naturalmente, nas sociedades modernas, séo raz6es fundadas primeiramente no direito positivo. Ora, 0 discurso de justificagio é reconhecido como parte in- tegrante do discurso juridico. Depois de reconhecer que dedugéo pode ser usada no raciocinio juridico, MacCormick inicia uma discuss4o a que ele denomina a busca por razdes de segundo {gra com os seguintes termos: “Podemos, porém, esgotar as re- gras sem ter eliminado a necessidade de decidir de acordo coma Iei—ou porque as regras so obscuras, ou porque a classificacéo adequadas dos fatos relevantes é controversa, ou mesmo porque Ind divergéncia sobre se ha ou no hé alguma base legal para cer ta pretensio ou decisio juridica.” (MacCormick 1995, 100-128) Ora, quando esgotamos as regras precisamos entao construir certo regramento. Fazemos ou nio isso? Claro que fazemos e isso ¢ 0 terreno proprio da velha conhecida da filosofia classica, 12 Nio estou aqui fazendo a diferenca feta por Klaus Gunther enre alii ej tiene. Na bem conhecida tese de Gunther, discursos de just os ditzaaistotdica, ou sea, 2 fopiniveis; a aplcacioestd na esfera da retric, owaja na esfera das cosas provaveis (sto é coisas que se conhectm no gerl, mas nio no particular: sabe que chove, mas nfo ae sabe se chovau ontem ou sechovers amanht). Norma, moralidade e interpretacio... - 67 a discussdo dialética, literariamente representada nos di platénicos, e analiticamente decomposta e examinada nos Tipi- cos de Aristételes, dos quais voltarei a falar mais adiante. Isso permite entender como um autor confessadamente positivista como Joseph Raz trata as normas juridicas como razbes para agir (Raz 1990, 58-59)."* Essa teoria considera o discurso de justificagzo como seu apoio mais importante: néo trata as normas como coisas externas, ou como vontade alheia pura e simplesmente, mas como verdadeiras razdes para agir. Isso nao impede que se considere a vontade do outro como uma razdo para agir, desde que essa vontade nao seja pura e simplesmente uma imposicdo de fato (pela submissao fisica, pelo terror, etc). Caso tal submissio se desse assim, ou mesmo se desse pela mentira e pelo engano, a razo do outro nao seria um motivo para obediéncia, mas um simples obstéculo factual insuperavel. Nesse caso, a vontade do outro ndo se- ia um motivo propriamente, mas uma causa externa. Aque- le que explica sua ago por meio da insuperavel oposicao de outrem da uma causa para agir, mas néo uma justificativa no sentido que se pode atribuir apenas a agio livre. Nao é por acaso que o exemplo do assaltante é crucial para explicar a teoria do direito de Hart. O assaltado que entrega o dinheiro a um assaltante néo pode ser equiparado ao contribuinte que paga seus impostos ao fisco. O primeiro tem uma causa ex- terna para sua aco, o segundo tem um motivo internalizado. Para o segundo, a exigéncia do fisco é desconfortavel e onero- sai se ele pudesse, pagaria menos, ou pagaria diferentemente, mas as razGes para participar de uma vida comum em uma sociedade politica s4o suficientemente boas para fazé-lo en- soci.” (Raz 1990, 148) 68 - Norma, moralidade ¢ interpretacéo. tender e aquiescer. O assaltado nao tem nenhuma razo para aquiescer. * Assim, ao tratar normas juridicas como elementos da ra- zo para agir (ou para decidir), as novas teorias do direito voltam a valorizar 0 aspecto propriamente pratico do direito. Se a teoria das normas converteu-se em uma gramatica geral do direito, cujo objeto pode ser analogamente compre- endido como uma sintaxe das normas, a teoria da decisao co- Joca-se em outro nivel do discurso. E uma espécie de pragma- tica das normas, mais claramente ainda uma espécie de teoria do discurso. Embora o discurso pressuponha a morfol termos) ea sintaxe (as proposic6es), ele apenas se realiza num ato sintético que é a articulacao de sentidos (semantica) reali- zada em discursos completos. Outra vez, isso tem sua importncia, pois de modo geral & preciso saber se 0 que fazemos quando ensinamos direito é ensinar morfologia (os conceitos juridicos), sintaxe (teorias da norma), ou realizagdo de discursos (deciséo segundo o direi- to). Creio que muitos dos desconfortos sentidos por alguns professores e provavelmente a maior parte dos alunos reside nessa incompletude de nossa maneira de ensinar. Esse des- conforto também se encontra, menos explicito e verbalizado, nas pessoas comuns. Para estas, 0s juristas falam um linguajar incompreensivel, sendo que os resultados efetivos desse jar- go incompreensivel sdo freqiientemente non senses. Ou seja, TEA despelto de ertcar longamente a formulagio de Hart, Rez ext muito préximo mente pensamos que as razoce para giro razies para uma pessoa realizar uma acho quando se derem dete cas. A ralizagho de uma acio por um agente em dads crcunstincias ‘pode ser encarada como tm fato,e pode-se pensar que razies sio relacbes entre odes nessa situagSotém razio para fazer quando a acio ainda nio foi efetiva pessoas. (Raz 199,19) Norma, moralidade e interpretacao... - 69 do ponto de vista de uma justificagao das decisdes (e de seus resultados), parece dificil aceitar que os conceitos juridicos le- vem a situac3o paradoxal, incompreensivel ou injusta, como seja a de tratar desigualmente casos semelhantes, ou de, em nome da ordem dos conceitos, terminar por ferir estados de coisas conforme ao direito. 4, Uma iiltima provocagio Os antecedentes historicamente mais imediatos desses debates encontram-se no formalismo Iégico da teoria das normas e no realismo empirico-sociolégico da tradicao norte- americana. Ambas correntes chegaram, por caminhos diferen- tes, auma espécie de desqualificacéo do processo decis6rio a0 inclui-lo na esfera da vontade sem que houvesse como distin- guir vontade, arbitrio ou capricho. Embora os autores mais ilustres de tais doutrinas pudessem até explicar seus termos, a vulgarizacao — e lembremos que vulgarizacio e divulgacio so os meios potentes para expandir idéias entre os iniciantes mesmo de forma equivocada ~ de um termo como ventade, ou idéias como previsibilidade e antecipacio das sentencas, chegaram a conformar mais de uma geracao de juristas. Se, porém, a determinagio das decisdes juridicas sé pu- der ser feita por um ato de vontade, concebido como poder ou capricho, por que deveriam as decisdes ser justificadas? A resposta que se seguia naturalmente era: para enganar os ineautos, para fazer parecer que hé razes, para iludir. En- to, qual o papel dos requisitos de razio e Bem, diriam alguns, a légica na quando muito haveria uma mesmo 0 caso de nao falar mais de Iégica, mas de retorica. E se de retorica faléssemos nao seria ento 0 caso de lé-la sob a clissica nocdo a lica, segundo a qual a retérica é uma parte do organon (Ricoeur 1983, 13-20), aquela parte do orga- on que nos dé as regras de pensamento do provavel, antes 70- Norma, moralidade e interpretacto. que do necessario? Nao, respondem as divulgagées: a retérica é arte da persuasio (ou querem dizer da seducao?) antes que do convenciment é Embora tudo isso possa ser afirmado, a realidade teima em voltar na forma de pedidos de justificagao. E quanto mais as justificativas e razdes se tornam fracas, ou so desmascara- das, mais vem a tona a necessidade de justificar mais emelhor as decisdes. Creio que foi nessa onda, derivada dessa neces- sidade de escapar das visdes mais realistas - ou talvez devés- semos dizer mais cinicas - que as teorias da decisao juridica voltaram. Essas teorias da decisao naturalmente tiveram que retornar a alguns conceitos-chave da filosofia prética. Entre eles 0 de que ha razdo onde nao hé certezas, embora haja dis- cussio ordenada. ‘A exposigao mais clara dessa percepco encontra-se nos comentarios iniciais que Tomas de Aquino faz 4 Etica a Ni- cémaco. Diz ele que razao poe ordem sobre quatro espécies de campos intelectuais. Em primeiro lugar sobre 0 mundo natural que nos é dado: compreendemos esse mundo segun- do uma ordem e a essa ordem intelectual chamamos filosofia natural (hoje, as ciéncias naturais). Em segundo lugar a razdo ordena seus préprios termos, 0s conceitos e as proposigoes entre si, gerando a ldgica. Em terceiro lugar a raz0 pe or- dem nas coisas que podemos fazer: essas coisas que fazemos obedecem a certas necessidades, e a razao que adequa meios a fins, sob a perspectiva das relagGes entre meios ¢ fins éa razio instrumental (a técnica e a arte). Hé, finalmente, uma ordem “a retérica de englobatrés . Constta eixo principale que fomece simultanermente oné da sua aticulagSocom ta logics demonatrativa ¢ com a filoso ia da angumentago englabs por si \do)~ uma teora da elocueio etna teora da compo

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