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Esboco de figura homenagem a Antonio Candido Afonso Arinos Alfredo Bosi Alfredo Mesquita Bento Prado Jr. Caio Prado Jr. Carlos Drummond de Andrade Celso Lafer Davi Arrigucci Jr. Décio de Almeida Prado Fernando Henrique Cardoso Florestan Fernandes Francisco de Assis Barbosa Francisco C. Weffort Francisco Iglésias Guilhermino Cesar José Guilherme Merquior José Petronillo de Santa Cruz Paulo Emilio Salles Gomes Raymundo Faoro Roberto Schwarz Ruy Coelho Sérgio Buarque de Holanda Tércio Sampaio Ferraz Jr. Walnice Nogueira Galvao [A] Livraria [A] Duas Cidades Notas para uma pragmatica do discurso Tércio Sampaio Ferraz Ir. 1. A pragmética lingiifstica Em sen livro Literatura e Sociedade (S. Paulo, 1965), Antonio Can- dido nos chama a atenc&o para a“ inextrincdvel” entre a obra, 0 autor_¢ o piiblico. “Na medida em que — diz ele — a arte é (...) um sistema simbélico de comunicagio inter-humana, ela pressupde 0 jogo permanente de relacées entre os trés, que formam uma triade indissolivel. O pitblico dé sentido ¢ realidade a obra, ¢ sem ele 0 autor nao se realiza pols ele & de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. (...) A obra, por sua vez, vincula o autor ao publico, pois o interesse deste é inicialmente por ela, s6 se estendendo a personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contacto indispensivel. As- sim, 4 série autor-piiblico-obra, junta-se outra: autor-obra-piblico. Mas o autor, do seu lado, é intermedidrio entre a obra, que criou, e o piiblico, # que se dirige; € 0 agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-piblico” (1), Neste esquema tedrico de Antonio Candido esta virtualmente a for- mulac%o, num esboco simples ¢ altamente motivador, de uma concepedo do_ato completo da linguagem como dependente da interacdo de trés partes, cada uma das quais sé é inteligivel no seu conjunto. Ele nos colo Ca, a nosso ver, dentro do campo de investigacées da chamada pragmé- tica lingiiistica. & nossa intengdo, neste trabalho, empreender uma and- lise_de algumas caracteristicas bésicas da pragmética, njo na sua aplica- dilidade direta ao discurso literdrio, mas num nivel superior e mais abstra- to de uma teoria geral dos signos lingiifstico A empresa de propor, ainda que em esboco, uma pragmética supée certa audécia e grande risco. Isto porque a nogdo de pragmatica é deveras 355 imprecisa, tratando-se de disciplina que, atrayés da contribuicio cruzeda de diversos ramos do saber, como as teorias filosGficas da linguagem ¢ da comunicagio, da légica formal, da psicologia, da sociologia, da retérica, da cibernética, da teoria da organizacdo, da teoria dos sistemas, vem ocupando cada vez mais o espaco vazio entre as anélises seminticas e sin- téticas da comunicagio verbal. Dizemos que “vem ocupando” e nao “ocupou” ou “ocupa”, porque Ihe falta ainda um delineamento detinitivo ou, pelo menos, mais definido, nao sd no tocante aos seus instrumentos metodolégicos, como também ao seu objeto. Os trabalhos que conhecemos hoje no setor Iutam ainda com uma delimitagao positiva da pragmitica, nascida justamente da consideragio de fendmenos lingiiisticos nao classifi- cAveis e nao descritiveis nos quadros da semantica ¢ da sintaxe, 0 que faz dela uma espécie de disciplina de “restos”, muitas vezes relegados, por concepcies estreitas, aos setores imprecisos e imprecisdveis do comporta- mento humano. Por isso mesmo, os diversos trabalhos que se ocupam da_pragmatica tém que propor seus proprios modelos que se cruzam, coincidem ou contrapdem uns aos outros, havendo autores que preferem realizar sua tarefa deixando o problema de uma definigao da disciplina propositadamente de lado (). Uma publicacdo recente ‘ ensaia uma classificagdo de pelo menos tués tipos bisicos de|aniilise pragmatica) O primeiro é denominado: teoria do uso de sinais, ligado aos nomes de Morris, Carnap, Klaus, Bense, e, de modo geral, & Escola de Praga. Aqui a pragmética é concebida como uma das partes da teoria dos signos ou semidtica, que os encara na sua relagdo entre si prdprios (sintaxe), na sua relacio aos objetos extralingiiisticos (semantica) ¢ na sua relagio aos seus intérpretes ou usuarios (pragma tica). Esta _posicdo est hoje, em parte, superada, primeiro, porque vé na pragmética uma espécie de procedimento analitico meramente adicional as andlises semanticas e sintéticas, segundo, porque ignora o importante fendmeno do diilogo, reduzindo 0 objeto da disciplina ao_uso dos signos feito pelo intérprete, sem atencéo ao papel do destinatdtio, ficando de fora a questo decisiva da convencdo dos signos pelas partes que o usam © segundo tipo pode ser denominado: pragmitica como lingiiéstica do didlogo, partindo-se aqui da distingao entre langue e parole, conforme a propositura de Saussure, mas prolongando a equivocidade da dicotomia no sentido de uma andlise ampla do fenémeno do discurso (parole); outros (Habermas, Appel) vao mais longe, tomando como ponto de parti- da o fendmeno da intersubjetividade comunicativa, fazendo da andlise do diilogo uma disciplina filos6fica no sentido de determinagao das con oes transcendentais do didlogo. Finalmente, um terceiro tipo, denomi- nado: pragmatica como teoria da acdo locuciondria (do ato de falar), rea- liza um explicito afastamento da lingiifstica_sistemdtica, na medida em que encara o falar como forma de |acdo social} (“). Nossa ambicio, no trabalho que estamos apresentando, é mais mo- desta. No queremos e nao podemos nos propor uma andlise exaustiva 356 da propria pragmética. Limitamo-nos, por isso, a um modelo de sentido meramente operacional. Este modelo enquadra-se numa espécie de lin- gilistica do didlogo) mais do que numa teoria do uso dos sinais, mas sem atingir as dimensoes transcendentais propostas por Habermas ¢ Appel. Os instruments de que nos utilizamos, porém, nos levam também & prag. matica no seu sentido de teoria do ato de falar, unindo-se, propositad: mente, as nogées de discurso e didlogo. Podemos, assim, de modo geral, dizer que o modelo operacional que apresentamos se ocupa primordial- mente dos aspectos comportamentais da relagdo discursiva, tendo como centro diretor da a 0 chamado principio da interacao ‘5), ou seja, Pretende ocupar-se do/ato de falar\enquanto uma relacdo entre emissor © receptor na medida em que € mediada por signos lingiiisticos. 2. Discurso e situa¢éo comunicativa A cultura ocidental, tal como foi cunhada pelos grandes pensadores gregos e pela tradi¢ao que a eles se seguiu, concebe ou nos leva a conce- ber 0 discurso como um fenémeno intersubjetivo especifico “), Quem dis- cursa, age. © discurso é um ato entre homens e deve ser concebido como acdo lingitistica, isto é, ago dirigida a outros homens, em oposigao ao mero agir. Mais do que isso, trata-se de uma acio que apela ao entendimento de outrem, sendo esta _a sua finalidade primordial. Todo discurso, neste sen- fido, como jé o notara a retérica antiga, dirige-se a um auditdrio ), Todo Ser humano, a menos que se queira ficticiamente imaginar uma situacio robinsoniana, acha-se inserido num mundo lingiiisticamente articulado e que corresponde. aproximadamente & experiéncia da “Lebenswelt” de Hus. serl ©). O mundo, como nos diz a moderna filosofia da lingua, nao é um objeto (como o sol, a Tua, o tio), nem a soma de todos os objetos, pois somente no mundo podemos delimitar um objeto em relagdo a outros, sem que 0 prdprio mundo seja delimitével em confronto com outros objetos, Pois isto significaria pensar o mundo junto com uma outra coisa que o ci Cundasse. Esta propriedade do mundo (humano) em apontar para o infi- nito e, apesar disso, em atuar significativamente como finito, 0 que Hus- serl tentou captar com a imagem do “horizonte”, nos leva a vé-lo como uma palavra sui generis (nem nome préprio, nem predicador), que apren- demos “sinsemanticamente” ‘, Todo homem, neste sentido, procura aje tar-se no mundo, tentando adaptar-se As suas articulagdes, na medida em que se dé ao mundo uma articulagio. Achar-se inserido no mundo néo sig- nifica, por isso, aceitar, sem questionar, uma articulacio. O homem nao estd, apenas, no mundo, mas orienta-se nele. Nao assumimos pura e sim- plesmente comportamentos aprendidos, sejam eles em termos de respeito 357 & normas éticas ou sociais ou juridicas da tradiedo, mas pedimos a sua jus- tificacao. O homem nfo esti diante da “realidade” como consciéncia “sem undo”, mas se ergue através da construcio articulads do seu corpo e dos seus instintos herdados sobre um “mundo circundante”, o qual ele, a0 falar, transforma no sew mundo, articulade de modo infinitamente mais ico, ¢ que, apesar de tudo, futuramente, 0 cerca. Dizer que estamos no mundo significa, pois, que estamos situados numa possibilidade infinitamen- te atualizivel: por toda a nossa vida, aprendemos uma série de habitos lin- siiisticos de varios tipos, como uma “lingua” que sabemos ¢ podemos usar, habitos que, em diferentes combinagdes ¢ modificacées, sao efetivamente (atualidade) repetidos (discurso). Nao aceitamos apenas o mundo, mas pedimos sua justificagdio. Quem deseja justificar aquilo que faz e que diz nfo despreza a necessidade de orientar-se no mundo: busca objetivos para o seu agir e razdes para 0 seu falar. Ora, 9 estabelecimento de objetivos ¢ fundamentos sao, por sua vez, de novo, acdes linglifsticas, que se referem a outros homens, os quais tam~ bém as aceitam ou as recusam, as reconhecem ou as poem em diivida Devemos distinguir, pois, inicialmente, dois graus da_situagao discursiva, Num primeiro plano, todo discurso se revela como uma discussio, enten- dendo-se por discussio a ac%o lingitfstica cujo modelo primario se resume na articulacdo do ato de perguntar e no de responder. © homem nio age € tem um comportamento qualquer, nZo age e reage pura e simplesmente, mas detém-se, |a fim de tornar presentd, discursivamente, um comporta~ mento passado ou futuro. Este momento de inteleccao de algo acontecido ow de planejamento de algo por acontecer, que envolve uma falta de se« guranea, denominamos pergurtar. A pergunta representa, assim, um nao sentir-se seguro de sua propria ago e do seu préprio comportamento ¢, deste modo, 2 possibilidade de distinguir entre objetivos e conseqiiéncias da sua propria aco, bem como entre um discurso fundamentado ¢ um discurso ndo fundamentado. Ela permite, além disso, uma distin¢do entre as diferentes possibilidades de agir, em termos de como se deve agir, como se tem de agir, como se quer agir etc./Uma pergunta, por sua vez, nao se move num vacuo, mas se articula num mundo de justificagées que entram em cena com pretensio de aworidade, isto é, capacidade ¢ prontidao para cxigir confianca (sustentabilidade), jé na determinacdo de objetivos, j4 pela apresentacio de fundamentos. Este momento da sustentabilidade da pré- pria acdo e do proprio comportamento e, assim, da possibilidade de fixa- Sao‘ de objetivos ¢ conseqiiéncias do préprio agir, bem como do discurso na sua fundamentacio, denominamos resposta (10), A articulacao necesséria entre pergunia e resposta, enquanto modelo primario da discuss4o, aponta-nos, contudo, para um segundo plano da si- tuagao discursiva. A simplicidade do modelo alberga uma complexidade, na medida em que uma_discussiio_ndo_se resume _no_questionamento de objetivos ¢ fundamentos, que devem ser justificados, mas envolve o ques- 358 tionamento das _préprias justificacdes. Isto é, 0 modelo pergunta-resposta repete-se emi relagao a si mesmo, em termos de reflexividade, ou seja, como uma discussio que se volta sobre si mesma. Assim, se no primeiro plano — discussio de primeiro grau — a situacao pede o fornecimento de ob- jetivos e fundamentos, no segundo —|discussdo de segundo grau\— ob- jetivos © fundamentos sio de novo quéstionados, donde a exiggncia de bons objetivos fundamentos verdadeiros. Neste segundo plano introduz-se, desta forma, 0 discurso como ars bene dicendi. Fundamental para o entendimento deste segundo grau da discussio 0 conceito de reflexividade 49), O conceito de reflexividade nao deve ser tomado aqui no sentido da légica formal — uma relagdo R se chama, neste sentido, reflexiva quando (x) tem a relacéo R consigo mesmo: por exemplo, a relagio idéntico a, ow seja, como relagao que satisfaz 0 pressu- posto segundo o qual todo membro esti para si mesmo na mesma relacdo que para um outro — pois a identidade exata da relacdo teflexiva nos impediria de yer a reflexividade como um aumento de complexidade no interior do proprio discurso_ Reflexividade, nestes termos, € uma qualidade ‘do discurso que resulta de uma acéo que poderfamos chamar de refle- xdio (12) Em nosso contexto, reflexividade significa, pois, um questionamento critico que se manifesta na propria discussio, quando se tenta buscar, se- mente, uma nova justificacio para os objetives e fundamentos assina- lados no proprio discurso. Trata-se, pois, de um por A prova a sua susten- tabilidade, Tsto significa uma nova discussdo cujo tema é a justificacdo for- necida. Ora, voltando a discuissao sobre a propria discussao € possivel cap- t&-la, na sua reflexividade, como um|processo de argumentacdo) 0 que sig- nifica, por seu lado, captar o ato de discutir como ato de persuadir ¢ de convencer. - Com isto delimitamos o nosso campo de inferesse. Deixando de lado outras possibilidades do ato de discursar, fixamo-nos aqui no discurso en- quanto [discussio que se fundamenta,| enquanto discussdo fundamentante, admitindo-se como acao linglifstica apenas aquela que pode ser entendida, isto é, aquela que pode ser ensinada e aprendida. Deste modo, inserimo- nos nos quadros da concepgao lingiifstica da cultura ocidental, sem pro- blematizé-la, tentando captar como ela se di, No esquema desta concep- cdo, a _possibilidade de comunicagdo é pressuposta e entendida como uma relagdo entre dois sujeitos, o que supde um desenvolvimento lingiifstico onde a estrutura sintatica sujeito/predicado j4 ocorreu. Nos termos desta possibilidade, 0 processo de aprendizado & um pressuposto da prépria o1- dem social, nfo apenas no sentido de um complexo de conhecimentos ¢ de um conhecimento previsivel de cada funcao social, mas também de uma capacidade, continuamente posta em uso, de estruturagdo ¢ reestruturagio, bem como de adaptagio de vivéncias previsiveis. E justamente esta situacio de aprender e ensinar, na qual a compre- ensibilidade das agdes deve ser manifestada, que denominamos situacéo 359 comunicativa. E nesta situagio que o discurso se dé como discusséo fun- damentante, onde aparece a finalidade do entendimento e, eventualmente, da persuasiio e convencimento que significa que nem. todo discurso im- Plica uma justificagao argumentada efetivamente realizada, significando, po- rém, que uma tal justificacio pode sempre ser exigida, desde que aquele que fala pretenda aparecer com autoridade ¢ aquele que ouve a ponha em diivida. Nestes termos, todo discurso, toda aco lingiiistica envolve uma re- gra fundamental que denominamos dever de prova. Este dever, que se ma- nifesta na (reflexividade da discusso, é sua regra bisica, constituindo o centro ético"e Tégico da discussio, a partir do qual é possivel conceber a discussio, tendo em vista os seus diferentes componentes, como uma un dade estruturada, Nao ha discusséo sem onus probandi; se ha um dever de dizer, hd também um dever de provar o que se diz. Centro ético da dis- cussio, este dever estabelece também uma_relacdo entre os componentes da discussio, petmitindo-Ihe, assim, uma estrutura. 3. Elementos do discurso enquanto Podemos reconhecer, inicialmente, numa discussio, trés componentes fundamentais, que denominaremos orador, ouvinte e objeto da discussdo, De um modo geral e abstrato, o orador é aquele que abre a discussio. aquele que propée a primeira assereo. Sob 0 ponto de vista do dever de Prova, 0 orador € aquele cuja aco lingtifstica se apresenta com pretensio de autoridade e que, portanto, tem o nus da prova, A auforidade repousa na compreensibilidade da ago, ou seja, na possibilidade desta ser apreen- dida © repetida, Uma acio nao compreensivel ressente-se de autoridade, © que pode ser medido no sucesso ou no fracasso da aprendizagem por parte do ouvinte. Neste sentido podemos entender o relevo atribuido pela retérica antiga & qualidade ética, 20 definir 0 orador como “vir bonus dicendi peritus”. Aqui também o orador é captado numa relagio (dever de prova). O orador é aquele que é dotado de engenho (ingenium), no sen- tido de produtividade ou fantasia, uma capacidade “natural”, que deve ser orientada pelo discernimento (judicium) © pela prudéncia (consilium), qualidade referida ao ouvinte e cujo contetdo basico é a utilitas, manifes- tando-se fundamentalmente no planejamento, poder-se-ia também dizer, na ia do discurso. O segundo componente da discussdo € 0 ouvinte. Este pode ser en- tendido como aquele ao qual se dirige a aco lingiifstica do orador. Pe- relman-Tyteca, no seu tratado de ret6rica, referem-se a este componente sob o nome de “auditério”, definido como “o conjunto daqueles sobre os 360 quais 0 orador quer exercer influéncia, pela sua argumentagio". Distin- guem eles, em principio, trés espécies bésicas de “auditério”: 0 “univer- sal”, constitufdo pela “humanidade inteira” ou, pelo menos, por “todos os homens adultos e normais”;_o “interlocutor”, constituido por uma tinica pessoa, diferente da do orador, e & qual este se dirige na discussio; final- mente, o “proprio sujeito”, quando o orador mesmo delibera ou se repre- senta a razdo dos seus atos. Esta classifica¢do, bem como a idéia mesma de “auditério”, embora fornegam elementos importantes para a concepcao do componente que denominamos ouvinte, enfraquecem a bilateralidade da situacdo comunicativa, na medida em que o “auditério”, embora conside- rado como fator que interfere no comportamento argumentativo do orador, aparece antes como uma “construgao” deste. A concepcio de Perelman-Tyteca, embora pressuponha a situacio co- municativa, parte, na verdade, da idéia de argumentacao, cuja finalidade é “provocar ou acrescer a adestio dos espiritos as teses que se apresentam a0 seu assentimento” (19), Deste modo, a discussio passa a organizar-se rimordialmente do Angulo do orador, aparecendo como um processo cuja finalidade primdria € a conquista da adesio ¢, com ela, do consenso das partes implicadas. Isto reduz a fundamentacio de cada aco lingiifstica & estratégia do consenso, onde desponta 0 ideal romantico da verdade, da justica, da_beleza etc. como eterna discussao e do consenso universal como critério de legitimagao. Ora, quando dissemos que na situagio comunicativa todo discurso se dé como discussio fundamentante, onde, eventualmente, se revela a fina- lidade da conquista de um audit6rio, lembramos também que nem todo discurso implica uma justificagio que efetivamente ocorra, embora impli- que sempre um dever de prova. A fungdo da fundamentagio e da sua jus- tificagao é, secundariamente, a obtencio do consenso; primariamente, se trata_aqui_de_um elemento de controle” da_discusséo. Fundamentacao © justificacdo estabelecem as linhas da argumentacdo para procedimentos dis- cursivos ¢ dio ao ouvinte a base para o seu comportamento. Desta forma podemos dizer que a situacio comunicativa nao é primariamente o resul- tado de um conflito cognitive de uma comunidade lingiiistica com o seu mundo circundante, mas, antes de tudo, um conflito prdtico, que se dé no plano da acdo. Nestes termos é que afirmamos ser o ouvinte, como compo- nente da discusso, nao um “produto do orador”, isto é, aquele que 0 ora- dor, com sua argumentacao, quer conquistar, tendo em vista uma tese pro- posta — 0 que pressupde um ‘conflito cognitive) —, mas sim aquele do qual se espera uma reacio — 0 que pressupde um conflito pratico. tipo de reagio do ouvinte co-estabelece também as linhas da argu- mentacio do orador. Assim podemos aceitar a afirmacio de Perelman-Ty- teca, segundo a qual, “a natureza do auditorio... determina em larga me- dida quer o aspecto que tomardo as argumentagdes, quer o cardter do al- cance que se Ihes atribuiré” desde que se substitua o termo natureza pelo 361 termo reacio, pois isto evita as dificuldades em que se véem metidos os autores para definir “auditério universal” e que os conduzem a um certo relativismo socioldgico, em tltima andlise, a repartir “a priori” a raciona- lidade em dois campos, a falar em demonstrag em rae cioeinio humano que se refere verdade e 4 adesio, Com efeito, a idéia de acio ¢ reaco tem uma relevancia estritamente pragmética e, como tal, antecede a articulacdo sintatica © seméntica do discurso; isto é os termos racional, irracional, verdadeiro, falso so conquistados na situagao comu- nicativa, dentro ¢ nfo fora do discurso ou anteriormente a ele. O terceiro componente da discussio & 0 objeto. O objeto da discussdo € aquilo que se diz, ou seja, uma aco lingiifstica que deve ser compreen- dida, Envolve, portanto, em termos de reflexividade, objetivos ¢ fundamen- tos, bem como a sua justificago. O processo reflexivo, alidis, parece con- duzir-nos a uma indeterminabilidade do objeto da discus: na medida em que despontaria aqui o problema do regresso ao infinito: cada justifi- pode ser posta & prova, na sua sustentabilidade, ad infinitum. Isto, eniretanto, no se di, pois é possivel para cada espéci 2 determinar quantos passos séo necessarios A sua justificagao. Esta determi- nacido € essencialmente pragmtica ¢ depende sempre da situagio comuni- cativa. Assim, por exemplo, é facil perceber 0 que queremos dizer se com- paramos a aco lingiiistica — “nao fumem” —, quando ela ocorre numa sala fechada, cheia de recipientes contendo inflamantes ¢ explosives ou num aparelho de TV e é pronunciada por um médico. Tendo _em vista_a regra do dever de prova, 0 objeto da discussao pode ser _determinado como questdo. As questées, em razio da reflexivi dade da discussio, variam em complexidade, conforme elas se componham de uma ou varias acées lingiifsticas, constituindo uma unidade ou desdo- brando-se em uma ou mais alternativas. A complexidade (numérica) das questdes se acrescenta 0 seu grau de reflexividade, distinguindo-se entre questdes infinitas, que compdem, por exemplo, 0 campo da pesquisa cien- lifica, sendo abertas e caracterizando-se pela generalidade ¢ abstragéo (alto grau de reflexividade), © questdes finitas, que sto fechadas, coneretas especificas (baixo grau de reflexividade), compondo o Ambito da decisio © da agio, na medida em que tém uma intencdo diretiva explicita. Distin guimos ainda as questécs quanto 4 sua qualidade, 0 que é determinado pela reacdo do ouvinte & acdo lingtifstica do orador. Esta reagdo pode ser ativa, no sentido de perguntar, de nao sentir-se seguro da autoridade de que goza, em principio, a acao lingiifstica do orador, ou ser passiva, no sentido de assumir a autoridade, deixando de pér em diivida a aco lin- gilistica do orador. No primeiro caso, a questo se qualifica como um dubium. No segundo, temos um certum. Todas estas distingdes sao fruto de anilise, devendo-se lembrar que a questdo, no discurso, constitui sem- pre uma unidade, determinada, no momento em que a situacéo comunica- tiva ocorre, pelo que podemos falar de quesido principal. Esta se define 362 ~ no confronto das partes, nao importando qual seja a reagao do ouvinte 2 ago lingiifstica do orador. A questio principal nao é, necessariamente, nem a mais importante nem a decisiva. E apenas a que inicia a discussdo e que tem, por isso, uma funco organizadora: ela corresponde a uma ordem no dever de prova, estruturando-se, a partir dela, 0 processo das fundamen- tagdes ¢ das justificagdes e, por conseguinte, o que é posto em diivida, o que é aceito, qual © limite do questionamento, grau de reflexividade, per- mitindo, inclusive, a determinagéo da questio mais importante e decisiva. 4. Delimitagao do objeto da anélise aos discursos fundamentantes A reflexividade da situagdo comunicativa pode ser controlada, controle exige regras. A situacio comunicativa cuja reflexividade ¢ contro- lada por regras nos fornece um tipo de discurso que nos interessa peculiar- mente, qual seja,/o discurso racional. Entendemos por |racional |o discurso fundamentante. Todo discurso, dissemos, apela ao entendimento de outrem. Nestes termos, discurso ¢ agio lingiiistica que pode ser aprendida, 0 que se mede na possibilidade desper- tada de ser repetida. Além disso, ha discursos que nao se negam a fundar © que se diz, que ndo impdem arbitrariamente a sua sustentabilidade, mas que fornecem instrumentos para a sua comprovagio. Portanto, discursos nao apenas provaveis, mas com-provaveis. Esta comprovacdo depende do mtu entendimento das partes que discutem, o que (nao ‘significa que 0 cardter racional do discurso seja fruto de uma conven¢io (convencionalis- mo) em termos de tudo é racional, desde que as partes consciente ou in- conscientemente (relativismo das culturas) estejam de_acordo. A raciona- lidade, ao contrério, ndo emerge do acordo ou Gonsenso sobre o que se diz, isto é, sobre temas, assuntos, conceitos, prineipios, mas do mtituo en- tendimento sobre as regras que nos permitem falar deles. Isto significa que podemos ter até @ mesmo dissenso sobre temas, sobre interpretagdes, sobre conceitos, sobre fins, sobre meios, sobre a relaco entre ambos (reflexivi- dade do discurso), e, apesar disto, ter um discurso racional. Condicao disto € que as regras da discussio nao sejam impostas de fora da situagao co- municativa, mas de dentro dela. Isto significa que, para ser racional, nao se exige do discurso que-ele fundamente tudo (principio da razdo suficiente), mas que ele esteja{ abertd)a exigéncia de fundamentagao. Discurso racional nao é discurso fundanrentado nem_mesmo fundamentavel, mas fundamen- tante. Para ser racional, portanto, nao) é preciso que a cadeia reflexiva das fundamentacdes nos conduzam a um corpo de axiomas e dele sejam de- dutiveis, tiem que, caso este corpo nao seja patente ou mesmo nao exista, 363 que sejamos capazes de descobrir principios tiltimos, explicativos ainda que Provis6rios (discurso fundamentavel), mas sim que haja uma regra que me obrigue A fundamentacdo (regra do dever de prova), 0 que pode me conduzir, as vezes, a questoes aporéticas que, evidentemente, nem tém o caréter de corpo axiomético nem de solugo proviséria, mas $0 motivo de agdo coerente. Assim, por exemplo, o discurso filos6fico é tipicamente um discurso que desemboca em aporias (que é 0 conhecer, o falar, 0 ser justo, © verdadeiro ctc.), mas, ao enfrenté-las, reconhecendo-as como motivo wl timo do seu discursar, é racional mesmo_quando as “resolve” (embora nao as “solucione”) afirmando o absurdo como fundamento. Em iltima and- lise, no discurso racional tem de haver espaco para o (questionamento que € @ outra regra basica que me permite falar em discurso fundamentante. A regra que permite 0 questionamento é, na verdade, corolério da que exige a prova, a regra do dever de prova. Esta € vista, assim, como 0 centro ldgico ¢

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