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INTRODUGAO: MAPA DA VIAGEM © esforgo de reconstrugdo, melhor dito, de construgdo da democracia no Brasil ganhou impeto apés o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforgo & a voga que assumiu a palavra cidadania, Politicos, jomalistas, intelectuais, lideres sindicai dirigentes de associagSes, simples cidadaos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, cla substituiu o proprio povo na retorica politica. Nao se diz mais "o povo quer isto ou aquilo", diz-se "a cidadania quer". Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo civico, chamamos a Constituigdo de 1988 de Constituigao Cidada. Havia ingenuidade no entusiasmo, Havia a erenga de que a democratizagio das institui traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que 0 fato de termos reconquistado 0 direito de cleger nossos prefeitos, governadores ¢ presidente da Republica seria garantia de liberdade, de participagdo, de seguranga, de desenvolvimento, de emprego, de justiga social. De liberdade, ele foi, A manifestagdo do pensamento é livre, a ago politica ¢ sindical é livre. De participagao também. O direito do voto nunca foi tio difundido. Mas as coisas ndo caminharam tao bem em outras areas. Pelo contrario. ja 15 anos passados desde © fim da ditadura, problemas 7 JOSE MURILO DE CARVALHO entrais de nossa sociedade, como a violéneia urbana, o desemprego, 0 analfabetismo, a ma qualidade da educagdo, a oferta inadequada dos servigos de sade e saneamento, ¢ as grandes desigualdades sociais e econémicas ou continuam sem solucdo, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo muito lento, Em conseqiiéncia, os préprios mecanismos ¢ agentes do sistema democratico, como as eleigdes, os partidos, 0 Congresso, os politicos, se desgastam e perdem a confianga dos cidadaos. Nao ha indicios de que a descrenga dos cidadaos tenha gerado saudosismo em relagdo a0 governo militar, do qual a nova gerago nem mesmo se recorda, Nem ha indicagio de perigo imediato para o sistema democratic, No entanto, a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que tém a ver com a crescente dependéncia do pais em relagdo 4 ordem econémica internacional, é fator inquietante, ndo apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possivel tentagdo que pode gerar de solugdes que signifiquem retrocesso em conquistas j4 feitas. E importante, entao, refletir sobre 0 problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolugdo histérica ¢ suas perspectivas. Seri exercicio adequado para 0 momento da passage dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses. Inicio a discuss4o dizendo que o fendmeno da cidadania & complexo e historicamente definido. A breve introdugdo acima jé indica sua complexidade. O exercicio de certos direitos, como a liberdade de pensamento ¢ 0 voto, no gera automaticamente 0 gozo de outros, como a seguranga ¢ 0 emprego, O exercicio do voto nfo garante a existéncia de governos atentos aos problemas basicos da populagdo. Dito de outra maneira: a 8 CIDADANIA NO BRASIL liberdade e a participagdo ndo levam autom:uicamente, ou rapidamente, a resolugdo de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui varias dimensdes e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participagdo e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente ¢ talvez inatingivel. Mas ele tem servido de parametro para 0 julgamento da qualidade da cidadania em cada pafs ¢ em cada momento histérico, Tomou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, politicos ¢ sociais. O cidadio pleno seria aquele que fosse titular dos trés direitos. Cidadaos incompletos seriam os que possuissem apenas alguns dos direitos. Os que ndo se beneficiassem de nenhum dos direitos scriam ndo-cidadaos. Esclarego os conceitos. Direitos civis sio os direitos fundamentais a vida, 4 liberdade, a propriedade, 4 igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de onganizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar ¢ da correspondéneia, de ndo ser preso a nao ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de nao ser condenado sem processo legal regular, Sio direitos cuja garantia se baseia na existéncia de uma justiga independente, eficiente, barata ¢ acessivel a todos. Sao eles que garantem as relagdes civilizadas entre as pessoas e a propria existéncia da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo, Sua pedra de toque € a liberdade individual. E possivel haver direitos civis sem direitos politicos. Estes se referem a participagio do idadio no governo da sociedade. Seu exercicio é limitado a parcela da populagio e consiste na capacidade de fazer demonstragGes politicas, de organizar partidos, de votar, de ser votado, Em geral, quando se fala de direitos politicos, ¢ do direito do voto que se esté falando. Se 9 JOSE MURILO DE CARVALHO pode haver direitos civis sem direitos politicos, 0 contrario nao é vidvel. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinido © organizagao, os direitos politicos, sobretudo 0 voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de contetido e servem antes para justificar governos do que para representar cidaddos. Os direitos politicos tém como instituigo principal os partidos © um parlamento livre e representative, Sdo eles que conferem legitimidade organizagao politica da sociedade. Sua esséncia ¢ a idéia de autogoverno Finalmente, ha os dircitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos politicos garantem a participagdo no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participagdo na riqueza coletiva. Eles incluem o direito 4 educagao, ao trabalho, a0 salirio justo, & satide, & aposentadoria, A garantia de sua vigéncia depende da existéncia de uma eficiente maquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis ¢ certamente sem os direitos politicos. Podem mesmo ser usados em substituigdo aos direitos politicos. Mas, na auséneia de direitos civis ¢ politicos, seu contetido ¢ alcance tendem a ser arbitrarios. Os direitos sociais permitem as sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um minimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam & a da justica social. © autor que desenvolveu a distingdo entre as varias dimensdes da cidadania, T. A. Marshall, sugeriu também que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidao. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos politicos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, no se trata de seqiiéncia apenas cronoligica: ela é tambér 10 CIDADANIA NO BRASIL logica. Foi com base no exercicio dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram © direito de votar, de participar do governo de seu pais. A participagio permitiu a cleigdo de operirios ¢ a criag3o do Partido Trabalhista, que foram os responsiveis pela introdugdo dos direitos sociais. Hi, no entanto, uma excegdo na seqiiéneia de direitos, anotada pelo proprio Marshall. Trata-se da educagio popular. Ela & definida como direito social mas tem sido historicamente um pré-requisito para a expansio dos outros direitos, Nos paises em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razo ou outra a educagio popular foi introduzi da, Foi ela que permitiu as pessoas tomarem conhecimento de seus direitos ¢ se organizarem para lutar por eles. A auséncia de uma populagdo educada tem sido sempre um dos principais obstéculos 4 construgdo da cidadania civil ¢ politica. surgimento seqiiencial dos direitos sugere que a propria idéia de direitos, e, portanto, a pripria cidadania, é um fendmeno historico. © ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradigao ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos sio distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios ¢ retrocessos, nao previstos por Marshall. O percurso inglés foi apenas um entre outros. A Franga, a Alemanha, os Estados Unidos, cada pais seguiu seu proprio caminho. O Brasil nfo é exceg&io. Aqui ndo se aplica o modelo inglés. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferengas importantes. A primeira refere-se 4 maior énfase em um dos direitos, o social, em relagao aos outros. A segunda refere-se a alteragdo na seqiiéncia em que os direitos foram adquiridos: itt Jos MURILO DE CARVALHO entre nds © social precedeu os outros. Como havia légica na seqiiéneia inglesa, uma alteragdo dessa légica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadao inglés, ou norte-americano, ¢ de um cidadio brasileiro, no estamos falando exatamente da mesma coisa. Outro aspecto importante, derivado da natureza histériea da cidadania, 6 que cla se desenvolveu dentro do fendmeno, também histérico, a que chamamos de Estado-nagdo ¢ que data da Revolugdo Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, todos eles, sempre se deu dentro das fronteiras geograficas © politicas do Estado-nagio. Era uma luta politica nacional, ¢ 0 cidadio que dela surgia cra também nacional. Isto quer dizer que a construgo da cidadania tem a ver com a relagdo das pessoas com 0 Estado e com a naco. As pessoas se tornavam cidadas 4 medida que passavam a se sentir parte de uma nagdo ¢ de um Estado, Da cidadania como a conhecemos fazem parte entdo a lealdade a um Estado e a identificagdo com uma nago, As duas coisas também nem sempre aparecem juntas. A identificagao & nagdo pode ser mais forte do que a lealdade ao Estado, e vice-versa. Em geral, a identidade nacional se deve a fatores como religido, lingua e, sobretudo, lutas ‘guerras contra inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do grau de participagao na vida politica, A maneira como se formaram os Estados-nago condiciona assim a construgdo da cidadania. Em alguns paises, o Estado teve mais importincia ¢ 0 processo de difusio dos direitos se deu principalmente a partir da agao estatal. Em outros, ela se deveu mais & ago dos préprios eidadaos, Da relagdo da cidadania com 0 Estado-nagdo deriva uma ultima complicagio do problema. Existe hoje um consenso a respeito da idéia de que vivemos uma crise do Estado-nagio. 12 CIDADANIA NO BRASIL Discorda-se da extensio, profundidade e rapidez do fendmeno, nfo de sua existéncia. A internacionalizagao do sistema capitalista, iniciada ha séculos mas muito acelerada pelos avangos tecnoldgicos recentes, ¢ a criagao de blocos econémicos ¢ politicos tém causado uma redugdo do poder dos Estados e uma mudanga das identidades nacionais existentes. As varias nagdes que compunham o antigo império soviético se transformaram em novos stados-nago, No caso da Europa Ocidental, os v. tados-nago se fundem em um grande Estado multinacional. A redugdo do poder do Estado afeta a natureza dos antigos direitos, sobretudo dos direitos politicos e sociais, Se os direitos politicos significam participacao no governo, uma diminuigdo no poder do governo reduz também a relevancia do direito de participar. Por outro lado, a ampliagao da competigao internacional coloca presso sobre 0 custo da mao-de-obra ¢ sobre as finangas estatais, 0 que acaba afetando 0 emprego ¢ os gastos do governo, do qual dependem os direitos sociais. Desse modo, as mudangas recentes tém recolocado em pauta o debate sobre © problema da cidadania, mesmo nos paises em que ele parecia estar razoavelmente resolvido. Tudo isso mostra a complexidade do problema. O enfrentamento dessa complexidade pode ajudar a identificar melhor as pedras no caminho da construgo democritica. Nao oferego receita da cidadania. Também nao escrevo para especialistas. Fago convite a todos os que se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-Ihe © percurso, 0 eventual companheiro ou companheira de jomada poderd desenvolver visio propria do problema. Ao fazé-lo, estara exercendo sua cidadania, ios 13 Conclusdo: A cidadania na encruzilhada Percorremos um longo caminho, 178 anos de histéria do esforgo para construir 0 cidadio brasileiro. Chegamos ao final da jornada com a sensagio desconfortavel de incompletude. Os progressos feitos sao inegaveis mas foram lentos e ndo escondem o longo caminho que ainda falta percorrer. O triunfalismo exibido nas celebragdes oficiais dos 500 anos da conquista da terra pelos portugueses ndo consegue ocultar 0 drama dos milhdes de pobres, de desempregados, de analfabetos e semi-analfabetos, de vitimas da violéncia particular e oficial. Nao ha indicios de saudosismo em relagdo ditadura militar, mas perdeu-se a crenga de que a democracia politica resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade. Uma das razSes para nossas dificuldades pode ter a ver com a natureza do percurso que descrevemos. A cronologia ¢ a légica da seqiiéncia descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em periodo de supressio dos direitos politicos ¢ de redugio dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos politicos, de maneira também bizarra. A maior expansio do direito do voto deu-se em outro 219 José MURILO DE CARVALHO. perfodo ditatorial, em que os érgios de representagao politica foram transformados em pega decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqiiéncia de Marshall, continuam inacessiveis 4 maioria da populacdo. A pirimide dos direitos foi colocada de cabega para baixo. Na seqiiéncia inglesa, havia uma logica que reforgava a convicgio democritica. As liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciério cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercicio das liberdades, expandiramse os direitos politicos consolidados pelos partidos ¢ pelo Legislativo. Finalmente, pela agao dos partidos ¢ do Congreso, votaram-se os direitos sociais, postos em pratica pelo Executivo. A base de tudo cram as liberdades civis. A participagao politica era destinada em boa parte a garantir essas liberdades. Os direitos sociais eram os menos dbvios e até certo ponto considerados incompativeis com os dircitos civis ¢ politicos. A protegdo do Estado a certas pessoas parecia uma quebra da igualdade de todos perante a lei, uma interferéncia na liberdade de trabalho ¢ na livre competi¢ao. Além disso, 0 auxilio do Estado era visto como restrigdo & liberdade individual do beneficiado, e como tal lhe retirava a condi¢ao de independéncia requerida de quem deveria ter 0 direito de voto Por essa razao, privaramese, no inicio, os assistidos pelo Estado do direito do voto. Nos Estados Unidos, até mesmo sindicatos operdrios se opuscram a legislagdo_ social, considerada humilhante para 0 cidadio, S6 mais tarde esses direitos passaram a ser considerados compativeis com os outros direitos, e o cidadao pleno passou a ser aquele que gozava de todos os direitos, civis, politicos e sociais. Seria tolo achar que s6 hé um caminho para a cidadania, A historia mostra que nao é assim, Dentro da propria Europa 220 CIDADANIA NO BRASIL houve pereursos distintos, como demonstram os casos da Inglaterra, da Franga ¢ da Alemanha. Mas é razoavel supor que caminhos diferentes afetem o produto final, afetem 0 tipo de cidadao, ¢, portanto, de democracia, que se gera. Isto é particularmente verdadeiro quando a inverso da seqiiéneia & completa, quando os direitos sociais passam a ser a base da pirdmide. Quais podem ser as conseqiiéneias, sobretudo para o problema da eficdcia da democracia? Uma conseqiiéncia importante é a excessiva valorizagao do Poder Executivo, Se os direitos sociais foram implantados em periodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ‘ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da populagdo, da centralidade do Executivo. O governo aparece como 0 ramo mais importante do poder, aquele do qual vale a pena aproximarsse, A fascinagdo com um Executivo forte esta sempre presente, ¢ foi ela sem divida uma das razBes da vitéria do presidencialismo sobre o parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Essa orientagio para o Executivo reforga longa tradigao portuguesa, ou ibérica, patrimonialismo. O Estado é sempre visto como todo-poderoso, na pior hipétese como repressor ¢ cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregos e favores. A ago politica nessa visio € sobretudo orientada para a negociagao direta com o governo, sem passar pela mediaco da representagao. Como vimos, até mesmo uma parcela do movimento operario na Primeira Republica orientou-se nessa diregdo; parcela ainda maior adaptou-se a ela na década de 30. Essa cultura orientada mais para 0 Estado do que para a representagao & 0 que chamamos de "estadania", em contraste com a cidadania. Ligada a preferéncia pelo Executivo esta a busca por um messias politico, por um salvador da patria. Como a experién- 221 JOSE MURILO DE CARVALHO cia de governo democritico tem sido curta e os problemas sociais tém persistido ¢ mesmo se agravado, cresce também a impaciéncia popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democratic de decisio. Dai a busca de solugées mais répidas por meio de liderangas carismaticas e messidnicas. Pelo menos trés dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular apés 1945, Getilio Vargas, Janio Quadros ¢ Fernando Collor, possuiam tragos messianicos. Sintomaticamente, nenhum deles terminou 0 mandato, em boa parte por nao se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com © papel do Congreso. A contrapartida da valorizagao do Executivo é a desvalorizagao do Legislativo e de seus titulares, deputados e senadores. As eleigdes legislativas sempre despertam menor interesse do que as do Executivo, A campanha pelas eleigdes diretas referia-se a escolha do presidente da Republica, 0 chefe do Executivo, Dificilmente haveria movimento semelhante para defender eleigdes legislativas. Nunca houve no Brasil reaso popular contra fechamento do Congresso. Hé uma convlegao abstrata da importincia dos partidos ¢ do Congresso como mecanismos de representagdo, convicgao esta que nao se reflete na avaliagio concreta de sua atuagio. O desprestigio generalizado dos politicos perante a populagao & mais acentuado quando se trata de vereadores, deputados e senadores. Além da cultura politica estatista, ou governista, a inversdo favoreceu também uma visio corporativista dos interesses coletivos. Nao se pode dizer que a culpa foi toda do Estado Novo. O grande éxito de Vargas indica que sua politica atingiu um ponto sensivel da cultura nacional. A distribuigdo dos beneficios sociais por cooptagao sucessiva de categorias 222 CIDADANIA NO BRASIL de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo achou terreno fértil em que se enraizar, Os beneficios sociais nao eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociagdo de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuidos pelo Estado, A forga do corporativismo manifestou-se mesmo durante a Constituinte de 1988. Cada grupo procurou defender ¢ aumentar seus privilégios. Apesar das criticas 4 CLT, as centrais sindicais dividiram-se quanto ao imposto sindical ¢ a unicidade sindical, dois esteios do sistema montado por Vargas, Tanto 0 imposto como a unicidade foram mantidos. Os funcionérios piblicos conseguiram estabilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite de um salario minimo nas pensdes, os professores conseguiram aposentadoria cinco anos mais cedo, ¢ assim por diante. A pritica politica posterior 4 redemocratizagao tem revelado a forga das grandes corporagdes de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operdrias, dos empregados piiblicos, todos lutando pela preservagao de privilégios ou em busca de novos favores, Na area que nos interessa mais de perto, 0 corporativismo é particularmente forte na luta de juizes ¢ promotores por melhores salirios ¢ contra o controle extemo, ¢ na resisténcia das policias militares e civis a mudangas em sua organizagao. A auséncia de ampla organizago auténoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representagao politica ndo funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da populagdo. O papel dos legisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, a0 de intermediérios de favores pessoais perante 0 Executivo. O eleitor vota no deputado em troca de promessas de favores pessoais; 223 JOSE MURILO DE CARVALHO © deputado apéia o govemno em troca de cargos ¢ verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia politica: os eleitores desprezam os politicos, mas continuam votando neles na esperanga de beneficios pessoai Para muitos, o remédio estaria nas reformas politicas mencionadas, a eleitoral, a partidéria, a da forma de governo, Essas reformas e outros experimentos poderiam eventualmente reduzir o problema central da ineficdcia do sistema representative, Mas para isso a fragil democracia brasileira precisa de tempo. Quanto mais tempo ela sobreviver, maior sera a probabilidade de fazer as corregdes necessirias nos mecanismos politicos e de se consolidar. Sua consolidagao nos paises que so hoje considerados democraticos, incluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos. I possivel que, apesar da desvantagem da inversio da ordem dos direitos, o exercicio continuado da democracia politica, embora iperfeita, permita aos poucos ampliar 0 gozo dos direitos civis, 0 que, por sua vez, poderia reforcar os direitos politicos, criando um efrculo virtuoso no qual a cultura politica também se modificaria, Na corrida contra o tempo, ha fatores positivos. Um deles € que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do valor da democracia. Quase todos os militantes da esquerda armada dos anos 70 sio hoje politicos adaptados aos procedimentos democraticos. Quase todos aceitam a via eleitoral de acesso ao poder. Por outro lado, a direita também, salvo poucas excegdes, parece conformada com a democracia. Os militares tém-se conservado dentro das leis e niio hé indicios de que estejam cogitando da quebra das regras do jogo. Os rumores de golpe, freqiientes no periodo pés-45, jé hd algum tempo que ndo vém perturbar a vida politica nacio- 224 CIDADANIA NO BRASIL nal, Para isso tem contribufdo o ambiente internacional, hoje totalmente desfavordvel a golpes de Estado e governos autoritérios. Isso ndo é mérito brasileiro, mas pode ajudar a desencorajar possiveis golpistas e a ganhar tempo para a democraCia. Mas 0 cendrio internacional traz também complicagdes para a construgio da cidadania, vindas sobretudo dos paises que costumamos olhar como modelos. A queda do império soviético, o movimento de minorias nos Estados Unidos e, principalmente, a globalizagao da economia em ritmo acelerado provocaram, ¢ continuam a provocar, mudangas importantes nas relagdes entre Estado, sociedade ¢ nago, que eram © centro da nogdo ¢ da pratica da cidadania ocidental. O foco das mudangas esta localizado em dois pontos: a redugdo do papel central do Estado como fonte de direitos ¢ como arena de participagao, e © deslocamento da nado como principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio a i"nstituigdo do Estado-nagio. A redugdo do papel do Estado em beneficio de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre 0s direitos politicos. Na Unido Européia, os governos nacionais perdem poder e relevancia diante dos érgios politicos e burocréticos supranacionais. Os cidadaos ficam cada vez. mais distantes de ~cus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisdes politicas ¢ ‘econdmicas so tomadas fora do ambito nacional. Os direitos sociais também sao afetados. A exigéncia de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os paises a reformas no sistema de seguridade social. Essa redugdo tem resultado sistematicamente em cortes de beneficios ¢ na descaracterizagio do estado de bem-estar. A competigdo feroz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu 225 JOSE MURILO DE CARVALHO para a exigéncia de redugo de gastos via poupanga de maode-obra, gerando. um desemprego estrutural dificil de eliminar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a presses contra a presenga de imigrantes africanos ¢ asidticos e contra a extensdo a eles de direitos civis, politicos © sociais. O pensamento liberal renovado volta a insistir na importincia do mercado como mecanismo auto-regulador da vida econémica e social ¢, como conseqiiéncia, na redugdo do papel do Estado. Para esse pensamento, o tervencionismo estatal foi um paréntese infeliz na histéria iniciado em 1929, em decorréncia da crise das bolsas, ¢ terminado em 1989 apés a queda do Muro de Berlim., Nessa visio, 0 cidadio se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupagdes com a politica ¢ com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuiram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem énfase em identidades culturais baseadas em género, etnia, opgdes sexuais etc. Assim como ha enfraquecimento do poder do Estado, hé fragmentagdo da identidade nacional. O Estado- nagdo se vé desafiado dos dois lados. Diante dessas mudangas, paises como © Brasil se véem frente a uma ironia. Tendo corrido atrés de uma nogio e uma pritica de cidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns éxitos em sua busca, véem-se diante de um cendrio internacional que desafia essa nogdo ¢ essa pratica. Gera-se um sentimento de perplexidade ¢ frustragdo. A pergunta a se fazer, entio, é como enfrentar 0 novo desafio. ‘As mudangas ainda no atingiram o pais com a forga verificada na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Nao seria sensato reduzir o tradicional papel do Estado da maneira radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, por 226 CIDADANIA NO BRASIL causa da longa tradigo de estatismo, dificil de reverter de um dia para outro. Depois, pelo fato de que ha ainda entre nés muito espago para o aperfeigoamento dos mecanismos institucionais de representagdo. Mas alguns aspectos das mudangas seriam benéficos. O principal é a énfase na organizagao da sociedade. A inversio da seqiiéncia dos direitos reforgou entre nés a supremacia do Estado, Se ha algo importante a fazer em termos de consolidagao democratica, ¢ reforgar a organizagdo da sociedade para dar embasamento social ao politico, isto é, para democratizar o poder. A organizago da sociedade nao precisa © ndo deve ser feita contra o Estado em si, Ela deve ser feita contra o Estado dientelista, corporativo, colonizado. Experiéncias recentes sugerem otimismo ao apontarem na diregio da colaborago entre sociedade ¢ Estado que ndo fogem totalmente a tradigio, mas a reorientam na diregao sugeri da, A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizagdes ndo-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse piiblico. Essas organizagSes se multiplicaram a partir dos anos finais da ditadura, substituindo aos poucos os movimentos sociais urbanos. De inicio muito hostis ao governo e dependentes de apoio financeiro externo, dele se aproximaram apés a queda da ditadura e expandiram as fontes internas de recursos, Da colaboragio entre elas € os governos municipais, estaduais e federal, tém resultado experiéncias inovadoras no encaminhamento ena solugdo de problemas sociais, sobretudo nas areas de educagio e direitos civis. Essa aproximagio nao contém o vicio da "estadania" ¢ as limitagSes do corporativismo porque democratiza 0 Estado, A outra mudanga tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos 227 Jos: MURILO DE CARVALHO municipais dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento da populagao na formulagao e execugdo de politicas piiblicas, sobretudo no que tange ao orgamento ¢ as obras piiblicas. A parceria aqui se da com associagdes de moradores ¢ com organizagdes ndo-governamentais, Essa aproximagdo no tem os vicios do paternalismo ¢ do clientelismo porque mobiliza 0 cidadao. E 0 faz no nivel local, onde a participagdo sempre foi mais fragil, apesar de ser ai que ela é mais relevante para a vida da maioria das pessoas, Mas ha também sintomas perturbadores oriundos das mudangas trazidas pelo renascimento liberal. Nao me refiro 4 defesa da redu¢ao do papel do Estado, mas ao desenvolvimento da cultura do consumo entre a populagao, inclusive a mais excluida. Exemplo do fenémeno foi a invasio pacifica de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto, A invasio teve 0 mérito de denunciar de maneira dramatica os dois brasis, 0 dos ricos ¢ o dos pobres. Os ricos se misturavam com os turistas estrangeiros mas estavam a léguas de distancia de seus patricios pobres. Mas ela também revelou a perversidade do consumismo. Os semteto reivindicavam 0 direito de consumir. Nao queriam ser cidadios mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicavam era a do direito a0 consumo, era a cidadania pregada pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefone celular, um ténis, um relégio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os excluidos a militancia politica, 0 tradicional direito politico, as perspectivas de avango democritico se véem diminuidas. As duas experiéneias favorecem, a cultura do consumo dificulta o desatamento do né que toma tio lenta a marcha 228 CIDADANIA NO BRASIL da cidadania entre nés, qual seja, a incapacidade do sistema representative de produzir resultados que impliquem a redugo da desigualdade e o fim da divisio dos brasileiros em castas separadas pela educagio, pela renda, pela cor. José Bonifacio afirmou, em representagdo enviada a Assembléia Constituinte de 1823, que a escravidao era um cancer que corroia nossa vida civica ¢ impedia a construgdo da nagio. A desigualdade é a escravido de hoje, 0 novo cancer que impede a constituigio de uma sociedade democratica. A escravidio foi abolida 65 anos apés a adverténcia de José Bonifacio. A precaria democracia de hoje nao sobreviveria a espera to longa para extirpar o cancer da desigualdade. 229

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