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SANTOS, Maria Leonor Maia dos; FERRAZ, Mônica Mano Trindade. Semântica.

In: ALDRIGUE,
Ana Cristina de Sousa; FARIA, Evangelina Maria de Brito (orgs.). Linguagens: usos e reflexões.
v.5, João Pessoa: Editora da UFPB, 2009. (Cap. II - Significado e Denotação, pp. 16-29).

Nexos semânticos: acarretamento

Os falantes de uma língua sabem intuitivamente que o significado de uma expressão


tem relação com o significado de outras: são os nexos semânticos. Alguns desses nexos
são bastante estáveis e comuns a muitos falantes, e podemos supor que não são
apenas o resultado de um acúmulo de fatos que as pessoas memorizaram, mas que
fazem parte do saber necessário para ser falante da língua. Vamos começar discutindo
aqui um tipo de nexo semântico que é provavelmente o mais famoso, e também o que
é conhecido há mais tempo: o acarretamento.
A denominação nexos semânticos você encontra em Chierchia (2003, p.75-113), mas
há outros nomes para isso: relações semânticas, inferências semânticas, ou trama das
sentenças, por exemplo. Um lembrete: nos textos de semântica, é costume usarmos a
palavra sentença como sinônimo de oração.

Acarretamento

A investigação dos nexos semânticos é feita por meio das intuições dos falantes e de
testes com sentenças. Precisamos comparar as sentenças e dizer o que aconteceria se
elas fossem verdadeiras. Veja os exemplos:

(1) a. Este meu vaso é de vidro.


(1) b. Este meu vaso é vermelho.
(1) c. Este meu vaso é de vidro vermelho.

Imagine uma situação em que eu mostro a você um vaso da minha casa. Como falante
do português você sabe que, se as sentenças (1a) e (1b) forem ambas verdadeiras, a
sentença (1c) não pode deixar de ser verdadeira. Se a expressão este vaso estiver
sendo usada para falar do mesmo vaso nas três sentenças, e se o vaso for realmente
vermelho e realmente de vidro, a última sentença tem de ser verdadeira. Essa
constatação não é um prodígio de esperteza. Afinal, as informações fornecidas por (1c)
já estão em (1a) e (1b), juntas. O que é interessante é que, mesmo sem conhecer o
objeto de que se fala, a relação semântica entre as sentenças (1a) e (1b) nos faz concluir
que, forçosamente, se (1a) e (1b) forem verdadeiras, (1c) também será. Dizemos que
(1a) e (1b) juntas acarretam (1c). Veja agora os exemplos abaixo:

(2) a. Isto na minha mão é um botão.


(2) b. Isto na minha mão é pequeno.
(2) c. Isto na minha mão é um botão pequeno.

Imagine-se numa situação em que você diz essas sentenças, mostrando um certo botão
na sua mão, sempre o mesmo. As coisas ficaram diferentes, não ficaram? Pode ser
verdadeiro que você tenha um botão na mão, e, ao mesmo tempo, que você tenha um
objeto pequeno na mão, já que botões são geralmente objetos pequenos (comparados
com geladeiras e máquinas de lavar, por exemplo). Mas pode ser que esse botão,
apesar de ser um objeto pequeno, não seja um botão pequeno. Comparado com outros
botões, pode ser um botão grande. Este caso é diferente do anterior, e não há
acarretamento entre as sentenças, porque (2a) e (2b) poderiam ser verdadeiras e, na
mesma situação, (2c) poderia ser falsa.
O acarretamento, portanto, é uma relação semântica que existe entre uma sentença ou
um conjunto delas (podemos juntar várias sentenças numa única por meio da conjunção
e e considerar tudo uma só sentença), que chamamos de A, e outra sentença, B,
quando acontece de a verdade de A ser incompatível com a falsidade de B. Ou seja, se
A for verdadeira, B não pode ser falsa. O acarretamento também é conhecido como
consequência semântica.
Aplicando ao primeiro exemplo, temos:
Sentença A Este meu vaso é de vidro e este meu vaso é vermelho.
(as duas sentenças iniciais ligadas por um e)
Sentença B Este meu vaso é de vidro vermelho. (a consequência)
Agora podemos falar sobre o acarretamento simplesmente como uma relação
semântica entre duas sentenças A e B, mesmo que A seja composta por várias
sentenças ligadas por e.
Vamos esquematizar a definição de acarretamento do seguinte modo:

DEFINIÇÃO
A acarreta B quando
- sempre que A é verdadeira, B é verdadeira;
- a informação contida em B faz parte da informação contida em A;
- a sentença A e a negação da sentença B não podem ser verdadeiras juntas.
Você pode ver que os três critérios acima são intercambiáveis, e de certo modo são três
maneiras de dizer a mesma coisa. Colocamos aqui as três formulações porque às vezes
é mais prático analisar as sentenças utilizando uma das formulações e não outra, mas
elas fazem o mesmo serviço. Agora é com você: Crie pelo menos dois exemplos de
acarretamento entre sentenças. Mostre por que são acarretamentos, usando a definição
acima.

Acarretamentos e outros tipos de inferência

Acarretamentos são encontrados entre muitas sentenças diferentes, mas nem sempre
o que se conclui a partir de uma sentença é um acarretamento. Veja mais exemplos:

(3) a. Marco comprou um carro.


(3) b. Marco comprou alguma coisa.
(3) c. Um carro foi comprado por Marco.

(4) a. Marco comprou um carro.


(4) b. Marco gastou muito dinheiro com um carro.
(4) c. Marco não tinha carro antes.
(4) d. Marco sabe dirigir.

(3b) e (3c) são acarretamentos de (3a), porque, se (3a) for verdadeira, nem (3b) nem
(3c) podem ser falsas (desde que, é claro, Marco e um carro mantenham a mesma
referência nas três sentenças). Mas as sentenças (4b), (4c) e (4d) não são
acarretamentos de (4a). Qualquer uma delas pode ser falsa na mesma situação em que
(4a) é verdadeira. Você consegue imaginar cenários em que uma é verdadeira e as
outras são falsas: basta que o carro tenha sido barato, que Marco já tivesse um carro
antes, ou que ele não saiba dirigir (vai começar a aprender na semana seguinte, ou
comprou o carro para o pai, ou tem um motorista, ou qualquer coisa assim). As
sentenças (4b), (4c) e (4d) poderiam ser verdadeiras junto com (4a), mas também
poderiam ser falsas, portanto não são acarretamentos (poderiam ser implicaturas, veja
INFERÊNCIAS).
É usual dizermos então que o acarretamento é um tipo de inferência semântica (e não
pragmática): uma conclusão que o falante pode tirar a partir do que ele sabe sobre o
significado das sentenças. Mas nem toda inferência feita a partir do significado é um
acarretamento, como vemos no exemplo (4).
No uso cotidiano, em vez de 'inferência' e 'inferir', também dizemos muitas vezes
'implicação' e 'implicar'.
Dizemos que Marco comprou um carro implica Marco comprou alguma coisa. Os
acarretamentos são implicações, mas nem tudo o que é implicado é um acarretamento
(o caso de (4)). Mais adiante vamos contrastar os acarretamentos com a pressuposição
e as implicaturas, que são tipos diferentes de inferências.

Acarretamento e polissemia
Veja agora o que você acha das sentenças em (5). Temos acarretamento?

(5) a. Leca abraçou Mariazinha.


(5) b. Leca tocou Mariazinha com os braços.

É impossível abraçar alguém sem tocar essa pessoa com os braços, então temos um
acarretamento. Na mesma situação, não poderíamos ter (5a) verdadeira e (5b) falsa.
Entretanto, alguém pode objetar que tudo pode ter sido um sonho de Leca, e no sonho
Leca abraçou Mariazinha, mas isso não acarreta que Leca realmente tenha tocado
Mariazinha com os braços. Vamos então responder que isso se parece muito com uma
mudança de situação de (5a) para (5b): numa situação estamos falando de algo que se
passa no sonho de Leca, e na outra falamos de algo no mundo real, portanto isso não
serve como teste para o acarretamento, que tem de ser feito avaliando-se todas as
sentenças na mesma situação. Para levar em conta o sonho de Leca, talvez tenhamos
de “arrumar” as sentenças:

(6) a. No sonho, Leca abraçou Mariazinha.


(6) b. No sonho, Leca tocou Mariazinha com os braços.

E então vemos que há mesmo um acarretamento. Por outro lado, você pode ponderar
que Leca podia estar longe de Mariazinha, do outro lado da rua, e ter feito um gesto de
abraçar, e Mariazinha entendeu que Leca estava mandando um abraço. Ou então foi
um abraço enviado pela internet (no Orkut via BuddyPoke, por exemplo, que, aliás,
mostra justamente frases assim: “Leca abraçou Mariazinha via BuddyPoke”). Tanto do
outro lado da rua como virtualmente, Leca abraçou Mariazinha, e não houve contato
com os braços. Se consideramos abraçar como uma ação realizada à distância ou
virtualmente, não há acarretamento entre as sentenças de (5). Como fica então o nosso
teste?
Uma saída seria dizer que o acarretamento ocorre ou não, a depender do sentido
escolhido para abraçar, e exige, é claro, que o mesmo sentido seja mantido para o verbo
em todas as sentenças que se está examinando. Então os falantes vão usar o verbo
abraçar de um certo jeito (ou só contam abraços reais, ou também contam abraços à
distância e/ou virtuais), e esse jeito tem de ser mantido em todas as sentenças que
vamos testar. Em (5), com o sentido de abraço físico e próximo, existe acarretamento,
mas com o sentido incluindo abraço à distância ou virtual, não. Já que estamos nisso,
vamos a este exemplo:

(7) a. Mônica tem um gato em casa.


(7) b. Mônica tem um felino em casa.

Parece bastante óbvio, e é um exemplo frequente nos textos de semântica. Claro que,
se você considerar que todos os gatos são felinos (ou seja, a palavra gato é um hipônimo
da palavra felino, como vamos ver na seção sobre OUTRAS RELAÇÕES LEXICAIS), é
impossível ter um gato e não ter um felino. A verdade de A força a verdade de B, e
estamos em presença de mais um acarretamento. Entretanto, como você
provavelmente já lembrou, poderia ser assim:

(8) a. Mônica tem um gato em casa.


(8) b. Mônica tem uma ligação elétrica clandestina em casa.

A palavra gato é polissêmica: pode designar coisas diferentes (podia ser também que
Mônica tivesse um homem muito bonito em casa), e não conseguimos decidir se existe
acarretamento sem fixar primeiro qual o sentido pretendido. Claro que já dá para
perceber que os acarretamentos, que de saída parecem muito óbvios e até bobos, não
são nem bobos nem óbvios: ambiguidade, vagueza e polissemia, só para começar,
atingem em cheio nosso julgamento sobre os acarretamentos.

Um pouco de controvérsia

O exemplo (7), entretanto, nos leva ainda a outras dificuldades. Muitos semanticistas
não aceitam (7) como exemplo de acarretamento, mesmo que você use gato para
designar um felino doméstico. Ou seja, as relações lexicais (entre palavras) como a
hiponímia que existe entre gato e felino não seriam acarretamentos. Acarretamentos
seriam apenas as relações decorrentes da estrutura das sentenças, e nada mais.
Vamos examinar exemplos em que o acarretamento decorre da estrutura da sentença:
(9) a. Pedro comeu iogurte e bolo no lanche da tarde.
(9) b. Pedro comeu bolo no lanche da tarde.

(10) a. Rodrigo tem uma moto ou uma bicicleta.


(10) b. Se Rodrigo não tem uma moto, tem uma bicicleta.

(11) a. Juliana leu Vidas Secas.


(11) b. Não é verdade que Juliana não leu Vidas Secas.

(12) a. Todas as crianças ganharam ovo de Páscoa.


(12) b. Nenhuma criança deixou de ganhar ovo de Páscoa.

Os acarretamentos nos exemplos de (9) a (12) não dependem do significado dos


substantivos, verbos e adjetivos usados, e sim apenas do significado das palavras e,
ou, não, e todas, que não são palavras do sistema aberto da língua, e fazem parte,
antes, de uma classe fechada e restrita. Na tradição da semântica que estamos
estudando agora, as três primeiras (e, ou, não) são conectivos, e a última (todas) é um
quantificador. Nem tudo o que se infere por meio delas é acarretamento (como
veremos quando estudarmos as INFERÊNCIAS), mas todos os exemplos “seguros” de
acarretamento dependem de relações estabelecidas entre as sentenças construídas
com palavras assim. Mas qual seria o problema de considerar (7) e o par gato/felino
como um exemplo de acarretamento? A questão é que o acarretamento deve ser uma
relação semântica que se estabelece a partir do conhecimento que os falantes têm do
significado das expressões da língua. E pode não haver consenso sobre o que é preciso
realmente saber para conhecer uma certa palavra. Digamos que uma pessoa saiba falar
português e não saiba que todo gato é um felino. Mesmo sem saber que todos os gatos
são felinos, essa pessoa poderia identificar corretamente os gatos e usar muito bem a
palavra gato. Então saber que gatos são felinos é algo que sabemos sobre os gatos, e
não sobre a palavra gato. Se você acha que estou exagerando, e que isso seria uma
falta de conhecimento específico de alguns falantes, mas que geralmente as pessoas
sabem que gatos são felinos, e portanto, temos um acarretamento em (7), tente decidir
se existe ou não acarretamento em:
(13) a. Pela manhã comi uma banana.
(13) b. Pela manhã comi uma fruta.

(14) a. Leonor nasceu em Recife.


(14) b. Leonor nasceu numa capital de Estado.
Provavelmente você concorda comigo que (13) é mesmo um acarretamento, porque é
estranho aceitar que alguém conheça a palavra banana e não saiba que uma banana é
uma fruta. Por outro lado, o fato de que Recife é uma capital de Estado parece ser uma
informação acerca da cidade, Recife, e não acerca da palavra Recife. Alguém poderia
conhecer Recife e empregar a palavra adequadamente em muitas situações e não saber
que Recife é uma capital de Estado. O problema é que se começamos a examinar
detalhadamente as relações entre as palavras, como gato e felino, banana e fruta,
Recife e capital de Estado, é muito difícil obter julgamentos precisos acerca do que faz
parte ou não da definição da palavra e o que, por outro lado, faz parte do nosso
conhecimento sobre as coisas. Segundo o filósofo Quine (1951), é na verdade
impossível estabelecer com exatidão um limite entre o que é o conhecimento que os
falantes têm acerca das palavras, por um lado, e o conhecimento acerca das coisas e
fatos no mundo, por outro. Lembre que os acarretamentos devem ser inferências que
os falantes (qualquer falante) conseguem fazer a partir das sentenças da língua. Os
acarretamentos não estão de maneira nenhuma restritos às afirmações feitas por
especialistas. E não há como prever quais são as informações que todos os falantes
conhecem sobre o mundo. Assim, na falta de um critério estável para dizer quais
sentenças teriam de ser verdadeiras juntamente com outras apenas com base no saber
linguístico, muitos semanticistas sustentam que não podemos considerar que existam
acarretamentos apoiados em relações lexicais. Porque relações lexicais não são
estáveis o suficiente, e dão problema. Dessa maneira, seriam consideradas
acarretamentos apenas as inferências baseadas na estrutura das sentenças, ou seja,
nas relações ocasionadas pela presença de conectivos e quantificadores. Digamos que
esses semanticistas optam pelo caminho mais seguro. Não seremos tão estritos aqui, e
vamos continuar a falar de (7), (8) e (13) como acarretamentos, mas é importante
perceber essa diferença.

No próximo item, vamos tratar de outros nexos semânticos semelhantes ao


acarretamento.

Resumo

O acarretamento é um nexo que existe entre as sentenças de uma língua, quando a


verdade de uma sentença A é incompatível com a falsidade de uma sentença B.
Acarretamentos são sensíveis à polissemia e à homonímia: se uma palavra tem vários
significados, o mais provável é que um certo acarretamento não se mantenha para todos
os significados. Acarretamentos surgem tanto pelas relações de sentido entre palavras
quanto pela estrutura das sentenças. Existem linguistas e filósofos da linguagem,
entretanto, que só consideram como acarretamentos as inferências feitas a partir da
estrutura das sentenças, e não as que são feitas a partir de relações lexicais, porque
estas últimas seriam mais instáveis e imprecisas.

Outros nexos

Já vimos que o acarretamento é uma relação semântica entre sentenças, que acontece
quando a verdade de uma sentença A torna impossível a falsidade de uma sentença B,
desde que as sentenças sejam avaliadas na mesma situação. Vimos também que o
acarretamento pode acontecer tanto devido à estrutura das sentenças quanto ao
significado das palavras. Mais alguns exemplos:

(1) a. Marcelo tem um celular e um ipod.


(1) b. Marcelo tem um celular.

(2) a. Bia tem um poodle.


(2) b. Bia tem um cachorro.

No primeiro exemplo, o acarretamento existe devido à presença do e aditivo. A


informação de (1b) já está presente em (1a). No segundo exemplo, o acarretamento se
deve à relação entre as palavras poodle e cachorro: geralmente, os falantes do
português que conhecem a palavra poodle sabem que um poodle é um tipo de cachorro.
Existem outros nexos semânticos, que, de certa maneira, estão apoiados no
acarretamento. Eles também dependem da intuição que os falantes têm acerca da
verdade de uma sentença em relação à verdade das outras sentenças analisadas.
Vamos a eles.

Equivalência semântica

O acarretamento não é uma relação simétrica: A pode acarretar B sem que B acarrete
A. Aliás, isso é o mais comum, um acarretamento “numa só direção”. No exemplo (2),
(2a) acarreta (2b), já que se (2a) for verdadeira, (2b) é obrigatoriamente verdadeira. Mas
inverso não acontece. Quando sabemos que Bia tem um cachorro, não podemos
automaticamente concluir que ela tem um poodle (ela poderia ter um beagle, um vira-
lata, ou sei lá). Veja que (1b) também não acarreta (1a).
Mas às vezes acontece um acarretamento “duplo”, tanto de A para B quanto de B para
A. Vejamos:

(3) a. Paulo é irmão de Leda.


(3) b. Leda é irmã de Paulo.

(4) a. Tiago vendeu o computador a Ana.


(4) b. Ana comprou o computador a Tiago.

Nos exemplos acima, é impossível que A seja verdadeira e B falsa, e vice-versa. Não
dá para dizer que Leda é irmã de Paulo e, ao mesmo tempo, que Paulo não é irmão de
Leda. Pelo menos, não dá para aceitar isso mantendo o mesmo significado de ser irmão
de. Claro que às vezes dá para dizer “Não é Paulo que é irmão de Leda, é Leda que é
irmã de Paulo”, mas num caso assim o que a pessoa quer dizer é que Paulo tem algum
tipo de precedência sobre Leda, ou porque é mais velho ou porque é tratado como mais
importante. Como diz um avô que conheço, dando conselhos ao filho acerca do neto,
“Não é ele que é seu filho, é você que agora é pai dele” (você consegue fazer a mesma
coisa com os exemplos de vender e comprar, não consegue?). Mesmo assim, se, num
certo contexto, tudo o que a pessoa quer dizer é que Paulo e Leda são irmãos, sem
atribuir precedência a nenhum deles, A acarreta B e viceversa. Quando isso acontece,
dizemos que há sinonímia de conteúdo ou c-sinonímia entre A e B, ou ainda
equivalência semântica, ou paráfrase. (Sim, como você deve ter notado, paráfrase,
nesse sentido do parágrafo anterior, é um termo técnico de semântica, e é mais restrito
do que o uso geral da palavra paráfrase. No cotidiano, dizemos que uma paráfrase é
“outra maneira de dizer a mesma coisa”. Em semântica formal, entretanto, uma
sentença é paráfrase de outra quando ocorre acarretamento de uma para outra e vice-
versa.) Então vamos esquematizar a equivalência semântica do seguinte modo:

DEFINIÇÃO
A equivale semanticamente a B quando
- sempre que A é verdadeira, B é verdadeira, e sempre que B é verdadeira, A é
verdadeira;
- A e B são sempre verdadeiras juntas, e sempre falsas juntas.
Novamente temos uma definição que oferece dois critérios intercambiáveis. Você pode
usar o que achar mais prático para analisar sentenças, porque eles fazem o mesmo
trabalho.
Tal como o acarretamento simples, a equivalência entre sentenças (que é o
acarretamento “duplo”) pode acontecer devido à relação entre os itens lexicais, ou à
estrutura das sentenças. Mais exemplos:

(5) a. Leda secou os cabelos com a toalha.


(5) b. Leda enxugou os cabelos com a toalha.

(6) a. André encomendou o jantar.


(6) b. O jantar foi encomendado por André.

Se for verdade que Leda secou os cabelos com a toalha, na mesma situação tem de
ser verdade que Leda enxugou os cabelos com a toalha, porque há sinonímia entre
secar e enxugar (sobre a sinonímia lexical, veja adiante, OUTRAS RELAÇÕES
LEXICAIS). Do mesmo modo, quando é verdade que André encomendou o jantar, tem
de ser verdade que o jantar foi encomendado por André, se estivermos falando do
mesmo André e do mesmo jantar, porque um par de sentenças ativa e passiva são
tipicamente equivalentes. Claro que isso não quer dizer que elas sejam iguais do ponto
de vista da comunicação, porque o foco da atenção muda de uma para outra. Quer dizer
apenas que, dentro de certos limites e mantendo-se todas as referências inalteradas, a
verdade de uma das sentenças impõe a verdade da outra, e vice-versa.

Sentenças contraditórias

Duas sentenças são contraditórias quando acontece de elas não poderem ser nem
verdadeiras nem falsas juntas. Isto é, se A é verdadeira, B tem de ser falsa. E se A é
falsa, B tem de ser verdadeira.
Considere o exemplo:

(8) a. Dom Pedro II foi o segundo imperador do Brasil.


(8) b. Dom Pedro II não foi o segundo imperador do Brasil.

É claro que se (8a) for verdadeira, (8b) tem de ser falsa. E vice-versa. Os pares mais
típicos de sentenças contraditórias são exatamente os pares formados por uma
sentença e sua negação, como acontece em (8). Elas não podem ser nem verdadeiras
nem falsas juntas. Mas a contradição não depende da presença de uma negação. Veja
que podemos ter pares de sentenças contraditórias sem negação:
(9) a. Dom Pedro II está vivo.
(9) b. Dom Pedro II está morto.

Ditas na mesma situação (por exemplo, por mim, hoje), com referência à mesma pessoa
(você sabe, o segundo imperador do Brasil), as sentenças não podem ser verdadeiras
juntas, nem falsas juntas. As sentenças em (9) são, portanto, contraditórias.

DEFINIÇÃO
A e B são contraditórias quando
- sempre que A é verdadeira, B é falsa, e sempre que A é falsa, B é verdadeira;
- A e B nunca são verdadeiras juntas, nem falsas juntas.
Até agora, todos os exemplos foram de sentenças apresentadas aos pares. Entretanto,
uma sentença sozinha também é considerada contraditória se não houver nenhuma
situação em que ela seria verdadeira. Ela seria, digamos, “auto-contraditória”:

(10) Marcelo é brasileiro e não é brasileiro.

Uma vez que Marcelo não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser brasileiro, (10) é uma
sentença contraditória. Ela nunca pode ser verdadeira. Aqui você pode pensar: bem,
posso querer dizer que Marcelo é brasileiro mas não parece, porque não tem, digamos,
as atitudes típicas de um brasileiro. Então ficaria natural dizer que Marcelo é brasileiro
e não é brasileiro. Só que, para interpretar dessa maneira, você estaria usando o
predicado é brasileiro em dois sentidos ligeiramente diferentes. Um deles seria,
digamos, “nasceu no Brasil”, e o outro, “é um brasileiro típico”. Por outro lado, mantendo
constante o sentido de é brasileiro, a sentença (10) não pode ser verdadeira em situação
alguma. A definição ficaria então assim:

DEFINIÇÃO

Uma sentença A é contraditória quando não pode ser verdadeira em nenhuma situação.
Como você provavelmente já observou, as sentenças contraditórias como (10) são
muito usadas, e são também muito expressivas e facilmente interpretadas. Veja só:

(11) A missionária foi assassinada, mas ela não morreu.

Uma vez que é impossível que uma contraditória como (11) seja literalmente verdadeira,
naturalmente entendemos que o falante quis dizer outra coisa: que a missionária foi
assassinada, mas não será esquecida, por exemplo. De maneira semelhante ao que
acontecia no exemplo (10), sabemos intuitivamente que um dos predicados não pode
estar sendo usado com o mesmo sentido do outro. Essa alteração implícita de sentido
costuma ser chamada de implicatura (um termo criado nos anos 60 do século XX pelo
filósofo inglês Paul Grice). Vamos ver um pouco mais sobre as implicaturas na lição
sobre INFERÊNCIAS, e também na disciplina Pragmática.

Sentenças contrárias

Uma relação semelhante à que acabamos de examinar aparece entre pares de


contrárias. Uma sentença é contrária a outra quando acontece o seguinte: se A for
verdadeira, B tem de ser falsa. Ou seja, se A for verdadeira, é impossível que B seja
verdadeira na mesma situação. Muito parecido com as contraditórias? Sim, mas veja
que agora não vale o vice-versa. Se A for verdadeira, já sabemos que B é falsa. Mas se
A for falsa, B pode ser uma coisa ou outra. Ou seja, sentenças contrárias não podem
ser verdadeiras juntas, mas podem ser falsas juntas. Vamos aos exemplos:

(12) a. André nasceu no dia 13 de junho.


(12) b. André nasceu no dia 02 de agosto.

Se estivermos falando do mesmo André, e se (12a) for verdadeira, é impossível que


(12b) também seja verdadeira. Uma pessoa não pode ter nascido em dois dias
diferentes. É claro que pode haver diferença entre o dia em que a pessoa nasceu e
aquele em que ela diz que nasceu (ou a data pode estar errada na certidão de
nascimento), mas o nascimento só pode ter acontecido numa data, não em duas. Assim,
(12a) e (12b) não podem ser verdadeiras juntas. Se, entretanto, (12a) for falsa, não
podemos concluir automaticamente que (12b) é verdadeira. André pode ter nascido em
qualquer outro dia. Resumindo:

DEFINIÇÃO
A e B são contrárias quando
- sempre que A é verdadeira, B é falsa;
- A e B nunca são verdadeiras juntas, mas podem ser falsas juntas.

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