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FUNDAGAO OSWALDO CRUZ Presidente | Paulo Gadtibe Vice-Presidente de Ensino, Informagio © Comunicagio Nisia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nibia Trindade Lima Editor Executivo Jodo Carles Canasta Mendes Eeditores Cientificos Gilerta Hochman Ricardo Ventura Santor Conselho Editorial Ana Lia Tees Rabel Armando de Obra Scbubech Carls EA, Coimbra Jt Gerson Oliveira Penna Joseli Lanes Vieira Ligia Vieira da Sioa Maria Ceca de Sous Minayo | Concho Texas ew SaoDe Editores Responsiveis ‘Mana do Carmo Leal Nisia Trindade Lima Ricardo Ventura Santer PAULO AMARANTE Sadpe MENTAL E— ATENCAo PstcossocrAL 3* Edigio Revista © Ampliada 4{Estratécias & Dimensdes 00 Campo 0A Sadoe Menta € ATeNcAo PsicossocrAL Vimos que 0 modelo psiquidtrico, nascido do modelo biomédico, teve como uma de suas catacteristicas princi- pais um sistema ‘terapéutico’ baseado na hospitalizagio. Como este modelo pressupde um paciente portador de um distérbio que Ihe rouba a Razo, um insano, insensato, inca- paz, irresponsivel (inclusive a legislacdo considera o louco irresponsivel civil), o sistema hospitalar psiquidtrico se apro- xima muito das instituigdes carcerérias, correcionais, peni- tenciérias. Portanto, um sistema fundado na vigilincia, no controle, na disciplina. E como nao poderia deixar de ser, tum sistema com dispositivos de punigdo e repressio. A este respeito, podemos constatar no artigo 32 dos estatutos do Hospicio de Pedro II (Decteto 1.077, de 4 de dezembro de 1852) 05 meios “de repressio permitidos para obrigar os alienados & obediéncia”: 1° - A privagio de visitas, passeios e quaisquer outros recreios; 2 - A diminuigio de alimentos, dentro dos limites prescritos pelo respectivo Facultativo; 3° - A reclusio solittia, com a cama ¢ 06 alimentos que © tespectivo Clinico prescrever, nlo excedendo a dois dias, cada vvez que for aplicada; 4° - O colete de forga, com reclusio ou sem ela; iy oe] 5° - Os banhos de emborcagio, que s6 poderio ser empre- sgados pela primeira vez na presenga do respectvo Clinics fe nas subsequentes na da pessoa e pelo tempo que ele de- signat. Jumais me esqucgo da histria de uma mulher que foi press emuma cela forte em um hospicio eli foi esquecida, a tal ponto aque fleceu, de fore e friot Tamanho era o descaso gus, soment ‘muitos anos depois, seu corpo foi encontrado, ja petsificado. ‘A silhueta mumificada indicava o tanto de sofrimento naquela mulher em posigio fetal, em completo abandono, Seu crime era ter loucal Curiosamente a marca da silhueta niio sau com ne: tihum produto de impeza, nem mesmo com cidos, Ficou alt como deniincia e grito de dor. Quando a diregio soube que & ‘noticia estava correndo para fora do hospicio, mandou arrancar 6 piso. Mas, antes que isto ooorresse, conseguimos fazer a foro sgrafia ea publicamos na revista Said em Debate n. 13 (1981). “Enfim, se tomna evidente que um modelo dessa natureza con- centea boa parte dos esforcos dos profissionais comprometi dos com os ideais de mudanga no sentido de implantar um processo efetivamente dstinto do anterior. Talvez entio por esta impetiosa necessidade de superat 0 modelo psiquidtrico € que muitas vezes as iniciativas de inovacio tenham se reduzido & simples reestruturaso de servigos de asssténcia, nam movimento Gque vai do modclo biomédico aslar em dizegio 20 sistema de saide mental e atengio psicossocial. "As grandes experiencia de reformas psiquitrieas, como po- demos constatay, incorreram nesta limitagio, isto é foram redu- vidas a simples propostas de reformulagio de servigos. Em al- trumas delas assistimos as tentaivas de humanizat o hospital de dnuroduzir-lhe novas técnicas ¢ tratamentos para transformé-lo cm sig terapéutica. Fim outras, vimos o esforgo de eriagio dle servigos externos que minimizassem os efeitos nocivos d hospital ou que evit 3 ses com spital ou que evitassem as intermagées, procurando fazer com «que 0 hospital fosse um recurso utlizado somente em ikimo caso. Him ambos os casos, foram mudancas restrtas aos servicos que «lominaram a atengao e a agenda dos profissionais e dirigentes. __ Assim sendo, um primeiro gande desafio € poder superar «sta visio que reduz o processo & mera reestruturacio de servi 0s, muito embora se torne evidente que os mesmo a ‘mesmos tenham de ; Eaiabere transformados e os manicmios superados. Mas cv easforasio no deve ser 0 objetivo em si, e sim conse- toca de prints e exes que Thess ancerones Tomo entio uleeapassar esta limitacio? Vi eo : famos por partes! onto de partida é comegar a pensar 0 campo da sade mental e atengio psicossocial nio como um modelo ou sistema ‘echado, mas sim como um proceso; um processo que é social; © um processo social que € complexo. Esta € : oar sta é a proposta de Rotel sucessor de Basagiae uma das mais importantes ‘expressdes da reforma italiana (Rotelli cal, 1990). Quando falamos em processo pensamos em movimento, umslgo ain ean peenacrenete Nese ‘caminhar vio surgindo novos elementos, novas situagdes a se- rem enfrentadas. Novos elementos, novas situagdes, pressupdem «que existam novos atores sociais, com novos — ome ‘onfltztes ~ interesses, ideologies, visées de mundo, concep- ‘hes tedricas, religiosas,éticas,étnicas, de pertencimento de dasse social. Enfim, um processo social complexo se constitai enquan- ——— menses simultineas, que ora se alimen- tam, ofa so conflitantes; que produzem pulsagdes, paradoxos, contradigdes, consensos, tenses, oer ; [a [Apenas como intuto de possibilitar uma reflexio mais siste- tnatizada sobre este processo, com objetivo exclusivamente di- ditico, pode-se pensar em algumas destas dimensbes (Figura 2) Figura 2 - Dimensdes do processo social complexo r »> a tio pliee Saiide Mental e Atengio Psicossocial EC ~_ Inicialmente, veiamos algo sobre a dimensio teérico-conceitual (ou epistémica). Como nos referimos anteriormente, as ciéncias naturals que fundamentaram a constituico de um saber psiquid- trico sobre 2 loucura estio em uma importante fase de transigio. O pressuposto de que a ciéncia era um saber neutro, insuspeito, que, se munido de um bom método (a experimenta- ao), produziria somente a verdade, nada mais que a verdade, jé nnio é mais aceito universalmente. Ai estio varios cientistas de tenome mundial debatendo estas questdes como Ilya Progogine, Edgar Morin, Isabelle Stengets, Fritjof Capra, Henry Atlan, ‘Umberto Maturana, Francisco Varella, Boaventura de Sousa Santos, «e muitos outros. 4] Para a defini¢io de uma iniciativa politica ou social acredita va-se que apenas o conhecimento produzido pela ciéncia seria plenamente suficiente. Aspirava-se até mesmo uma sociedade planejada e administrada de forma totalmente cientifiea; este era 1 projeto de Augusto Comte que ficou identificado como 0 ‘mais importante dos positivistas. O esquema a seguir talvez trans- ‘ita esta atitude em que a agio/intervencio seria determinada ‘exclusivamente pot principios e pressupostos cientificos. CIENCIA, L ACAO/INTERVENCAO Atualmente sabe-se que as coisas no sio mais-assim. Ao claborat uma intervengio, um programa de satide para uma com nidade, uma agio social ou politica qualquer, os atores responsiveis, ppelaimplementagio dessas ages e/ou programas sabem que devern cenep S a de aspectos que, embor alheios ciéncia, interferer na formulacio de suas estratéyias. Sio aspectos de or- tn eligi, donk pled es Has mpc io entrecortados por questbes relgiosas,culruais, moras. Enfim! Vejamos como ficaria 0 esquema agora (que é sempre sem- pre insuficiente e sempre provisério). NCA L IDEOLOGIA > AGAO/INTERVEN + ETICA ‘AO © POLITICA fc | ee Em summa, esta dimensio nos transpotta & reflexio dos con: ceitos mais fundamentais da psiquiatria que, como vimos, foi fandada num contexto epistemologico em que a realidade era considerada um dado natural, capaz de ser apreendida ¢ revela- dda em sua plenitude. Nasceu em um contexto em que a ciéncia significava a produgio de um saber positive, neutro ¢ aurOno- ro: expressio univoca da verdade! Assim € que 0s conceitos psiquiitricos devem ser avaliados, contextualizados em umm de- terminado modelo de ciéncia que esta em plena transformacio. Com base nesta concepgio podemos considerar que 0 proves: so de reforma psiquiitrica nao € uma invengio de psiquiatras insatisfeitos ou insurgentes (como afirmam os defensores da psiguiatria), mas sim uma consequéncia natural de wma transfor magio da proptia ciéncia, ‘ranco Basagla considerava que a psiquiatria tinha um “mal “obscura” por haver separado um objeto fieticio, “a doenga’, da existéncia global ¢ complexa dos sujeitos e do corpo social. Ao considerar a docnga um objeto natural, extemo ao homem, a psiquiatria pascou a se ocupar dela e no do suito que a viven~ Ga, Os tratados de psiquiatria classifica as doengas mentais ‘como sendo objetos da natureza. Analisam os tipos, suas seme~ thangas e distingdes: “as esquizofrenias dividem-se em ..”;“sio de tantos tipos as neuroses...” COcuparam-se das doencas ¢ esqueceram-se dos suieitos que ficaram apenas como pano de fundo das mesmas. Dependen do da idade, ou do sexo, ou da classe social a doenga poderia fssumir tal ou gual caracteristca, curso ou progndstico. Enfim, se a psiquiatria havia colocado o sujeito entre parénteses para ae ‘da doenga, a ptoposta de Basaglia foi a de colocar sq doenga entre parénteses” para que se fosse possivel se ocupat 661 do sujeito em sua expetiéncia, Franco Basaglia se inspirou em Edmund Hussetl, considerado o pai da fenomenologia ¢ autor do conceito de “redugio analigica” ou de colocar 0 conceito entre parénteses. Aideia da doenga entre parénteses pode ser entendida como uuma atitude epistémica, isto & uma atitude de producto de co- nnhecimento, que significa a suspensao de um determinado con- cto ¢ implica a possibilidade de novos contatos empiticos com © fenémeno em questio, que, no caso, é a experiéncia vivida pelos sujeitos. Desta forma, a doenca entte parénteses nao signi fica a negacio da existéncia da ‘doenca’, em outras palavras, no significa a recusa em aceitar que exista uma experiéncia que pos- sa produzie dor, softimento, diferenga ou mal-estar; no é a negacio da experiéncia que a psiquiattia convencionou denomi- nar doenga mental. A estratégia de colocat a doenga entre parénteses é a um s6 tempo, uma ruptura com o modelo te6tico-conceimal da psiquiatria que adotou o modelo das ciéncias naturais para conhecer a subjetividade ¢ terminou por objetivar © coisificar 0 sujeito e a experiéncia humana. E na mesma medida em que a doena é posta entre parénteses, aparecem os sujetos que estavam neutralizados, invisiveis, opa- cos, reduzidos a meros sintomas de uma doenga abstrata. Desta forma, se toma possivel constatar o que Basaglia (nspirado no poeta ¢ dramaturgo Antonin Artaud) denominou “duplo da dloenga mental”, isto é, 0 conjunto de pré-concepcies, precon- ccitos (estigmas, valores, juizos) relacionados a doenga mental. {Logo que iniciou seu trabalho em Trieste, Basaglia conheceu uma interna que estava sempre solicitando um pente. istou lespenteada, dizia ela, “quero me penteat; mas nao tenho uum pente, preciso de um pente, tenho diteito a um pentet”. le «3 Mas ninguém the atendia: a obsessio pelo pente seria um mero sintoma psic6tico? Para que uma louca necessitaria de um pente? (O transformaria em uma arma? O jogatia fora e peditia um outro, ¢ mais outro, ¢ outro ainda? Com o dominio da nogio de doenca mental, uma simples necessidade basica, inclusive de au- tocuidado e autonomia, pode ser entendida como um mero sintoma, Nada mais € do sujeito: tudo se refere @ doencal (Os autores da psiquiatria nfo assumem, mas a Antipsiquiacria a Psiquiatria Democratica obrigaram a psiquiatria @ abandonar © coneeito de doenga mental na medida em que provaram que nao contribuia em praticamente nada para entender e lidar com 08 sujeitos assim classificados: a resposta da psiquiatria foi criar asilos psiquiitricos. Assim sendo, a psiquiatsia passou a expetimentar novas defini- ges ¢ mais recentemente optou por adotar os termos “transtorno ‘mental’ (em portugués e espanhol) ¢ ‘desordem mental’ (em in- 85). A legislagdo brasileira uiliza a expressio ‘os portadores de transtorno mental’. No nos dé a ideia de alguém carregando um fardo, um peso enorme ¢ eterno, inseparivel e indistinguivel do sujeito? Se formos levar ao limite a ideia de portadot, poderia- mos considerar que todos nés carregamos 0 fardo de nossa per: sonalidade e cariter. Pot outro lado, uma pessoa com transtorno ‘mental é uma pessoa transtomada, que é o mesmo que possessal Em inglés 0 termo mental dsonder nos remete a pensar em nio- cordem, quebra da ordem, sem ordem, ai voltamos ao principio da questio: qual € ordem mental? © que é normalidade mental? or estas razbes no campo da saide mentale atengio psicossocial se tem utlizado falar de sujeitos ‘em’ softimento psiquico ou men- tal, pois a ideia de sofrimento nos remete a pensar em um sujeto que softe, em uma experiéncia vivida de um sujeito. Enfim, se com a doenga entre parénteses nos deparamos com ‘0 sujeito, com suas vicissitudes, seus problemas concretos do co: tidiano, seu trabalho, sua familia, seus parentes e vizinhos, seus pro- jetos e anseios, isto possibilita uma ampliagio da nogio de inte- ryalidade no campo da satide mental ¢ atencio psicossocial. Os servigos jé nao serio locais de repressio, exclusto, disciplina, con- tole ¢ vigilincia panéptica (Foucault, 19772). Devem ser entendi- dos como dispositivos estratégicos, como lugares de acolhimen- to, de cuidado e de trocas sociais. Enquanto servicos que lidam ccom as pessoas, € no com as doengas, devem ser lugares de sociabilidade € produgio de subjetividades. E aqui jé estamos na “dimenslo técnico-assistencial’, ejé podemos perceber algumas de suas inter-relagSes com a dimensio que acabamos de analisat. Por outro lado, se a loucura/alienagio nao é sindnimo de periculosidade, de irracionalidade, de incapacidade civil, de exer- cicio de cidadania, na ‘dimensio juridico-polities’ situa-se um conjunto de desafios e estratégias. A revisio de toda a legislagio € um primeiro aspecto, pois tanto o cédigo penal quanto o civil ‘ou ainda outras leis e normas sociais estio repletos de referencias nocivas 20s sujeitos em softimento psiquico e representam obs- ‘culos significativos 20 exercicio da cidadania. A concessio do Beneficio de Prestacio Continuada (BPC) previsto na Lei Orgi- nica da Assistencia Social (Loas) € um bor exemplo, na medida ‘em que € restrito & pessoas com diagnéstico de deficiéncia me: tal e que 0 beneficiisio nao pode ter nenhuma atividade profi sional (nem mesmo nas cooperativas e projetos de geracio de renda ou economia solidiria), sendo um obsticulo, portanto, a cstratégias de inclusio social. A questio dos direitos humanos assume aqui uma expressio ingular. Trata-se de uma luta pela inclusio de novos sujeitos de [69 direito ¢ de novos direitos para os sujeitos em softimento men- tal. Direito ao trabalho, ao estudo, ao lazer, a0 esporte, a cultura, cenfim, aos recursos que a sociedade oferece. “De volta acidade, + Minas Gerais ~ Lei 11.802 de 18 de janeiro de 1995; + Parana ~ Lei 11.189 de 9 de novembro de 1995; + Distrito Federal — Lei 975 de 12 de dezembro de 1995; 701 senhor cidadio”, diz o poeta Paulo Mendes Campos ‘Um passo decisivo nesta diregio foi dado com a promulga- Gao da Lei 10.216 em 6 de abril de 2001, Embora 0 projeto otiginal rena sido rejeitado, apés doze anos de tramitacio, foi aprovado um substitutivo que dispde sobte “a protesio ¢ os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais ¢redize- ciona o modelo assistencial em saiide mental”. O texto da lei aprovada no assegurou algumas das aspiragdes mais funda- mentais do projeto original, tais como a extingdo progessiva dos manicémios, Mesmo assim, revogou a arcaica legishcio de 1934, que ainda estava em vigor, € significou um avango consi drivel no modelo assistencial. Ficou conhecida como aLei da Reforma Psiquitrica brasileira Um aspecto muito importante no que diz respeito 20 pro- ccesso social da reforma psiquiitrica em relagio Lei 10.216/ 2001 é a inclusio do Ministério Publico Estadual, que deve ser comunicado, no prazo de 72 horas, de toxlas as internacies in- voluntitias, como pode ser observado no artigo 8°. Por outro lado, enquanto a lei nacional era debatida, oto leis cestaduais e muitas leis municipais foram aprovadas e provoca- ram 0 avango do processo de reforma psiquidtrica no Brasil. Listam-se a seguir as leis estaduais de reforma psiquidtica: + Rio Grande do Sul ~ Lei 9.716 de 7 de agosto de 1992; + Ceat — Lei 12.151 de 29 de julho de 1993; + Pernambuco ~ Lei 11.065 de 16 de maio de 19%; + Rio Grande do Norte ~ Lei 6.758 de 4 de janeiro de 1995; + Espirito Santo ~ Lei 5.267 de 10 de setembro de 1996, Mas, sabemos que falar de cidadania e dircitos nio basta, ‘amo nao basta apenas aprovar leis, pois ndo se determina que as pessoas sejam cidadas ¢ sujeitos de direito por decreto. A construgao de cidadania diz respeito a um processo social ¢, al «jual nos referimos no campo da saiide mental e atengio psicos- social, um processo social complexo. E preciso mudar mentali- dlades, mudat atitudes, mudar relagdes sociais. Ao longo de sua histéria, todas as sociedades criam determi- nnadas intespretagdes sobre fatos, pessoas ¢ coisas. Todas proc tam dar sentido as coisas ¢ sensagoes que veem, experimentam cw seme, Estasinenpretag es seis stra representa ‘Hes eoletivas, pois passam a ser, por um processo natu 7 pparthadas de uma forma semelhante ae eae »fupo social. A psiquiatria contribuiu muito para que a sociedade catendesse que ‘0 louco é perigoso’, que ‘lugar de louco é no hospicio’, que ‘o doente mental ¢ irracional’, que ‘o doente mental... Voeé ja parou para pensar em quantos preconceitos *xistem sobre as pessoas com problemas mentais? Quantas ane- ‘lotas existem sobre loucos? Quantos casos de loucos fatiosos, sssassinos, pervertidos.. O proprio Kraepelin, naquela mesma ula inieial do curso de clinica psiquidtrica, prossegue afirmando: Pelo menos um tergo do mimero total de suicidios tem Por causa eventual diferentes transtomnos mentais, como em menor escala eles sio também os indutores dos cs. mes contra 0 pudor, de incéndios, roubos, fraudes ¢ in ‘outros. Mulkiddes de fami choram suas ruiaas por cansa destes desventurados enfermos, que dissiparam foreunas cou meios de existéncia em iniciativas insensatas ou por causa do empenho em aliviar sofrimentos sociais € cor pomais nascidos em vide da preguiga, da incapacidade para trabalho, que acompanham quase sempre a todos (6 transtornados de mente. (Kraepelin, 1988: 22-23) Nao é de assustar? Hi quem diga, a0 contrario, que no tem medo das pessoas que no tém tazio, ¢ sim daquelas que se julgam com razio demais! E nesta medida que a nogio de pro- ccesso social complexo & estratégica, pois é necessério introduzit ‘uma série de transformacdes que perpassam as visias dimen- sBes aqui referidas Vimos que na dimensio te6rico-conceitual, se adotadas estas nogies de alienado, de periculosidade, de per- dda da sazio, ¢ assim por diante, vamos construir instituigdes de disciplina, correcio moral, vigilancia, cust6dia, punicio. Vamos construir, da mesma forma, leis restritivas, autoritirias, impediti- ‘vas. Vamos, enfim, construir representagdes sociais e sentidos sociais de medo, de risco, de exclusio: estigmas, discriminacies, preconceitos. No méximo vamos percebet algumas atirudes de tolerancia. Mas, Franco Basagliainsistia que a questio nio deve- sia ser direcionada para a ideia da tolerincia. A “ideologia da tolerincia”, como ele se referia, & arrogante ¢ pretensiosa, pois implica em suportar (Colerat) 0 outro. Em contraposiglo, se recusarmos aqueles conceitos arcaicos © procurarmos sentir ¢ nos relacionat com os sujeitos em sofri- mento, se nos ditigirmos as pessoas € nao as suas doengas, po- demos vislumbrar espagos terapéuticos em que é possivel escutar ceacolher suas angistas e experiéncias vividas;espagos de cuidado ce acolhimento, de produgio de subjetividades e de sociabilidades. nl Contribuimos desta forma para 0 questionamento pritico das legislagdes € normas excludentes, construindo estratégias efet vas de cidadania e participagio social, que sio, a0 mestno tem- po, fundamentos ¢ comprovagies materiais dos novos pressu- postos. Em ultima instincia, todo o conjunto de transforma- ‘G0es ¢ inovagées anteriores contribuem para a construcio de lum novo imaginirio social em relagio & loucura e 20s sujeitos em sofrimento, que nao seja de rejei¢io ou tolerincia, mas de reciprocidade ¢ solidariedade. Franco Basaglia observava que ta importante questionar no somente “o manicémio nem a Psiquiatria como ciéncia, mas tudo 0 que, partindo do ‘territé rio’ repelia a doenca ¢ a confiava a psiquiattia e 20 manicémio” (Basaglia, 2005: 243) A dimensio sociocultural é, portanto, uma dimensio estratépica, «uma das mais criatvas e reconhecidas, nos iimbitos nacional ¢ internacional, do processo brasileiro de reforma psiquistrica. Um «los principios fundamentais adotados nesta dimensio 6 0 en. volvimento da sociedade na discussio da reforma psiquiétrica com 0 objetivo de provocar o imaginatio social a refletir sobre #» tema da loucura, da doenga mental, dos hospitais psiquiitricos, « partir da propria producio cultural e atistca dos atores sociais cavolvidos (usuarios, familiares, técaicos, voluntitios). Para ‘anto, foi instieuido um Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 0 «lia 18 de maio, no qual (e mesmo nos dias prOximos & data), em ‘odo o pais ocorrem atividades culeurais, polticas, académicas, esportivas, dentre outtas, que promovem o debate e instigam a sociedade a participar e a refleti. ‘Uma experigncia marcante para mim foi o convite recebido «le Franco Rotelli para organizar uma escola de samba com usuarios, técnicos, familiares e voluntérios no carnaval de’Trieste 3 m] ‘em 1992. A partir do tema Meninos de rua, compus 0 samba- enredo “Tutti i bambini della strada” ¢ fizemos uma bela festa que marcou o carnaval triestino. ‘Agora, vejamos exemplos de atividades no Brasil. Jé em 1992, por ocasiio do Camaval, decidiu-se niio mais fazer um ‘bloco de doentes’ para brincar no baile no patio do hospicio, mas sim ot- ganizar uma ala num dos blocos mais famosos do Rio de Jancito, (0 “Simpatia é quase amor”. A ala sain com 0 nome de “Ala do aluco beleza” (em alusio a mmisica de Raul Seixas) e fez: muito n anos posteriores, foram organi- ‘zadas wits iniciativas semelhantes e até mesmo escolas de samba do Rio de Janeiro desflaram com alas ¢ temas abordando a lou- cura, a diferenga, a diversidade. Hé, no pais, muitos blocos © coletivos camavalescos que fazem alusio a0 tema. No Rio de Janeiro, destacam-se 0 “Ta Pirando, Pirado, Pitou!”, o “Loucura Suburbana” e 0 ““Tremendo nos Nervos”. Em Paracambi (RJ), ha 0 bloco “Maluco Sonhador”; em Séo Paulo, 0 cordio “Bibi Tanti”, em Natal, o “Lokomotiva”; € muitos outros pelo pais. ‘No Férum Gaticho de Satide Mental alguns participantes ust- ram camisetas com frases relacionadas & luta antimanicomial ¢ 4 reforma psiquiétrica. A que mais se destacou foi “de perto nin- guém é normal” extraida da musica “Vaca profana” de Caetano sucesso no bloco ¢ na midia. E Veloso, 20 qual fiz teferéncia logo no inicio deste livra, Dai em dante, houve uma proliferagio de camisetas com desenhos, pi- turas¢ frases com o objetivo de levar 0 debate & opiniio piblica, de instigar a cutiosidade das pessoas sobre o tema. Musicas,ima~ ‘gens e poesias serviam de isca para esta estratégia: “Gente & pra brilhar.., a parit de masica também de Cactano Veloso; “Malu- co beleza” € “Sociedade alternativa”, ambas de Raul Seixas; “hi tanta vida li fora..”, “Como uma onda”, de Lal Santos, “Dizem {que sou louco, por pensar assim. Se eu sou muito louco, por eu ser feliz, Mas louco é quem me diz que nio € feliz, nio & feliz”, “Bae id es de mo apes R Le ges de tas misicas que ajudam a provocase instigar as pessoas a pergun- tarem 0 que esta ou aquela frase signifieava, ¢ 0 motivo de estar ‘naquela camiseta e assim produzir didlogos e encontsos (no senti- do de encontro de pessoas/entre pessoas) sobre o tema da low cura, da segregasio, dos preconceitos, As televisGes comunititias também representaram uma inici ativa importante. Dentre as que mais se destacaram esto, em primeiro lugar, a TV Tam Tam, criada em Santos logo no inicio do processo de desmontagem da estrutura manicomial na cida- de. Alguns anos depois, na mesma linha, surgiu a TV Pinel, no Rio de Jancito, que em 2006 completou dez anos, com progea- mas muito criativos e muito premiados, Mais recentemente nas- ceua TV Parabolinoica, em Belo Horizonte. Todas elas contam com roteitos, filmagens aruagio dos usuatios, familiares, pro- fissionais ¢ voluntétios. Outra proposta é a de programas de Fidio, dentre os quais a Ridio Tam Tam, também de Santos, foi \pionera, Mas existem muita pelo pals, sempre com nomes criativos e fazendo alusio a0 campo, como Radio Antena Vira- a Paracambi), Rédio Cala a Boca Ji Morreu Em 2005 o Centro Cultural Banco do Brasil, um dos espacos mais nobres da cultura nacional, abriu suas portas para o evento |-oucura ¢ Cultura ¢ nesse mesmo ano foi iniciado em Barbacena ‘9 Bestival da Loucura. A partir da Associagio Loucos pela Vida, da qual parsciparn usuisios, familiares, técnicos ¢ voluntitios, nasceu um grupo ‘musical que gravou um CD com varias misicas, dentre elas “Nas terras do Juquery” ¢ “Loucos pela vida”, de Lizinho Gonzaga, ls que profetiza que “um dia os muros do Juquery vio eair”. No Rio, foi ciado o grupo musical Harmonia Enlouquece que gra- vou “Sufoco da vida” com a voz de Hamilton Assuncio: “es- tou vivendo no mundo do hospital, tomando remédio de psi- quiatria mental. Haldol, diazepan, rohipnol, prometazina, meu médico nao sabe como me tornar um cara normal”. Ou Paulo de Tarso com “a gente semeou o sol...a gente fez brilhar 0 sol. agente fez nascer 0 sol pra nfo tomar haldol”. E muitas outras iniciativas no campo da misica, como a dos Magicos do Som (Wolta Redonda/R)), Lokonaboa (Assis/SP), Viajar (Santo An- dxé/SP), Trem Tan Tan (Belo Horizonte/MG), Zé do Poco (Ribeirio das Neves/MG), Sistema Netvoso Alterado (RJ), Can- ioneiros do Ipub (UFR), 01 0s shoushist6ricos do Projeto Canta Loucura na Estacio das Barcas da Cantareira (Niteréi/RJ). No tikimo Forum Social Mundial em Porto Alegre um evento cemocionante reuniu militantes da satide mental com 0 hip-bop. Fazendo um elo da misica com 0 teatro, foi eriado em Sio Paulo o Coral Cénico, uma linda proposta de cantar, dancar, representar,significar. No Rio, a partir do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, foi criado o Grupo de Teatro Pirei na Cena, ‘mas existem intimeras iniciativas como estas por todo o pais. O ‘Teatro do Oprimido é um bom exemplo de como € possivel produzir trabalhos orientados por principios como emancipa- fo, autonomia, consciéncia ertica, dentre outros, que no sejam reduzidos 20 carites terspéutico. E apenas teatro! ( nao basta?) No Rio de Jancito hi também o grupo de teatro “Os némades” 0 “Camisa de forca’, intervengio cultural concebida por Lula Wanderley © que acompanha o “Sistema Nervoso Alterado”” ‘Com o objetivo de cxiar uma politica pablica de cultura no Cam- po da Saiide Mental, Secretaria Nacional da Kdentidade ¢ da Diver- 761 Sidade Cultural, do Ministétio da Cultura, ¢ a Escola Nacional de Satide Publica Sergio Arouca, da Fundagio Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocri), langaram, em agosto de 2007, com a presenga do ministro Gilberto Gil, 0 projeto Loucos pela Diversidade. A originalidade deste projeto esto fito de ser a primeita iniiativa regular de politica cultural para pessoas em softimento psiquico. Nenhum outro pais ‘em iniciativa semelhante! Em 2009 o eaital do projeto Loucos pela Diversidade, que homenageou Austregésilo Cartano autor do livro «que inspirou o filme Bicbo de 7 Cab), reccbeu quase 400 inscrigdes de projetos. A solenidade de premiacio, presidida pelo ministro da Cultura Juca Ferreira, ocorreu na sede da Caixa Cultural, onde 55 projetos foram contemplados com o prémio. Mas existe um aspecto fundamental nesta dimensio so ciocultural que demonstra a sua inter-relagio ¢ interatvidade com as demais dimensdes: a participacao sociale politica de todos os atores sociais envolvidos com 0 processo de reforma psiquidttica Desde os primeiros anos do processo, no cendrio da redemocra- tizagao nacional, a participagio social tem sido objeto de mereci- do destaque. Vejamos alguns aspectos desta participacio. Em 1978, foi ctiado no Rio de Jancio 0 Movimento dos Trabalhadores em Saiide Mental (MTSM) que no mesmo ano se tomou um movimento nacional e, em janeiro de 1979, organi vou 0 1 Congtesso Nacional no Instituto Sedes pice em ‘io Paulo, Em 1979, foi ctiada a primeira associagio de familiares slo pais, denominada Sosintta, ainda hoje atuante ¢ importante protagonista cm defesa da reforma psiquidtrica brasileira, As vindas de Franco Basaglia contribuiram decisivamente para a constituigio do movimento de transformacio no pafs, sea em 1978, quando veio juntamente com Felix Guattati, Robert Castel, Erving Goffman, Thomaz Szasz ao 1 Congresso Brasileiro de Lor 78] Paicanalise, Grupos e Instituigdes no Rio de Janeiro, ov em 1979, quando veio para o TH Congresso Mineiro de Psiquiatria, em Belo Horizonte, e realizou uma visita histérica a0 Hospital Psiquidtrico de Barbacena, que expos para a sociedade brasileira ‘a crueldade e violéncia da assisténcia psiquiftrica que eta presta da s pessoas em softimento mental. A iniciatva de Sergio Arouca, entio presidente da Fiocruz ¢ Soordenador da 8° Conferéncia Nacional de Satide, de envolver cefetivamente a sociedade brasileira na discussio e formulagio das politicas de sade abriu um novo campo de possbilidades para 0 «que arualmente conhecemos como Sistema Unico de Satide (SUS) Com a organizagio da ‘Oitava’ (como ficou conhecida) passaram 1 se envolver nio apenas profissionais de satide, mas também usuatios do sistema, familiares, ativistas de associagées, de ongani- zages no governamentais,sindicatos, igreja, partidos politicos, enfim, de vitios segmentos da sociedade brasileira. Na I Confe- réncin Nacional de Saiide Menta, realizada como desdobramen- to da Oitava, os varios participantes do MTSM decidiram realizar II Congresso, que ocorreu em dezembro de 1987, em Bauru. Neste congresso, o MTSM sofreu uma profunda transformagio, tomando-se um movimento no mais (predominantemente) de profissionais da satide mental, mas com efetiva participacio de ususiios e familiares, Por outro lado, decidi-se assumis um cari tet mais claro em relacio ao papel do hospital psiquidtrico e, para tanto, adotou o lema: Por Uma Sociedade Sem Manicémios, que havia surgido no IIT Encontro da Rede de Alternativas & Psiquia- ‘tia, realizado no ano anterior, em Buenos Aires, no petiodo de 17 1121 de dezembro, Muitas associagies e cooperativas foram cria- das desde entio, dentre as quais destaco algumas, tio somente como forma de registro hist6rico: Loucos pela vida (inicialmente em Juquery e depois em Ribeirio Preto/SP), SOS Saiide Mental (Sio Paulo/SP), Franco Basaglia (Sio Paulo/SP), Franco Rotelli (Santos/SP), Cabega Feita (Sio Gongalo/R)), Loucos por Voce (patinga/MG), Loucos Por Cidadania (Olinda/PE), Lokomoti- va (Natal/RN), Qorpo Santo (Alegrete/RS), Praia Vermelha (Rio de Jancizo/R)), dentre muitas outras. ‘A participacio social, no apenas na saiide mental, mas nas politicas de saiide de forma geral, teve um impulso decisive com a introdugio do capitulo da satide na Constituigao de 1988 «¢ posteriormente, com a instituicio do SUS, regulamentado pela Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Logo apés, em 28 de dezembro do mesmo ano, a Lei 8.142 estabeleceu 2 participa sa0 da comunidade na gestio do sistema, 0 que ficou conheci- do como 0 “controle social”. A realizacao das trés Conferéncias "Nacionais de Satide Mental, em 1987 (Rio de Janeiro, de 25 a 28 de junho), 1992 (Brasilia, 30 de novembro a2 de dezembro) © 2001 Brasilia, 11 a 15 de dezembro) ofereceu possibilidades inigualaveis de participagio dos atores sociais na discussio ¢ cons- truco das politcas de satide mental ¢ aten¢io psicossocial. O ideal é que existisse uma regularidade na convocagio destas con feréncias. Muito importante ainda sociais nos Conselhos de Saiide estaduais e municipais e nas ‘Comissdes de Satide Mental ligadas a estes Conselhos e a0 Con- selho Nacional de Satide A dimensio sociocultural recebe muita visibilidade atra- © envolvimento dos atores vés da realizacao regular de grandes encontros totalmente of- ganizados e protagonizados pelos atores sociais da reforma psiquiatrica: usuarios, familiares, profi tas de movimentos sociais pela cidadania e defesa da vida. Sio tantos os encontros do Movimento Nacional da Luta jionais e outros ativis 80} Antimanicomial quantos os enconttos exclusivos de usuitios ¢ familiares (Quadro 1). Apés virias manifestagdes da sociedade, em particular dos ‘movimentos antimanicomiais, que culminaram com a Marcha dos Usuarios em 30 de setembro, em Brasilia, foi convocada a TV Conferéncia Nacional de Satide Mental, que foi finalmente ‘marcada para 27 de junho 2 01 de julho de 2010, Essa conferén- cia teve como cariter inovador 0 fato de ser intersetorial, con- tando com a participagio das reas de cultura, direitos huma- ‘nos, economia solidatia, assisténcia social ¢ outras. Quadro 1 — Encontros Nacionais do Movimento da Lata Antimanicomial e das Associagdes de Usuirios e Familiares 7 oe Tot T Recssica Nadal oe Ueitn¢ Faalars 1961 Sia Pal Py Baconco Nilo de Uniti ¢Puniloes 1992. de ano RD 1 Raconr Nason ata Annan) 1999. Saaor BA) UL Encotro Nacional de Unasor Faire 1993 Santon SP) Eaconee Nail de Ls Actimaricosal 1995 Bein (MG) 1 Bacono Naso deUmisorFamiares 1986 Franco da Roch SP) ML Becotto Nacional da Lat Artinricominl 1997” oto Alegre (RS) Encore Neon de VkineFaminer 1998 Heim (MG) 1 Encotz Nacional da Lata Antimaricomiad 1999 Papas (AL) Veco Nilo de Unusore Femirsy 2000 Gold (G0 \VEnconto Nacional de Lt Antinsnicomit 2001 Niguel Pera (RD) {VI Encore Nicol de Unie eaniies 2002 Keri (R) ‘incon Nico da Lat Ainanicnmal 2005 Sk Pub (SP) VII Econo Nacional da Lota Andciconil! 2007 Vin 5) ‘VU EaconroNacioa deUnisos Fumie 2007 Via (5) ‘VU Encontro Nico de La Aasimancomial 2009S Renao do Campo SP) 1X EsconoNciona de Ussisios «Fumie 2009 § Benard do Campo SP Caminos & TeNDENCIAS DAS PoLiticas 5 {oe Sadoe MentaL & ATENCAO PsicossoctaL NO BRASIL ‘Veremos algumas peopostas aruais que estio delineando no- vas possibilidades no campo da satide mental e a «cial. Por meio da analise destas experiéncias, actedito que seja \sio psicos- possivel observar a complexidade das ages e a riqueza das in- ter-relagdes entre as dimensdes analisadas anteriormente, A ATENGAO A CRISE E 0S SERVICOS DE ATENGAO PSTCOSSOCIAL A atengio & crise representa um dos aspectos mais dificeis e estratégicos, No modelo clissico da psiquiatria, entende-se a eri- se como uma situacio de grave disfuncio que ocomre exclusiva mente em decorréncia da doenga. Como consequéncia desta concepgio, a resposta pode ser agarrar a pessoa em crise a qual «quer custo; amarri-la, injetar-Ihe fortes medicamentos intrave- nosos de agio no sistema nervoso central a fim de dopé-la, aplicar-Ihe eletroconvulsorerapia (ECT) ou eletrochoque, como & mais conhecida pelo dominio popular. Ao contriio, no con- texto da satide mental e atengio psicossocial a crise € entendida vomo 0 resultado de uma série de fatores que envolvem escei- ros, sejam estes familiares, vizinhos, amigos ou mesmo desco- nnhecidos, Um momento que pode ser resultado de uma dimi- nnuigio do limiar de solidariedade de uns para com outros, de uma situagio de precariedade de recursos para tratar a pessoa cem sua residéncia, enfim, uma situagio mais social que puramente Lan e) biolégica ou psicolégica. Também por este motivo trata-se de tum processo social Por isso é necessario que existam servigos de atengio psicos- social que possibilitem o acolhimento das pessoas em crise, € {que todas as pessoas envolvidas possam ser ouvidas, expressan- do suas dificuldades, temores e expectativas. I importante que sejam estabelecidos vinculos afetivos ¢ profissionais com estas pessoas, que elas se sintam realmente ouvidas ¢ cuidadas, que sintam que 0s profissionais que as estio escutando estio efetiva- mente voltados para seus problemas, dispostos € compromis- sados a ajud: ‘cesponsabilizar se” pelas pessoas que estio sendo cuidadas. A . Em atengio psicossocial se usa a expresso psiquiaeria se refere & relacao médico-paciente, mas na verdade 6 que cla estabelece & uma relagio médico-doenca, Na saiide mental ¢ atengio psicossocial, o que se pretende é uma rede de relagBes entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam ~médicos, cenfermeiros, psicblogos, terapeutas ocupacionais, assistentes so- ais, dentre muitos outros atores que sio evidenciados neste processo social complexo — com sujeitos que vivenciam as pro- blemiticas— os usuarios ¢ familiares e outros atores sociais, como se evidencia no esquema a seguir. PROFISSIONAIS <> UsuARIOS SOCIEDADE °e FAMILIARES © termo ‘usuitio’ foi introduzido pela legislagio do SUS (cis 1, 8080/90 e 8:142/90), as quais jé me refeti, no sentido de des- tacar o protagonismo do que anteriormente era apenas um ‘paci- cemte’. A expressio acabou sendo adotada com sentido bastante singular no campo da saide mental e atengao psicossocial, na medida em que significava um deslocamento no sentido do lu- ‘gar social das pessoas em softimento psiquica. Atualmente 0 termo vem sendo criticado pelo fato de ainda manter uma rela- Gio do sujeito com o sistema de satide. Por este motivo sempre © uilizarei entre parénteses. Este é um importante indicio do ‘movimento permanente de reflexZo € construcao no campo da reforma psiquidtrica Ouvidas adequadamente, as pessoas precisam ser ofientadas «¢, na medida do possivel, devem ser envolvidas nas solugd encaminhamentos ¢ tratamentos construidos de comum acor- do, sempre procurando evitar que a pessoa levada para o aten- dimento seja alijada do proceso. Os servigos de atengio psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexivel para que no se tomem espagos burocratizados, tepettivos, pois tas atitudes representam que estariam deixando de lidar com as pessoas e sim com as doengas. Como devem ser lugares onde a crise possa ser acolhida, pode ser que tenham de ofetecer letos de suporte nos quais as pessoas possam ser interna- das por um breve petioda, No Brasil, as portarias ministeriais 189/91 ¢ 224/92 insticuiram varias modalidades, dentre as quais 0s hospitais-dia, as oficinas terapéuticas e os Centros de Ateagio Pricossocial (CAPS), que foram reestruturados pelas portariasn. 336/2 © 189/2 estabelecendo virias modalidades de CAPS OsCAPS fancionam, pelo menos, durante os cinco dias tteis, dla semana (de segunda a sexta-feira). O horitrio ¢ funcionamen. to mos fins de semana dependem do tipo de Centro: + CAPS I~ muniefpios com populagio entre 20.000 ¢ 70.000 hhabitan gunda a sexta-feira funcionam das 8h as 18h, de se- (3 aa) + CAPS IT — municipios com populacio entre 70.000 e 200.000 habitantes — funciona das 8h as 18h, de segunda a sexta- feira. Pode ter um terceio periodo, funcionando até 21 horas. + CAPS II ~ muniefpios com populacio acima de 200.000 habitantes — funcionam 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana, + CAPSi— Atendimento de criangas ¢ adolescentes ~ rmunicfpi- fs com populagio superior a 200,000 habitantes ~ funcio- nam das 8h as 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceito periodo, funcionando até 21 horas. "APSad — Atendimento de dependéncia quimica (élcool ¢ deogas) — municipios com populacio superior a 100.000 ha- bitantes — funcionam das 8h as 18h, de segunda a sexta-feira Pode ter um terceiro periodo, funcionando até 21 horas. (Os usudtios que permanecem um tutno de quatro horas nos CAPS devem receber uma refeigao diéria (Brasil, 2004) ‘Como é possivel observar, os CAPS IIT funcionam 24 horas € oferecem leitos de atendimento 4 crise. Ao contritio dos hos- pitais psiquidtricos sio leitos em salas abertas, com bastante pos sibilidade de acompanhamento das pessoas por todo o periodo tem que elas estiverem internadas. Os servigos de atengio psicossocial procuram dispor de operadores de diversas categorias profissionais, muitas con. sideradas ‘externas’ ca da saide, tais como: misicos, artistas plisticos, artesios, dentre outras, a depender da possibilidade de cada servigo, de cada cidade ou da criatividade de cada um, Os servigos de atencao psicossocial devem procurar desen- volver ao maximo suas habilidades em atuar no tertitério que, como abordamos anteriormente, nfo se reduz ao espago sgeogrifica. O setvigo pode ser considerado tanto mais de base territorial, quanto mais seja capaz de desenvolver relagées com 08 varios recutsos existentes no ambito de sua comunidade. Nos ‘centros ameticanos ¢ franceses de satide mental, as oficinas eram ctiadas no interior dos servigos. Tinham um catiter de oficio terapéutico (remanescente da nogao de terapéutica moral) ¢ uma funcio normativa, de produgio de subjetividades adequadas & norma social. Atualmente, a tendéncia é construir ‘ateliés’ pelo espaco social, pela cidade afora... O desafio esti na possibilida- de de encontrar associagdes civis, times de futebol, entidades cometciais, enfim, aliancas sociais que possam participar solida- riamente da invengio de estratégias de atencio psicossocial, incluindo as pessoas em acompanhamento nos servigos de atengio psicossocial em suas varias formas de sociabilldade jé existentes ‘ou que estejam sendo criadas (Cf. diagrama a seguir) J t — sete = | = - - ( E2|=> 4 to (35 86] Estamos falando do principio da intersetorialidade, isto é, de cestratégias que perpassem varios setores sociais, tanto do campo da saide mental e satide em geral, quanto das politicas puiblicas @ da sociedade como um todo. Em outras palavras, os servigos de atencio psicossocial devem sair da sede do servigo e buscar 1a sociedade vinculos que complementem e ampliem os recur sos existentes, Devem articular-se com todos os recursos exis- tentes no campo da satide mental, isto é com a Rede de Aten- Gao A Satide Mental (outros servigos de atengio psicossocial, cooperativas,residéncias de egressos ou outras pessoas em sitt- agio de pri ariedade social, an wulatorios, hospitais-dia, unida- des psiquidtricas em hospitais gerais), e no campo da satide em sgeral (Estratégia Sate da Famil ambulat6rios, hospitais gerais e especiali to das politcas piiblicas em geral (ministério pablico, previdén cia social, delegacias, insttuigdes para criangas,idosos, desassisti dos em gera, igrejas, politicas educacionais, de esporte, lazer, cultura ¢ arte, turismo, transporte, acio e bem-estar social etc.) «, finalmente, no ambito dos recursos criados pela sociedade civil para organizar-se, defender se, solidarizar-se. As politicas de satide mental ¢ atengio psicossocial devem organizar-se em ,centros de saiide, rede basica, zados etc:) ou no ambi- ‘rede’, isto & formando uma série de pontos de encontso, de ttajetorias de cooperagio, de simmultaneidade de iniciativas e ato- res sociais envolvidos, ‘A Figura 3 apresenta uma ideia de Rede de Atencio a Saiide Mental tal como entendida pelo Ministério da Saiide, mas que pode ser bem mais ampla e complexa, de acordo com as possibilidades locais e a criatividade de cada servico ou equipe. Figura 3 — Rede de Atengio & Satide Mental na concepcio do MS Visions Pragas Esportes CAPS Cu Asocagies on cooperatvae detairra “Trabalho Fonte: Bra, 2008 AS ESTRATEGIAS DE RESIDENCIALIDADE € ENANCIPAGKO 00S SUJEITOS (Os mais de trezentos anos de psiquiatria centrada no hospital psiquidtrico produziram muicas sequelas ¢ desastres nas vidas de muitos milhares de pessoas Quando iniciamos um trabalho de desinstirucionalizagio constituigio de um trabalho de saiide La 88] mental ¢ atengio psicossocial, nos deparamos com muitas pes- soas que vivem ha décadas enclausuradas nestas instituigoes. O modelo psiquidtrico e asilar que as oprimiu reduziu-lhes as expectativas, obstruiu-lhes os projetos de vida, achatou-lhes, as expressdes e sentimentos. Desta forma, a grande maiotia delas io tem condigao de voltar a viver sem a ajuda de terceitos e, por isso, € muito importante que sejam organizados programas € estratégias de apoio psicossocial para estas pessoas, dentre as quais as estratégias de residencialidade e de subsidios financeitos. Depois de muitos anos vivendo institucionalizadas, muitas nto uerem sair do clausteo, muitas no tém familias ou suas familias nfo as desejam mais em casa. As familias, até como mecanismo de defesa, para que no sofram tanto com a hospitalizagio de tum de seus membros, reorganizam- smo os espagos da casa. Apés algum tempo, no hé mais lugar para aquele que partiu. Mas, como disse anteriormente, muitos internados também ‘no quezem retornar para suas casas e se nos debrugarmos com tengo sobre algumas das contribuigSes da Antipsiquiatria en- tenderemos o motivo, Assim, as politicas piblicas devem ofe cer condigdes para 0 processo de desinstitucionalizagio dessas pessoas. Um passo inicial se dé com a organizacio de equipes multiprofissionais, cujo objetivo é acompanhar as pessoas, aju- dando-as a construir autonomia e independéncia: atrumar-se, preparar alimentos, ler jornais, ouvir tidio e ver televisio, cantar, dangar, passear pela cidade, falar com as pessoas na rus, it & igreja,jogar bola. ‘As equipes podem continuar acompanhando as pessoas em diferentes praus de autonomia ¢ independéncia. Existem pessoas dependentes que no conseguem realizar as atividades da vida reacomodam até mes- cotidiana, mas, nem por isso, deveriam ser mantidas em institui- ‘goes fechadas. E incrivel como as experiéncias de desinstitucio- nalizacéo tém demonstrado que muitas das pessoas internadas, ‘em cujos prontuatios existem anotagées de alheamento, desinte- tesse social, estereotipias, auséncia de iniciativa ete, sio protago- nistas de uma transformacio radical. Para saber até onde po- dem it, s6 ha uma opcio: possibilitar-lhes participar do proces- so de desinstitucionalizacio! Em muitas situagdes € necessitio que as residéncias sejam assistidas ou supervisionadas em graus de complexidade que variam com a autonomia ¢ independéncia dos moradotes. Mas «em vitios paises (por exemplo, Itélia, Espanha, Canada, Norue- ‘a, Inglaterra, dentre outros), existem experiéncias de residéncias, absolutamente autdnomas. Nas residéncias com pessoas menos auténomas, podem ser ofetecidos cuidados profissionais (mé- dicos, psicol6gicos, fisioterapicos etc), a0 mesmo tempo que, nas residéncias com pessoas mais auténomas, todas as ativida- des ditas terapéuticas sio realizadas nos recursos sanitirios exis- tentes no territério, De qualquet forma, é importante ter como Principio que cumpre As equipes de Satide da Familia, com a supervisio e 0 “apoio matricial’ dos servigos de atengio psicos- social (como veremos mais adiante), acompanhar todas as resi- déncias existentes no territério, No caso do Brasil, por meio da Portaria 106 de 11 de feve- reito de 2000, foram institufdos os “servigos residenciais tera- péuticos”, destinados aos internos em instituiges psiquiatricas por um perfodo de, no minimo, dois anos. Em que pese o fato de denominar as residéncias de servigos e, mais grave, de tera- péuticos, a iniciativa vem contribuindo para a superagio do mo- elo psiquidtrico predominantemente asilar ainda hegeménico. tes 90] ‘A observagio relacionada a denominacio nfo se refere a um simples rigor conceitual, e sim a0 risco de indugio aos aspectos indesejveis de casas que deveriam ser menos institucionalizadas ¢ de instituigées que se pretendam terapéuticas em si (Fecorde- mos Esquitol e Tenon com o hospicio como © melhor remé- dio!). A terapéutica deve ser fungio dos téenicos ¢ dos tata mentos nos locais destinados a este fim (que nem por isto si0 terapéuticos de per se). Desta forma, nunca é demais advert para o risco de instinucionalizagio das residéncias, Para que seja possivel evtar este destino, é preciso ter em mente, todo 0 tem- po, que se trata de casas, e ecusar cotidianamente as tendéncias A banalizacio, repeticio, padronizagio de atimudes ou de ‘setia- lizagio’ (como nos aponta Sartre). Devemos lembrar que © dina dia deve ser de uma casa A politica brasileira de esteatégias de residencialidade ainda std restrta as sujeitos egressos de instituigBes nas quaisestive- ram por mais de dois anos internados, [i nossa expectativa que @ proposta s¢ dificuldades de moradia ou convivio familiar, A medida certa- mente contribuitia como alternativa pata estas pessoas, princi palmente para as que nunea passaram por um hospital psiquis- tsico, o que restringiia 0 processo de cronificagio instirucional ou “catteira moral do doente mental”, expressio usada por Goffman (1992) para denominar 0 processo de instirucionalizagao produzido pela instituigao psiquiitrica ‘Uma ver que muitas pessoas que viverain longos anos inst- tucionalizadas aio tém facilidade para conseguir um emprego, ‘ou um emprego com renda suficente para que possam susten- tar-se, ou outra forma de reeurso financeiro, virios paises garan- tem uma renda mensal minima a tinlo de subsidio. No Brasil, cextensiva a todos aqueles que também tenham como parte integrante de um programa denominado “De volta pra casa”, a Lei n, 10.708, de 31/7/2003, instituin auxilio-reabilitagio psicossocial para pessoas com transtornos mentais epressas de internagies psiquidtricas. AS COOPERATIVAS, ENPRESAS SOCIAIS CENTROS DE CONVIVENCIA E Una iniciativa considetada muito ousada, até mesmo insana pata a época, foi a ctiagio de cooperativas de trabalhos para os pacientes internados no hospital psiquiétrico. Franco Basaglia constatou que, lé pelos idos de 1973, no Ospedale San Giovanni, «que ele dirigia em Trieste, uma boa parte dos ‘funcionatios’ eram “pacientes internados’. Ora, se poderiam trabalhar, poderiam receber pelo trabalho, nada mais justo! Mas a administragio pi- bilica niio permitia porque os considerava loucos. Além disso, centendia que o trabalho que realizavam era ou ‘voluntério’ (cer tamente inserido nas modalidades que as instituigdes totais cri- am para o controle dos internos, pelo sistema de privilégios, ppremiagdes e punigdes) ou até mesmo ‘terapéutico” (adequado ais vises atcaicas da laborterapia e ergoterapia, filhas legitimas «lo trabalho terapéutico nas colénias de alienados). Foi assim «que a historia registrou a ‘primeira greve de loucos’ em toda a humanidade! A solugio foi dar alta a todos os envolvidos, que assim ter- tninaram por constituir uma cooperativa ~ denominada Lavo- tntori Uniti (Trabalhadores Unidos) ~ que foi contratada para cxercer virias tarefas do hospital (impeza, cozinha, lavanderia, servigos gerais). Anos depois, a iniciativa foi considerada tio inovadorae eficaz (inclusive ‘terapeuticamente’, se esta Fosse uma terapia), que a OMS passou a apoiar o projeto, a divulgar tor 21 cstimular iniciaivas similares em outros paises. Ainda mais, foi aprovada uma lei nacional criando cooperativas sociais, destina- das a oferecer trabalho a pessoas consideradas ‘em desvantagem, social’. Isto acabou por inspirar uma legislagio da Comunidade Econdmica Buropeia, que passou a apoiar politica e financeira- ‘mente os projetos agora denominados Empresa Social Em resumo, as politicas de satide mental eatengio psicosso- cial passatam a adotar estratégias mais especificas ¢ concretas de ctiaio de projetos de gerasio de renda para as pessoas em acompanhamento na rede. Com as cooperativas ou empresas sociais ou mesmo com projetos de geragio de renda que incor- poram os mesmos principios das anteriores, a questio do traba- Iho foi alvo de uma reviravolta. O trabalho deixa de set uma atividade terapéutica (prescrita, orientada, protegida), ou deixa de ser uma forma de simples ocupagio do tempo ocioso, ou, ainda, uma forma de submissio e controle institucional pata se tornat uma estratégia de cidadania, de autonomia e de emanci- acio social. Atualmente existem muitas iniciatvas de inclusio pelo trabalho ¢ geragio de renda, E neste sentido que, também no Brasil, foi aprovada a Lei 9.867, de 11 de novembro de 1999, que instituiu as cooperativas, sociais “constituldas com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado econémico, por meio do trabalho” e que “se fandamentam no interesse geral da comunidade em pro- ‘mover a pessoa humana ¢ a integragio social dos cidadios” e, muito embora tivesse nascido no ambito do movimento social da saiide mental e reforma psiquidtrica, ampliou o leque de be- neficidrios da lei. : Em Sio Paulo, existe uma experiéncia,iniciada nos primeitos anos da década de 90, que ainda hoje tem uma grande expressio por sua originalidade. Trata-se dos Centros de Convivéncia ¢ Cooperativas (Ceeco), que possibilitam espagos de socabilidade, de redes sociais de solidariedade ¢ encontros entre sujeitos dle diversas origens ¢ condigdes sociais e culturais. Os Ceccos nos ensinaram que a cidade é repleta de recursos e que basta um projeto e vontade para encontré-los SAGDE MENTAL E SAUDE DA FAMILIA Uma das areas mais promissoras é esta da satide mental na satide da familia. A Estratégia Satide da Familia (ESF) surgiu em 1994 com 0 nome de Programa de Satide da Familia. A equipe hisica da ESF € composta por um médico generalista, um en- fermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatto a seis agentes de saide, estes, devem ser residentes no proprio tertitério de atuagio da equipe. Em alguns casos é incluido um odontélogo. Cada equipe é responsivel pela atengio a cerca de 800 familias, ‘0 que significa em torno de 3.500 pessoas. ‘A.ESE € considerada uma das formas de atengio priméria em satide, que tem como foco a familia ¢ objetiva reverter 0 modelo assistencial predominantemente biomédico, centrado na doenga e no tratamento, E em decorréncia deste objetivo que 0 ‘programa’ foi substituido por ‘estratégia’. Vejamos 0 motivo. Como vimos anteriormente, 0 modelo biomédico termi- ‘nou por constituir um sistema altamente centrado no hospital, € {sto nao apenas no ambito da assisténcia psiquidtrica. A medicina clinica moderna nasceu no hospital e se reproduziu no hospital, ‘Todos nés, profissionais da saiide, somos formados no hospi- tal, fazemos ‘tesidéncia’ (isto é moramos no hospital) e desen- volvemos nossas atividades predominantemente no hospital. Em decorréncia deste modelo, aprendemos a lidar tio somente com [93 od doentes, ou melhor, com as doengas dos doentes, Nao apren- demos a lidar com as pessoas, com as fam! com as ‘comunidades. Enfim, nfo aprendemos a lidar com a sadide, Uma questéo que sempre me intrigou é que, 20 iniciar 0 curso de medicina, a primeira aula que tive foi de anatomia; meu primeieo contato foi com ‘pecas’ de Grgiios de pessoas que haviam falecido, Se ni tomasse a inicativa de me enwolver com projetos comunité- tos, eu s6 comegaria a lidar com pessoas quando jf estivesse no quarto ano da faculdade, 0 que ocorreu com a maioria da turma, Este modelo centrado na doenga ocasionou uma outa carac- teristica: 0 ‘hiperespecialismo’. Cada especialista trata de um tipo apenas de doenca; cm geral, cada um lida com um 36 drgio do corpo humano, Em suma, a medicina levou ao extremo a ideia de que é a arte de curar as doengas, minimizando a ideia de que & também, a arte de prevenir as doengas ¢ de lidar com a saide. A.ESF representa o inicio da possibilidade de reversio desta situagio, investindo na promocio da satide e na defesa da vida, ‘educando a comunidade ¢ desenvolvendo priticas de pensar ¢ lidar com a saiide. Considera-se que em tomo de 80% dos pro~ blemas de sade poderiam ¢ deveriam ser resolvidos no ambito da rede bisica, isto é, com cuidados mais simples (mas nao des- qualificados), sem muitas sofisticagdes tecnol6gicas de diagnds- tico ¢ tratamento. Isso nos remete a uma importante observagio: a atengio bisica em satide também uma estratégia de ‘desmedicaliza- Gio’, ¢ isto pode ser entendido de duan maneiras. A primeira é no sentido desta alta capacidade resolutiva da ESP, que dispensa grande parte dos encaminhamentos para os niveis mais sofistca- dos ¢ complexos de atencio, tas como ambulatétios ¢ outros ser vigos especializados de diagnstico e trtamento (nivel secundétio) —_—-- «hospitals ¢ outras unidades de eratamento e diagnéstico hiper- «specializado (nivel tereidtio), nfo valorizando ou estimulando ‘excessivamente a‘carreira de doente’ na pessoa que vive a expe- sncneia da doenca, |\ segunda se refere a determinadas consequéncias decorrentes cle algnmas intervengdes médicas (e aqui cumpre ressaltar que es- twat me refetindo & medicina e aos seus agentes profissionais teeursos terapéuticos, no apenas aos profissionais médicos). Ha tun certo consenso em considerar que a propria medicina seja capaz de produzit ou agravar as doencas, 0 que ¢ denominado tnurogenia. “Nao causar danos”, proclama um dos principios fun- clamentais de Hiipécrates. Mas 2 aitude invasivae a intermediagio dle interesses oriundos do denominado complexo médico-indus. trial podem acarretar muitos excessos ¢ riscos aos usuarios. No entanto, o termo medicalizagio tem dois significados ¢ pode ser bastante ambiguo. Na tradigéo inspirada em Michel Voucaule (1977a) ¢ Ivan Illich (1975), medicalizagio diz respeito 4 apropriacio, por parte da medicina, de tudo aquilo que ato «la orem exclusivamente médica, ou predominantemente mé- dlica. Ou seja, diz respcito @ possibilidade de tornar ‘médico’ suguilo que & da ordem do social ou econdmico ou politico, como ppor exemplo, uma situacio de violncia social na qual as pessoas {que sio objeto da violencia sio medicalizadas. Em outras pala- \1as, o termo esti relacionado & possibilidade de fazer com que ss pessoas sintam que os seus problemas sio problemas de sai dle e nfo proprios da vida humana, Por exemplo, uma grande tristeza apés a perda de um familiar que, ao set ‘medicalizada’, torna-se uma ‘deprtessio’; e a pessoa, um ‘paciente deprimido’, © outo significado do termo, que geralmente € consequén- cia do processo anterior, é a utilizagio de medicamentos para 961 responder a situagao que é entendida como patologica. O mais correto, pelo menos para efeito didético, seria denominar esta segunda possibilidade de ‘farmacologizacio’ ou ‘medicamen- talizacio’, para diferenci-la da medicalizagio como vimos an- teriormente. ‘Mas, retomando a discussio, um dos prinefpios da saiide ‘mental na sate da familia é exatamente o principio da desme- dicalizacio, no sentido de nio se apropriar de todos os problemas de uma comunidade como sendo problemas médico-sanititios. Na concepgio de Lancetti (2006), & no mbito da satide da fa- milia que podemos alcancar a radicalidade da desinstitucionali- zagio. Para tanto, as equipes de sate da familia devem set bem treinadas na concep¢io mais geral da reforma psiquidtrica da reforma sanititia, entendendo ambas como processos sociais ‘complexos que visam tanto a melhoria da assisténcia médica, ‘quanto a promogao da sade e construgio de consciéncia sani- téria nas comunidades. ‘Além de um bom treinamento, é importante que as equipes recebam ‘apoio matricial’ para conduzir 0s casos de satide men- tal de forma mais adequada. Para Campos (1999), 0 apoio ma- tricial tem como objetivo propiciar retaguarda as equipes que atendem as familias. Os profissionais da satide mental devem oferecer 0 apoio matricial is equipes de saide da familia, contri- buindo para que estas consigam 0 maximo de sucesso em suas intervengdes, sem a necessidade de encaminhar as pessoas aos niveis mais complexos de recursos. Lancetti (2006) observa também que, no caso da satide mental ‘no contexto da satide da familia, a ideia de complexidade € in- vertida. O que isto significa? No caso da medicina em geral, a complexidade caminha da rede basica (intervengSes mais sim- plficadas) no sentido dos servigos terciérios (com recursos mais, sofisticados e especializados). No caso da saide mental, a com- plexidade é invertida: no nivel tercidtio (hospitalar) as respostas, sio padronizadas, massificadas, clementares: medicagdes sedati- ‘vas, contengdes a0 leito, isolamento ete. No nivel primério, da rede bisica, é que as ages devem ser mais complexas: lidar com « familia, com as pessoas em ctise, com a vizinhanga, com os totes sociais no territério em que vivem, to

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