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Flavia Gaze Bonfim

Organizadora

LEITURAS PSICANALÍTICAS
SOBRE OS DESAFIOS DA
ATUALIDADE
AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram avaliados por pares e indicados para publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

L547 Leituras psicanalíticas sobre os desafios da atualidade


1.ed. [livro eletrônico] / organizadora Flavia Gaze Bonfim. –
Curitiba-PR: Editora Bagai, 2022. 313 p.
E-Book

Bibliografia.
ISBN: 978-65-5368-052-4

1. Psicanálise clínica. I. Bonfim, Flavia Gaze.



04-2022/09 CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático:


1. Psicanálise clínica: Psicologia 150.195

https://doi.org/10.37008/978-65-5368-052-4.06.04.22
R

ISBN 978-65-5368-052-4

9 786553 680524 >

Este livro foi composto pela Editora Bagai.

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Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT
Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS
Flavia Gaze Bonfim
organizadora

LEITURAS PSICANALÍTICAS SOBRE


OS DESAFIOS DA ATUALIDADE
SUMÁRIO
PARTE I – PANDEMIA, LUTO E ANGÚSTIA
SOBRE AQUILO QUE EM MIM, EU MESMO DESCONHEÇO: A DIREÇÃO DO
TRATAMENTO ANALÍTICO FRENTE AO REAL DA PANDEMIA........................ 11
Fernanda Louzada Sampaio | Simone Ravizzini | Talita Baldin

NOTAS SOBRE O LUTO EM FREUD E LACAN................................................... 26


Flavia Gaze Bonfim

O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E PÂNICO


NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19................................................. 38
Ana Beatriz Ferreira de Souza | Talita Baldin

A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: LUTOS


E PERDAS NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO................................................... 52
Lidiane Bernardo Gomes | Francisco Francinete Leite Junior

SE ESSA RUA FOSSE MINHA: DO LUGAR DE OBJETO À TRILHA DO DESEJO.... 67


Ana Carolina Nunes Vianna | Simone Ravizzini | Ana Lúcia C. Garcia de Freitas

LUTO: ASSUNTO DE FAMÍLIA OU DE DOMÍNIO PÚBLICO?............................. 81


Danuza Effegem de Souza | Giselle Falbo Kosovski

IMPACTOS DA GESTÃO NEOLIBERAL NA PANDEMIA DE COVID-19: O TESTEMUNHO


MELANCÓLICO DO SUJEITO NEOLIBERAL.................................................... 96
Flávia Laís Machado Moura | Claudia Henschel de Lima | Lilian Faustino da Cruz |
David Miqueias de Oliveira Costa

PARTE II – CAPITALISMO, RACISMO E CLÍNICA


A ARTE DE UM BOM VENDEDOR ESTÁ EM VENDER... A FELICIDADE........... 112
Pâmela Mizurini | Paulo Eduardo Viana Vidal

CONSUMO E MÍDIAS DIGITAIS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: CONTRIBUIÇÕES


DA PSICANÁLISE......................................................................................... 123
Camila de Paula Caldeira | Simone Ravizzini

FUTURO DE MERCADOS COMUNS: EFICÁCIA E DOCILIDADE..................... 138


Marcos Vinicius Brunhari

DISCURSO DO CAPITALISTA, SEGREGAÇÃO E RACISMO............................. 149


Flavia Gaze Bonfim

A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO DO ANALISTA À LUZ DE FRAGMENTOS


DE UM CASO CLÍNICO................................................................................. 164
Rogério Paes Henriques
O RACISMO E A RECUSA DA TRANSFERÊNCIA: RESISTÊNCIAS DO
PSICANALISTA............................................................................................ 175
Mariana Mollica da Costa Ribeiro | Fabio Santos Bispo

PARTE III – PSICANÁLISE, POLÍTICA E MÍDIAS SOCIAIS


SOBRE O TECNOPOPULISMO E A “SERVIDÃO APAIXONADA”........................ 191
Raul Max Lucas da Costa

UMA LEITURA PSICANALÍTICA SOBRE PÓS-VERDADE................................ 201


Alexandre Dias Rosa Torres | Maycon Rodrigo da Silveira Torres | Paula de Oliveira Santarossa

PARTE IV – GÊNERO, SEXUALIDADE E SEXUAÇÃO


A SEXUALIDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS: NOTAS SOBRE O GOZO
E O AMOR.................................................................................................... 217
Renata Sales Martins | Luciana Ribeiro Marques

ADOLESCÊNCIA, INTERSEXO E SEXUAÇÃO. QUESTÕES QUE SE COLOCAM À


PSICANÁLISE.............................................................................................. 233
Heloene Ferreira da Silva | Sonia Alberti

MASCULINIDADE E FEMINILIDADE COMO MODOS DE GOZO: SEXUAÇÃO,


DIFERENÇA SEXUAL E MAIS ALÉM.............................................................. 244
Vinícius Moreira Lima

A INDIVIDUALIZAÇÃO DO RITO NA ERA DO OUTRO QUE NÃO EXISTE EM UM


CARTAZ DE SITE PORNOGRÁFICO............................................................. 261
Hugo Bento

ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E FEMINISMO: REFLEXÕES SOBRE A DOMINAÇÃO


MASCULINA A PARTIR DE TEXTOS FREUDIANOS........................................ 270
Bárbara Breder Machado

PARTE V – A CLÍNICA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES


MAUS HÁBITOS: SINTOMAS ALIMENTARES NO CORPO EM CENA................. 286
Carolina Carvalho Dutra | Bianca Bulcão Lucena

NOTAS SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA DA OBESIDADE: O CORPO GORDO,


O GOZO E O FEMININO............................................................................... 296
Daiana Macharet Soares | Maycon Rodrigo da Silveira Torres | Júlia Reis da Silva Mendonça

SOBRE A ORGANIZADORA.......................................................................... 310


ÍNDICE REMISSIVO..................................................................................... 311
APRESENTAÇÃO

As teorizações psicanalíticas se propõem realizar uma leitura


sobre a constituição do sujeito, seu desejo e seus modos de sofrimento.
O sujeito, imerso na linguagem e constituído por meio do discurso do
Outro, sempre se encontra atravessado pelas questões do seu tempo
e pelas formas de laço social – o que leva os psicanalistas a se defron-
tarem com desafios específicos em cada época. Em resposta a esses
desafios, este livro representa um esforço de elaboração teórica sobre
a subjetividade de nosso tempo, compondo cinco eixos temáticos:
O primeiro deles é Pandemia, luto e angústia. Fernanda Lou-
zada Sampaio, Simone Ravizzini e Talita Baldin, em Sobre aquilo que
em mim, eu mesmo desconheço: a direção do tratamento analítico frente ao
real da pandemia, indicam as possibilidades da psicanálise operar com
esse real, destacando o que há de mais radical na clínica: a “ousadia
de inventar... apesar do absurdo.” Já no segundo capítulo, intitulado
Notas sobre o luto em Freud e Lacan, eu trago a minha contribuição
ao fomentar uma discussão que acompanhe uma clínica em tempos
pandêmicos, onde a experiência do luto passou a ser um tema tão
recorrente entre os pacientes. O capítulo seguinte, O olhar da psicaná-
lise para os transtornos de ansiedade e pânico no contexto da pandemia de
COVID-19, das autoras Ana Beatriz Ferreira de Souza e Talita Baldin,
busca refletir sobre estes transtornos recorrendo à noção de angústia
e desamparo, além de propor uma direção de tratamento que vá além
da classificação dos manuais de DSM.
Dedicando-se a pensar sobre os efeitos da pandemia sobre
as crianças, o texto A clínica psicanalítica com crianças em tempos de
pandemia: lutos e perdas na constituição do sujeito, de Lidiane Bernardo
Gomes e Francisco Francinete Leite Junior, apresenta uma perspectiva
winnicottiana e kleiniana sobre os efeitos das várias perdas e lutos
vivenciados nesse período, que não se esgotam no confronto com a
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morte. Já Ana Carolina Nunes Vianna, Simone Ravizzini e Ana Lúcia
C. Garcia de Freitas, em Se essa rua fosse minha: do lugar de objeto à
trilha do desejo, discutem sobre os problemas vividos pelas crianças e
sua possibilidade de estar no laço social, propriamente na escola, após
a impactante experiência de isolamento social na pandemia.
Os capítulos que se seguem refletem sobre o aspecto político da
pandemia. Em Luto: assunto de família ou de domínio público?, Danuza
Effegem de Souza e Giselle Falbo Kosovski apresentam a dimensão
pública do luto, lembrando que no centro do debate político sobre a
morte também operam as relações de poder. Já o capítulo Impactos da
gestão neoliberal na pandemia de COVID-19: o testemunho melancólico do
sujeito neoliberal, proposto por Flávia Laís Machado Moura, Claudia
Henschel de Lima, Lilian Faustino da Cruz e David Miqueias de
Oliveira Costa, traz a hipótese de que o “neoliberalismo constitui uma
racionalidade cujo pathos é a melancolização”, bem como problematiza
que a defesa da liberdade acima da saúde da população teve impacto
sobre o manejo das ações humanitárias na pandemia.
O segundo eixo temático é Capitalismo, racismo e clínica.
O texto que abre esse ciclo é A arte de um bom vendedor está em ven-
der... a felicidade, de Pâmela Mizurini e Paulo Eduardo Viana Vidal.
Nele, os autores discutem como o capitalismo conseguiu aprisionar a
lógica do desejo a partir da oferta massificada de objetos de consumo,
prometendo o alcance da felicidade. Seguindo essa linha, Camila de
Paula Caldeira e Simone Ravizzini, em Consumo e mídias digitais no
mundo contemporâneo: contribuições da psicanálise, tratam dos efeitos do
capitalismo sobre o sujeito, que se reflete, inclusive, no uso das mídias
sociais, onde não há espaço para falta e para o desejo.
Marcos Vinicius Brunhari, no capítulo seguinte: Futuro de mer-
cados comuns: eficácia e docilidade, apresenta o problema da segregação
atrelado ao neoliberalismo, extraindo que as massas humanas univer-
salizam a empresa-de-si como agente eficaz e dócil, cuja consequência é
rechaço da singularidade. Em seguida, eu apresento outra contribuição:
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Discurso do capitalista, segregação e racismo, no qual busco abordar a
relação entre essas três noções, interpretando o ensino lacaniano de
forma geopoliticamente demarcada a partir de coordenadas decoloniais.
Ainda sobre a temática do racismo, mas sob o viés da clínica,
Rogério Paes Henriques, em A segregação e seu furo: o discurso do ana-
lista à luz de fragmentos de um caso clínico, aponta como o discurso do
analista pode fazer furo ao possibilitar advir um saber próprio do
sujeito e promover uma substituição do “universalismo pelas soluções
singulares.” Encerrando esse eixo, Mariana Mollica da Costa Ribeiro
e Fabio Santos Bispo, em O racismo e a recusa da transferência: resis-
tências do psicanalista, discutem como as relações raciais comparecem
nos fenômenos transferenciais, indicando a necessidade dos analistas
brancos se interrogarem sobre sua própria denegação e resistência de
levar em conta os efeitos do racismo em uma experiência analítica.
O terceiro eixo temático versa sobre Psicanálise, política e
mídias sociais. Raul Max Lucas da Costa, no texto Sobre o tecnopopu-
lismo e a “servidão apaixonada”, discute sobre a posição de servidão na
relação entre as massas e os líderes populistas de extrema-direita, no
qual as mídias digitais tiveram um papel crucial nas últimas eleições.
Compondo essa discussão, Alexandre Dias Rosa Torres, Maycon
Rodrigo da Silveira Torres e Paula de Oliveira Santarossa, em Uma
leitura psicanalítica sobre pós-verdade, abordam o tema da pós-verdade
e do uso da fake news como instrumento político de manipulação das
massas, cuja consequência é a ameaça do regime democrático.
O quarto eixo é Gênero, Sexualidade e Sexuação. Com o texto
A sexualidade e suas manifestações clínicas: notas sobre o gozo e o amor,
Renata Sales Martins e Luciana Ribeiro Marques trabalham o tema
da toxicomania e do mal-estar nas parcerias amorosas, tecendo arti-
culações entre a sexualidade, o gozo e o amor. No capítulo seguinte
Adolescência, intersexo e sexuação. Questões que se colocam à psicanálise,
Heloene Ferreira da Silva e Sonia Alberti refletem sobre a sexuação
dos sujeitos intersexo e os impasses que atravessam uma clinica feita na
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modalidade multidisciplinar. Já em Sexuação, diferença sexual e mais além,
Vinícius Moreira Lima aborda a dimensão subversiva da psicanálise
para analisar os trânsitos de masculinidade e feminilidade indo mais
além de sua redução normativa à cisgeneridade e à heterossexualidade.
Finalizando esse eixo, Hugo Bento, em A individualização do rito
na era do Outro que não existe em um cartaz de site pornográfico, procura
pensar o uso da pornografia na internet articulada a era do Outro que
não existe, para assim indicar a transformação dos ritos de passagem.
Em seguida, Bárbara Breder Machado, com o trabalho Ensaio sobre
psicanálise e feminismo: reflexões sobre a dominação masculina a partir de
textos freudianos, problematiza o lugar de subalternização das mulheres
oferecido pela lógica patriarcal e capitalista, sinalizando, com isso, seus
efeitos sobre a subjetividade feminina.
O quinto e último eixo tem como tema: A clínica dos trans-
tornos alimentares. Com o texto “Maus hábitos”: sintomas alimentares
no corpo em cena, Carolina Carvalho Dutra e Bianca Bulcão Lucena
trabalham a partir de um filme os impasses do sujeito com o corpo,
a comida, a demanda do Outro e as imposições culturais. Já Daiana
Macharet Soares, Maycon Rodrigo da Silveira Torres e Júlia Reis da
Silva Mendonça, em Notas sobre a clínica psicanalítica da obesidade:
o corpo gordo, o gozo e o feminino, abordam a questão da obesidade,
levando em conta a separação do Outro, a dimensão do gozo e, no
caso das mulheres, a feminilidade.
Assim, essa obra se encerra com uma coletânea diversificada de
vinte e dois capítulos reunidos em torno de única proposta: colocar a
psicanálise na pólis. Meu profundo agradecimento às autoras e aos autores
por terem aderido a esse projeto! Desejo, então, que esse livro – como uma
carta – encontre seu destino: a leitora, o leitor. E que estes se permitam
contagiar por uma psicanálise implicada com as questões sociais, polí-
ticas e econômicas, justamente por entender seus efeitos sobre o sujeito.
Boa leitura!
Flavia Bonfim (Organizadora)
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SOBRE AQUILO QUE EM MIM, EU
MESMO DESCONHEÇO: A DIREÇÃO DO
TRATAMENTO ANALÍTICO FRENTE AO
REAL DA PANDEMIA

Fernanda Louzada Sampaio1


Simone Ravizzini2
Talita Baldin3

INTRODUÇÃO

O enfrentamento da pandemia de Covid-19 trouxe consigo um


tempo de desafio e ressignificação. Tempo caracterizado por tenta-
tivas muito particulares de apreensão da nova lógica de vida instau-
rada, assim também como busca incessante por alternativas possíveis
para sua travessia. Tomando tal acepção como ponto disparador,
este estudo tem por objetivo discutir a possibilidade de operação da
clínica psicanalítica diante do sofrimento, tão vividamente sentido
no contexto da pandemia, causado pelo encontro com um Real trau-
mático, delineado pelo não saber dizer sobre isso que se apresenta de
forma perturbadora e definitiva.
Cabe-nos indagar como essa experiência, sem precedentes para
as últimas gerações, pode ser balizada pelo discurso analítico e sua
proposta clínica, que aponta para uma direção de tratamento onde
o conceito de Real e sua operação se fazem imprescindíveis. Como
operar clinicamente com o Real que nos toma de arroubo e nos coloca
em situação de tamanho desamparo, tamanha angústia?

1
Especialização em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade (UNILASALLE). Psicanalista.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9770-8990
2
Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo
Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079
3
Doutorado em Psicologia (UFF). Docente. Psicanalista. Membro do Coletivo Entrelinhas da Psicanálise.
CV: http://lattes.cnpq.br/9656843819889888
11
Leituras Psicanalíticas

SOBRE O SUJEITO EM QUESTÃO PARA A


PSICANÁLISE

Atravessar a pandemia de Covid-19 significou experimentar


um tempo de desafios, no qual cada sujeito se viu confrontado a bus-
car alternativas para ressignificar seu discurso e seu lugar no mundo,
diante da nova lógica de vida que se apresentava. Fomos tomados
pela perplexidade, pelo estranhamento, pelo luto, pela percepção
inquietante de uma nova vida que se impunha inclemente. Vida que
fazia sua marca em cada sujeito de forma particular, única, sentida
naquilo que toca, a cada um, de maneira mais íntima e revela a fra-
gilidade e escassez de recursos simbólicos diante das contingências
extremas impostas pela nova realidade.
Trata-se, aqui, do conceito de Real construído por Lacan, um
Real distinto da realidade observável e chancelado por ser desprovido
de sentido, não correspondendo a nenhum querer dizer. Como des-
crito em dissertação conhecida como A Terceira, para Lacan (1974,
p. 5), “o real, justamente, é o que não caminha, é o que atravessa o
caminho dessa carruagem, bem mais do que isso, o que não cessa de
se repetir para entravar essa marcha. Eu disse isso antes: é o que volta
sempre ao mesmo lugar”. Mas, se a clínica opera pela palavra, como
trabalhar com esse Real clinicamente?
No período de enfrentamento da pandemia, observamos um
aumento expressivo no número de atendimentos em psicanálise, psico-
logia e psiquiatria. Destaca-se dos discursos dos pacientes, o sofrimento
trazido por inúmeras limitações físicas e emocionais, lutos precoces,
ausência de despedidas, queixas de ansiedade e muita angústia. Angústia
que tomou lugar na fala de muitos pacientes e que tem sua verdadeira
substância em ser “aquilo que não engana” (LACAN, 1962-3/2005, p.
88). Não engana porque nos coloca diante do sem- palavras do Real,
que aponta para a impossibilidade estrutural do sujeito em fazer-se
expressar totalmente pelas representações.

12
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Para tratar disso que nos escapa, faz-se necessário estabele-


cer sobre que sujeito estamos falando. Isto é, compreender a torção
estabelecida pela descoberta analítica sobre o próprio conceito de
sujeito, que marca uma diferença radical para com as demais teo-
rias científicas ou mesmo psicológicas, na medida em que afirma
a existência de uma economia psíquica fundada pelo conceito de
inconsciente. Inconsciente, este,
[...] cuja verdadeira função é estar em relação profunda,
inicial, inaugural, com a do conceito de Unbergiff - ou
de Begriff do Un original, isto é, o corte. Esse corte,
eu o liguei profundamente a função do sujeito como
tal, do sujeito em sua relação constituinte ao próprio
significante (LACAN, 1964/1988, p. 46).

Vejamos a elaboração do conceito de sujeito e sua constituição,


ao longo da própria história de construção da experiência analítica.
A observação cautelosa de Freud, desde o início de seus trabalhos
com Charcot, em 1885, nos revela que o sujeito em questão para a
Psicanálise é subjetivo. Freud, em sua escuta, vai além. Compreende
não ser este o ponto fundamental para o entendimento dos proces-
sos psíquicos envolvidos na formação das neuroses. Pelo contrário,
esse sujeito da razão da ciência, essa porção não observável e com-
prometida pelos afetos, isso não só o interessava, como teria lugar
privilegiado em sua aposta clínica.
Em sua experiência pioneira na Salpêtrière, Freud escuta que,
na histeria, as mulheres falavam para além do que estava disposto
nos discursos científicos. Elas falavam através de seus corpos, de
suas contraturas e sintomas apontando para uma lógica de funcio-
namento daquele sujeito com seu modo de estar no mundo, com sua
sexualidade. As histéricas pediam espaço para a fala, num movimento
que, mais tarde, revelaria esse lugar privilegiado como via de acesso
à experiência do inconsciente. Uma descoberta que, segundo Freud
nos declara, traz à megalomania humana “seu terceiro golpe, o mais
13
Leituras Psicanalíticas

violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que pro-


cura provar ao ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria
casa” (FREUD, 1917/1969, p. 336).
Segundo Dor (1994), essa investigação do inconsciente como
fundador da economia psíquica acarreta um embaraço técnico ine-
vitável para Freud, pois ao buscar estabelecer algo que se propusesse
como diagnóstico nesse campo subjetivo, assim também como para
manejar a técnica adequada diante do que se apresentava no discurso
de seus pacientes, teria que abandonar tudo aquilo que, até então, bem
caracterizava o ato médico: causalidade entre sintoma e diagnóstico,
observação direta, classificação, prognóstico e etc. Tudo isso se fazia
inoperante para o que se descortinava com a clínica analítica, visto
que o que emergia do discurso do sujeito tomava proporção para além
de uma lógica moral ou biológica. O que emergia do discurso dos
pacientes apontava para algo de uma enunciação para além do dito,
algo que para o próprio paciente se apresentava como surpresa, ao que
o analista precisaria também responder de um lugar diferenciado da
postura e intencionalidade médica.
Desde em seus artigos sobre a técnica, Freud (1912/1969) adverte
os futuros analistas quanto à especificidade da lógica de funcionamento
da psicanálise e seu sujeito em questão. Reforça a importância do
posicionamento ético do analista e direciona várias recomendações
sobre o manejo clínico, marcando de forma definitiva a diferença
entre o trato médico e a singularidade da construção em análise. Esses
artigos iniciais refletem seu desejo não somente de conceituação dos
conteúdos que se apresentavam a sua escuta, mas também de uma
certa forma de organização operacional deste manejo fino e singular
para com o campo do inconsciente, onde o sujeito se apresentava a
partir de sua fala, em transferência, não estando isento daquilo que
produz nas entrelinhas do que diz. Freud, percebe a implicação do
sujeito em seu sintoma, sua participação em seu próprio mal-estar,
fazendo-o confrontar-se com seu não saber e estabelecendo a ideia
14
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de um posicionamento subjetivo na construção neurótica, mesmo


que disso não se queira saber ou não se consiga representação direta
e completa (FREUD, 1912/1969).
Esse estranhamento de posição ética da psicanálise em relação
ao arranjo proposto pelo campo da saúde mental também é trabalhado
por Miller (1999/2010) no texto Saúde Mental e Ordem Pública, onde
se apresenta como pano de fundo a ideia da não existência, para o
sujeito da psicanálise, de uma essência de correspondência natural que
opere numa dinâmica de funcionamento pré-estabelecida. Um sujeito
do desenvolvimento, da ordem pública, que pressupõe um possível
equilíbrio físico, mental e social, o encontramos na abordagem das
ciências naturais ou nas vertentes da psicologia do ego pós-freudianas.
Mas não é esse o sujeito em questão para a psicanálise, considerando
aquilo que se apresenta de mais genuíno no trabalho de Freud, a saber,
a operação do campo inconsciente. Operação que, segundo nos recorda
Miller (1999/2010), Lacan (1964/1988) relaciona diretamente com
a divisão subjetiva produzida no sujeito a partir da ação perturbadora
da linguagem. Para Lacan (1964/1988), somos sujeitos divididos em
nossa própria condição de existir, a partir do corte que se opera ao
falante, quanto da nossa inserção no campo simbólico:
Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura
se funda no que primeiro chamei de função do corte, e
que se articula agora, no desenvolvimento de meu dis-
curso, como função topológica da borda… A psicanálise,
então, nos lembra que os fatos da psicologia humana
não se poderiam conceber na ausência da função do
sujeito definido como efeito do significante (LACAN,
1964/1988, p. 196).

Assim, ao falarmos do que está em jogo no trabalho analítico,


para além de sintomas observáveis e classificações antecipadas sobre
um sujeito uniformemente construído por um saber médico, trata-se
da enunciação daquele que fala a partir de sua falta, endereçando ao
analista suas demandas, sua impossibilidade, aquilo que o provoca
15
Leituras Psicanalíticas

e o faz operar. Institui-se, na relação transferencial, um compro-


misso com o para além do dito, para além dos significantes que fazem
parte da história daquele sujeito que não se representa completa-
mente, pois sempre algo lhe escapa.

O REAL NA CLÍNICA ANALÍTICA

Apesar da tríade R-S-I (Real, Simbólico, Imaginário) somente


ser formalizada por Lacan na década de 1970, em seu O Seminário -
Livro 22: R.S.I (LACAN, 1974-5), a clínica do Real parece germinar
durante todo o percurso de construção da teoria psicanalítica. Embora
este seja um conceito originalmente lacaniano, em Freud, uma certa
face de real se faz presente desde o seu Projeto para uma Psicologia
Científica, em 1895. Esse algo da ordem do impossível persiste em sua
escuta, e perpassa conceitos como o desamparo primordial, em 1895;
a imposição traumática da operação do complexo de Édipo e suas
consequências para a vida sexual do sujeito, em 1901-1905; a pulsão
de morte que aponta para um mais além do princípio do prazer, em
1920; até um de seus últimos trabalhos, o texto Análise Terminável e
Interminável (FREUD, 1937/1969), onde se questiona sobre a pos-
sibilidade de cura e o final de uma análise.
A formalização do registro do Real na obra lacaniana, da mesma
forma, se faz de maneira gradual e não excludente, num percurso
que vai do entendimento do Real como resto simbólico ao Real que
acomete o corpo; um Real impossível (LACAN, 1974-75). Num
primeiro momento de seu trabalho, Lacan (1957/1998), se apropria
daquilo que, em Freud, se apresentava como inconsciente a partir da
fala, numa dinâmica onde a não representação se expunha como resto
não simbolizado. Revela-se, aqui, o campo do Real como limite de
simbolização ou, dito de outra forma, como resto simbólico. Partamos
do começo. Inconsciente e linguagem.
Lacan (1957/1998) inaugura, na década de 1950, a ideia de um
privilégio da função do registro simbólico na constituição do sujeito,
16
Flavia Gaze Bonfim (org.)

apontando que se refere a “toda a estrutura da linguagem que a expe-


riência psicanalítica descobre no inconsciente” (LACAN, 1957/1998,
p. 496). Em seu empenho de ratificação da invenção freudiana, quanto
ao que de mais original lhe pertencia, Lacan recorre ao campo de estu-
dos da linguística, na tentativa de contornar com maior consistência
a ideia, já presente em Freud, de um aparelho psíquico estruturado
como um aparelho de linguagem.
As consequências dessa interlocução com a linguística são abor-
dadas por Jorge (2008). Subvertendo a dialética de entendimento
linguístico em Saussure, onde um signo é resultado da associação
de um determinado conceito/significado com uma imagem acús-
tica/significante, Lacan dá um passo à frente e inclui o sujeito na
experiência do signo, fazendo uma torção onde o significante ganha
primazia sobre o significado. Dessa forma, se para Saussure, a barra
no signo linguístico fazia laço, possibilitando o surgimento do sen-
tido, para Lacan essa mesma barra expressa nada menos do que a
resistência à significação, trazendo como consequência a polissemia
do significante, ou seja, a multiplicidade de sentidos que um mesmo
significante pode adquirir ( JORGE, 2008).
O que Lacan destaca é o modo pelo qual o inconsciente
opera, como Freud já pudera salientar, seja produzindo
condensações e deslocamentos ao longo das palavras
‘sem levar em conta o significado ou os limites acús-
ticos das sílabas’, seja manifestando ‘realmente uma
preferência por palavras cujo som exprima diferentes
significados’. É digno de nota o fato de que a pesquisa
freudiana sobre o inconsciente o leva a abordar uma
série de fenômenos limítrofes: ora aqueles que até então
haviam sido relegados as abordagens obscurantistas,
como os sonhos; ora aqueles desprovidos de interesse
para o discurso da ciência, como os chistes, os atos
falhos, lapsos de linguagem e esquecimento de nomes;
ora ainda aqueles fenômenos incompreendidos pelo
discurso médico, como os sintomas neuróticos, as alu-
17
Leituras Psicanalíticas

cinações e delírios psicóticos e as chamadas perversões


sexuais ( JORGE, 2008, p. 65).

Podemos dizer, então, que esta releitura freudiana realizada por


Lacan (1957/1998) revela e reforça o estatuto mesmo do inconsciente,
a saber, “que ele não é nem ser nem não ser, mas é algo de não rea-
lizado” (LACAN, 1957/1998, p. 34). Estabelece-se aqui o corte sob
a fala do sujeito e sua experiência, pois marca uma diferença entre o
dizer e o dito, entre enunciado e enunciação. Em A instância da letra
no inconsciente ou a razão desde Freud Lacan (1957/1998) afirma este
sujeito efeito de linguagem, advindo do encontro traumático com
o simbólico, posto em jogo pela barra do recalque que incide sobre
o sujeito, quando da entrada neste campo da fala. É deste encontro
constitutivo com o Outro, que lhe serão oferecidos os significantes
primeiros, com os quais o sujeito irá operar e responder. Este é um
encontro que se faz condição de possibilidade para este sujeito, sendo,
no entanto, faltoso, visto que também algo escapa à simbolização, algo
não se inscreve. Há um resto, o qual sempre diz respeito ao Real.
Em seu O seminário, Livro 7: a ética da psicanálise Lacan (1959-
60/1988) inicia uma virada clínica, marcando um lugar preponderante
para o registro Real tanto na estruturação psíquica quanto para a ética
da psicanálise. No entanto, é a partir de O Seminário, Livro 10: a angús-
tia (LACAN, 1962-63/2005) que a vertente real da clínica analítica
começa a ser privilegiadamente trabalhada por Lacan e encontra sua
formalização sedimentada a partir da conceituação do objeto a como
objeto da angústia. Neste sentido, Lacan (1962-63/2005, p. 89) apre-
senta a angústia como sinal do real, como “aquilo que não engana, o
que está fora de dúvida”, porque traz à tona o que há de mais legítimo
no sujeito, a saber, sua constituição a partir do engodo simbólico, que
aponta o Real para além do dito, diante do qual o sujeito se angustia.
Um real que traz consigo um lugar de não representação pelo sim-
bólico nem pela imagem. Que traz em si esse traço de estranho, de

18
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Unheimlichkeit, que se apresenta na suspensão do desejo do sujeito.


Diz Lacan (1962-63/2005, p. 52):
A Unheimlichkeit é aquilo que se aparece no lugar em
que deveria estar o menos-phi. Aquilo que de tudo
parte, com efeito, é a castração imaginária, porque não
existe, por bons motivos, imagem da falta. Quando
aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me
expressar, a falta vem a faltar.

Num último momento de seu ensino, período que abrange mais


precisamente os Seminários 19 ao 24, Lacan avança numa perspectiva
de trabalho a partir da leitura dos modelos dos nós entre os registros
de estrutura psíquica: Real, Simbólico e Imaginário. Esses registros
que vinham sendo formalizados ao longo de todo o seu trabalho,
aqui, fazem-se entrelaçados numa amarração que abole qualquer
hierarquia entre eles, tendo como ponto de interseção exatamente
o objeto a, deflagrando aquilo que não se inscreve para nenhum dos
três e, exatamente por se encontrar como índice daquilo que não se
captura, opera como causa de desejo.
Em O Seminário, Livro 20: Mais, ainda, Lacan (1972-73/1985,
p. 125) define: “O real só se poderia inscrever por um impasse da
formalização (le réel ne saurait s’inscrire que d’une impasse de la for-
malisation)”. Nessa definição, Lacan (1972-73/1985) nos remete ao
impasse existente no interior mesmo da associação livre, da cadeia
significante, um intervalo que aparece como aquilo que não se pode
representar. Mais que isso, que se impõe repetidamente como furo, no
tropeço do discurso. Trata-se desse campo pulsional que não se cifra,
que não cessa de não comparecer.
Trata-se, portanto, de um real que apesar de estar articulado
no simbólico é diferente dele, que opera a partir de uma intimidade
estranha, uma extimidade, numa dinâmica onde se faz fora, enquanto
dentro e dentro enquanto fora. Trata-se aqui, do que Lacan traduziu
por ex-sistência (LACAN, 1974-75). A ex-sistência traduz esse ponto
19
Leituras Psicanalíticas

de impossível, que se faz impasse, mas ao mesmo tempo condiciona a


própria formalização, impossível que ex-siste como estranho a mim.
Não é o que resta, mas o que não existe, que é impossível se fazer
representar pela cadeia significante, mas que também só nela se cir-
cunscreve e também dela é condição de possibilidade.
Miller (2014), em O Real no século XXI, aborda esse real despro-
vido de sentido, que rompe com a relação de causa efeito tratada pelos
discursos científicos, dizendo que esta relação não cabe no nível de
um Real em desordem, que se apresenta “a partir do choque inicial do
corpo com lalíngua, que constitui um real sem lei, sem regra lógica. A
lógica se introduz somente depois, com a elucubração, com a fantasia,
o sujeito suposto saber e a psicanálise” (MILLER, 2014, s./p.).
Aqui, situamos o aforismo: ‘o real é desprovido de sen-
tido’. Não ter sentido é um critério do real, na medida
em que, quando alguém chega ao fora de sentido é que
se pode pensar que ele saiu das ficções produzidas por
um querer dizer. O sentido lhe escapa. Há doação de
sentido através da elucubração da fantasia… O real,
entendido assim, não é um cosmo, não é um mundo,
nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento siste-
mático porque separado do saber ficcional produzido a
partir desse encontro. E esse encontro de lalíngua e do
corpo não responde a nenhuma lei prévia; é contingente
e sempre perverso (MILLER, 2014, s./p.).

Nesse sentido, evidencia-se da fala de Miller (2014, s./p.), para


quem “o real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real
ao acaso, contingente na medida em que falta a lei natural da relação
entre os sexos. É um furo no saber incluído no real”. Para Lacan, não há
instância superior que nos dê garantia de uma verdade. Lacan (1974, p.
11) expõe: “Digo sempre a verdade. Não toda. Porque dizê-la toda não
se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as pala-
vras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real”.

20
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Esta vem sendo a marca desse tempo, pandêmico. A experiência


de um Real sem freios, que nos traz a realidade de uma verdade incapaz
de garantir o mundo. Uma verdade não toda, como nos diz Lacan,
fraturada, e que nos coloca diante desse real desprovido de sentido,
absolutamente desafiador e nos impele a vivenciar a necessidade de
novos enlaces, de novos começos, aos tropeços…

O REAL NA PANDEMIA: COMO OPERAR?

Estamos numa travessia. O cenário pandêmico nos lançou diante


de uma realidade sem palavras, sem precedentes para as últimas gera-
ções. Um real avassalador, contingente, que nos coloca cara a cara com
nossa impossibilidade quanto ao domínio de nós mesmos, quiçá da
realidade à nossa volta. Nos foi exigido enfrentar a fragilidade da vida
a partir de nossa própria condição de sujeitos divididos, exatamente
aí, onde o Real toma a frente, no hiato da fala, naquilo que em mim
não reconheço, no ponto mesmo onde não posso dizer. O Real, em sua
face mais crua, emerge na precariedade de nosso discurso, no vacilo
de nossa fantasia como suporte simbólico-imaginário. Nesse sentido,
presenciamos desde março de 2020, uma realidade completamente
alheia à equanimidade desejada sobre a vida. Experimentamos, ao
contrário, uma realidade fragmentada, cindida em seu próprio interior,
tal qual nos revela a psicanálise, naquilo em que toca o campo do Real.
Se, como nos revela Lacan (1957/1998), os laços sociais, assim
como a nossa própria constituição, se dão a partir de algo que não se
inscreve, a saber, em torno da impossibilidade estrutural e seu desejo
de tamponá-la, sobre isso, o que vimos despontar na experiência
pandêmica foi a indisfarçável face distópica das relações. O Real
compareceu massivo, trazendo com ele a exigência de ressignificação
desses laços no cotidiano, de novos posicionamentos diante desse
disruptivo aparentemente sem saída.
Christian Dunker (2020) discute aspectos importantes sobre os
efeitos psíquicos envolvidos no enfrentamento do Real da pandemia,
21
Leituras Psicanalíticas

que exigiu que muitos saíssem de um movimento caracterizado por


ocupar-se em tempo integral para deslocar-se ao vazio. Ocupar-se
desse tempo “morto”, tão demonizado no discurso capitalista, que visa,
a qualquer preço, colapsar a castração do sujeito através do imperativo
do gozo, da busca incessante de satisfação. A pandemia nos impôs o
limite, o vazio substancial, como se a vida nos devolvesse à verdade
que tanto gostaríamos de velar. Diz Dunker em sua entrevista:
Se por um lado a saída do fluxo de ocupação nos retira
do sentido, por outro houve quem pudesse perceber
que o vazio não é o horror, que para além da solidão
existe a solitude...Dentro de você mora um vaso. Um
vaso que pode ecoar um pequeno alfinete que ali cai
(DUNKER, 2020).

Muitas foram as perguntas que ecoaram nessa travessia. Quem


é esta pessoa ao meu lado? Isso tudo está mesmo acontecendo? O
que realmente desejo fazer, caso sobreviva? Parece que estamos num
filme. Segundo Dunker (2020) estas foram questões expressivamente
presentes na clínica, a partir das reformulações impostas pela privação
traumática de ordem do mundo. Casais se separaram ou se uniram
impositivamente pelo confinamento, mães perplexas com seus filhos,
especulações financeiras sobre o futuro, violência doméstica, fome, luto,
enfim, tudo parecia compulsório diante de uma rotina onde o hiato,
o intervalo temporário e saudável que naturalmente acontecia numa
rotina de vida anterior, estava suspenso. O que também nos trouxe a
incômoda experiência de privação da intimidade.
Marcações foram retiradas do dia a dia. Não conseguíamos
acompanhar o calendário, ou cumprir tarefas com exatidão de pla-
nejamento. Uma desafiadora suspensão do tempo, onde o olhar, a
voz, o encontro dos corpos que possuem tamanha importância para
a constituição de nossa subjetividade e nossa relação com o mundo,
ficou em posição de fragilidade. Tornou-se necessário investir no
reposicionamento com seus objetos, com as relações desejantes, a fim
22
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de encontrar amarrações possíveis diante do desamparo, da angústia,


do estreitamento no peito que aponta para esse impossível do real.
Para Dunker (2020, entrevista):
Como a espécie humana já enfrentou situações pare-
cidas e como nessas situações se tem um trajeto de
verticalização da tua relação com a existência, você
vai vendo do que você é feito. O que tem aí? Tirando
a funcionalidade, a ocupação, a demanda, a lista que
você tem que resolver, o que sobra? Sobra esse ponto
em que você tem que se confrontar com coisas que
não são bonitas só. É o desespero, é a mesquinhez,
a pequenez, o ódio, as ilusões, as conspirações que a
gente cria… a gente não aguenta a falta de sentido. A
gente vai criando sentidos mórbidos… tem que ter uma
razão, alguém por trás disso, um sentido… É o que
Camus, em A Peste, diz que isso é feito de angústia.
É a vida no Edge. Você olha no abismo e descobre do
que somos feitos.

Sendo assim, se nos encontramos constituídos e organizados a


partir de um não saber estrutural, de um Real que aponta para o não
haver da relação sexual, como nos revela a clínica psicanalítica, como
operar com este Real, se ele é, exatamente, aquilo que resiste ao sentido?
Que caminho clínico a psicanálise poderia oferecer a um sujeito que,
enodado na relação com a sua fantasia produz a tragicomédia humana
fadada à inexatidão, ao não todo, quando de seus modos de inscrição
para a suposta satisfação com a sexualidade?
Num último momento de seu ensino, Lacan (1975-76/2004)
afirma que toda análise levada até seu fim precisa sustentar um ponto
de saber fazer com o seu gozo. Este saber fazer está articulado com o
que descreve como sinthoma. Conceito que instaura a condição de um
gozo possível, considerando a articulação do sujeito com seu desejo
e que, segundo Tudanca (2014), trata-se de uma invenção. Invenção
como resposta do ser de fala ao furo de sua própria estrutura.
23
Leituras Psicanalíticas

CONSIDERAÇÕES

Ao psicanalista cabe, de seu lugar ético, além de sustentá-lo


também acolher a divisão subjetiva naquilo que lhe é mais próprio.
Ao oferecer-se como objeto vazio para o discurso de seu paciente, o
analista dá lugar a este infamiliar, este estranho que nos habita, para
que, a partir daí, do seu lugar de fala, o sujeito busque alternativas de
convivência com isso que lhe determina cindido, faltante, desejante.
O Real não será extirpado, nem o gozo deixará de exercer sua força
operatória, mas o sujeito poderá aprender o que fazer com isso que
o determina e o fixa num certo posicionamento perante o mundo.
Como vai viver a partir disso? A construção é singular. Uma invenção
necessária, diante do que não só está perdido, mas de fato, não existe.
Numa análise, o que está em questão é essa paixão pela verdade
não toda, tal qual se apresenta para a escuta da clínica analítica. Um
amor que, enquanto laço, se enlaça ao sujeito apostando nas palavras,
que vai ao encontro dessa verdade e da tentativa de bordear, nomear
o inominável. A experiência analítica, em sua face de ato poético,
nos transporta pela crueza das experiências de um Real sem lei e a
beleza de se poder, apesar de tudo, sentir o pulso do desejo presente
na intenção corajosa de reconstruir a vida. Linha tênue e efêmera
pertencente ao mais íntimo de cada um de nós, em nossa ousadia de
inventar o que é viver, apesar do absurdo.

REFERÊNCIAS
DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1994.
DUNKER, C. A pandemia no divã. Canal Inconsciente Coletivo, em 1º de abril 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TBGRg8bTwWs&t=121s Acesso em:
08 dez. 2021.
FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. (1912). In: Obras com-
pletas de Sigmund Freud. V. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969.
FREUD, S. Conferência XVIII. Fixação em traumas – O Inconsciente. (1917). In: Obras
completas de Sigmund Freud. V. XVI. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969.
24
Flavia Gaze Bonfim (org.)

FREUD, S. Análise terminável e interminável. (1937). In: Obras completas de Sigmund


Freud. V. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969.
JORGE, M. A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 1: As bases con-
ceituais. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. A instância da letra ou a razão desde Freud. (1957). In: Escritos. Rio de Janeiro:
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LACAN, J. A terceira. In: VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, nos dias 31 de outubro,
1, 2 e 3 de novembro, 1974. Disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2019/04/a-ter-
ceira-jacques-lacan-1974.html Acesso em: 8 dez. 2021.
LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge
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LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.
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LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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MILLER, J. A. Saúde Mental e Ordem Pública. (1999). Curinga, Belo Horizonte, n. 13, 2010.
MILLER, J. A. O real no século XXI. In: IX Congresso da Associação Mundial de Psica-
nálise (AMP), Buenos Aires, 27 de abril de 2014. Disponível em: https://www.wapol.org/
pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=38&intEdicion=13&intI-
diomaPublicacion=9&intArticulo=2493&intIdiomaArticulo=9. Acesso em: 21 nov. 2021.
TUDANCA, L. Sinthoma/Passe. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. (orgs). Um real
para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.

25
NOTAS SOBRE O LUTO EM FREUD E LACAN

Flavia Gaze Bonfim4

A pandemia por COVID-19 nos empurrou para um cenário


desconhecido de adoecimento, desamparo, incerteza e morte, que
associado a uma falta de interesse do parte do Estado em mediar ade-
quadamente tal situação (seja pelo atraso das vacinas, pelas fake news ou
por discursos que impediam uma união coletiva em termos preventivos
contra o coronavírus) produziu efeitos ainda mais catastróficos. São
mais de 620 mil mortos5 – o que nos faz pensar sobre as inúmeras vidas
perdidas e também sobre as vidas que ficaram, mas que precisam agora
enfrentar a perda de uma pessoa amada, um familiar ou várias delas.
É, nesse sentido, que o tema do luto bate à porta dos analistas
– ou à tela, com os tratamentos online. Por outro lado, se esse tema
tem se feito tão presente, constata-se o pouco destaque que ele teve
entre os debates psicanalíticos até então. Sendo assim, o objetivo
deste trabalho é justamente retomar as construções teóricas de Freud
e Lacan a respeito dessa temática de modo a fomentar uma discussão
que acompanhe uma clínica em tempos pandêmicos, onde a experiência
do luto passou a ser um tema tão recorrente entre os pacientes.

PERDA, LUTO E DESEJO

Sem dúvidas, um dos textos mais conhecidos no meio psicana-


lítico sobre a questão da perda é o artigo “Luto e Melancolia”. Nele,
Freud (1996 [1917]) nos fala de uma dor presente na perda – a dor da
separação, a dor do rompimento do laço que se mantinha com o objeto
amado. Uma dor que implicará em um intenso e doloroso trabalho
psíquico, que é o luto. Para Freud, conseguir realizar um luto requer
4
Psicanalista. Doutora em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576
5
Dados colhidos no site do G1. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/coronavirus/noti-
cia/2022/02/02/brasil-registra-946-mortes-por-covid-em-24-horas-media-movel-e-a-maior-desde-
-agosto.ghtml. Acesso em: 02 fev. 2022.
26
Leituras Psicanalíticas

grande dispêndio de tempo e energia catexial. Nesse período, ocorre


uma hipercatexia das representações vinculadas ao objeto perdido de
modo que ele permanece “vivo” no psiquismo. (ibid.) Tal hipercatexia
é verificável a partir de uma espécie de ativação das lembranças que
remetem o objeto perdido, de modo que basta um mínimo detalhe
para que o sujeito as rememore. Como muitos dizem: Tudo faz lembrar!
É, nesse sentido, que podemos compreender a insistência e a
repetição do paciente em falar sobre quem perdeu e o que perdeu, cujo
caráter repetitivo é necessário e intrínseco ao processo de elaboração.
Peça por peça precisa aqui ser colocada em jogo; não para recompor uma
unidade, mas para produzir um esgotamento que leve ao consentimento
de que o objeto não existe mais. Vale ainda dizer que esse processo não é
linear; ele é ao mesmo tempo uma continuidade e uma descontinuidade,
com um aspecto sofrido e longo.
Convém, contudo, sinalizar que o sujeito, ao enfrentar a perda
do objeto amado, não está lidando com uma única perda, mas com
um vazio, que, segundo Marcus André Vieira (2008), é impossível de
se esgotar em uma nomeação, ainda que tal tentativa faça parte do
processo de elaboração do luto. Então, nunca se trata da perda em si
da mãe, do pai, do filho, do companheiro, da esposa... mas do lugar
que o objeto amado tinha para o sujeito e do lugar que o sujeito ima-
ginava ocupar junto a quem perdeu.
Para Freud (1996 [1917]), o trabalho de luto, estaria em reco-
nhecer que o objeto perdido não existe mais, podendo desinvestir desse
objeto, retirando as ligações libidinais com o mesmo para reinvestir
no mundo externo. Romildo Barros (2011) assinala que a explicação
freudiana pressupõe a redução do objeto perdido a um objeto comum,
entre tantos outros, de modo que o investimento que o outrora o
objeto amado tinha, deveria ser destinado a um novo objeto que seria,
portanto, um substituto. Proposição um tanto problemática ao se teo-
rizar em termos de “substituição” – o que leva a Barros a escrever que:
“Seria mais simples pensar que o trabalho de luto busca transformar
27
Flavia Gaze Bonfim (org.)

em um vazio aquilo que surgiu para o sujeito como um buraco no real,


o que possibilitará retomar a série das equivalências eróticas entre os
objetos do mundo.” (2011, p. 234)
Assim, Barros (ibid.) continua essa discussão apontando para
o fato que no trabalho de luto não só o objeto saí do processo trans-
formado, mas o sujeito também. Pois o luto transforma o estatuto da
perda, visto que ele não implica somente em retirar a libido do objeto
perdido, para em seguida direcioná-lo a um outro, mas requer um
trabalho de interpretação do próprio luto e da experiência subjetiva
da perda. É preciso também considerar que tem algo de irrecuperável
no que foi perdido e que o luto implica numa travessia em torno de
um acontecimento que remete à castração.
É digno de nota que a maneira utilizada por Freud para explicar
o processo de luto foi, de acordo com Marcus André Vieira (2008),
através de uma “metáfora energética” de investimento-desinvestimento
de objeto. Lacan, contudo, avança nessa discussão a partir de um
conceito que lhe permitiu uma série de viradas teóricas em seu ensino,
a saber: o objeto pequeno a. Ao falar sobre o luto, em O Seminário,
livro 10 – A angústia (2005 [1962-63]), Lacan aponta que Freud deli-
mitou o trabalho de luto através da tarefa de consumar pela segunda
vez a perda do objeto amado, comportando um “aspecto detalhado,
minucioso, da rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o
objeto amado.” (p. 263) Após apresentar tal característica do processo
de luto em Freud, Lacan segue dizendo que sua visão é idêntica e
contrária ao que podemos encontrar na obra freudiana. Nos termos
lacanianos, o trabalho de tentar manter viva a representação psíquica
do objeto amado, corresponde a uma tentativa de restabelecer a ligação
com o verdadeiro objeto: o objeto causa de desejo.
Assim, através do ensino lacaniano, podemos situar o luto como
um trabalho de se enlaçar novamente com o objeto a – o que levaria o
sujeito a se reposicionar outra vez como desejante. Mais ainda, Lacan

28
Leituras Psicanalíticas

nos ensina a delimitar na função do luto “uma estrutura fundamental


do desejo” (2005 [1962-63], p. 361) Dizendo de outra forma:
Esgotado o trabalho de luto, o objeto freudiano é her-
deiro do objeto perdido, enquanto o objeto lacaniano
[objeto a] é o que restou do apagamento do brilho fálico:
é nesse sentido que se trata de um novo objeto e não de
uma metáfora daquele que foi. Se é para Freud objeto
de investimento, será para Lacan causa de desejo, o que
se dá como mudança de registro e não como simples
sucessão. (BARROS, 2011, p. 235)

A relação entre luto e desejo foi, sobretudo, trabalhada por Lacan


em O Seminário, livro 6 – A ética da psicanálise, ao fazer referência a
Hamlet6, peça de William Shakespeare. Lacan (2016 [1958-59]) toma
Hamlet como uma “tragédia do desejo”, situando que a peça de uma
ponta a outra só se fala de luto. Ele ainda identifica a procrastinação e
a precipitação como uma das dimensões essenciais dessa peça, além dos
inúmeros lutos não realizados, por seus ritos abreviados ou clandestinos.
Sobre a tragédia, a pergunta que Lacan introduz diz respeito ao motivo
que levou Hamlet a não realizar seu ato, mesmo quando a situação lhe
era favorável. Ato este que, segundo Lacan (2005 [1962-1963]), ele
foi feito para praticar. Seu desejo ficou obstruído, inibido, na medida
em que não conseguiu realizar o luto do seu pai e de Ofélia – mulher
que Hamlet não pôde sustentar como sua amada por seus impasses
com o desejo, precisando depreciá-la. Segundo Lacan, Ofélia “tornou
o próprio símbolo do rechaço do seu desejo” (2016 [1958-59], p. 359).
Lacan (ibid.) observa também que o ciúme de Hamlet pelo
luto de Laertes em função da perda de sua irmã, Ofélia, é um dos
pontos mais destacados da tragédia. Hamlet não consegue suportar a
6
A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca narra a história dos impasses do Príncipe Hamlet em
vingar a morte de seu pai. Este foi envenenado por seu irmão Cláudio, que em seguida tomou o trono,
casando-se com a mãe de Hamlet. Em forma de fantasma, o pai de Hamlet aparece para ele e pede
vingança. Como um destino traçado, Hamlet deveria executar seu tio, mas a hesitação de concluir tal ato
a sangue-frio é um dos pontos centrais da peça. A obra é permeada por conflitos de família e questões
morais. Além disso, ela aborda também o tema do amor, da morte, da loucura e do poder, culminando
em uma tragédia que envolve todos os personagens principais da peça.
29
Flavia Gaze Bonfim (org.)

exibição da dor de Laertes. Não estamos habituados a pensar no luto


como podendo ser alvo de ciúme, contudo, no caso de Hamlet, isso
comparece na medida em que realizar um luto adquire intenso valor,
visto que ele comporta as possibilidades desejantes para o sujeito.
Seguindo em sua discussão, Lacan descreve qual seria a experiência
do luto do qual Hamlet é tomado por ciúme.
O sujeito mergulha na vertigem da dor e se encontra
numa certa relação com o objeto desaparecido que, de
certa forma, nos é ilustrada pelo que acontece na cena
do cemitério. Laertes pula na cova e, fora de si, beija
o objeto cujo desaparecimento é a causa dessa dor. É
evidente que o objeto tem, então, uma existência ainda
mais absoluta pelo fato de não corresponder a mais
nada que exista. (ibid., p. 360)

A cena do cemitério nos leva então à função dos ritos fúnebres.


Para Lacan (ibid.), tais ritos desempenham um papel para o processo
de elaboração do luto, na medida em que introduz uma mediação
frente a hiância que se instaurou a partir de uma perda. Aqui, inclu-
sive poderíamos nos perguntar sobre os efeitos nos sujeitos frente às
dificuldades quem tem sido na pandemia realizar esses ritos, tendo
em vista as restrições por medidas sanitárias de isolamento social e
limitação do números de pessoas nos sepultamentos. Essa “mediação”
diante da hiância da perda também sofreu impacto neste período pan-
dêmico – o que caberia analisar suas consequências para cada sujeito.
Ainda sobre o processo de luto, Lacan o situa como “uma satis-
fação dada à desordem que se produz em razão da insuficiência de
todos os elementos significantes em fazer frente ao buraco criado
na existência. É todo o sistema significante que é posto em jogo em
torno do menor luto que seja.” (ibid., p. 361) Nesse sentido, Rangel
(2015) aponta que a perda no real precisa passar pela operação signi-
ficante. Ou seja, pela palavra.

30
Leituras Psicanalíticas

Se com Lacan podemos ressituar a questão do trabalho de luto,


não convém desprezar a precisão de Freud ao enumerar os fenôme-
nos clínicos apresentados pelo sujeito frente a uma perda. Sendo
assim, voltamos mais uma vez a Freud. Ele caracteriza o processo do
luto através de um estado de tristeza, de profundo desânimo, falta
de interesse pelo mundo externo, pela perda da capacidade de amar
(investir em novos objetos), pela inibição por toda e qualquer atividade
e, consequentemente, pelo afastamento da vida normal e habitual
do sujeito. Freud muito bem observa que durante o luto, o mundo
externo torna-se pobre e vazio de modo que só a representação do
objeto amado e perdido é que tem valor. Durante o trabalho de luto,
o eu assume uma posição inibida e limitada, tendo em vista que se
encontra absorvido por esse processo. (FREUD, 1996 [1917])
Reconhecer esses fenômenos apontados por Freud tem como
função nos orientar clinicamente, distanciando-nos da recorrente
confusão entre tristeza e estados depressivos. Seguindo o caminho
de Freud, é possível afirmar que os sinais de entristecimento, angús-
tia, recolhimento em torno de si próprio e apatia dos enlutados não
equivalem a um quadro patológico. Pelo contrário, constitui uma
resposta “natural” ao sofrimento diante da perda sofrida, no qual o
psiquismo se encontra absorvido.
Contrapondo a esse contínuo esforço do psiquismo de elaboração,
a depressão seria a resposta do sujeito que se recusa referenciar-se na
falta e na castração. A linha fronteiriça está em consentir ou não com
a perda. Nesse sentido, Jimenez (1997) propõe que a depressão é o
contrário do luto, na medida em que este é um trabalho espontâneo do
simbólico. Na depressão, lidamos com um luto congelado, eternizado,
pela falta de trabalho de elaboração.
No que se refere à dificuldade de realizar um trabalho de luto, é
preciso levar em conta dois pontos: 1) a relação com a pessoa perdida
e 2) os efeitos de nossa época na produção de subjetividade. Florencia
Dassen (2008) observa que há diferentes graus de dificuldades ao
31
Flavia Gaze Bonfim (org.)

lidar com a perda e consequentemente em se realizar um trabalho de


luto – o que leva a psicanalista a considerar a dimensão implícita no
luto da distância subjetiva quanto ao objeto, visto que tal distância
influenciará a separação deste ao final do processo.
Outro ponto a se considerar é como os sujeitos são afetados
pelas marcas da cultura e de que modo elas produzem impacto na
forma como ele lê e interpreta as experiências da vida. Nesse sentido,
Vera Besset (2007) aponta que nos encontramo em uma cultura que
valoriza a imagem e não o significante, a palavra, onde se promove
a oferta do gozo imediato, sem limites, de modo que a resposta ao
mal-estar do sujeito é mais buscada nos objetos de consumo do que
no convite à renúncia e à elaboração inerente ao trabalho de luto. Não
é a toa que essa precariedade quanto à possibilidade de elaboração se
expressa no crescente número de “depressivos” na contemporaneidade.
Ou seja, é necessário pensar o luto em sua dimensão singular,
mas também articulado as condições de nossa cultura. Esgarçando
ainda mais essa discussão, Carla Rodrigues (2021), seguindo o pen-
samento da filósofa Judith Butler, destaca ainda a necessidade de
pensar o luto em sua dimensão política, no sentido de refletir sobre
o modo como um país, um governo, enfrenta uma perda coletiva ou,
mais atualmente, várias delas. Tomando o caso do Brasil, foi possível
ouvir do presidente Jair Bolsonaro frente às mortes causadas por
COVID-19, frases do tipo: “É uma gripezinha”, “Eu não sou coveiro”
ao ser perguntado sobre o número de mortos; “E daí, quer que eu
faça o que?” quanto questionado sobre o recordes de mortes; “A gente
lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, comentário após
uma apoiadora pedir uma palavra de conforto para as famílias dos
mortos pela COVID-19.7 Ao mesmo tempo, o atual presidente da
República soube oferecer suas condolências publicamente à família do
Olavo Carvalho, ao escrever: “Nos deixa hoje um dos maiores pensadores
da história do nosso país, o Filósofo e Professor Olavo Luiz Pimentel de
7
Fonte extraída do site Poder 360°. Disponível em: https://www.poder360.com.br/
governo/251-mil-mortes-por-covid-relembre-as-falas-de-bolsonaro-sobre-a-pandemia/
32
Leituras Psicanalíticas

Carvalho. [...] Que Deus o receba na sua infinita bondade e misericórdia,


bem como conforte sua família”.8 Além disso, decretou luto oficial. Não
é necessário dar mais exemplos. Eles são suficientes para assinalar que
perante a figura do representante maior do Estado, “nem todos os
mortos têm o mesmo direito de ser enlutados” e “nem todos os vivos
têm o direito de reconhecer seus mortos” (RODRIGUES, 2021, p.
70), tal como podemos extrair da peça Antígona9.
Notadamente, Bolsonaro faz eco para uma questão que nos
assola e ficou evidente na pandemia: o modo como muitas vidas nas
sociedades capitalistas se tornaram elimináveis e desprezadas. Como
sugere Rodrigues (2021), trata-se de pensar para além da categoria
clínica do luto, sua dimensão ético-política, localizando assim o que
enquadra e também mantêm certas vidas como enlutáveis e outras não.
Isso, portanto, nos remete a um debate que coloca em jogo a violência
de Estado e sua política de quem pode ou não morrer, cujo gênero,
raça, classe, moradia e etc. se constituem como marcadores para a
manutenção de determinados sujeitos como vidas precárias. Enfim,
foge ao escopo desse trabalho adentrar mais profundamente nesta
discussão, pois ela é mais ampla do que isso, por outro lado, é impos-
sível não mencioná-la tendo em vista nosso contexto pandêmico atual.

POR UMA DIREÇÃO DE TRATAMENTO EM TEMPO


DE LUTOS

Freud (2015) muito bem destacou que o luto não é um estado


patológico e que por isso não havia necessidade do enlutado se submeter
a um tratamento analítico. Se isso é uma orientação clínica importante,
não raro escutamos pacientes que nos procuram por outras questões,
mas que também colocam em trabalho a necessidade de atravessar
8
Fonte extraída do site Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/poli-
tica/2022/01/25/interna_politica,1339927/bolsonaro-homenageia-olavo-de-carvalho-um-dos-maio-
res-do-pais.shtml
9
Antígona se inscreve na Trilogia Tebana de Sófocles e retoma o drama vivido por Antígona ao ser
impedida por Creonte, representante do Estado, de sepultar seu irmão Polinices, considerado um inimigo
por ter invadido Tebas.
33
Flavia Gaze Bonfim (org.)

um luto – o que nos impõe a pensar sobre a direção de tratamento


nesses casos. Falar em direção do tratamento aqui é apostar em um
processo de elaboração em torno da perda sofrida, da separação do
objeto amado, de modo que o analisando, enganchado pela transfe-
rência, possa ser relançado como desejante. Assumir um processo de
elaboração é, contudo, segundo Freud (1914), sustentar uma “tarefa
árdua” para o analisando e uma “prova de paciência para o analista”.
Por outro lado, garante ele: “trata-se da parte do trabalho que efetua as
maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico
de qualquer tipo de tratamento por sugestão.” (ibid., p. 171)
Angela Bernardes (2003) salienta que a noção de elaboração não
é um conceito de destaque na obra freudiana, entretanto, é a partir
desta noção que Freud delimita propriamente o tratamento psicanalí-
tico enquanto práxis, na medida que por meio dela é possível tratar o
real traumático pelo simbólico, nos termos lacanianos. Nesse sentido,
uma análise constitui-se como uma modalidade de tratamento do
impossível de dizer. (ibid.) Falar, nomear, colocar em palavras o que
exatamente foi perdido revela um impossível, ao mesmo tempo em
que se mostra um trabalho altamente fundamental para os pacientes
que se encontram diante de uma experiência de perda.
De maneira mais radical, Alessandra Rocha (2010) propõe pensar
a análise enquanto um trabalho de luto, tendo em vista que toda análise
se trata da elaboração de uma falta. A psicanalista diz ainda que, de
um modo geral, uma análise se opera enquanto “tempo de elaborar”,
que se situa entre o “instante de ver” (expresso pela angústia ou tristeza
frente a falta, a dor ou a perda) e o “momento de concluir” (que seria
o encontro com a causa de desejo). Nesse sentido, essa característica
inerente à própria experiência analítica – a elaboração da falta – já
comporta em si o que pode ser considerado fundamental no trabalho
do analisando que traz a temática da perda de um objeto amado.
Ao realizar uma discussão terminológica da palavra alemã Dur-
charbeiten – no qual estamos habituados a empregar como “elaboração”
34
Leituras Psicanalíticas

e “trabalho analítico” numa indicação que recolhemos do ensino laca-


niano –, Bernardes (2003) explica que esse termo é bastante empregado
na língua alemã e que seu uso corrente significa “trabalhar sem parar,
trabalhar com esforço físico ou intelectual, trabalhar qualquer coisa a
fundo, até o fim, de um lado a outro, examinar a fundo.” (ibid., p. 38)
Portanto, um trabalho exaustivo, expresso na experiência cotidiana da
análise de voltar ao mesmo ponto no qual está localizado a dificuldade
do paciente, implicando, com isso, ao seu final “uma mudança de posição
do sujeito em relação ao algo do real que não sai do lugar.” (ibid., p. 40)
Para que ocorra essa mudança, é preciso dar tempo ao paciente
– conselho dado por Freud (1914). Com Bernardes (2003), extraí-
mos que o tempo de uma análise vai além do tempo necessário para
o sujeito recordar, preencher as lacunas da memória; “vai além do
tempo necessário para trazer à tona os significantes de sua história.”
(ibid., 65) Um tempo no qual se produz um saber, que se difere do
conhecimento, do saber intelectual, tendo maior relevância o uso
que o sujeito faz desse saber. “Esse tempo para compreender é um
tempo de re-significação, de reposicionamento subjetivo.” (ibid., p.
75) Nesse tempo de compreender, detectamos a ação do simbólico
sobre o real – o real da morte.
Um real que pode em alguns casos fazer romper com a sensação
de estabilidade do sujeito, provocando uma ruptura que escapa à pos-
sibilidade de representação psíquica, um fora-de-sentido. Diante desse
real da morte, aposta-se aqui na psicanálise como uma práxis ética que
pode colaborar para que o sem sentido encontre um lugar na trama
discursiva, promovendo efeitos de elaboração e, consequentemente,
produzindo repercussões no processo de luto.

PARA CONCLUIR...

Com Freud, aprendemos que diante da perda, o psiquismo é


convocado a realizar um penoso trabalho de elaboração do luto. Lacan,
por sua vez, nos ensina a tomá-lo como um novo enlaçamento com o
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Flavia Gaze Bonfim (org.)

objeto a. De qualquer modo, o luto trata-se de um trabalho de fazer


o real passar pela operação significante, pela palavra, promovendo um
“luto de verdade” tal como Lacan reconheceu faltar em Hamlet. Sem
realizá-lo, o sujeito impede que a dimensão desejante reencontre sua
rota, pois o luto é “uma estrutura fundamental do desejo”.
Se admitimos com Freud que a experiência de luto não é motivo
para que uma pessoa empreenda uma análise, por outro lado, é pos-
sível reconhecer que tratamento analítico é um trabalho de luto, que
promove o confronto o sujeito com a castração, ao mesmo tempo que
conduz a uma elaboração, um tempo de compreender, para re-sig-
nificar sua história e favorecer o reposicionamento subjetivo diante
do mal-estar que lhe acomete. Assim, nesse tempo de compreender,
que consiste propriamente o trabalho de luto, a ação do simbólico
incide sobre o real e possibilita que ao seu final, no tempo de concluir,
o sujeito possa se encontrar com a causa de seu desejo – o que nos
casos dos enlutados implica em fazê-los também se encontrar com
sua vida e não somente com a morte.

REFERÊNCIAS
BARROS, Romildo. (2011) Luto. In: Scilicet: A ordem simbólica no século XXI - Associação
Mundial de Psicanálise, Belo Horizonte: Scriptum livros.
BERNARDES, Angela. Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de Janeiro:
Garamond, 2003.
BESSET, Vera. Luto e angústia: questões em torno do objeto. Latin American Journal of
Fundamental Psychopathology on line. São Paulo, v.4, nov. 2007. Disponível em: http://
pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-03582007000200006. Acesso
em: 14 mar. 2018.
DASSEN, Florencia. Luto. In: Scilicet: Os objetos a na experiência analítica – Associação
Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
FREUD. Sigmund. Luto e Melancolia (1917) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Edição standard brasileira, v. XIV. Rio de janeiro: Imago Ed, 1996.
FREUD. Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. Edição standard brasileira, v. XII. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.

36
Leituras Psicanalíticas

JIMENEZ, Stella. Depressão e Melancolia. In: ALMEIDA & MOURA (orgs.) A dor de
existir e suas formas de expressão clínica: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros – Escola
Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 6 – O desejo e sua interpretação. (1958-59), Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10 – A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
RANGEL, Maria. Desejo e luto: uma referência a Hamlet. In: Agente – Revista de Psica-
nálise, n. 10, ano 4, dezembro de 2015. Disponível em: http://www.ebpbahia.com.br/agente/
site/2016/07/14/desejo-e-luto-uma-referencia-a-hamlet/ Acesso em: 10 mar. 2021.
ROCHA, Alessandra. O trabalho de luto enquanto tempo de elaborar. In: Curinga – Belo
Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, v. 30, 2010.
RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero.
Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
VIEIRA, Marcus André. O trauma subjetivo. Psico (PUCRS), v. 39, n. 4. Rio Grande do
Sul, 2008. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/revistapsico/ojs/index.php/
revistapsico/article/view/2045/3842. Acesso em: 14 fev. 2022.

37
O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS
TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E PÂNICO
NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19

Ana Beatriz Ferreira de Souza10


Talita Baldin11

INTRODUÇÃO

Este estudo faz uma reflexão acerca dos transtornos de ansie-


dade e pânico levando em consideração o contexto atual da pan-
demia de COVID-19 e utiliza-se do olhar da psicanálise para a
compreensão de tais fenômenos. A investigação parte do interesse
da primeira autora em investigar o tema em seu trabalho de con-
clusão da graduação em Psicologia, a partir do reconhecimento de
estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2017, que
apresentavam dados indicando o Brasil enquanto o país mais ansioso
do mundo, cujas estatísticas mostraram que cerca de 18,6 milhões
de brasileiros, o que corresponde a 9,3% da população, sofria com
algum transtorno de ansiedade (WHO, 2017).
Sendo estes dados anteriores ao contexto da pandemia, e
com base em publicações recentes na área da psicologia, psiquia-
tria e afins, e na experiência clínica, temos como objetivo inves-
tigar de que forma a psicanálise compreende os sintomas moder-
nos de transtorno de ansiedade e pânico, bem como os possíveis
agravos destes sintomas a partir da pandemia de COVID-19 que
emergiu no país em março de 2020.

Psicóloga (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/8427043089348990


10

Doutorado em Psicologia (UFF). Docente (FAMATH). Atriz. Psicanalista. Membro do Coletivo


11

Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/9656843819889888


38
Leituras Psicanalíticas

DESENVOLVIMENTO

O Dicionário Online de Português descreve o conceito de ansie-


dade como um desconforto físico e psíquico; agonia, aflição, angústia
(DICIO, 2021). Ou seja: algo que produz desconforto e causa sin-
tomas físicos e psíquicos. Esses são conceitos amplamente utilizados
no contexto social, muitas vezes atrelados aos transtornos mentais.
Com a emergência da pandemia mundial de COVID-19, foi possí-
vel observar nos jornais e também nas falas informais como tais sintomas
ganharam maiores contornos, o que nos aponta que não se tratam de
conceitos próprios da psicologia, ou da psiquiatria, mas também apro-
priados pelo senso comum e por isso compreendidos sob diversos olhares.
Do ponto de vista neurobiológico, temos o estudo de Eduardo
Ferreira de Carvalho-Netto (2009) que apresenta a ansiedade e o
medo como estados emocionais correlacionados e considerados nor-
mais na vida dos seres vivos. Para o autor, a ansiedade é uma resposta
desencadeada pelo organismo frente a um perigo apenas potencial,
vago e incerto, algo que ainda não é possível prever. A exemplo cita-
mos situações cotidianas como provas, exigências de metas a cumprir,
entrevistas de emprego, e etc. O medo, por sua vez, surgiria a partir de
situações claras, nas quais o perigo é real e evidente, como sob situação
de ameaça, vivência de uma doença, e etc. Considerado isso, a ansiedade
é um fenômeno que precede a conclusão de algum evento, podendo
ser lida inclusive como um fator positivo, ao nos preparar para o que
está por vir. Assim sendo, uma certa dose de ansiedade impulsionaria
o sujeito à ação e seria considerada “normal”. Mas qual é o limite deste
“normal”? A partir de que momento a ansiedade passa a ser patológica?

O OLHAR DOS MANUAIS DE DIAGNÓSTICO PARA


OS TRANSTORNOS DE ANSIEDADE E DE PÂNICO

Ao fazermos essas perguntas, nos deparamos com um limite da


ansiedade enquanto processo normal e avançamos para um estado con-
39
Leituras Psicanalíticas

siderado patológico, sendo apropriado pela medicina, mas também pelo


contexto social, quando a ansiedade é tomada como um transtorno mental.
Segundo consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM-5), a ansiedade só é considerada um transtorno quando
ultrapassa esse limiar. Conforme o manual, a ansiedade emerge como trans-
torno a partir do momento em que causa prejuízos ao sujeito, tendo uma
duração prolongada dos sintomas e não permitindo que a vida siga o fluxo
considerado esperado, como antes da chegada do transtorno (APA, 2014).
O DSM-5 nomeia a ansiedade como Transtorno de Ansiedade
Generalizada (TAG) e o caracteriza por apresentar sintomas excessivos
e persistentes que vão para além de vivências comuns e em momentos
localizados. Conforme o manual,
As características principais do transtorno de ansiedade
generalizada são ansiedade e preocupação persistentes e
excessivas acerca de vários domínios, incluindo desem-
penho no trabalho e escolar, que o indivíduo encontra
dificuldade em controlar. Além disso, são experimenta-
dos sintomas físicos, incluindo inquietação ou sensação
de “nervos à flor da pele”; fatigabilidade; dificuldade
de concentração ou “ter brancos”; irritabilidade; tensão
muscular; e perturbação do sono (APA, 2014, p. 190).

Os ataques de pânico se destacam dentro do TAG como um tipo


particular de resposta ao medo e pode ser compreendido como uma
variante da ansiedade, mas que não é particular dela, pois os ataques de
pânico também podem ser desenvolvidos dentro de outros transtornos
mentais. “Os ataques de pânico são ataques abruptos de medo intenso
ou desconforto intenso que atingem um pico em poucos minutos,
acompanhados de sintomas físicos e/ou cognitivos” (APA, 2014, p. 190).

40
Leituras Psicanalíticas

O OLHAR DA PSICANÁLISE PARA OS TRANSTORNOS


DE ANSIEDADE E DE PÂNICO NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID-19

A psicanálise, entretanto, possui outra forma de olhar para o que


o DSM-5 denomina transtornos de ansiedade e de pânico. Se o lugar
que a psicanálise busca é o do sujeito, pois é ele quem possui as respostas
sobre si, o que nos interessa é a singularidade do inconsciente de cada
um, a qual traz à cena o lugar do não saber, não cabendo aqui especialis-
mos, tampouco o saber médico (COIMBRA; LEITÃO, 2003). Assim,
para muito além do nome que se dá a um certo quadro descritivo de
sintomas, o que importa no campo analítico é o sujeito do inconsciente
e não o diagnóstico que ele carrega (MILLER, 1997). Para tal, a única
técnica de investigação que detém o analista é sua a escuta: “permanece
essencialmente verbal o material clínico fornecido pelo paciente. Será,
então, de imediato na dimensão do dizer e do dito que se delimitará o
campo de investigação clínica” (DOR, 1991, p. 14), ou seja, a investigação
clínica pautada na psicanálise se dá de forma essencialmente subjetiva,
uma vez que se pauta exclusivamente na palavra do sujeito.
Com isso, concluímos que no campo da psicanálise não se obje-
tiva localizar o sujeito em uma categoria nosológica, descrevendo e
classificando seus sintomas, mas partir da palavra e das representações
inconscientes do sujeito para compreender suas vivências. Desta forma,
no que diz respeito à visão psicanalítica acerca dos sintomas de ansie-
dade e pânico, vale primeiramente caracterizar o sintoma na psicanálise.
Freud (1926/2014), em Inibição, Sintoma e Angústia, distingue
sintoma e inibição. Sobre a inibição, Freud (1926/2014) aponta que
possui uma relação especial com a função, podendo ser demarcada
como uma restrição normal da função, não necessariamente patológica.
Por outro lado, o sintoma indica um processo patológico. Essa seria a
primeira distinção entre sintoma e inibição. Em seguida, entretanto,
Freud (1926/2014) considera que inibição pode ser um sintoma,

41
Leituras Psicanalíticas

uma vez que o sintoma pode representar a alteração de uma função,


ou uma nova manifestação dela.
Avançando um pouco, Freud (1926/2014) apresenta uma relação
entre inibição e angústia e nos leva a compreender que em alguns
momentos a inibição pode aparecer como renúncia à função, porque o
exercício desta função poderia causar angústia, então o sujeito renuncia
a ela na tentativa de se proteger do desprazer. Ele faz isso a partir de
mecanismos de defesa, com os quais tenta fugir do que causa angústia
ou dor. Para se referir às funções, Freud aborda as funções básicas do
sujeito: sexual, de trabalho, nutrição e locomoção (FREUD, 1926/2014).
A respeito do sintoma, uma vez que se caracteriza por ser o indício
e substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu, é consequência
do processo de recalcamento. Ou seja, o sintoma aparece quando o sujeito
recalca essa pulsão, que é uma força constante, um impulso energético
que busca satisfazer-se permanentemente. Assim, o sintoma se origina
do impulso energético, pulsão, prejudicada pelo recalcamento. Sobre isso,
Freud (1926/2014) nos aponta que existe uma tendência de acharmos que
o Eu é impotente contra os impulsos Id. Mas, ao se opor a essa pulsão
que emerge no Id, é necessário apenas a liberação de um sinal de des-
prazer para que o sintoma emerja, com o auxílio do princípio do prazer.
Chegamos então à angústia – um conceito que, no texto Inibições,
sintomas e angústia, Freud (1926/2014) está em processo de revisão.
Ao longo do livro, Freud aponta para a angústia como sintoma da
neurose, uma vez que compreende o Eu como sede real da angústia, e
assim constituinte da estrutura neurótica. Além disso, ele revê sua tese
de que a angústia proveria do recalque, apontando-a neste momento
como a produtora dele, mesmo que toda a formação dos sintomas seja
realizada com objetivo de evitá-la. Freud (1926/2014) conclui: “os sin-
tomas atam a energia psíquica que de outro modo seria descarregada
como angústia, de maneira que a angústia seria o fenômeno básico e
problema principal da neurose” (FREUD, 1926/2014, p. 87).

42
Leituras Psicanalíticas

Mais adiante no texto, Freud (1926/2014) atenta que o sintoma


se forma para que o Eu seja subtraído à situação de perigo: “sendo
impedida a formação de sintomas, o perigo realmente aparece, ou
seja, produz-se aquela situação análoga ao nascimento, em que o Eu
se encontra desamparado ante exigências instintuais cada vez maiores”
(FREUD, 1926/2014, p. 88). Diante disso, a angústia estaria ligada
diretamente com a noção de desamparo, vivenciado desde a infância,
sendo justamente esta compreensão que nos interessa ao analisarmos
experiências relacionadas à pandemia.
Podemos compreender a partir disso que sintoma e angústia se
aproximam pelo fato de existir uma situação de perigo ao Eu, sendo
que, para Freud (1926/2014), a angústia é preliminar à formação de
sintomas, pois “se o Eu não despertasse a instância prazer-desprazer
pela geração de angústia não adquiriria o poder para sustar o amea-
çador processo gestado no Id” (FREUD, 1926, p. 88).
A angústia é, então, o que Freud (1926/2014) chama de rea-
ção ao perigo, sendo impossível ao Eu afastar-se dela. Ele aponta
ainda que o perigo é algo que está posto ao sujeito e possui uma
dimensão universal. O que varia nesta relação é o modo como cada
sujeito lida com o fenômeno de forma singular, a partir de suas pró-
prias experiências. Conforme Freud:
A angustia é uma reação a uma situação de perigo. Ela
é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa
situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer que se
criam sintomas de modo a evitar a geração de angustia.
Mas isto não atinge uma profundidade suficiente. Seria
mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de
evitar uma situação de perigo cuja presença foi assina-
lada pela geração de angustia. Nos casos que examina-
mos, o perigo em causa foi o de castração ou de algo
remontável à castração (FREUD, 1926/2014, p. 128).

43
Leituras Psicanalíticas

O PERIGO IMINENTE QUE A COVID-19 DESPERTOU


E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL: O
DESAMPARO COMO EVIDÊNCIA CLÍNICA FRENTE
A PANDEMIA

A disseminação do Coronavírus, que teve um alcance mundial e


trouxe consigo o indicador de perigo, teve como consequência grandes
prejuízos na saúde mental. Com isso, sintomas como os de ansiedade
e pânico, entre tantos outros, bem como efeitos econômicos, sociais
e educacionais sobressalentes à emergência da Covid-19, passaram a
emergir em grandes proporções, frutos da angústia e do perigo imi-
nente, a princípio sem solução imediata, trazido por todo esse cenário.
A SARS-Cov-2, nome da doença respiratória ocasionada pelo
novo Coronavírus, teve seu primeiro caso detectado na cidade de
Wuhan, China, em novembro de 2019. Em seguida espalhou-se
gradativamente por vários países, incluindo o Brasil, que registrou o
primeiro caso em 26 de fevereiro de 2020. Com os casos aumentando
em todo o mundo devido a transmissibilidade da infecção, o índice
de mortalidade crescente, e a falta de conhecimento sobre o vírus, a
OMS decretou pandemia mundial em março de 2020 (WHO, 2020).
Por ser uma doença de conteúdo nunca visto antes, diversas
notícias tomaram conta das mídias sociais e jornais televisivos. A
incerteza, a falta de informação, a necessidade de manter o distancia-
mento social, a privação da rotina habitual pelos decretos de lockdown
em todo o mundo, a impossibilidade de planejar e programar, o medo
de contrair a doença e o consequente medo da morte, foram fatores
que influenciaram prejudicialmente a saúde mental de muitas pessoas.
Conforme supracitado, vamos analisar esses fenômenos pela leitura
psicanalítica, considerando que o olhar do analista para os sintomas
de ansiedade e pânico partem da experiência do desamparo, o que
vamos nomear de uma clínica da angústia.

44
Leituras Psicanalíticas

Em O mal-estar na civilização Freud (1930/2010) aponta que


a ansiedade se relaciona com o próprio nascimento do sujeito, pois
a partir do momento em que o bebê apresenta necessidades básicas
para a sobrevivência também se instaura o desejo. Com isso, inicia-se
uma busca constante por satisfação.
Sigmund Freud salienta que a ansiedade é consequência
de traumas da infância que foram rechaçados pelo Ego
como um mecanismo de defesa para a evitação da dor.
O autor também salienta a relação entre desamparo e
a angústia de castração, onde a privação ou perda do
objeto equivale à separação da mãe, fazendo com que
o indivíduo vivencie a sensação do desamparo devido à
sua necessidade pulsional, como no nascimento (OLI-
VEIRA; SANTOS, 2019, p. 34).

A respeito do desamparo, Resstel (2015) discorre que a criança


logo em seu nascimento vivencia o sentimento de desamparo. Ele
aponta que o desamparo evidencia o sentimento de abandono a partir
do momento em que a criança se percebe como um eu no mundo.
Em complemento, Campos e Silva (2020) consideram o desam-
paro “condição originária da subjetividade humana e também seu
horizonte contínuo, na medida em que toda a dinâmica defensiva e
a mobilização da angústia é, em última instância, uma tentativa de
prevenção de sua repetição” (p. 68).
Com base no supracitado, compreendemos que o desamparo
se relaciona à angústia, uma vez que ao emergir no sujeito o senti-
mento de possível abandono - visto que temos a necessidade de estar
sempre amparados pelo nosso objeto de amor, desde a infância –
surge também a angústia. Assim, a constituição do aparelho psíquico
evidencia o desamparo, o qual se expressa como uma experiência de
angústia. Nesse quadro, a angústia aponta para a situação de perigo,
de modo a atualizar a condição estrutural de desamparo, aquela vivên-
cia primordial de perda do objeto, que o bebê vivenciou ao se sepa-
rar da mãe (CAMPOS; SILVA, 2020).
45
Leituras Psicanalíticas

Como já visto anteriormente, o pânico é uma das formas de


manifestação da ansiedade, ou uma das afecções apresentadas pelo
sujeito relacionadas ao desamparo. Menezes (2006) analisa o pânico
enquanto “resposta psíquica frente à desilusão provocada pela perda
de um ideal protetor que até então, de maneira onipotente, assegurava
ao sujeito sua estabilidade” (p. 192). À luz do DSM-5 e do discurso
socializado pelo senso comum, que é efeito deste, o pânico apresenta
uma relação íntima com o que na psicanálise compreendemos por
desamparo. Conforme o autor, “o pânico é, nesta perspectiva, a expe-
riência de uma expressão máxima de angústia e uma evidência clínica
do desamparo” (MENEZES, 2006, p. 192).
Com a emergência da COVID-19, foi possível observar, tanto
pela perspectiva da literatura quanto em nossa experiência clínica, que
houve um aumento significativo nas queixas de ansiedade e pânico. A
pandemia trouxe a necessidade do isolamento social, momento em que
as pessoas tiveram que se afastar dos seus contextos sociais para que o
vírus pudesse ser contido ou ao menos minimizado. No início, em março
de 2020, foram decretados 15 dias de lockdown, que duraram muito
mais que isso, prolongando-se por meses, causando diversos prejuízos
econômicos e sociais, incluindo a saúde mental do sujeito. Seus efeitos
ainda são vividos no início de 2022. O que vivemos trata-se, portanto,
de um momento histórico e gerador de sofrimento intenso, pois ser
retirado do contexto social trouxe e continua trazendo para muitas
pessoas o sentimento de solidão, a qual gera a sensação de desamparo
que, como vimos, faz emergir a angústia (FREUD, 1926/2014).
Estudos recentes (ASMUNDSON; TAYLOR, 2020; CARVA-
LHO et al., 2020; WANG et al., 2020) revelam que a pandemia tem
afetado a vida psíquica das pessoas. Os autores desses estudos discutem
que a experiência do isolamento social, o medo de ser infectado pela
doença e o medo da morte estão entre os fatores que afetam a saúde
mental. Eles aparecem em sintomas como depressão, ansiedade e
estresse na população geral (WANG et al., 2020).
46
Leituras Psicanalíticas

Acreditamos que isso se deve ao fato de que, para lidar com as


demandas que surgem na vida, o sujeito precisa construir algumas certe-
zas, fantasias e formas de enfrentamento, as quais, quando insuficientes
para lidar com o sofrimento, surgem como angústia. Nesse sentido, alguns
determinantes histórico-culturais, provocados por mudanças políticas,
econômicas ou sociais, impactam a vida do sujeito, causando “perda de
garantias constituídas na estabilidade do mundo subjetivo” (CAMPOS;
SILVA, 2020, p. 70). O sujeito busca nas relações sociais identificações
para tentar preencher com algo de fora, inclusive com o outro, algo que
lhe falta. Quando essa construção subjetiva se rompe, advém a angústia,
uma vez que o que se buscava satisfazer não foi realizado.
Compreendemos a COVID-19 como algo que, ao exigir iso-
lamento social e muitas outras medidas de proteção incomuns até o
momento, rompe com o que construímos subjetivamente, aparece
como algo que desconstrói o que havia no cotidiano (CAMPOS;
SILVA, 2020), por isso nossa aproximação entre o que encontramos
na teoria psicanalítica sobre o desamparo e o que vivemos atualmente.
Nesse sentido, Campos e Silva (2020) concluem que “essa angústia da
liberdade, por assim dizer, é o horizonte ético que começa a se indicar
na aurora da modernidade e que, a partir de sua crise, coloca o sujeito
sob o signo do mal-estar e também do desamparo” (CAMPOS; SILVA,
2020, p. 70). Mesmo que os autores não abordem a pandemia da
COVID-19 especificamente, suas articulações nos possibilitam fazer
uma comparação entre o que é exposto no texto e o que desenvolvemos
neste trabalho, bem como vivenciamos na atualidade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES


DA CLÍNICA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO
PANDÊMICO: UMA ESCUTA QUE DÁ LUGAR AO
SUJEITO

Compreendemos que a experiência da pandemia é única, uma


vez que nunca vivemos algo similar, mas não podemos descartar que
47
Leituras Psicanalíticas

a mesma emerge atualizando em nós a experiência do desamparo, a


qual está marcada em nosso psiquismo desde a infância. Sendo assim,
podemos nunca ter vivenciado uma pandemia, mas o sentimento
emergente com ela pode ser lido como uma atualização cada vez que
nos deparamos com o que representa uma perda significativa. Uma
evidência disso são os lutos que perpassam nossas vidas e que não neces-
sariamente dizem respeito apenas à morte de uma pessoa, mas também
às passagens que fazemos, seja da infância para adolescência, seja do
término de uma faculdade para a inserção no mercado de trabalho, e
mesmo um término de relacionamento. Sendo assim, muitos foram
os lutos que esse momento nos trouxe: a perda da liberdade, a perda
da estabilidade financeira e as perdas para a morte propriamente dita,
que aumentavam a cada dia, desde a primeira contaminação pelo vírus.
São muitas as contribuições da clínica psicanalítica neste cenário,
uma vez que desde os primórdios da psicanálise Freud já entendia
que em uma análise se lida com a falta do sujeito. Ao analisarmos o
contexto pandêmico e suas consequências, por sua vez, verificamos
que essa falta foi atualizada, tanto pelo isolamento social, quanto pelas
perdas no sentido mais amplo da palavra, pelo medo da doença e da
morte. Quanto à falta, Freud (1919/2010) nos orienta que se deve
conduzir o tratamento analítico na privação e na abstinência, ou seja,
o tratamento deve ser conduzido de forma que o paciente consiga se
haver com a falta. Não tamponá-la, nem negá-la. Ao contrário, oferecer
algum trato às demandas infinitas e nunca supridas.
De nada adianta suprir a falta com substituições, mesmo que o
sujeito busque fazê-las (FREUD, 1919/2010), uma vez que quando se
tampona um sintoma, por exemplo oferecendo ao sujeito uma nomeação
de Transtorno de Ansiedade Generalizada para explicar o que sente,
o que fazemos é apenas reforçar o sintoma, de modo que o sujeito
repita modelos, ao invés de elaborá-los. Sem nomeações próprias, sem
espaço para as manifestações inconscientes, é impossível caminhar em
direção à cura, tal como a entendemos na psicanálise. Cura esta, vale
48
Leituras Psicanalíticas

lembrar, que não diz respeito à eliminação dos sintomas (facilmente


substituídos por outros), mas oferecer um direcionamento para eles,
permitindo que o sujeito consiga lidar com seus sintomas.
Sendo assim, à medida que passamos pela experiência do trata-
mento analítico, compreendemos que não devemos extinguir o que nos
causa dor e sofrimento, até porque não sofrer não é uma possibilidade
na vida, mas aprender a lidar com o sofrimento nos possibilita cami-
nhar em direção à cura. Quanto a isso, o próprio Freud (1937/2017)
nos diz que “é desejável diminuir a duração de um tratamento, mas
o caminho para executar a nossa intenção terapêutica só passa pelo
reforço da capacidade analítica auxiliar que queremos levar ao Eu” (p.
224). A direção da cura só emerge a partir do momento que o sujeito
consegue lidar com os fantasmas inconscientes, encontrando caminhos
possíveis a partir do que a sua fala vai abrindo em análise. Nesse sentido,
o que surge a partir da fala do paciente não dá um fechamento, uma
solução pronta, mas abre possibilidades. Evidentemente, trabalhar com
a angústia em um processo analítico não se trata de um tratamento
rápido, nem fácil: lidar com os fantasmas requer um esforço de cada um.
Retomando a pandemia de COVID-19, concluímos que ela trouxe
muitos impactos para a saúde mental e que os sintomas de ansiedade
e pânico emergiram de modo intenso, uma vez que o contexto pandê-
mico atualizou em nós a noção de desamparo vivenciado na infância.
Muitas pessoas não souberam lidar com o isolamento social, as mortes
acontecendo a todo momento, as vivências do luto por todas as perdas
que surgiram como consequência deste acontecimento, e por conta disso,
adoeceram. Resta-nos indagar, portanto, o que a vivência do desamparo
hoje grita em cada um de nós, o que desperta de nossa singularidade.

REFERÊNCIAS
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Leituras Psicanalíticas

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51
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS
EM TEMPOS DE PANDEMIA: LUTOS E
PERDAS NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Lidiane Bernardo Gomes12


Francisco Francinete Leite Junior13

INTRODUÇÃO

Em face do cenário atual, desde 31 de dezembro de 2019, a


Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu um surto de
pneumonia causada pelo SARS-COV-2 levando à declaração de
uma pandemia em 11 de março de 2020 pelo diretor-geral da OMS.
O mundo tem enfrentado grandes transformações, econômicas,
de convivência e diversos outros contextos especialmente na saúde,
ocasionadas pela pandemia do novo Coronavírus. No Brasil, o primeiro
caso confirmado data de 26 de fevereiro de 2020 e, até o dia 3 de
março de 2022, o país contabilizava 650.000 mortes em decorrência da
infecção causada pelo coronavírus (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL
DA SAÚDE, 2022; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2022).
Em virtude das diversas mudanças decorrentes da situação pan-
dêmica, alguns rituais familiares passaram por processos de ressignifi-
cação. O luto, por exemplo, e todos os rituais que perpassam a morte
têm enfrentado momentos de reestruturação, produzindo impactos
sobre os modos de vida. A pandemia implicou na ausência do velório,
desencadeou um luto coletivo e mortes em domicílios. “Os óbitos por
COVID-19 têm ocorrido não somente nos hospitais, mas também
nos domicílios (INGRAVALLO, 2020; KUNZ & MINDER, 2020
apud CREPALDI et al, 2020, p. 4)

12
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4314-1121
13
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8431-0513
52
Leituras Psicanalíticas

Neste momento insólito, por causa de um vírus transmis-


sível pelo ar, os rituais se transformaram e devem ser dimi-
nutos. Assim, temos que fazer também o luto do luto. Ou
elaborar a perda dos rituais sociais e amplos do luto que,
em alguma medida, nos sustentavam. Eis então mais um
desafio: a invenção de outras formas de luto social. Luto
pelo zoom? Empresas especializadas em lutos remotos?
Rituais à distância? Como discutimos antes, o mundo
online talvez venha a nos ensinar outras formas de sentir,
e de elaborar afetos e perdas. (HOMEM, 2020, p. 74)

Além disso, o isolamento social modificou os ritos de des-


pedidas, sobretudo, por causa das normas de biossegurança que a
todo o momento intensificavam a limitação de contato entre as pes-
soas. “Os rituais a que estamos acostumados, como velório, não serão
realizados ou serão modificados para atenderem à nova situação”.
(MIYAZAKI E TEODORO, 2020, p. 1)
Falar sobre a morte é um tabu e a partir de meados do século XX
esse fato ganhou força e intensificou-se, especialmente, nas sociedades
ocidentais. Com o advento do capitalismo, o avanço da medicina e o
desenvolvimento industrial, a morte passou a ser vista como algo sujo,
passível de ser evitada. As transformações ocorridas em torno dessa
temática evidenciaram a dificuldade de falar desse assunto com criança
e cada vez mais foi se desenvolvendo a prática de não envolvê-la no
processo de luto, estabelecendo conflitos em torno da morte e em suas
dimensões com a intenção de defendê-la do contato com esse tema.
Freud deu o nome de mecanismos de defesa às muitas ten-
tativas do ego de solucionar esses dilemas. Repetidamente,
ele disse que os mecanismos de defesa eram a pedra fun-
damental da teoria psicanalítica (...). Esses mecanismos
só se tornam um problema ao serem utilizados pelo ego
de modo excessivo ou inflexível. (KAHN, 2003, p. 160)

A criança, assim como os demais integrantes da família, estão


inseridos nesse processo. Segundo Kovács (1992, p. 49) “ao não falar, o
53
Flavia Gaze Bonfim (org.)

adulto crê estar protegendo a criança, como se essa proteção aliviasse


a dor e mudasse magicamente a realidade...”.
A literatura tem cada vez mais apresentado estudos em defesa
da necessidade de falar sobre a morte, o morrer e o luto sem tabus
com as crianças no sentido de prepará-la para um acontecimento que
circundará todas as fases da vida.
Franco e Polido (2014, p. 45) – citando as ideias de Parkes
sobre o processo de luto – afirmam que “todos os acontecimentos
que provocam mudanças na vida, sobretudo os inesperados, desafiam
o mundo presumido e provocam uma crise”. Isso significa dizer que
é preciso estar preparado emocionalmente para os eventos esperados
e também os inesperados. A morte em algum momento acontecerá
na vida de todos. E no contexto da atual pandemia acontece o que
Kovàcs, (2021, p. 97) classifica como “morte escancarada”, ou seja,
[...] é o nome que atribuímos à morte que invade,
penetra e ocupa espaço a qualquer hora. Sua carac-
terística invasiva dificulta a proteção e o controle de
suas consequências, e as pessoas ficam expostas, sem
defesas... ela é brusca, repentina, invasiva e involuntária.

Ainda de acordo com Franco e Polido (2014, p. 46), “a evolução


do processo da criança será, por conseguinte, diretamente influenciado
pela dinâmica familiar, ou seja, vai depender dos recursos de enfren-
tamento das pessoas que cuidarão dela a partir de então”.
Em meio a pandemia, as situações de perdas se intensificaram e
as crianças tiveram que se adaptar a ausência do toque nas brincadeiras,
e até mesmo, ausência de brincadeiras em grupos devido ao isolamento
social. Elas também experimentaram os desdobramentos provocados
pela infecção, por exemplo, da síndrome inflamatória multissistêmica
pediátrica (SIM-P) que, de acordo com o Ministério da Saúde (2020),
indica uma infecção grave associada a COVID-19. Em situação de
contaminação grave, a criança é submetida a atendimento hospitalar
com internação e distanciamento da família. Outro fator inerente a
54
Leituras Psicanalíticas

essa situação diz respeito à vivência de várias perdas consecutivas e/


ou concomitantes no núcleo familiar.
No entanto, a pandemia apresentou diversos caminhos de mudan-
ças na vida das pessoas, que indicou a necessidade de cuidados holísticos,
assim como, intervenções adequadas para cada caso de sofrimento com
suas singularidades. Dentre as possibilidades de intervenção para lidar
com todo esse processo de perdas e luto, a psicanálise surge como uma
abordagem possível para auxiliar o sujeito na passagem por essa situa-
ção, em especial, para a criança que vivencia esse processo. De acordo
Bromberg (2000, p.60), “o luto infantil é frequentemente considerado um
fator de vulnerabilidade a muitos distúrbios psicológicos na vida adulta”.
O trabalho psicanalítico com crianças demonstra que
elas percebem fatos que lhe são ocultados e, embora
possam não expressá-los verbalmente, os seus conhe-
cimentos aparecem em seus jogos, desenhos ou outras
formas de expressão. Entre os jogos infantis onde ocorre
a simbolização da morte estão os jogos de esconde-es-
conde, mocinho e bandido. (KOVÁCS, 1992, p. 49)

Desse modo, a psicanálise é incumbida à função de desarrumar, des-


construir, arrumar, construir e renovar conceitos. De acordo com Backes
et al, (2007), no que concerne à clínica psicanalítica com crianças, a atual
pandemia se apresentou com um momento de consequências importantes
para as quais exigiu-se constantes adaptações para esse público desde
rotinas de trabalho, escola, espaço de lazer, família e amigos. Nota-se
que em todos esses aspectos houveram rompimentos significativos para
algumas pessoas. Destarte, experimentou-se uma relação mais próxima
com a tecnologia, obviamente, que não foi igual para todos os sujeitos.
A humanidade ao longo da história enfrentou guerras, doen-
ças, vírus, endemias e pandemias. Cada evento desses em seu tempo
produziu impactos, especialmente para a ciência, e com a psicanálise
não foi diferente, visto que esses acontecimentos deixam traumas na
vida daqueles que os vivenciam direto ou indiretamente.
55
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Em eventos como endemias e pandemias, vive-se a estranha cer-


teza de lutar contra um inimigo invisível, fato que torna a luta desigual,
pois o fundamental em uma batalha é conhecer com quem se luta.
A pandemia do coronavírus afetou a vida humana em seus
diversos contextos, provocando distanciamentos impostos e em con-
trapartida obrigando algumas pessoas a permanecerem mais tempo em
seus lares. No entanto, o fato que mais esteve presente foi a vivência da
morte pública e diversas perdas cotidianas que marcaram diariamente
a vida das pessoas deixando vários traumas.
Para além dos critérios diagnósticos nosológicos, os traumas
são características de experiências extremas de sofrimentos que
permeiam as lembranças dos sujeitos. Os efeitos de um trauma –
quando ignorado – se converte em sinais e sintomas que afetam
de maneira efetiva uma vida. O corpo fala para além do orgânico,
como mencionou o próprio Freud.
Em consonância com Viola et al (2011, p. 57), “exposições prolon-
gadas a experiências traumáticas durante a infância ainda comportam
uma preocupante realidade e podem produzir profundo impacto em
diferentes áreas funcionais”. Existem períodos críticos no desen-
volvimento infantil que podem emanar uma carga de experiências
traumáticas ao longo da vida desempenhando um papel negativo nos
diversos aspectos de relacionamentos interpessoais e pessoais.
De acordo com Costa (2010, p. 20), foi entre 1920 e 1940 que a
psicanálise com criança nasceu e se desenvolveu “a partir das pesquisas
das primeiras analistas: Hermine von Hug-Hellmuth, Anna Freud e
Melanie Klein”. Além disso, para a autora:
A psicanálise diz respeito ao sujeito, não importa se
criança ou adulto, no entanto não podemos esquecer
que a psicanálise com crianças tem uma especificidade
em relação à clínica com adultos, já que a criança, por
características comportamentais que lhe são próprias,
não pode cumprir com a regra fundamental da análise,
56
Leituras Psicanalíticas

ou seja, a regra da associação livre. Em outras palavras,


não podemos esperar que uma criança se deite no divã
e fale sobre suas dificuldades durante 30 ou 40 minutos.
Por outro lado, percebemos que, se deixarmos a criança
livre, ela brinca com o que encontrar à sua frente, sendo
esse o modo natural de se expressar. (2010, p. 19-20)

Nesse sentido, para a psicanálise, a maneira como a criança com-


preende e interpreta a morte está ligada ao seu psiquismo e também às
relações afetivas e aos aspectos cognitivos para elaboração de perdas. Outras
questões estão envolvidas nesse movimento, por exemplo, a própria fase de
desenvolvimento que envolve a compreensão de termos como “irreversibili-
dade, não funcionalidade e universalidade”(VENDRUSCOLO, 2005, p. 27).
Dessa forma, a relevância deste estudo implica em abordar
um assunto tabu para a sociedade ocidental buscando apresentar
mecanismos propícios que auxiliem no rompimento de barreiras
no sentido de inserir tal temática nos espaços de convivência social
desde a infância. Assim, indica-se a necessidade de que os meios de
comunicação, os espaços educativos, a família e a sociedade encontrem,
através do diálogo e das informações condizentes, meios adequados
para se falar sobre as perdas e luto que são realidades vividas ao longo
do processo de constituição do sujeito.
Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em
analisar como a clínica psicanalítica lida com as perdas e os lutos
na infância, buscando caracterizar como o cenário da pandemia do
coronavírus afetou a vivência desses processos.

DESENVOLVIMENTO

Sobre a clínica psicanalítica com criança, têm-se indícios de que o


seu início tenha sido a partir das teorizações de Freud em seus estudos
sobre a sexualidade infantil na escuta sobre suas pacientes histéricas. A
teoria da sedução foi o ponto inicial para o desenvolvimento de várias
teorias em torno do infantil na perspectiva freudiana.
57
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Esse foi um momento teórico muito importante no


desenvolvimento da teoria psicanalítica, no qual o rele-
vante não são mais os fatos da infância, mas a realidade
psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas
fantasias a ela vinculadas, tendo como pano de fundo a
sexualidade infantil. Ocorre também uma modificação
no conceito de infância, que deixa de ser vista a partir
de um registro genético e cronológico para ser abordada
pela lógica do inconsciente. (COSTA, 2010 p. 14)

Depreende-se que a partir desse momento torna-se importante


analisar a realidade psíquica da criança que tenha vivenciado as expe-
riências de perdas simbólicas ou concretas. De acordo com Kovács
(apud COMBINATO e QUEIROZ, 2006), ao longo do desenvol-
vimento, a pessoa passa por várias “mortes”, para as quais a autora usa
a terminologia “mortes simbólicas ou mortes em vida” (p. 212).
Algumas experiências vivenciadas ao longo do desen-
volvimento humano apresentam analogia com a idéia
de morte: separação, desemprego, doença e, até mesmo,
acontecimentos que trazem alegria, mas que provocam
algum tipo de ruptura. A separação pode ser viven-
ciada através de vários tipos de experiências, desde
a separação com a figura materna até a separação de
namorados e de casais. Ela envolve aspectos semelhantes
ao luto; a diferença é que, na situação de luto, houve
a morte concreta de alguém, enquanto, na separação,
não. (COMBINATO & QUEIROZ, 2006, p. 212)

Desse modo, ao longo da vida, a criança enfrenta perdas cotidia-


nas que para sua idade ou para sua faixa etária podem ser reversíveis
como a saída da mãe diariamente para o trabalho, mas que em certas
fases gera um desamparo que pode estar ligado a falta de compreensão
da reversibilidade. Essa falta e desamparo ocasionados pelas perdas se
relacionam com o vínculo que a criança tem com a pessoa que pode
ser o pai, a mãe ou qualquer outro cuidador direto dela.

58
Leituras Psicanalíticas

Quando pensamos em perda, pensamos na morte das


pessoas que amamos. Mas a perda é muito mais abran-
gente em nossa vida. Pois perdemos não só pela morte,
mas também por abandonar e ser abandonado, por
mudar e deixar coisas para trás e seguir nosso caminho.
E nossas perdas incluem não apenas separações e par-
tidas dos que amamos, mas também a perda consciente
ou inconsciente de sonhos românticos, expectativas
impossíveis, ilusões de liberdade e poder, ilusões de
segurança — e a perda do nosso próprio eu jovem, o eu
que se julgava para sempre imune às rugas, invulnerável
e imortal. (VIORST, 2005, p. 13-14)

Assim, para Zavaroni e Viana (2015) essas pequenas perdas


“naturais” ao longo processo de constituição do sujeito representam
situações “potencialmente traumáticas”:
De modo genérico, definimos como potencialmente
traumática uma situação composta de circunstâncias
impactantes, geradoras de pesar, que coloca a criança
frente a perdas importantes e que exige ou desencadeia
(re)arranjos vivenciais significativos. Tais como acon-
tece nas situações que envolvem a perda inesperada
de alguém significativo, a agressão física ou psíquica,
os acidentes familiares e pessoais com consequências
graves, dentre tantos outros. No entanto, situações que
não contemplam tanta visibilidade também podem
constituir-se como situações potencialmente traumáticas,
como por exemplo, a perda de um pequeno brinquedo.
Mas nosso interesse volta-se principalmente para aque-
las situações que, a revelia do sujeito, possuem um forte
atributo traumático que lhe é conferido pelo próprio
sujeito, pela família ou pelo seu contexto cultural. A
ideia de situação potencialmente traumática contempla
a compreensão freudiana sobre o trauma e problema-
tiza a eficácia traumática do acontecimento vivido.
(ZAVARONI E VIANA, 2015, p. 331)

59
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Dessa maneira, essas perdas representam pequenos lutos que não


necessariamente se tornarão potencialmente traumáticos, considerando
que passam por processos contínuos de ressignificação e elaboração
quando há uma discriminação adequado do fenômeno ocorrido.
O processo de luto é um outro exemplo de morte em
vida que se caracteriza por um conjunto de reações
diante de uma perda. Falar de perda significa falar de
vínculo que se rompe, ou seja, uma parte de si é perdida;
por isso, fala-se da morte em vida. (COMBINATO &
QUEIROZ, 2006, p. 212)

Para Freud (1971), o luto “não implica uma condição patológica”


quando superado depois de percorrido um tempo da perda. O luto é
uma reação defensiva natural ao processo de perda, perdas em todos
os sentidos, simbólica, concreta, material e afetiva. “O processo de
luto infantil tem uma duração subjetiva mais extensa, uma vez que
sua noção de tempo está se organizando” (PRISZKULNIK, 1992,
p. 493). Nota-se que a atual pandemia colocou a criança em contato
com situações que são distanciadas da vivência infantil.
A partir da metade do século XIX a morte passou a ser algo
estranho à condição humana ganhando um teor de interdição, algo que
pode ser evitado pela medicina. “A modernidade transferiu a morte
do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar de poder.” (ALVES,
2002, p. 16). Nesse sentido, estabelece-se uma romantização da morte,
criando termos inadequados para tratar do assunto com crianças, tais
como, “virou estrelinha”, “foi morar no céu”, entre outros. Não se falar
adequadamente sobre a morte pode gerar consequência na vida adulta.
Segundo Paiva (2011, p. 42), “a perda na infância pode tornar a pessoa
mais vulnerável e mais propensa a distúrbios afetivos.”
Normalmente evitamos que as crianças participem da
morte e do morrer, julgando que as estamos protegendo
desse mal. Mas é claro que as estamos prejudicando ao
privá-las dessa experiência. Ao fazer da morte e do mor-

60
Leituras Psicanalíticas

rer um tabu e ao afastar as crianças das pessoas que estão


morrendo ou já morreram, estamos incutindo nelas um
medo desnecessário (KÜBLER-ROSS,1996, p. 33)

A morte vem à tona diariamente com a situação pandêmica


vivenciada desde dezembro de 2019, sem escolher idade, cor, sexo
ou qualquer outra característica, acarretando perdas em todos os
aspectos e contextos da vida. Como explicar a falta de alimento pela
perda do emprego do pai ou da mãe que sustentava a família? Como
justificar o afastamento dos coleguinhas da escola? O que dizer da
ausência do avô, da avó, do tio, da tia, de tantos outros parentes e
conhecidos da vivência da criança?
Falar sobre a morte com crianças não significa entrar
em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas
nem em detalhes assustadores e macabros. Refiro-me
a simplesmente colocar o assunto em pauta. Que ele
esteja presente, através de textos e imagens, simbolica-
mente, na vida da criança. Que não seja mais ignorado.
Isso nada tem a ver com depressão, morbidez ou falta
de esperança. Ao contrário, a morte pode ser vista,
e é isso o que ela é, como uma referência concreta e
fundamental para a construção do significado da vida.
(AZEVEDO, 2003, p. 58).

De modo geral, a psicanálise se vale de dois princípios que a


norteia: o princípio da iniciativa e o princípio de solidariedade.
O princípio de iniciativa é o que cada um pode fazer
em relação ao bem público e quanto ao mal-estar na
civilização. E o princípio de solidariedade é o que nos
faz estar todos no mesmo barco do padecimento de que
sofremos atualmente. A psicanálise é um sintoma do
mal-estar na civilização desde que ela existe. Enquanto
houver mal-estar na civilização, deve existir a psica-
nálise como uma forma de tratamento do mal-estar
do sujeito e da civilização. (FÓRUM DO CAMPO
LACANIANO, 2020 p. 13)
61
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Para a psicanálise, é essencial manter os dispositivos da análise,


ou seja, o divã, a livre associação, a transferência do Real para a figura
do analista, registro do simbólico. Desse modo, para Freud não era pos-
sível fazer análise sem que o analista estivesse presente, ou seja, ele não
aceitava realizar análise por carta. Essa condição sine qua non não está
ausente na análise durante a pandemia, pois mesmo de forma on-line
há o encontro de dois seres, condição necessária para que haja a análise.
A clínica psicanalítica com a criança tem suas particularidades,
pois existe um sujeito com demandas incongruentes entre ser adulto
“naquilo que lhe é antecipado desde o Outro” e ser criança “a partir
de sua condição infantil”. (BACKES et al., 2007, p. 301).
Backes et al, (2007) aponta ainda para a necessidade do cui-
dado com o manejo da transferência e do brincar, visto que, para
Freud nesses dois aspectos está presente o desejo de ser adulto. “Em
relação às indagações da criança a respeito da morte, é importante
deixá-la fazer perguntas ou manifestar-se por meio de gestos ou
brincadeiras.” (PAIVA, 2011, p. 41).
Além dessa possibilidade de liberdade para falar, é possível usar
a brincadeira como forma de instrumento para que a criança possa
expressar e ressignificar o processo de perdas e luto. Levando em
consideração o pensamento winnicottiano:
[...] o brincar é o portão de entrada para o inconsciente,
sendo este essencialmente criativo e um meio que a criança
e o analista encontram como acesso ao inconsciente. O
faz-de-conta funciona como estímulo para elaborar a fase
de transição das fantasias do mundo interno e subjetivo
da criança para o mundo objetivo e externo, sendo muito
importante para o desenvolvimento emocional infantil.
O aspecto sadio do brincar pode acompanhar o adulto
a vida inteira. (SEI & CINTRA, 2013, p. 6)

Em relação ao uso da ludicidade no processo de intervenção


nas perdas e luto, temos os estudos de Melanie Klein. Segundo Costa
62
Leituras Psicanalíticas

(2010), Klein em 1919 “começou a participar das atividades da Socie-


dade Psicanalítica de Budapeste e, onde, apresentou seu primeiro caso
clínico, que versava sobre a análise de seu filho Erich, a quem atribuiu
o pseudônimo de Fritz”. (p. 29). Portanto,
Melanie Klein fundou a técnica da análise pela ativi-
dade lúdica com crianças. Brincar — atividade natural
das crianças — foi considerado por ela a expressão
simbólica da fantasia inconsciente. Ela afirmou que
pelas brincadeiras a criança traduz de modo simbólico
suas fantasias, seus desejos e suas experiências vividas.
O elemento organizador essencial do pensamento de
Melanie Klein é a prevalência da fantasia e dos “objetos
internos” sobre as experiências desenvolvidas no contato
com a realidade externa. (COSTA, 2010, p. 30)

Melanie Klein observa que a criança “ao brincar ela age ao


invés de falar” (1981, p.32), ou seja, através da brincadeira a criança
tem a possibilidade de representar seus sentimentos que por não pos-
suir um vocabulário abrangente, a depender da idade, não consegue
expressar através da linguagem.
O significado dado à morte pela criança variará de
acordo com alguns fatores. Entre quais o primeiro a
ser considerado é a idade ou melhor o momento de seu
desenvolvimento psicológico. Os outros fatores são a
forma com que, adultos lidam com a perda e a binô-
mia quantidade/qualidade de relação tida pela criança
com a pessoa falecida. Assim que a criança tem idade
suficiente para estar vinculada, pode ter consciência da
possibilidade de perder essa pessoa. O medo da morte
é originado no medo de perder a pessoa, amada de
romper vínculos. (BROMBERG, 2000, p. 58)

Com a pandemia, os processos de luto ocorreram de forma


mais intensa e frequente. Na intervenção profissional do manejo do
luto cabe reconhecer as particularidades das perdas enfrentadas pela
criança que além das expressões físicas e emoções podem também ter
63
Flavia Gaze Bonfim (org.)

vivenciado em meio ao isolamento processos de transição de fases – da


infância para adolescência – que são consideradas perdas naturais ao
longo da sua constituição enquanto sujeito.
Nesse contexto, faz-se necessário considerar na intervenção todos
os aspectos que contribuem para a possível dificuldade da criança de
enfrentar esse luto. “Cada um de nós, em diferentes momentos da
vida, tenta de algum jeito conviver com essa ambiguidade, procurando
integrar a realidade da morte ao desejo de nunca morrer.” (GUAR-
NIERI, 2010, p. 19). Entende-se por “desejo de nunca morrer” desejo
de nunca perder um objeto ou pessoa amada.

CONSIDERAÇÕES

Este estudo focalizou uma análise sobre a clínica psicanalítica


com a criança em situação de perdas e lutos. Além disso, foi possível
detectar as particularidades da clínica psicanalítica infantil a partir das
recomendações de Melanie Klein e Winnicott. Os mesmos conside-
ram o lúdico um importante instrumento para lidar com situações de
crianças que passam pelo processo de perdas e lutos.
Outra questão que foi discutida neste estudo diz respeito aos
efeitos que a atual pandemia e seus desdobramentos provocaram
na relação da criança com esse processo. Desse modo, depreende-se
que por ser uma fase da constituição do sujeito que ainda não se tem
formada algumas percepções, é notório que a criança foi imposta a
viver processos constantes de perdas (a ausência da escola, a falta da
brincadeira em grupo, entre outras) e lutos pelas mortes escancaradas
que se viveu cotidianamente e até as mortes repetidas de seus familiares.
Isto permite argumentar que a clínica psicanalítica atua com
criança a partir da brincadeira para que ela possa expressar no agir
aquilo que seu vocabulário não lhe permite fazer através da linguagem.
Também é possível denotar que a pandemia acarretou consequências
em diversos contextos da vida da criança se considerarmos aquilo que
fora exposto ao longo do texto, visto que as perdas ocorrem das mais
64
Leituras Psicanalíticas

diversas maneiras. Diante disso, supõe-se que durante esse período


pandêmico é possível que tenha ocorrido o processo de transição de
uma fase para outra na vida das crianças, tal como a passagem da vida
infantil para a adolescência que é considerada pelos autores apresen-
tados neste estudo como mortes em vida.
Por fim, conclui-se que a atual pandemia ocasionou muitos rom-
pimentos para a vida das crianças como mortes simbólicas, concretas,
afetivas, entre outras e em contrapartida apresentou grandes desafios para a
psicanálise, colocando-a diante de uma nova possibilidade de atendimento
que talvez em tempos das práticas de Freud não fosse possível devido suas
considerações a respeito dos elementos necessários para a análise, tendo
como o mais importante a presença física de ambos os envolvidos na análise.

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66
SE ESSA RUA FOSSE MINHA: DO LUGAR DE
OBJETO À TRILHA DO DESEJO

Ana Carolina Nunes Vianna14


Simone Ravizzini15
Ana Lúcia C. Garcia de Freitas16

INTRODUÇÃO

É preciso um esforço de elaboração psíquica para que a criança


saia da posição de objeto, operando a separação decisiva para saber
o que se é para além do Outro, este enquanto lugar simbólico que,
anterior e exterior ao sujeito, o determina. Saber de si.
Nessa perspectiva pretende-se, com este trabalho, fazer uma
reflexão sobre a direção do tratamento analítico com crianças e como
ajudá-las a sair de uma posição alienada, destino inevitável ao ser que
entra no campo da linguagem, possibilitando o encontro com a sua ver-
dade (sempre parcial), a fim de se colocar na vida segundo o seu desejo.
Passaremos a estudar as operações da alienação e da separação,
concernentes à constituição do sujeito, tal como caracterizadas pela
psicanálise lacaniana, entendendo-se a primeira como um processo
essencial à constituição do ser falante, quando o Outro, geralmente
representado pela figura materna, ensina-lhe a servir-se de uma lingua-
gem que o precede, enquanto a separação aponta para um processo de
descolamento do Outro, em que o sujeito se coloca no mundo como
faltoso e, portanto, desejante.
A entrada de uma criança na escola suscita esses processos
psíquicos de alienação e separação, na medida em que aquela, neste
14
Especialista em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade (UNILASALLE). Psicanalista. Advogada.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1143-7921
15
Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo
Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079
16
Mestrado em Psicologia Clínica (PUC-RJ). Docente (FAMATH). Psicanalista. Membro Aderente
da EBP-Rio. CV: http://lattes.cnpq.br/8827838892813072
67
Leituras Psicanalíticas

momento, é convocada a ampliar as redes simbólicas de trocas, com


sua inserção em um Outro social diferente da sua família.

O QUE FALA O TEMPO DA INFÂNCIA

De acordo com Lacan (1960/1998), em seu texto “Posição do


Inconsciente”, o movimento da alienação é intrínseco à entrada do
sujeito no campo do Outro, quando se vê uma condição de depen-
dência em relação aos significantes que vêm do Outro, aos quais se
enlaça para entrar no circuito da linguagem. Desta forma, a criança é
convocada a ingressar na rede simbólica de trocas, momento inaugural
do sujeito barrado. O sujeito, assim, é causado pelo Outro enquanto
tesouro dos significantes, que preexiste ao seu nascimento. É este
oferecimento dos primeiros significantes, geralmente pelo agente
materno, que implica na alienação ao Outro, fundamental à consti-
tuição do sujeito. À luz da Psicanálise, significante é o apoio material,
o som, que conduz à produção de sentido e às significações. Lacan
(1964/2008) ressalta ainda que o significante está sempre remetido
a outro significante e é nesta cadeia de significantes que o sentido
insiste, emergindo destes intervalos.
Para entrar em cena a segunda operação que marca a constitui-
ção do sujeito é necessário um querer, requer a vontade de se sepa-
rar do lugar de ser objeto do Outro, comumente representado pela
mãe. A separação se perfaz em ato, quando se percebe que o Outro é
faltoso, ou seja, a criança descobre que não satisfaz o desejo da mãe
por completo, pois esta deseja para além do filho, viabilizando para a
criança a abertura de uma pergunta sobre o próprio desejo. Mas, ao
se deparar com a falta no Outro, a criança também se encontra com
a sua falta-a-ser e esta equação resulta em um resto, que precisa ser
elaborado para não fazer presença como dejeto.
Este resíduo, produto do encontro com a falta, que nos cons-
titui, tal como explica Freud, está no domínio do enigmático, pois a
palavra não dá conta de traduzi-lo. Será preciso trabalhar com o que
68
Flavia Gaze Bonfim (org.)

fica como enigma para que a criança possa dar um destino melhor ao
resto, tornando-a capaz de fazer escolhas e de assumir uma posição
desejante na vida. Nosso destino enquanto ser humano é estarmos
submetidos à linguagem, e esta, enquanto código coletivo, traz consigo
uma lei do código, à qual é preciso consentir para que haja a entrada
na linguagem e, por conseguinte, na cultura. Ao nascer, o sujeito é
estruturalmente desamparado, ainda não banhado pela linguagem e
quando recebe o alimento do Outro, é marcado pela primeira expe-
riência de satisfação, que deixa um traço mnêmico e instaura o S1. Este
é o significante mestre, irrepresentável isoladamente, estando sempre
situado em referência a S2, o qual é um significante denominado saber
do Outro, que comporta todos os significantes que vêm após S1, em
linha de substituição infinita.
A dificuldade de lidar com o resto que fica do encontro com
a falta aparece na forma de sintoma, que “se define, nesse contexto,
como representante da verdade” (LACAN, 1969/2003, p. 369). Nesse
viés, Lacan (1969/2003) pontua a existência de duas maneiras de a
criança expressar o que existe de sintomático na estrutura familiar, seja
como sintoma do casal parental ou como objeto da fantasia materna,
quando a criança faz parceria de gozo com a mãe.
Quando Lacan (1969/2003) estabelece como modalidade de
resposta da criança, que o seu sintoma ocupe o lugar do sintoma do
casal parental, ele coloca o sintoma da criança como representante da
verdade da estrutura familiar. Entretanto, como a verdade nunca pode
ser toda dita, então a criança revela alguma coisa que não vai bem na
parceria amorosa, algo que de tão íntimo, a eles escapa e nunca poderá
ser completamente decifrado. Outra possibilidade de resposta é vista
quando o sintoma da criança está atrelado à fantasia materna, hipó-
tese em que o manejo clínico encontra menor margem de articulação.
Isso porque é mais difícil barrar a parceria de gozo com a mãe, gozo
enquanto prazer não-sem sofrimento, pois a criança está no lugar de

69
Leituras Psicanalíticas

objeto da fantasia materna, sem ou com pouca mediação entre os cor-


pos, que precisam descolar para que a operação da separação advenha.
É na brincadeira que a criança expõe a sua posição psíquica e a sua
verdade, através do recorte que ela opera sobre o mundo. Transforma
a passividade de uma vivência que a afetou em atividade, tal como
no exemplo trabalhado por Freud, no jogo do Fort-Da (FREUD,
1920/2020), quando observou por algumas semanas o seu neto de um
ano e meio que, embora bastante ligado à mãe, não chorava quando
esta se ausentava por várias horas, mantendo uma atitude passiva, em
aparente conformidade. Ocorre que este menino passou a apresentar
o hábito de arremessar objetos, dentre eles um carretel sobre o qual
estava enrolado um fio. Era o jogo de fazer desaparecer e aparecer que
estava sendo realizado pela criança, agora em uma posição nitidamente
ativa. Ao atirar o carretel, ela produzia um som prolongado [o-o-o-o],
que significava “fort” (desaparecer) e quando o puxava de volta, emi-
tia o prazeroso “da” (está aqui), em uma alternância de significantes.
Encenava, dessa forma, as partidas e chegadas da mãe, obtendo prazer
ao controlar o objeto ausente, desatrelando-se dos caprichos do Outro.
Neste caso, a criança tentava simbolizar a ausência e a presença da mãe,
em um jogo de substituição no qual se vê um deslocamento pulsional
da posição passiva para a de “senhor da situação”.
Assim, através do brincar a criança elabora a sua posição sub-
jetiva, deixando escapar um dizer. Contribui para a essencial tarefa
de sair do lugar de objeto do desejo do Outro para ascender como
sujeito desejante. Dessa forma, é no brincar que ela poderá construir
significações para o que experimentou, encontrando a sua forma
singular de ser no mundo, distante do capricho materno ou da, por
vezes complexa, relação do casal familiar.
O ato de brincar é a principal expressão, portanto, do tempo da
infância, quando a criança transforma em brincadeira aquilo que ela
colheu do mundo – o barulho do mar ou de um grito que a assusta,
um olhar ainda difícil de compreender, uma pedra rolando ao encon-
70
Flavia Gaze Bonfim (org.)

tro de um rio, uma folha avermelhada caída no chão – são estes os


fios com os quais ela vai tecendo a ficção que a sustentará ao longo
da vida. Sobre o tempo da infância, o escritor moçambicano Mia
Couto (2007/2009, p. 55) escreveu:
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma
colecção de memórias. A infância é quando ainda não
é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para
nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.
Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprende-
mos o próprio sentimento do Tempo. A verdade é que
mantemos uma relação com a criança como se ela fosse
uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas
a infância não é apenas um estágio para a maturidade.
É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva
dentro de nós.

Portanto, é na medida em que a criança se ocupa da brincadeira,


não como o oposto da seriedade, mas da realidade, como nos ensina
Freud (1908/2015) no texto “O Escritor e a Fantasia”, que ela poderá
construir um singular arranjo para as suas vivências, levando bastante
a sério o investimento de afeto dirigido ao brincar.

COMPOSITOR DE DESTINOS: OS TEMPOS NÃO


CRONOLÓGICOS DO COMPLEXO DE ÉDIPO

Em seus seminários, Lacan (1971/2009) recorre por diversas


vezes ao dito “no começo, era o verbo” (p. 45). Para que a criança possa
se constituir como sujeito desejante, é preciso que ela renuncie ao lugar
de objeto do desejo materno, desatrelando-se do Outro, o que demanda
um esforço de elaboração psíquica, um agir. Desde que haja a lei, o
sujeito se divide em um antes e um depois. Nos capítulos X e XI de O
Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente, Lacan (1958-59/1999)
nos ensina sobre essa operação estrutural simbólica da lei a partir da
sua leitura sobre os três tempos do Édipo e a sua importância para a
constituição do sujeito. Este é dividido pelo mundo simbólico, sendo
71
Leituras Psicanalíticas

assujeitado mais do que sujeito, fase em que estamos diante do “pai


velado”, correspondente ao primeiro tempo do complexo de Édipo.
Este tempo versa sobre a relação entre a mãe e a criança, encontran-
do-se o bebê em uma relação especular, alienado ao desejo materno.
Em seguida, passa-se ao “pai privador”, que irá barrar a mãe de
incorporar o filho como objeto do seu gozo, ao mesmo tempo em que
a convoca ao lugar de ser causa do seu desejo. O pai como privador vai
desvelar a divisão entre mãe e mulher, apontando a castração materna,
para que ela consiga desviar o seu olhar para além do filho, permitindo
que ela possa desejar em outros campos. Após se inscrever que a mãe
é não-toda, isto é, que ela deseja algo para além da criança, entra em
cena, no terceiro tempo, o “pai revelado”, que se apresenta como a lei
e não mais submetido à palavra materna.
No campo da psicanálise com crianças, é possível concluir um
diagnóstico diferencial tal como em outras fases da vida? Como sujeito
em constituição, a criança ainda não passou por todos os desdobra-
mentos do Complexo de Édipo, não se sabendo como irá se posicionar
em relação ao Nome-do-Pai, tampouco de que modo vai gerir o seu
desejo. Dessa forma, ao invés da direção do tratamento com crianças ser
pautada, de início, em determinado diagnóstico, que poderia engessá-las
em uma posição, é preciso que o analista se lembre da plasticidade
psíquica da criança e se atente para a forma como a amarração dos três
registros vem sendo feita, o que se apresenta através do discurso e da
linguagem corporal. Portanto, ao escutar a particularidade subjetiva da
criança, seu tempo lógico e cronológico, pode ser interessante que o
diagnóstico estrutural seja deixado em aberto ou como um indicador
para o tratamento, que é sempre movido pela insistência na demanda
de análise, baseada na ética do um-a-um.
É a metáfora paterna que introduz uma certa mediação para a
criança, consistente em uma operação lógica do Nome-do-Pai através
do discurso da mãe. Ou seja, a função paterna é inicialmente introduzida
pelo discurso da mãe, que inclui o pai, enquanto significante que barra
72
Flavia Gaze Bonfim (org.)

a mãe, na vida da criança e o autoriza. Lugar simbólico por excelência


será essa função, que dará à criança a possibilidade de se separar do
Outro materno, ao mesmo tempo em que perfaz o operador simbólico
do falo. O falo é o significante da falta, simbolizando a perda, aquilo que
não está lá. E o que não está lá? O objeto perdido, para Freud; o objeto
a, causa de desejo, para Lacan. O significante falo implica a presença
de uma ausência, ele vela, ao mesmo tempo que desvela... (re)vela.
A posição alienada pode ser vista em casos de angústia de sepa-
ração, sendo um exemplo contemporâneo o retorno às atividades
escolares durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, em
que algumas crianças, demasiadamente enlaçadas à figura dos pais,
depararam-se com a angústia que o real suscita, exigindo a realização
de um trabalho psíquico que pode se servir da brincadeira do Ford-Da.
Através do brincar a criança poderá encontrar uma forma de lidar com
o real que apareceu de forma maciça durante a pandemia, propiciando
uma elaboração simbólica sobre a falta, que se torna menos enigmá-
tica quando a criança assume as rédeas da situação, possibilitando a
emergência do sujeito, diante de uma cena agora reinventada.
Após situarmos as nuances que permeiam a constituição do
sujeito e o movimento que a criança precisa realizar para se assenhorar
do próprio corpo, renunciando ao lugar de objeto de desejo do Outro,
passa-se a investigar sobre o afeto da angústia, a fim de recortar a sua
incidência no campo do retorno às aulas presenciais durante o cenário
pandêmico provocado pelo novo Coronavírus (COVID-19).

O QUE CHORA A CRIANÇA AO ENTRAR PARA A


ESCOLA?

Freud estabeleceu ao longo da sua obra, três concepções sobre


a angústia. A primeira é a impossibilidade de se traduzir a emoção
em palavras. Nessa época, Freud pensava que o excesso ou o acúmulo
de excitação seria causador da angústia. No texto “Sobre os critérios
para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada neu-
73
Leituras Psicanalíticas

rose de angústia” (FREUD, 1894-95), ele descreve com riqueza de


detalhe clínica vários sintomas relacionados à neurose de angústia, a
exemplo da irritabilidade geral; expectativa angustiante; distúrbios da
atividade cardíaca; distúrbios respiratórios; ataques de suor; tremores
e calafrios; fome devoradora; e vertigem.
A segunda concepção de Freud é que é o recalque que funda
a angústia. Diante das consequências traumáticas na vida do sujeito,
diante da insuportabilidade do excesso ruidoso de ideias da neurose
obsessiva ou da conversão somática na histeria, o mecanismo de defesa
agiria recalcando o material desprazeroso para o inconsciente. Do
retorno do recalcado surgiria a angústia. Porém, a terceira e última
teoria sobre a angústia, que podemos encontrar em Inibição, Sintoma
e Angústia, Freud (1926/2014) vai inverter esta lógica para dizer que
é a angústia que funda o recalque e não o contrário.
Se a angústia é sinal, ela é sinal de uma falta ou de uma presença
ausente, por isso ela não engana (LACAN, 1962-63/2005). É um índice
de que algo em nossa fantasia vacilou. Portanto, o que é que engana
na angústia? É a localização do objeto, que o sujeito sente no corpo,
mas ela está em outro lugar: $ <> a. No grafo do desejo, encontra-se
esta fórmula da fantasia, na articulação direta com o desejo do Outro
e a pergunta que daí se extrai: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu
eu? É assim que Lacan define que o desejo do homem é o desejo do
Outro. A angústia está aí como enigma do desejo do Outro, irrom-
pendo quando o lugar que supomos ter no desejo do Outro sai de cena.
Na clínica cotidiana, deparamo-nos com os impasses e os enig-
mas do sujeito frente à sua vida. Diante de um afeto e, para Lacan, a
angústia é da ordem do afeto, o sujeito não sabe o que fazer com o seu
desejo. A análise põe o sujeito a dizer sobre o seu desejo, a dizer de
um impossível de se dizer. É deste impasse que surge a angústia, pelo
sujeito não conseguir dizer sobre o seu desejo. Nesse sentido, junto à
angústia, surge um estranhamento, como algo familiar que, em algum

74
Flavia Gaze Bonfim (org.)

momento, traz um infamiliar. E como a angústia não é sem objeto, este


é o próprio objeto a, que deixa o sujeito sem saber dizer de si próprio.
No tratamento com crianças, o efeito da angústia é sentido mais
diretamente pela precariedade do simbólico em tenra idade. Lacan
(1962-63/2005, p. 64) ressalta que
A angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que
devemos conceber num nível duplicado, por ser a falta de
apoio dada pela falta (...) A possibilidade da ausência, eis
a segurança da presença. O que há de mais angustiante
para a criança é, justamente, quando a relação com base
na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a
transforma em desejo, é perturbada, e ela fica pertur-
bada ao máximo quando não há possibilidade de falta.

Será a partir da brincadeira que a criança poderá colocar a


angústia a trabalho, ou seja, a angústia que o real suscita precisará
se converter em uma cena marcada pela fantasia, quando a criança
poderá fantasiar que detém o controle dos acontecimentos, a fim de ir
se instaurando uma separação entre o eu e o Outro, em um processo
de elaboração simbólica que conduza à possibilidade da ausência.
No mês de março de 2020, a COVID-19, que apresentou os
primeiros casos no final do ano de 2019 na República Popular da
China, foi caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS)
como uma pandemia, uma vez que se alastrou por vários países e
regiões do mundo. Diante deste cenário, buscou-se medidas visando
prevenir e reduzir a propagação do vírus, dentre elas o isolamento
social. Escolas, universidades, estabelecimentos comerciais e grandes
empresas se esvaziaram, passando todos a se relacionarem remota-
mente. Uma reinvenção do modo de viver. No aspecto pertinente a
este trabalho, cabe observar uma consequência provocada em parte
das crianças, após passarem longo período restritas à convivência de
seus genitores e familiares próximos: a expressiva dificuldade de se
separarem do seu núcleo familiar.
75
Leituras Psicanalíticas

Com a reabertura gradual da vida extramuros, o retorno das


crianças à escola foi experimentado em uma diversidade de apreensões
por todos que integram o universo escolar – escola, família, alunos.
Por parte das crianças, observamos uma intensificação no laço com a
família, trazendo efeitos como a angústia de separar-se e dificuldades
em inserir-se no laço social escolar. As escolas tiveram papel de desta-
que neste processo, recebendo crianças, adolescentes e profissionais de
educação com as medidas de segurança recomendadas, recolocando-os
neste valioso espaço de aprendizagem. Mas o que faz chorar a criança
ao entrar para a escola? O que ela sente perder? É preciso deixar claro
que a dificuldade de adaptação de algumas crianças ao ingressar na
vida escolar não é, em si, uma novidade, entretanto, o excessivo enla-
çamento aos pais provocado pela situação de isolamento contribuiu
para agravar o sentimento de angústia em alguns casos.
Além disso, é preciso que nos perguntemos até que ponto a
insegurança dos pais e da escola diante da reabertura dos estabele-
cimentos de ensino geraram reflexos negativos nessas crianças mais
acometidas pelo distanciamento, uma vez que os medos e incertezas
estavam para todos. É importante que as famílias de fato autorizem a
entrada dos seus filhos, especialmente os pequenos, e para isso o aco-
lhimento realizado pela escola também faz diferença, pois o conforto
dos pais muitas vezes advém da possibilidade de haver uma mediação
nesta entrada, com o corpo físico dentro do ambiente escolar e o
contato direto com o professor.
Se é verdade que as famílias tentam proteger suas crianças das
dores, havendo um ideal contemporâneo de subtraí-las do conhecimento
de situações desconfortáveis ou difíceis, a fim de não as traumatizar,
também se evidencia que esta prática retira da criança a potencialidade
de elaboração psíquica, deixando-as sem recursos simbólicos para os
enfrentamentos que a vida nos traz. Dessa forma, transmitir a infor-
mação sobre o cenário da pandemia à criança, de modo proporcional

76
Flavia Gaze Bonfim (org.)

à idade, as convoca ao trabalho, a um tempo de compreender que


poderá ajudá-la a arrefecer o sofrimento emergente daquele momento.
No texto “Nota sobre a criança”, Lacan (1969/2003) concentra
em poucas linhas a base teórica do seu ensino sobre o tratamento
psicanalítico com crianças. Dele se extrai a importância da elaboração,
pela criança, do encontro com a diferença sexual, com a castração,
com o real, que deixam um resto, transmitido pela família conjugal.
A análise contribui para a construção do lugar desse real impossível
de ser colocado em palavras, real como marca que o simbólico não dá
conta de eliminar. Diante da dificuldade de dizer sobre este resíduo,
pode emergir o sintoma, como representante da verdade, a qual tem
estrutura de ficção, somente podendo ser semi-dita dentro do uni-
verso simbólico de cada sujeito.
Na análise com crianças, o real está muito presente pela prema-
turação do simbólico. A constituição da verdade vai sendo forjada à
medida que o simbólico vai ganhando consistência imaginária através do
brincar e do que disso escapa do seu jogo com o mundo. De início, ela
pensa que o Outro sabe tudo sobre ela, mas conforme o tempo passa, a
criança vai constituindo a sua própria verdade. São pedaços de verdade,
mas que ela crê ser toda a verdade. Essa crença na verdade é a cons-
tituição própria do seu sintoma. Em O Ego e o Id, Freud (1923/2011)
compreendeu que o eu no qual o sintoma se aloja é a projeção de
uma superfície do corpo. Assim é que a criança supõe que ela é toda
no desejo do casal parental, quando, o que de fato acontece, é que há
sempre a falta-a-ser em relação ao desejo. Nesse sentido, ela é não-toda
também para os pais, o que a livra do aprisionamento alienante.

CONSIDERAÇÕES

A relação da criança com o mundo é de espanto e surpresa a


cada dia. Todos os dias ela se surpreende com o que chega do mundo
exterior e surpreende os que estão ao seu redor com suas imprevisíveis
respostas. É essa imprevisibilidade que muitas vezes os pais erronea-
77
Leituras Psicanalíticas

mente tentam conter, mas a dimensão do imprevisto é fundamental


para indicar que a vida não é toda apreensível pela linguagem. O que
escapa é também sintoma, que tem sua cota de imprevisibilidade e
outra de monotonia de gozo. Ou seja, aquilo que não se submete à
lei ou ao desejo. Aquilo que, como resto, é da ordem da compulsão à
repetição. Se a repetição é da ordem da diferença, é neste ponto de
gozo que uma certa improvisação deve acontecer para barrá-lo.
A improvisação, do lado da escola, tem a ver com o saber fazer
com o imprevisto, no sentido de que o professor tenha a sensibilidade
de usar o inesperado para se aproximar da criança, inventando brin-
cadeiras, acolhendo um objeto transicional, de modo a ajudá-la no
processo de renúncia da própria casa. Já do lado da criança, é preciso
que os pais ousem improvisar quando lhes faltam um saber, abrindo os
trilhos para o filho seguir com as cores por ele escolhidas. O corriqueiro
apelo dos pais a um saber outro, que lhes é entregue sem as marcas
do ambiente familiar, como por exemplo oriundo dos meios digitais,
dificulta a transmissão de subjetividade, que é uma função da família.
Não há como não desafinar entre aquilo que se fala e o que se escuta,
na relação mãe e criança, embora o que essa mãe fala seja único e é
isso que Jean-Michel Vives (2016) chama de “sonata materna”. Essa
modulação de voz é transmitida para além da linguagem e retira o
bebê da situação de desamparo em que nasce. Essa transmissão per-
mite que o filho possa improvisar quando é surpreendido, diante de
um não saber, favorecendo o movimento da separação, a fim de que
a criança possa construir seu próprio estilo.
Tomemos a palavra de Vives (2016, p. 2-3):
Para dar uma interpretação e, portanto, poder responder
de uma maneira “suficientemente boa” às manifestações
frequentemente enigmáticas do infans, a mãe deve
improvisar, no sentido musical do termo que acaba-
mos de dar. Quer dizer que a resposta, proposta pelo
ambiente materno, não tem a ver com o imprevisto, mas
repousa sobre a relação que ele entretém com a língua
78
Flavia Gaze Bonfim (org.)

e a lei, como na música o improvisador se executa em


função de regras musicais interiorizadas. Apenas um
ambiente capaz de improvisar, quer dizer, de reinventar
com e para o infans o dom da fala, pode introduzir a
criança na ordem simbólica, nas leis da linguagem, sem
que esta lei não seja uma lei louca. Isto supõe que o
ambiente da criança seja não somente apto a ouvir um
grito e a interpretá-lo como demanda, mas que possa
trazer aí uma resposta singular na qual pode-se ler
surpresa e prazer (...) é o interesse que a criança dirige
ao timbre materno, ao grão da sua voz, que a conduz a
se alienar na linguagem. Este é o macete: atraída pela
isca (aqui a vocalização materna), a criança morde no
anzol da linguagem e ei-la fisgada.

Talvez, a infância seja a fase em que estamos mais disponíveis


para nos surpreendermos e receber como “herança” a possibilidade de
criar com o que não se sabe, abre um imenso repertório para a criança
elaborar as suas respostas com maior leveza, imprimindo a sua nota
frente às vicissitudes da vida. Neste aspecto, é importante, também,
que a escola possa ser este espaço para o despertar da curiosidade,
tanto no que oferece, quanto na abertura para receber uma surpresa
vinda de um aluno, abraçando o processo de entrada de cada criança
neste outro laço social: o ambiente escolar.
Desse modo, pode-se apreender que por meio do empenho
psíquico realizado pela criança na brincadeira, ela arranja o mundo
à sua forma, de modo a obter alguma satisfação ao se apropriar das
realidades da vida. É assim que ela poderá ir se separando das amar-
ras do Outro, indispensável para a entrada na linguagem e saída da
situação de desamparo fundamental em que nascemos, para entrar em
uma trilha na qual o seu desejo não cesse de insistir.

79
Leituras Psicanalíticas

REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano: Quebrar armadilhas. (2007). São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2009.
FREUD, Sigmund. Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular
intitulada neurose de angústia. (1894-95). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psico-
lógicas Completas de Sigmund Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976.
FREUD, Sigmund. O Escritor e a Fantasia. (1908). In: Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. VIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. (1920). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FREUD, Sigmund. O ego e o id. (1923). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.
XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos.
(1926). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente. (1957-58). Rio de
Janeiro, Zahar, 1999.
LACAN, Jacques. Posição do Inconsciente. (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 10: A angústia. (1962-63). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
(1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, Jacques. Notas sobre a criança. (1969). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 18: De um discurso que não fosse semblante. (1971).
Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
VIVES, Jean-Michel. A improvisação materna. São Paulo: Biblioteca Virtual do Instituto
Vox de Pesquisa em Psicanálise, 2016.

80
LUTO: ASSUNTO DE FAMÍLIA OU DE
DOMÍNIO PÚBLICO?

Danuza Effegem de Souza17


Giselle Falbo Kosovski18

Na hora de por a mesa, éramos cinco:


O meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de por a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles
é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui.
na hora de por a mesa, seremos sempre cinco.
Enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco.

José Luís Peixoto

Tempos de crise como guerras e pandemias são dotados de


uma dimensão paradoxal de destruição e criação que deixa marcas
na história: devastam o mundo, mas desencadeiam expressivo desen-
volvimento, também. O caos que provocam funciona como motor de
criação e reformulação das formas de viver e explorar o mundo, dei-
xando entre os destroços também preciosidades que o saber humano
pode produzir, tanto nas técnicas quanto nas áreas humanas. Desde
2019, o mundo invadido pela contaminação incontrolável pelo Novo

17
Doutoranda em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/5231853178177141
18
Doutora em Psicologia. Professora (UFF).
81
Leituras Psicanalíticas

Coronavírus entrou numa outra frequência em busca de produção


de tecnologia e ciência que dê conta do controle, tratamento e pre-
venção dessa infecção cujas consequências já contabilizam quase 6
milhões de mortes em todo o globo.
As ciências humanas também vêm marchando num intenso
novo ritmo, dedicadas ao trabalho de catalogar e historicizar as marcas
dessa nova realidade sobre as vidas e a subjetividade. A psicologia,
ciência jovem, assim reconhecida no final do século XIX, abraça um
imenso desafio na área do cuidado, administrando o sofrimento e
o desamparo que as duras estatísticas, se não deixam mentir, tam-
pouco encerram em seus cálculos e gráficos. Livros e artigos produ-
zidos com urgência analisam e documentam os desafios impostos,
os quais sacolejam as teorias da subjetividade, colocando-as à prova
do “terremoto” que fez estremecer as certezas de um mundo que nos
parecia presumido e previsível.
A psicanálise, método de pesquisa e tratamento fundado por
Sigmund Freud no século XIX, contribuindo com seus fundamentos
para uma escuta da subjetividade e do inconsciente em diversos espaços
em nossa sociedade, também experiencia uma certa crise, primeira-
mente em sua práxis, dadas as limitações impostas pelos protocolos
de segurança e distanciamento social, assim como em sua produção
teórica, abrindo-se cada vez mais para a interlocução com a política.
Intenso exercício de leitura e debate, à luz do que chega ao
psicanalista pela clínica e pela cultura, animam esse campo que já
se orienta no sentido de acolher de cada época seu mal-estar; afinal,
estar à altura da subjetividade de sua época é a exigência feita por
Lacan aos psicanalistas. Com o crescimento radical dos índices de
óbitos, a morte – questão crucial para a humanidade e indissociável
do mal-estar na cultura, mas atenuada por um mecanismo de negação
que rouba da consciência o “terror da morte”, termo proposto por
Ernest Becker –, veio para o primeiro plano da clínica, com nuances
desconhecidas e muitos tons de desamparo.
82
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Esse contexto nos levou a reconhecer a prevalência e grande


importância do texto de Freud para a leitura teórica do processo de
elaboração de perdas, que ele chamou de trabalho de luto. Lacan, ao
resgatar a pergunta de Freud sobre a dinâmica desse trabalho, indica
que “a questão permanece num estado vago, o que explica a inter-
rupção de toda especulação numa via não obstante aberta por Freud
em “Luto e Melancolia” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 360). Apesar
desse apontamento, ainda hoje constatamos que “Luto e Melancolia”
(1915) permaneceu, em certa medida, um escrito solitário, pouco
articulado aos avanços e reformulações que a psicanálise agregou,
permanecendo aquém do ponto crítico de virada na teoria freudiana
com a introdução da segunda tópica em Além do Princípio do Prazer
(1920). Esse descompasso nos desperta para uma releitura do luto
articulada também à complexa dimensão política que permeia a clínica
e a experiência do sujeito contemporâneo.
É possível que, por ser um texto essencialmente metapsicológico,
este escrito freudiano restrinja-se ao aspecto mais privado do luto ao
colocar o acento na relação particular do sujeito enlutado com o seu
objeto perdido. Por esta razão, tal abordagem pode ser lida em certos
aspectos, conforme pontuam alguns críticos como Jean Allouch,
como individualizante. Opondo-se à Freud, o autor afirma que o luto
não é um problema de casal entre o sujeito e o seu objeto perdido,
destacando que o texto “não se pronuncia sobre a função do público
no luto” (ALLOUCH, 2004, p. 48). Essa impressão é relevante, tendo
em vista que o modelo freudiano do luto deixa vacante a dimensão do
laço social, também muito cara à psicanálise. Contudo, é compreensível,
considerando a natureza do texto, que o recorte freudiano contemple
o esforço de interrogar e descrever os processos mentais inconscientes,
objetivo maior do autor naquele momento crucial de sua teorização.

83
Leituras Psicanalíticas

O LUTO NA METAPSICOLOGIA FREUDIANA

“Luto e Melancolia” faz parte de um pequeno conjunto de arti-


gos dedicados a estabelecer as bases do saber psicanalítico acerca dos
processos psíquicos inconscientes. Seu lugar na obra de Freud indica o
potencial que a experiência de perda tem de mobilizar (ou imobilizar
pelo mecanismo de inibição que a caracteriza) a dinâmica dos processos
subjetivos mentais, tangenciando momentos estruturais da constituição
e demandando uma atenção a esse processo, ainda que Freud o tenha
descrito como normal e finito, sem necessidade de intervenção clínica.
As considerações feitas nesse texto sobre o afeto do luto e o mecanismo
de elaboração da perda precisam ser olhadas como coadjuvantes em um
trabalho que centralizava a melancolia – quadro psiquiátrico – como
objeto de estudo. Assim, “Luto e Melancolia” parece ter alcançado um
destino diferente do que Freud inicialmente pretendera: “uma reflexão,
a partir dos métodos de pesquisa disponíveis à época, sem pretensão de
alcançar conclusões gerais” (FREUD, 1915, p. 249). Todavia, seu valor
testemunha a importância de observar a linha de raciocínio preservada
por Freud em sua obra, que abraça torções, desvios e reformulações,
e ainda a refinada sensibilidade do autor na aproximação do que se
passa na vivência ordinária da perda com o quadro da melancolia.
Um aspecto metodológico a ser observado é que o autor recorre
à comparação como método neste trabalho, assim como em outros
momentos, pois Freud acreditava que processos patológicos poderiam
lançar luz sobre processos normais, ajudando em sua compreen-
são. Como exemplo podemos citar a relação estabelecida a partir da
parafrenia, tomada como paradigma em “Sobre o Narcisismo: uma
introdução” (1914) para explicar o narcisismo. Entretanto, há uma
distinção no que diz respeito ao modo como a comparação opera
em “Luto e Melancolia”, escrito no ano seguinte. Nesta ocasião, para
pensar o quadro patológico, Freud toma como referência o processo
do luto, considerado normal, para conquistar a melancolia. Nesta
abordagem ele parte das considerações do senso comum em direção
84
Flavia Gaze Bonfim (org.)

a uma certa generalização na construção de um saber sobre o luto, ao


se colocar em consonância com a concepção amplamente aceita de
que “o luto é uma reação universal a uma perda, tendo ocorrido ao
longo de toda a história e em diferentes culturas” (FRANCO,2021,
p. 54). Sobre este aspecto Freud afirmou:
É fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego
é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção
que nada deixa a outros propósitos ou a outros inte-
resses. E, realmente, é só porque sabemos explicá-la
tão bem é que essa atitude não nos parece patológica.
(FREUD, 1915, p. 250)

O ponto convergente entre os dois estados – melancolia e luto


– é precisamente o afastamento da atitude normal para com a vida e a
perda de interesse por tudo o que não esteja ligado ao objeto perdido,
suas memórias e lembranças. Deste modo, é bastante nítida a intenção
de aproximação estabelecida entre o estado patológico observado na
melancolia da atitude que pode ser observada no sujeito enlutado –
devotado ao objeto perdido e desligado de sua relação com o mundo
externo. Ainda assim, o texto encaminha o leitor a um questionamento
quanto a uma possível continuidade entre o luto, reação esperada à
perda, e a melancolia, pensada como quadro patológico.
O traço diferencial estabelecido, e demarcado por Freud como
ausente no luto e sempre presente na melancolia, é a perturbação da
autoestima. Não obstante, ele vai além nessa distinção, chegando a
sugerir que a melancolia estaria relacionada a uma perda objetal reti-
rada da consciência, enquanto no luto, “nada haveria de inconsciente
a respeito da perda” (ibid, p. 250). Consideramos que essa leitura de
Freud é consonante com o momento de sua teorização anterior à
introdução do conceito de pulsão de morte e da formulação sobre a
segunda tópica, quando sua aposta ainda estava centrada na inter-
pretação e na emergência do material recalcado como alvo da cura

85
Leituras Psicanalíticas

psicanalítica – o recalcamento estava associado a processos patológicos


e a análise buscava o desvelamento do material inconsciente.
Esta formulação de Freud pode abrir para a interpretação de
que, na perda em jogo no luto – a dita não patológica – não haveria
questões inconscientes. Entretanto, nos pautando nas teses sobre o
inconsciente freudiano – que não é adjetivo – não há como saber,
com exata consciência, o lugar ocupado por um objeto de amor para
o sujeito em sua dimensão fantasmática. Ao sinalizar que a perda em
questão na melancolia parece estar além do que o sujeito pode acessar,
talvez Freud nos indique um caminho para pensar o trabalho de luto
como um percurso em que a realização da perda contemple alguma
elaboração sobre o que foi perdido, para além do objeto de amor.
Assim, verificamos que na psicanálise, o trabalho de luto, seus meios,
dinâmica e os termos de sua conclusão ainda derivam dessa divisão
conceitual estabelecida em 1915, o que, de certa forma, constitui
um desvio do estudo direto sobre o luto em si, enquanto perpetua a
comparação diferencial com a melancolia.
O psiquiatra inglês, Colin Parkes, estudando o luto ao longo de
décadas, nos deixou a seguinte fórmula para pensá-lo: “A dor do luto
é tanto parte da vida quanto a alegria de viver; é talvez, o preço que
pagamos pelo amor, o preço do compromisso”. (PARKES, 1998, p.
23). Nela está resumida a ideia de que o sofrimento no luto é um saldo
da condição social do sujeito que se constitui entre as duas operações
lógicas, alienação e separação do semelhante, como descreve Lacan. De
todo modo, sabemos que a pergunta sobre o estatuto do luto – como
normal ou patológico – precisa permanecer viva, pois a linha que separa
a patologia e a normalidade é um frágil limite, sempre submetido aos
valores e discursos de uma época. Porém, a clínica atual, sobretudo,
nesse contexto de tão numerosas perdas, tanto físicas quanto abstratas,
nos ensina que acolher o sofrimento que elas desencadeiam revela-se
mais urgente do que seguir com o histórico dualismo, que pode até
mesmo cair no maniqueísmo excludente.
86
Flavia Gaze Bonfim (org.)

A partir do entendimento do trabalho realizado pelos sonhos


nas neuroses, Freud formula a questão em torno do luto servindo-se
da mesma lógica de trabalho em jogo na exigência imposta ao psi-
quismo pelas pulsões: “Em que consiste o trabalho que o luto realiza?”
(FREUD, 2015, p. 250). Essa é uma pergunta crucial na direção do
tratamento psicanalítico de um modo geral, e respondê-la é tarefa
incontornável para o psicanalista em nossos dias, frente às numero-
sas perdas vivenciadas em circunstâncias adversas, atravessadas por
sérias questões políticas que situam o fim da vida como uma questão
mediada por fatores sociais, muito além da finitude inexorável, à qual
todos estamos igualmente submetidos.
A resposta de Freud a essa questão, à época, tem embasamento
na teoria da libido, que nutre também o texto de 1914 sobre o nar-
cisismo, oferecendo uma explanação intermediária entre a biologia
e a psicologia, típica de uma psicanálise ainda em trânsito, cami-
nhando da medicina para fundar um novo campo. A libido é pensada
como quantum de energia que faria caminhos migratórios do ego
para os objetos, e vice-versa. Como consequência, quando um objeto
deixasse de existir seria necessário que ele também fosse aniqui-
lado ou neutralizado no psiquismo.
Pensar o trabalho de separação ou expulsão de um objeto
dessa natureza nos leva a questionar o processo inverso, de ligação,
da construção de vínculos, e podemos entender o lugar do luto na
psicanálise, de mãos dadas com o trabalho sobre o narcisismo, que
descreve o mecanismo segundo o qual um sujeito desloca a libido
do eu para outros objetos de amor, adentrando numa vida relacional
com o mundo e com o semelhante.
Nesta perspectiva, o trabalho de luto é pensado como uma espé-
cie de prova contínua imposta ao sujeito para readequar a realidade
psíquica ao mundo externo, registrando quedas e perdas, implicando
em trabalho psíquico, tendo em vista as resistências do sujeito em
abandonar um objeto amado. Assim, o modelo freudiano do trabalho
87
Leituras Psicanalíticas

de luto preconizaria um fim: essa ideia estruturada e finita do processo,


de modo semelhante às tentativas de descrever e aprisionar o luto
em fases, seria uma espécie de “Terra Prometida emocional” (HALL
apud FRANCO, 2021, p. 75) ou, em outros termos, a reprodução do
projeto de cura psicanalítica, à época submetido apenas ao princípio
do prazer. Assim Freud o descrevera:
[...] ainda verificamos que até mesmo a atividade do
aparelho mental mais desenvolvido está sujeita ao
princípio do prazer, isto é, que ela é automaticamente
regulada por sentimentos pertencentes à série prazer-
-desprazer (FREUD, 1915, p. 126).

Embora Freud se depare, ao longo de seu percurso, com impasses


e paradoxos em relação à proposição do prazer como princípio, podemos
dizer, de maneira abreviada que, em 1915, ele considerava a oscilação na
apresentação do estímulo, como fonte de prazer/ desprazer, sem ainda
compreender “que espécie de relação existe entre prazer e desprazer”
(ibid, p. 126). Nesse contexto, ele pensava o luto condicionado ao
triunfo do teste da realidade, nos seguintes termos: “O teste da reali-
dade revelou que o objeto não existe mais, passando a exigir que toda
a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto.” (ibid, p. 250).
A ideia de que recuperada a libido o sujeito poderia substituir
o objeto perdido divide opiniões, inclusive a do próprio Freud, por
igualar todas as relações objetais e, portanto, todas as separações. Não
nos parece exato descartar a singularidade das relações, deduzindo
que todos os objetos ou abstrações são igualmente e integralmente
substituíveis. Butler interroga esse ponto em seus estudos sobre o luto,
numa interessante interlocução com Freud, questionando o que seria
um luto bem-sucedido, ou quando estaria terminado o trabalho de luto:
A esperança inicial de Freud de que uma ligação pudesse
ser retirada e, em seguida, refeita implicava uma certa
substituição dos objetos como um sinal de esperança,
como se a perspectiva de recomeçar na vida se utilizasse
88
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de uma espécie de promiscuidade do objeto libidinal.


(BUTLER, 2020 p. 41)

Acompanhando Freud, Butler se opõe à concepção de luto


condicionada ao esquecimento total ou substituição do ente querido,
“como se a possibilidade de substituição fosse algo que poderíamos
nos esforçar para alcançar” (ibid, p. 41). Como a autora indica, essa
não parece ser a aposta de Freud quando tomamos sua obra como um
todo. Cabe lembrar que uma das formas como Freud definiu a libido
foi como capacidade de amar; e, por esse prisma, não seria apropriado
falar em “promiscuidade” – mas na possibilidade de recuperar a capaci-
dade de amar após uma perda. Nem mesmo seria necessário encerrar
a relação com aquele que partira, mas, flexioná-la de modo que não
represente obstáculo ao início de novas relações e a continuidade do
investimento libidinal em outros objetos amorosos. Seguindo, Butler
sugere que o trabalho de luto consiste em submeter-se a uma trans-
formação aceitando que a perda mudará o sujeito para sempre. Ela
reafirma a perda, mas também seu poder transformador, que não pode
ser mapeado ou planejado (BUTLER, 2020).
Retomando o poema epígrafe como analogia para o trabalho de
luto, teríamos que manter aberta a possibilidade de trazermos mais
pessoas à “mesa” ao longo da vida, sem a imposição de retirar os entes
perdidos dos lugares ocupados um dia. Se pudermos pensar a partilha
amorosa através dessa cena em volta da mesa, o trabalho de luto nos
permitiria sempre convidar mais alguém para o banquete, sem precisar
necessariamente retirar alguém.
Problematizando, então, a ideia de substituição de objeto como o
caminho do trabalho de luto bem-sucedido, recolhemos o apontamento
de Jean Allouch (2004) de que em “Luto e Melancolia”, Freud tentou
resolver o problema da perda do objeto amado tomando-o enquanto
objeto substitutivo (ibid). Não obstante, a obra de Freud testemu-
nha que sua clínica não era restitutiva, havendo discordância entre a
concepção do objeto, tal como aparece em “Luto e Melancolia”, e o
89
Leituras Psicanalíticas

objeto freudiano, fundamentalmente perdido, sublinhado por Lacan


(ibid). Assim, entre as inúmeras abordagens que o texto de Freud
admite, como a interrogação acerca da finitude do trabalho de luto e
da relação com o objeto, da oposição luto e melancolia, do estatuto
do luto como um trabalho, elegemos debater aqui a dimensão social
dessa experiência. Para tanto, acompanharemos Butler nesse esforço
(tão necessário, nesses tempos) de confrontar uma tradição que pensa
o luto como um problema individual ou familiar.
A autora coloca em análise a violência, o luto e a política con-
siderando uma dimensão da vida política que expõe nossa vulnerabi-
lidade à perda e ao trabalho de luto que se segue, buscando uma base
para a comunidade. (BUTLER, 2020).
Reabrir esse tema dialogando com a pesquisa de Butler é unir
a tradição – o pensamento clássico de Freud – ao contemporâneo,
em sua dimensão crítica. Para tanto, é preciso deixar a certeza leiga
e precipitada de um saber sobre o luto, que parece ter sido apenas
um ponto de partida para Freud em “Luto e Melancolia” para na
sequência de suas teorizações abraçar o enigma que ele mesmo
indica em “Sobre a Transitoriedade”:
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos
se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evi-
dente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto
constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos
que por si só não são explicados, mas a partir dos quais
podem ser rastreadas outras coisas obscuras. (FREUD,
1916, p. 318).

LUTO E POLÍTICA

Consideramos essa retomada uma aposta que Freud deixou


inscritas nesse trabalho, apenas introdutório sobre o tema do luto,
marcações dotadas de grande força conceitual em estado bruto, con-
vidando seus leitores a explorá-las à luz do que a psicanálise produziu
90
Flavia Gaze Bonfim (org.)

subsequentemente. O cenário atual torna evidente a necessidade de


uma abordagem do luto que articule os aspectos público e privado no
processo de elaboração de perda: o contexto pandêmico nos proíbe
tratar o luto apenas como uma questão de foro íntimo, e nos ensina
que este tampouco é apenas “um assunto de família” (FRANCO, 2021,
p. 95) e não pode ser apartado de sua inserção cultural e histórica.
Para Lacan, o trabalho de luto coloca em jogo todo o sistema
significante e se realiza no nível do logos, que tem como suportes o
grupo e a comunidade, como culturalmente organizados (LACAN,
1958-1959). Ele afirma que o trabalho de luto é uma satisfação dada à
desordem que se produz com a insuficiência de todos os significantes
em fazer frente ao buraco criado na existência (ibid).
Neste capítulo, desenvolvido à luz das demandas contemporâneas,
desejamos contribuir para o avanço das pesquisas com o tema do luto
afirmando o fino entrelace entre a experiência pública e privada quanto
à vivência do pesar e à elaboração de perdas, considerando as evidências
clínicas de que as vicissitudes trazidas pela pandemia interferem no
processo de elaboração, visto como uma experiência de cunho pes-
soal. Destacamos o impedimento (total ou parcial) de desempenhar
os rituais e cerimônias públicas, e a percepção de que socialmente as
vidas importam de maneira diferente, de modo que os esforços para
impedir a morte são desigualmente distribuídos, e o direito de sofrê-la
também é uma função que depende de certas variáveis sociopolíticas.
A análise de Byung-Chul Han sobre os rituais como “ações
simbólicas que geram comunidade sem comunicação” (HAN, 2021,
p. 9) e cumprem a tarefa de estabilizar a vida por sua repetição, prote-
gendo como uma casa, “tornando habitável o sentimento” (ibid, p. 30)
é bem-vinda neste contexto que demanda distanciamento e redução
das homenagens por questões sanitárias. Han nos diz que rituais são
processos de incorporação em que os regimes válidos e os valores de
uma comunidade são inscritos no corpo, sedimentados. Sobre o ritual
do luto, o autor afirma a constituição de um sentimento coletivo: “No
91
Leituras Psicanalíticas

ritual do luto a comunidade é o sujeito autêntico do luto. A sociedade


abate-o ela mesma em face da experiência da perda” (ibid, p. 24).
Lacan, por sua vez, considera que os ritos funerários não ape-
nas celebram a memória do morto, mas consistem numa intervenção
maciça do simbólico, de caráter macrocósmico, visto que “não há nada
que possa preencher com significantes o buraco no real, a não ser a
totalidade do significante” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 361). O
impedimento ou restrição dos rituais fúnebres, como cumprimento
de protocolos de saúde pública, têm efeitos sobre os processos de
internalização das perdas e torna ainda mais solitário e desamparado o
sujeito enlutado. No entanto, Han nos mostra que já estávamos aban-
donando rituais e convenções de todo o tipo, aderindo a uma assepsia
que varre as narrativas e se satisfaz com dados, passando “do mito para
o dataísmo”, do “conto para o cálculo puro” (HAN, 2021, p. 136). Han
adverte que a abolição dos rituais faz com que o tempo apropriado,
que ele faz corresponder aos “capítulos da vida”, desapareçam (ibid,
p. 59), ou seja, faltam ao sujeito as marcações que escandem a vida e
encerram ciclos e, sem elas, deslizamos pela vida afora (ibid) em um
eterno ciclo de produção e consumo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto pandêmico perdas reais e abstratas se acumulam:


perdemos em liberdade de circulação pelo território, perdemos em
segurança e estabilidade porque a experiência de mundo, assumida
como estável, mostrou-se assujeitada ao desconhecido vírus, colo-
cando em risco a certeza, ainda que a saibamos ilusória em certa
medida, de ter a vida e a morte sob controle. Franco (2021), a respeito
desse contexto adverso estima que entre tantos prejuízos, talvez o
maior seja a perda da ilusão do mundo estável, como a “plataforma
de apego seguro” (ibid, p. 78).
Essa realidade traumática traz para o primeiro plano o desam-
paro, considerado estrutural, recordando nossa fragilidade diante das
92
Flavia Gaze Bonfim (org.)

forças que atingem nossos corpos, conforme nos fala Freud em O


Mal-estar na civilização (1930). Cada vez mais adiada pela ciência,
num mundo cuja população envelhece progressivamente e se preocupa
em administrar as consequências socioeconômicas da longevidade, a
morte rompe com os limites que tornam aceitáveis sua aparição. Ou
seja, não domesticada, faz aparição fora do enquadre do ciclo vital
suposto completo, e passa a habitar o território público, deixando de
ser vista como exceção e articulada aos sentidos de fracasso e vergonha,
como a personagem onipresente ligada ao fracasso (FRANCO, 2021,
p. 104) da qual nos fala Franco:
Por ser inequívoca, universal e inegável, ela afronta
quem aposta no sucesso e a considera símbolo de fra-
casso não apenas pessoal, mas dos valores que norteiam
suas escolhas. Trata-se de uma ferida narcísica pessoal,
social e cultural. (ibid, p. 104)

Passando do lugar de exceção ao lugar comum, a morte, assim


como o controle do vírus, passa a ser entendida como um problema de
saúde pública, evidenciando a importância do laço social, ou seja, da
relação do sujeito ao outro/Outro pois não há salvação para ninguém
de modo individual. Nessas condições, também o luto tem destacada
sua dimensão social e política, o sofrimento atravessa os limites da
família para constituir uma causa pública pela qual precisamos lutar
e nos posicionar coletivamente. Butler coloca em evidência essa dis-
paridade na percepção da experiência do luto:
Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos
isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, des-
politizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece
um senso de comunidade política de ordem complexa,
primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que
têm implicações para teorizar a dependência fundamen-
tal e a responsabilidade ética. (BUTLER, 2020, p. 43)

93
Leituras Psicanalíticas

A autora nos provoca perguntando, partindo do pressuposto de


que a nossa vulnerabilidade à perda e ao luto advém “do fato de sermos
corpos socialmente constituídos, apegados uns aos outros, correndo o
risco de perder tais ligações” (ibid, p. 40): “Quais vidas contam como
vidas?” e “O que concede a uma vida ser passível de luto?” (ibid, p. 40).
A atuação do psicanalista hoje diante de um sujeito enlutado
exige um posicionamento ético advertido da instabilidade e insegurança
predominantes no ambiente social, decorrentes da desigual distribuição
dos recursos de cuidado, que retiram a morte do lugar do inexorável e
a situam no centro do debate político sobre as relações de poder. No
plano da clínica psicanalítica essa crise desdobra-se em perigo (de não
estar à altura do mal-estar desses dias) e, também, em oportunidade –
polos que nos remetem aos dois aspectos que configuram o ideograma
chinês que designa a “crise”. Destacamos ainda que a raiz latina desta
palavra origina também o crisol, que é o vaso para limpar, purificar e
varrer as impurezas do ouro, ou outro metal precioso. Logo, tendo em
face os desafios lançados aos sujeitos nos últimos meses, a psicanálise
também exibe uma produção em floração, uma abertura para reavaliar
e revalidar, ou ratificar algumas premissas teórico-práticas tornando-se,
através do enfrentamento desta questão, mais apurada e mais afinada
com as questões postas pela subjetividade de nosso tempo.

REFERÊNCIAS
ALLOUCH, Jean. Erótica do Luto: no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 2004.
BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte:
Autêntica, 2020.
FRANCO, Maria Helena Pereira. O luto no século 21: uma compreensão abrangente do
fenômeno. São Paulo: Summus editorial, 2021.
FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud (ESB), volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
____. (1915) Luto e melancolia. ESB, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_____. (1916) Sobre a transitoriedade. ESB, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
94
Flavia Gaze Bonfim (org.)

_____. (1920) Além do princípio do prazer. ESB, volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_____. (1930) O mal estar na civilização. ESB, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Petrópolis:
Vozes, 2021.
LACAN, Jacques. (1958-1959). O Seminário livro 6- o desejo e sua interpretação. Rio de
Janeiro: Zahar, 2016.
PARKES, Colin Murray. Luto: Estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus
editorial, 1998.
PEIXOTO, José Luís. A criança em ruínas. Porto Alegre: Dublinense, 2017.

95
IMPACTOS DA GESTÃO NEOLIBERAL NA
PANDEMIA DE COVID-19: O TESTEMUNHO
MELANCÓLICO DO SUJEITO NEOLIBERAL

Flávia Laís Machado Moura19


Claudia Henschel de Lima20
Lilian Faustino da Cruz21
David Miqueias de Oliveira Costa22

INTRODUÇÃO

O capítulo apresenta uma síntese da pesquisa conduzida no


Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade
e Emergência Humanitária (Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia/UFRJ), que se dedica à investigação da racionalidade neolibe-
ral e, mais especificamente, da melancolização como o pathos desta
racionalidade. Desde o ano de 2020, com a irrupção da emergência
humanitária da COVID-19, a pesquisa interroga os impactos psíquicos
da gestão neoliberal, a partir de dois eixos:1. A relação entre neoli-
beralismo em emergências humanitárias; 2. Os processos psíquicos
exigidos por tal modelo de gestão.
Esses eixos encontram sua consistência no estudo de Klein (2008)
sobre a correlação entre emergências humanitárias e reformas estruturais
que levam à redução do Estado de bem-estar social e à expansão do
mercado. Na década de 1980, a avaliação feita por Milton Friedman,
um dos marcos da Escola de Chicago, a respeito do sentido de uma
crise no capitalismo, era bastante precisa. Com efeito, no prefácio de
seu livro Capitalismo e Liberdade, Milton Friedman (2019) afirmara:

19
Mestranda em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/2925624309388207
20
Doutorado em Psicologia (UFRJ). Professora Permanente (UFRJ e UFF).
CV: http://lattes.cnpq.br/3127001494331912
21
Mestranda em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/6806753942326650
22
Mestrando em Psicologia (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/1432828321344496
96
Leituras Psicanalíticas

Apenas uma crise real ou percebida – produz mudanças


verdadeiras. Quando a crise ocorre, as ações dependem
das ideias predominantes. Acredito que essa seja nossa
função básica: desenvolver alternativas para as políticas
públicas vigentes, mantê-las vivas e disponíveis, até
que o politicamente impossível torne-se politicamente
inevitável (FRIEDMAN, 2019, p. 15).

A centralidade da crise como alavanca para reformas inevitá-


veis se atualiza, em 2005, com a emergência devastadora do furacão
Katrina, na cidade de New Orleans. Em entrevista ao The Wall Street
Journal, a conduta de Friedman (2005) foi avaliar que o Katrina era
mais do que uma emergência humanitária, mas a oportunidade para
estabelecer uma reforma estrutural do sistema educacional radical:
A maioria das escolas de Nova Orleans está em ruínas,
assim como as casas das crianças que as frequentaram.
As crianças agora estão espalhadas por todo o país.
Isso é uma tragédia. É também uma oportunidade de
reformar radicalmente o sistema educacional (...) (...)
As escolas de New Orleans estavam falhando pelo
mesmo motivo que as escolas estão falhando em outras
grandes cidades, porque as escolas são de propriedade
e operadas pelo governo. O governo decide o que deve
ser produzido e quem deve consumir seus produtos,
geralmente designando os alunos para escolas perto de
sua residência. O único recurso dos pais insatisfeitos é
mudar de residência ou desistir do subsídio do governo
e pagar a escola dos filhos duas vezes, uma vez em
impostos e outra em mensalidades. (FRIEDMAN,
2005, tradução nossa).

Com base nessas referências, a hipótese da pesquisa conduzida


pelos autores deste capítulo é que o neoliberalismo constitui uma
racionalidade cujo pathos é a melancolização.
Ao longo dos dois anos da emergência humanitária de COVID-
19, a governança brasileira trouxe, para seu enfrentamento, a defesa da
97
Flavia Gaze Bonfim (org.)

liberdade de cada indivíduo acima da saúde da população. Desde 2020,


o governo agitou a bandeira da liberdade individual - um elemento
característico do discurso neoliberal - no quadro de uma emergência
humanitária de alta infecção e letalidade que, por sua vez, impôs medi-
das restritivas de circulação (lockdown, isolamento social, restrição de
eventos coletivos de shows e cultos religiosos), de proteção (máscaras)
e medidas sanitárias de vacinação.
A liberdade é um conceito fundamental do liberalismo clássico
referindo-se à liberdade de possuir bens, à liberdade da propriedade
privada, e a constituição do indivíduo como máxima expressão da pro-
priedade privada. No entanto, a bandeira da liberdade no neoliberalismo
se dá em nome do combate ao modelo do estado de bem-estar social
e do conjunto de políticas que, dele, decorre: políticas educacionais,
políticas econômicas de emprego, políticas habitacionais, políticas
de saúde, políticas sanitárias:
A pessoa livre não perguntará nem o que o país pode
fazer por ela nem o que ela pode fazer pelo país. Inda-
gará, isto sim, ‘o que eu e meus compatriotas podemos
fazer por meio do governo para realizar nossas tarefas
pessoais, para alcançar nossos vários objetivos e propó-
sitos, e acima de tudo, para proteger nossa liberdade?’
(FRIEDMAN, 2019, p. 2, grifos do autor).

A defesa da liberdade individual no neoliberalismo, se ancora


no combate das políticas públicas promovidas pelo Estado – que
passam a ser consideradas como intervencionistas – e na reificação
do indivíduo, do eu. Michel Foucault, em seu curso Nascimento da
Biopolítica (1978-1979/2008), investigara no fundamento do neoli-
beralismo, a constituição de uma racionalidade política que tinha em
seu horizonte a repulsa ao Estado de bem-estar social – considerado
como planificador e intervencionista sobre a vida dos indivíduos.
Com base nesta investigação, Dardot e Laval (2016) denominaram

98
Leituras Psicanalíticas

essa racionalidade neoliberal, de empreendedor de si, e cujos traços


psíquicos são: a unidade do eu e a concorrência:
Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo,
inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a
racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si
mesmo para fortalecer-se e, assim sobreviver na com-
petição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se
a uma produção, a um investimento, a um cálculo de
custos (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330-331).

Com essa colocação sustentamos que o neoliberalismo não é


apenas um modo de regulação dos sistemas de trocas econômicas.
Considerando crises e emergências humanitárias como oportunidade
de dissolução do Estado de bem-estar social, ele é um regime de
produção da unidade do eu e da concorrência, de hiper responsabili-
zação do eu e de melancolização.
Um conjunto de referências transdisciplinares do campo da
ciência política e da psicanálise nos servirão para delimitar a forma
como o Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Sub-
jetividade e Emergência Humanitária vem desenvolvendo a hipótese
da melancolização como pathos do sujeito neoliberal.

RACIONALIDADE NEOLIBERAL: O OBJETIVO É A


MUDANÇA DO CORAÇÃO E DA ALMA

O título desta seção é uma referência direta à entrevista, dada


por Margareth Thatcher, à Ronald Butt do Sunday Times, em 1981.
Na época, ela era a primeira da ministra do Reino Unido, e sua
entrevista revela que o neoliberalismo não é apenas um modo de
regulação dos sistemas de trocas econômicas baseado na maximiza-
ção da concorrência e no livre mercado. Ele é um regime de gestão
social e produção de racionalidade:
O que me irritou sobre toda a direção da política nos
últimos 30 anos é que sempre foi para a sociedade cole-
99
Flavia Gaze Bonfim (org.)

tivista. As pessoas se esqueceram da sociedade pessoal. E


eles dizem: eu conto, eu importo? Para o qual a resposta
curta é sim. E, portanto, não é que eu me debruce sobre
políticas econômicas; é que eu realmente decidi mudar
a abordagem, e mudar a economia é o meio de mudar
essa abordagem. Se você mudar a abordagem, você
realmente está atrás do coração e da alma da nação. A
economia é o método; o objetivo é mudar o coração e
a alma.(THATCHER, 1981, tradução nossa).

Localizada historicamente no terceiro momento do neolibera-


lismo, ou seja, em sua consolidação no campo político por meio da
agenda liberal-conservadora23, essa avaliação de Thatcher (1981) revela-
ria seu êxito na perpetuação de uma racionalidade que incorpora o ideá-
rio neoliberal, a eternização da figura do sujeito unitário, do neossujeito,
pautado pela identidade de si, pela autonomia e pelo empreendedorismo:
Não estamos mais falando das antigas disciplinas que
se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a
dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis. – meto-
dologia institucional que se encontrava em crise havia
muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja
subjetividade deve estar inteiramente envolvida na
atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se
reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o
constitui. (DARDOT E LAVAL, 2016, p. 327)

O apelo ao indivíduo, explícito nesta formulação, revela a exten-


são do modelo da empresa para o funcionamento da subjetividade, de
modo que a cristalização da identidade, a empresa/personal branding é
o novo status quo dos indivíduos. Ao constituir-se segundo o modelo
da empresa, o sujeito neoliberal não interroga sobre o que o país pode
fazer por ele. Ao contrário, ele é livre e responsável por si mesmo com
relação a habitação, emprego, habitação, saúde e educação. Esse ponto
é amplamente abordado por Wendy Brown, em Nas ruínas do neoli-

Essa agenda liberal-conservadora esteve presente no Reino Unido (Margareth Thatcher, 1979), nos
23

Estados Unidos (Ronald Reagan, 1980) e na Alemanha (Helmut Kohl, 1982).


100
Leituras Psicanalíticas

beralismo. A ascensão da política antidemocrática no Ocidente (2019) que


investiga os impactos da dissolução do Estado de bem-estar social,
pelo neoliberalismo, trabalhando com a hipótese de que os valores
da família tradicional assumem a lógica da empresa e asseguram o
funcionamento da racionalidade neoliberal. A autora elenca uma série
de transformações que ela localiza na estrutura da subjetividade. Para
a autora, trata-se de uma transformação na compreensão do que seja
a liberdade, do que são as relações sociais, do que é a moralidade.
A liberdade individual e a apresentação de um si mesmo idêntico,
empreendedor, separa a subjetividade do laço social, dos atributos
que o constituem como cidadão, legitimando a desigualdade pela
concorrência e pelo mérito, a hegemonia da moral conservadora (cujo
pilar é a tríade família-religião-nacionalismo) e, consequentemente, o
esmaecimento da democracia. No lugar do Estado, com suas políticas
garantidoras de habitação, educação, saúde e segurança sanitária, a
família ganha contornos reguladores da manutenção da liberdade
individual, impondo limites para seus membros (BROWN, 2019).
No quadro dessas considerações, a centralidade de crises e
emergências humanitárias são alavancas fundamentais, não só para
reformas inevitáveis do tecido social, como também para a gestão da
responsabilidade sobre o indivíduo. Instabilidades políticas, pandemias,
desastres naturais, produzem mobilizações afetivas que serão o solo para
a realização de reformas estruturais que formatam o funcionamento
do Estado a partir da lógica do mercado, a extrema responsabiliza-
ção individual, até restar à ele apenas o núcleo de sua família e uma
identidade de si profundamente enraizada no empreendedorismo.

O CHOQUE COMO MÉTODO DA GESTÃO


NEOLIBERAL

Guerras, conflitos políticos, desastres naturais e pandemias com-


põem o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu como
sendo o quadro das emergências humanitárias. Seu impacto sobre a
101
Flavia Gaze Bonfim (org.)

subjetividade é enorme, produzindo uma experiência desastrosa de


vulnerabilidade, de confusão mental, de suspensão do julgamento, de
ruptura da cadeia associativa de pensamento, de angústia e medo. A
referência especializada em emergências humanitárias (OPAS, 2020;
FIOCRUZ, 2020) isola com precisão o quadro sintomático, identifi-
cado a partir do primeiro trimestre de uma emergência humanitária:
1. Medo.
2. Sensações de: incerteza quanto ao futuro, impotência
frente aos acontecimentos, desamparo, solidão, tristeza,
luto e ansiedade.
3. Alterações comportamentais: alimentares (ter mais
apetite ou menos apetite), no sono (insônia ou sono
em excesso, pesadelos).
4. Agravamento de conflitos interpessoais com fami-
liares, no trabalho.
5. Alterações no pensamento.

A condição subjetiva imposta por uma emergência humanitária


aponta para o que Freud (1926[1925]/1987) denominara de desam-
paro fundamental (hilflosikheit) e subjaz na base do entendimento do
choque como método do capitalismo de desastre, proposto por Naomi
Klein em A Doutrina de Choque: a ascensão do capitalismo de desastre
(2008). O estudo de Klein (2008) coloca uma questão ética funda-
mental relativa à gestão subjetiva dos impactos de uma emergência
humanitária na vida da população.
O uso do termo choque decorre da observação dos impactos
psicológicos de experimentos de privação sensorial, do tratamento
de transtornos mentais com eletroconvulsoterapia e da concepção de
que a mente é uma tabula rasa que pode ser modificada a partir da
manipulação de estímulos ambientais. O experimento sobre privação
sensorial, conduzido por Donald Hebb, utilizou uma amostra de 63
estudantes universitários, isolados em um ambiente usando óculos
escuros, fones de ouvido com ruídos brancos e cilindros de papelão
102
Leituras Psicanalíticas

cobrindo braços e mãos a fim de dificultar o sentido do tato. Após um


período, Hebb pretendeu ainda mensurar o grau de susceptibilidade da
amostra à “lavagem cerebral” e colocou gravações sobre a existência de
fantasmas e a desonestidade da ciência. Ao final, os estudantes apresen-
tavam sintomas de confusão mental, alucinação, declínio da atividade
intelectual e susceptibilidade às concepções apresentadas nas gravações.
Klein (2008) localiza, nesse experimento, a base que fundamen-
tou a doutrina de que uma crise profunda, causada por instabilidades
políticas, golpes de estado e guerras) e desastres naturais (furacões,
terremotos, ciclones, pandemias), pode ser a oportunidade para a
implementação de reformas profundas na estrutura sociopolítica. De
fato, a doutrina do choque sugere que golpes, desastres naturais, epi-
demias e pandemias são a oportunidade para impor a concepção
radical do livre-mercado, fazer reformas estruturais no modelo de
política econômica a favor de corporações (KLEIN, 2017) e promover
mudanças na estrutura social, precisamente por causa da mobilização
de angústias e medos, da sensação de incerteza provocada. Nessa
perspectiva, o conceito freudiano de identificação e de desamparo,
são fundamentais para o entendimento da constituição do eu e como
suas características narcísicas se relacionam com o terreno das reações
psicológicas previstas pela doutrina do choque.

CONSTITUIÇÃO DO EU E FORMAÇÃO DO LAÇO


SOCIAL PELO LÍDER

O texto Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020) é uma


referência central para entender o processo de constituição do eu e a
produção do sentimento de desamparo. Nele, fica consolidada a impos-
sibilidade de se separar psicologia individual e psicologia social, ou seja,
de se distinguir entre uma psicologia que investigaria os processos de
constituição do eu e uma psicologia dedicada a investigar criticamente
os meios de sujeição social e produção de alienação. Por isso, ao se
dedicar à investigação a lógica da formação do eu a partir do conceito
103
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de identificação, Freud (1921/2011) definiu a constituição do eu pela


alienação às condições materiais da vida social e por sua íntima articu-
lação à figura da autoridade indicando como o eu não é uma instância
de mediação, mas pode vir a ser a própria reificação da autoridade.
O conceito de identificação, em Psicologia das Massas e Análise
do Eu (1921/2011), condensará a presença da figura de autoridade,
o laço afetivo com essa figura e o processo de alienação. E será com
base na fórmula da constituição do eu pela identificação, que inclui o
laço afetivo com a autoridade, que Freud corajosamente formulará uma
teoria sobre a relação entre alienação e autoridade no campo mais amplo
das relações sociais. Essa teoria define como o processo de identificação
mobiliza uma gradação de sentimentos que vai desde o enamoramento
(com a idealização da autoridade) até a sujeição, em que o eu acaba
por desaparecer completamente, em nome da figura hegemônica de
autoridade: humilde sujeição, alienação, despersonalização, solapa-
mento da iniciativa própria, docilidade ausência de crítica, desamparo
e agressividade direcionada ao que não se conforma a essa forma
de identificação pela sujeição.
A formulação de Freud (1921/2020) é clara e indica o caminho
de uma intuição que, muito pouco tempo depois, se converteria em
hipótese a respeito da ascensão do fascismo na Europa: ao mesmo
tempo em que a sujeição à autoridade se alimenta do desamparo, ela
produz, no eu, a alienação, com a ilusão de que a autoridade é a solução.
Freud (1921/2020) retoma, então, seus achados conceituais sobre o
narcisismo, do estado de ânimo à perda do objeto, e o complexo de
édipo para definir o processo de identificação tanto como ambíguo,
como limitado à um traço do objeto. A partir de tais referências,
o autor distinguirá, no capítulo VII, as três formas de identifica-
ção do eu, expostas na tabela 1.

104
Leituras Psicanalíticas

Tabela 1. Formas de identificação, segundo Psicologia das Massas e Análise do Eu


(1921/2020).
Formas Definição
Formação do Ideal do eu (Ser como a pessoa) É a forma de ligação afetiva originária com uma outra
pessoa, que conduz o psiquismo ao posterior investimento
em outros objetos de amor (ter).
Por regressão do ter ao ser A forma de ligação afetiva originária toma o lugar do
investimento em outros objetos de amor (ter), vigorando
a introjeção do objeto no eu.
Infecção psíquica (identificação entre os eus) A forma de ligação afetiva opera entre pessoas a partir
do reconhecimento de um traço comum, sem se orientar
pelo Ideal do eu. A identificação é por imitação e está
fundada em um querer colocar-se no lugar do outro.
Fonte: Freud, 1921/2020

Ele avança em seu raciocínio, no capítulo VIII, onde retoma as


formulações sobre a formação do líder da horda primitiva e a distri-
buição afetiva, pulsional, entre o eu e o objeto. Freud não só esclarece,
na formação do líder, a passagem sutil do enamoramento à sujeição
como, mais fundamentalmente, o grau de funcionamento pulsional,
que vai desde a sua distribuição entre o eu e objeto, até a desaparição
do eu pela sombra do próprio objeto:
(...) o Eu se torna cada vez menos exigente, mais
modesto, e o objeto, cada vez mais grandioso, mais
valioso; este finalmente alcança a posse de todo o amor
próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu
torna-se a consequência natural. O objeto consumiu o
Eu, por assim dizer. Traços de humildade, de restrição
do narcisismo, de causação de danos a si mesmo estão
presentes em qualquer caso de enamoramento; em casos
extremos, eles são simplesmente intensificados, e com
o recuo das reivindicações sensuais, eles ficam sozinhos
a dominar. (...) Silencia-se a crítica exercida por essa
instância; tudo o que o objeto faz e exige é correto e
inatacável. A consciência não encontra aplicação para
tudo que ocorre em favor do objeto; na cegueira amo-
rosa nos tornamos criminosos sem remorso. A situação
inteira se deixa resumir, sem resíduos, em uma fórmula:

105
Flavia Gaze Bonfim (org.)

O objeto colocou-se no lugar do Ideal do eu. (FREUD


1921/2020, p. 188).

Assim, Freud (1921/2020) conduz a distinção fundamental


entre identificação e enamoramento/sujeição:
1. Na identificação: o objeto foi perdido ou renun-
ciou-se a ele; então é novamente instaurado no
Eu, que se modifica parcialmente conforme o
modelo do objeto perdido enriquecendo-se com
suas propriedades.
2. No enamoramento/sujeição: o objeto foi total-
mente conservado (equivalendo ao pai da horda
primitiva, severo, rígido e autoritário) e, como tal,
é sobreinvestido por parte e à custa do Eu.
A lógica do enamoramento/sujeição é caracterizada como hip-
nose pois a posição do eu, neste caso, é a mesma da hipnose: humilde
sujeição, solapamento da iniciativa própria, docilidade e ausência de
crítica ante o mesmerista, exatamente como diante do objeto amado.
Ele é o único objeto, nenhum outro recebe atenção além dele. A figura
1 fora elaborada por Freud (1921/2020) como matriz para a inteligi-
bilidade da constituição do líder a partir da identificação primária ao
pai, localizada no narcisismo.

Figura 1. A Formação do líder segundo a lógica da identificação.

Fonte: FREUD (1921/2020)

A figura 1 mostra como um objeto externo (o traço ou insígnia


de um líder) ocupa o lugar do que o eu ama como seu ideal. O êxito
da constituição da massa reside não só na substituição entre o objeto
106
Leituras Psicanalíticas

externo e o ideal, como também na identificação de cada eu, na massa,


à outros eus: “Uma massa primária como essa é uma quantidade de
indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu Ideal
do eu e, em consequência disso, identificaram-se uns com os outros
em seu eu” (FREUD, 1921/2020, p. 192).
Ao observarmos a formação do líder autoritário do fascismo,
identificamos exatamente a substituição do Ideal do eu pelo líder,
como uma extensão da personalidade. Por isso, o líder é considerado
alguém como nós, com as mesmas preocupações, os mesmos anseios,
segundo um mesmo projeto. O esquema desenha o modelo do lugar
do eu na alienação e da formação do fascismo, revelando como uma
grande quantidade de indivíduos elege e posiciona um único objeto no
lugar do Ideal do eu e em consequência disso:
1. Identificam-se uns com os outros em seus eus.
2. Formam uma relação de semelhantes e o sentimento
de que somos todos iguais.
3. Constituem a imagem unitária do povo.
4. Produzem a segregação agressiva de tudo o que se
opõe a essa imagem unitária.
Essa forma de identificação é denominada de identificação ima-
ginária, precisamente porque situa a formação do líder fascista sobre a
base da identificação especular ao Ideal do eu. Neste sentido, um líder
autoritário, que encarna a imagem unitária do povo, se ergue como
defesa narcísica, agressiva e extremamente violenta da identidade de
si. O esquema de Freud, reproduzido na figura 1, evidencia a estrutura
de personalidade que caracteriza essa identidade de si e sua presença
na própria vida política, tal como Lacan (1938/2003) reconhece por
meio da denominação de psicose social: ancorada na imagem unitária do
povo, ela persegue e expulsa a figura do outro que se apresenta como
diferente dessa unidade. Mas sobre qual estado de ânimo, ela se assenta?

107
Flavia Gaze Bonfim (org.)

MELANCOLIZAÇÃO COMO PATHOS DO SUJEITO


NEOLIBERAL

A hipótese da pesquisa, conduzida pelo Laboratório de Psicopatolo-


gia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária
(Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ), é que a melan-
colização é o pathos do sujeito neoliberal, seguindo a fórmula freudiana
de Luto e Melancolia (1917/2020): a sombra do objeto recai sobre o eu.
Assim, é na formação identificatória de um eu defensivo, agressivo,
rígido e profundamente melancolizado que identificamos, em Freud,
os passos para construção de um entendimento sobre a relação entre
a gênese do eu e a sujeição social à um líder autoritário, na contramão
da ideia de que a ascensão do líder autoritário ocorre em um contexto
de perda, de colapso da identidade. Essa espécie de reversão da pulsão,
abandonando o investimento no objeto e direcionando-se ao eu, revela
uma conformação subjetiva de maior radicalidade, evidenciando a sujeição
do eu ao objeto com retração da pulsão de morte sobre o eu: seria esse
processo de invasão da pulsão de morte no eu, o que está na base da
constituição do sujeito no neoliberalismo? A fim de responder à essa
pergunta, consideremos a identificação melancólica, com a finalidade
de mostrar que a melancolia não produz massa e esclarece o lugar do
líder no funcionamento do neossujeito.
Em Luto e Melancolia (1917/2020), no quadro da reflexão sobre
o destino da pulsão a partir da perda do objeto amado, o impacto da
I Guerra já indicava para Freud a forma como o ser humano se rela-
ciona afetivamente, pathicamente, com a realidade simbólica. Freud
(1917/2020) destaca os seguintes traços na melancolia:
O melancólico ainda nos mostra algo que falta no
luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima
do Eu, um grandioso empobrecimento do Eu. (...) O
doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e
moralmente desprezível; ele se recrimina, insulta-se e
espera ser rejeitado e castigado. Ele se humilha diante
108
Leituras Psicanalíticas

de qualquer pessoa e sente pesar por seus familiares


estarem ligados a uma pessoa tão indigna. Ele não
julga que uma mudança lhe aconteceu, mas estende
sua autocrítica ao passado; ele afirma que nunca foi
melhor. (FREUD, 1917/2020, p. 102-103).

A partir dessa descrição, Freud não só define a distinção entre


os estados de ânimo que um ser humano assume diante da perda do
objeto amado, como também localiza, na melancolia, um estado de
ânimo específico em que se observa a retração do investimento da
pulsão sobre o eu. Na melancolia, no lugar do objeto perdido, ocorre
uma regressão do afeto pulsional até o narcisismo, produzindo essa
experiência melancólica da sombra do objeto recaindo sobre o eu: o eu
se auto recrimina em um movimento de retorno agressivo da pulsão
ao eu, interrogando suas escolhas em um movimento em que o eu é
recriminado por ter feito escolhas erradas, adotado ideologias enganosas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A identificação do sentimento de melancolização na base da


reivindicação de liberdade individual e da alienação profunda à crença
narcísica no poder, na força, do indivíduo contra as adversidades da
vida – ambos localizados no fundamento da reivindicação da liberdade
individual de ir e vir, da rejeição das medidas de isolamento social e
uso de máscaras, da banalização da pandemia e da crença na eficácia
do “kit para tratamento precoce” da COVID-19 – lança alguma luz
à pergunta sobre a relação entre essa dimensão psicológica, típica de
um quadro de despersonalização e melancolização, e a perpetuação do
neoliberalismo. Se por um lado, a espiral de desastres produz reformas
estruturais que retiram o Estado brasileiro da atividade econômica,
de outro esse mesmo Estado intervém para assegurar que essa espiral
produza e aprofunda uma verdadeira despolitização do campo social:

109
Flavia Gaze Bonfim (org.)

1. Alienando a população com relação às condições


materiais de uma emergência humanitária da
amplitude da pandemia de COVID-19.
2. Produzindo no funcionamento psicológico, a “des-
personalização e a crença no poder do indivíduo
investida pelo sentimento de melancolização”.
O cenário das emergências humanitárias lança luz a gestão que
desmantela o aparato estatal e apropria-se da dissolução do alicerce
simbólico em nome da sobrevivência. A eficácia da racionalidade
neoliberal não questiona a crise produzida pelo choque, mas responsa-
biliza cada indivíduo pela resolução e manutenção da ordem, cabendo
a cada instância, “cuidar de seu jardim” (FRIEDMAN, 2019). Talvez
seja esta a verdade na base do tweet do Presidente da República em 16
de junho de 2020: Tiramos o Estado das costas de quem produz e sempre
nos posicionamos contra quaisquer violações de liberdade.

REFERÊNCIAS
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ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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mal-estar na Cultura e Outros Escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, Socie-
dade, Religião: O mal-estar na Cultura e Outros Escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FRIEDMAN, M. Capitalismo e Liberdade, Edição do 40º aniversário. Rio de Janeiro:


LTC, 2019.
FRIEDMAN, M. The Promise of Vouchers. The Wall Street Journal, 2005. Disponível em:
https://www.wsj.com/articles/SB113374845791113764. Acesso em: 2 jan.2022.
KLEIN, N. A doutrina de choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
110
Leituras Psicanalíticas

KLEIN, N. Não Basta Dizer Não: Resistir à Nova Política de Choque e Conquistar o
Mundo do qual Precisamos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017.
Lacan, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938). In: Lacan, J. Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. FIOCRUZ. Saúde mental e Atenção Psicossocial na Pan-
demia COVID-19: Recomendações Gerais. Brasília: FIOCRUZ, 2020.
OPAS - Organização Panamericana de Saúde. Guia de intervenção humanitária (GIH-
-mhGAP): manejo clínico de condições mentais, neurológicas e por uso de substâncias
em emergências humanitárias. Geneva: OPAS, 2020. Disponível em: www.paho.org. Acesso
em: 2 jan.2022.
THATCHER, M. The First Two Years. Interview for Sunday Times. Sunday Times. 3 may,
1981. Disponível em: https://www.margaretthatcher.org/document/104475. Acesso em:
20 jan.2022

111
A ARTE DE UM BOM VENDEDOR ESTÁ EM
VENDER... A FELICIDADE

Pâmela Mizurini24
Paulo Eduardo Viana Vidal25

No decorrer da segunda metade do século XIX, os avanços favo-


recidos pela primeira revolução industrial e seu sistema de fábricas,
somados às novas tecnologias, estimularam a produtividade no sistema
capitalista, que passou a produzir maciçamente. Em consequência, a
maneira como os produtos passaram a ser consumidos também se
transformou, em razão da transição de uma sociedade baseada no
comércio originalmente familiar, para uma sociedade edificada na
massificação da produção e do consumo. Conforme Zaretsky,
As origens da segunda revolução industrial encontram-
-se nas décadas de 1860 e 1870, os anos de infância e
juventude de Freud. Foram essas as décadas que viram
o surgimento da ciência e da tecnologia que a caracte-
rizaram (o dínamo, o aço e os produtos químicos), além
de suas formas características de organização econômica
(as transações bancárias em larga escala, a corporação,
o comércio internacional). O crescimento econômico
se fez acompanhar de forma política, por exemplo, na
Inglaterra, Áustria, Estados Unidos, Alemanha e Japão.
A Inglaterra começou seu longo declínio e os Estados
Unidos, sua ainda mais longa ascensão. A emergência
de uma rede mundial de ferrovias e navios a vapor
promoveu a padronização de pesos, medidas, tempo e
moedas. A alfabetização, a escolarização e as instituições
de pesquisa, em especial as universidades, cresceram
drasticamente, desencadeando o aumento de produ-

24
Mestra em Psicologia Clínica (UFF). Psicanalista associada ao Corpo Freudiano Escola de Psicanálise.
CV: http://lattes.cnpq.br/7998663787880002
25
Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Professor-associado (UFF).
CV: http://lattes.cnpq.br/3921736842674257
112
Leituras Psicanalíticas

tividade subjacente à virada finissecular em direção


ao consumo de massa. (ZARETSKY, 2006, p. 28-29)

Em conformidade com Zaretsky (2006), na Segunda Revo-


lução Industrial (que teve seu término durante a Segunda Guerra
Mundial), houve uma segmentação entre os momentos dedicados
ao trabalho propriamente dito e aqueles dedicados à vida, isto é, ao
lazer do trabalhador, que passou a desfrutar do consumo também
como uma forma de entretenimento. Conforme o autor, a Segunda
Revolução Industrial se iniciou nos Estados Unidos, onde originou-se
a corporação verticalmente integrada, “uma corporação que orga-
nizava não apenas as matérias-primas e a produção, mas também a
publicidade, a comercialização e o consumo” (ZARETSKY, 2006, p.
18). Sendo assim, podemos compreender que o homem moderno vive
em uma sociedade que se modificou ao longo do tempo e os sujeitos
passaram a possuir uma relação distinta com os objetos produzidos
e consumidos. A sociedade da qual tratamos aqui é nomeada por
Baudrillard como sociedade de consumo.
Para Baudrillard (1970/2014), a sociedade de consumo des-
tina um amplo espaço para a publicidade, pois ela é essencial para
uma ressignificação dos objetos como fonte de satisfação, elevando
o consumo ao nível do prazer, permitindo assim a sua ampliação.
Visto isso, o autor também nos aponta que o consumo, assim como
a linguagem, passa a simbolizar uma série de novas representações e
com isso marcar a diferença para os sujeitos por meio dos objetos. E
como a sociedade de consumo também é uma sociedade pós-indus-
trial, sua égide se ergue com os gadgets e Baudrillard nos indica que
não há uma definição específica para eles, mas que podemos pensá-los
como um objeto onde a sua função essencial fica subsumida por um
caráter lúdico, ou seja, o que se consome é completamente diferente
da utilidade do objeto em si. Com isso, o consumo dos gadgets serve
para qualquer outro objetivo: eles assumidamente são atribuídos a
funções secundárias. Por exemplo, quando o carro assume uma função
113
Flavia Gaze Bonfim (org.)

para além do seu emprego de locomoção, considera-se importantes


os cromados, o lugar do volante etc. E, dessa forma, o carro passa a
representar um gadget pelo fato de ingressar em uma lógica modista.
Lacan já comentava o quanto somos dependentes dos
gadgets, desses objetos que invadem cada vez mais a
nossa vida cotidiana, proliferando-se sem controle.
Isto levou diversos analistas a frisar a maneira como
se confundem, para o sujeito, o objeto de consumo e o
objeto do desejo no Discurso Capitalista. (TEIXEIRA,
2005, p. 139)

Nesse momento, é importante observarmos que o discurso


do mestre, submetido aos avanços da ciência e do capitalismo, se
modificou e se transformou no que conhecemos hoje como o dis-
curso do capitalista. A nossa cultura é a cultura dos objetos que ela
produz e esses correspondem à função do discurso que se encon-
tra em questão. Nas palavras de Lacan, o discurso do mestre preci-
sou extrapolar certas fronteiras,
Para isso, foi preciso que ele ultrapassasse certos limites.
Em poucas palavras, isso acontece àquilo cuja mutação
tentei apontar-lhes. Espero que se recordem disso, e se
não recordam – é bem possível –, vou lembrar-lhes já,
já. Falo dessa mutação capital, também ela, que confere
ao discurso do mestre seu estilo capitalista. (LACAN,
1969-1970/1992, p. 178)

Lacan, em Televisão (1973/2003) aponta como aconteceu essa


modificação na qual o discurso do mestre, submetido à ciência, se
transformou no discurso do capitalista. Esse discurso, em especial,
diferente dos outros quatro discursos – discurso do mestre, discurso
da histérica, discurso do analista e discurso universitário – que ele já
havia proferido no seminário O Avesso da Psicanálise.
A começar, todos os discursos anteriores são discursos que fazem
laço social, enquanto o discurso do capitalista é o único discurso que
114
Leituras Psicanalíticas

o foraclui. Lacan alude ao discurso do mestre como relativo ao senhor


antigo e, o discurso capitalista, ao senhor moderno, chegando a afir-
mar que “o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o senhor
moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do
saber (LACAN, 1969-1970/1992, p. 32).
O discurso do capitalista, como já mencionamos, é um discurso
que não faz laço social e por isso existe uma impossibilidade entre o
campo do agente e o campo do outro com o cruzamento das setas.
Assim, um termo não se dirige a outro termo como no discurso do
mestre, e sim, se mantém em um circuito fechado. Isso situa o sujeito
numa posição de comandar o objeto a, e o objeto a também se encontra
na posição de comandar o sujeito. Pelo fato de o circuito ser fechado,
diversamente do que ocorre com os outros discursos, não há a possi-
bilidade de o discurso do capitalista girar para outros discursos.
Teixeira (2005) nos afirma que, no discurso do capitalista, o
sujeito fica completamente eclipsado pelo objeto. Esse discurso possui
como habilidade ofertar diversos e infinitos objetos como substitutos
do objeto causa do desejo, ou melhor, como substitutos do objeto a.
Dessa forma, o mercado produz e comercializa o objeto em série,
universalizando-o. Isso quer dizer que há um nivelamento universal
do desejo, reduzindo esse desejo ao alcance de um balcão de loja,
onde objetos idênticos, seriados, ganham o status de objeto de desejo,
facilmente adquiridos apenas por aqueles que podem pagar por eles
O fato de cada sujeito gozar desse objeto, que é idêntico
para todos, de um modo que acredita singular, não é
um empecilho, mas o atrativo especial que faz com que
cada um sinta que esse objeto padronizado foi conce-
bido especialmente de acordo com a sua fantasia. O
capitalismo debocha, de certa forma, de nossa pretensão
demasiadamente humana de singularidade, vendendo
fantasias feitas em série (TEIXEIRA, 2005, p. 172)

115
Flavia Gaze Bonfim (org.)

O autor completa que isso acontece pelo fato de o mercado


encarnar a figura do Outro, que responde e organiza, a partir de
uma suposição de saber, acerca daquilo que causa desejo, não ape-
nas em um sujeito, mas em todos.
Dessa forma, podemos refletir que, na sociedade de consumo, a
figura do mercado parece saber o que todo mundo deseja e, por isso,
consegue dispor de um objeto fabricado para atender esses desejos. Mas
isso tem seus efeitos colaterais: um deles é reduzir o objeto causa do
desejo a uma bugiganga, da qual o sujeito acaba tornando-se depen-
dente, pois uma outra característica importante é que “a felicidade
constitui a referência absoluta na sociedade de consumo, revelando-
-se como o equivalente autêntico da salvação” (BAUDRILLARD,
1970/2014, p. 49) para os sujeitos que nela habitam e desfrutam.
Dessa maneira, a felicidade passa a ser mensurada pela quantidade
de objetos ou serviços consumidos, carregando assim, atrelada a ela, o
mito da igualdade. Baudrillard (1970), elucida que o mito da igualdade
tem as suas origens na revolução industrial e foi a partir desta que a
felicidade e o bem-estar ganharam um lugar de destaque na sociedade,
passando a ser mensuráveis por objetos consumidos em detrimento
de uma vida mais confortável e como um signo de êxito social.
Visto isso, consideremos que Freud, por meio de suas muitas
reflexões acerca da sociedade, se indagou em seu livro O mal-estar na
civilização (1930) sobre qual seria a finalidade e a intenção de vida
do homem. E é a partir desse questionamento que nos afirma que
não é difícil acertar a resposta: “eles buscam felicidade, querem se
tornar e permanecer felizes”. (FREUD, 1930/2010, p. 29-30). Diante
do esforço do sujeito em buscar a felicidade como intenção de vida,
Freud ainda nos alerta que essa procura se defronta diretamente com
os paradoxos da satisfação. O psicanalista concebe que “essa busca
tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência
de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No
sentido mais estrito da palavra, ‘felicidade’ se refere apenas à segunda”
116
Leituras Psicanalíticas

(FREUD, 1930/2010, p. 30). Assim, a partir dessa demarcação entre


ausência de desprazer e a vivência de prazeres intensos, ele nos acres-
centa que essa divisão de metas responde diretamente ao programa
do princípio do prazer. Vejamos:
Como se vê, é simplesmente o programa do princípio
do prazer que estabelece a finalidade da vida. Esse
princípio predomina o desempenho do aparelho psí-
quico desde o começo; não há dúvidas quanto a sua
adequação, mas o seu programa está em desacordo
com o mundo inteiro; (…) Aquilo a que chamamos
felicidade, no sentido mais estrito, vem da satisfação
repentina de necessidades altamente represadas, e por
natureza é possível apenas como fenômeno episódico
(FREUD, 1930/2010, p. 30-31).

Freud igualmente constata que, mesmo que sigamos diferentes


caminhos, jamais conseguiremos alcançar tudo o que desejamos, pois o
princípio do prazer nos impõe um programa onde a felicidade consiste
em um problema de economia libidinal. Esse programa é irrealizável.
Ou seja, nas palavras de Freud:
O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo prin-
cípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido
– ou melhor, não somos capazes de – abandonar os
esforços para de alguma maneira tornar menos distante
a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que
podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo
positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao nega-
tivo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos
podemos alcançar tudo o que desejamos. No sentido
moderado em que é admitida como possível, a felicidade
constitui um problema de economia libidinal (FREUD,
1930/2010, p. 40).

Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud ilustra, como já


vimos anteriormente, que o princípio do prazer funciona de forma a

117
Flavia Gaze Bonfim (org.)

direcionar a energia e a descarga pulsional com o objetivo de atingir


o prazer, ou seja, de alcançar a felicidade.
Em virtude de o sujeito contemporâneo ter um acesso mais
facilitado aos objetos, devido à sua produção em massa, esse sujeito
pode recorrer à compra de tais objetos na tentativa de alcançar um
bálsamo, uma defesa para o seu mal-estar, numa busca incessante de
sua felicidade. Pois, dessa forma, o consumo passa a representar o
mais novo exemplar de felicidade dito pela sociedade, de acordo com
Santos (2009). Em outros termos, o ato de comprar objetos, em alguns
casos de maneira excessiva, demonstra uma tentativa de evitação de
um mal-estar, ou seja, a evitação de uma insatisfação, um desprazer,
para afastar um sofrimento. Assim, de acordo com a autora, a nossa
sociedade se apoiou na possibilidade de gerir a busca de prazer dos
sujeitos por meio dos objetos de consumo como satisfação.
Conforme Costa (2005), ainda há uma dificuldade concer-
nente à articulação entre felicidade e prazer. Ele demonstra que,
quanto mais proferimos a minimização do sofrimento e a otimização
do prazer, “mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos
com o sofrimento que não podemos evitar” (COSTA, 2005, p. 197).
Assim, o consumo excessivo surge como um suporte na tentativa de
alcançar a felicidade, já que é a partir de uma insatisfação do sujeito
que emerge o consumidor modelo, pois a insatisfação “é o motor do
consumismo” (COSTA, 2005, p. 139).
O autor ainda acrescenta que, na sociedade de consumo, a feli-
cidade surge como um bem, passível de ser comprado, desfrutado e
acumulado. Porém, nunca alcançável por inteiro, mas sempre pela
metade. Ele nos indica que “a felicidade que se consome no instante
em que se realiza é uma felicidade pela metade, um aperitivo que
desperta a fome sem poder saciá-la” (COSTA, 2005, p. 94).
Já os autores Bernard & Dumoulin (2019) observaram que,
em se tratando de uma sociedade capitalista, existe uma lógica, ou
melhor, um jogo entre a oferta e a demanda. Eles nos indicam que o
118
Leituras Psicanalíticas

capitalismo soube industrializar a dialética que há entre a demanda e


o desejo, que era, até então, algo exclusivo da estrutura neurótica. Os
autores nos apontam que, se tratando do consumo e sua repetição,
o que está em questão é a dependência do sujeito neurótico frente
à demanda do Outro. Ressaltam que o sujeito que se encontra na
estrutura neurótica, pergunta repetitivamente ao Outro o que está
faltando, supondo que este possua a resposta para a sua pergunta, ou
seja, que esse Outro saiba o que lhe falta. Contudo, nos adverte que, em
se tratando do Outro, nenhuma resposta será totalmente satisfatória,
marcando uma diferença, uma lacuna entre o que esse sujeito solicitou
e o que ele recebeu, revelando uma falta. Assim, Bernard & Dumou-
lin (2019) afirmam que diante da falta, ou melhor, da lacuna que há
entre a demanda e o desejo, o que aparece é a impossibilidade de uma
completa satisfação. Desse modo, eles assinalam que na língua francesa
há uma frase que corresponde exatamente a isso, que é: “um pedido
não satisfeito ‘deixa algo a desejar’” (BERNARD & DUMOULIN,
2019, p. 712)26. Os autores ainda acrescentam que há um paradoxo em
questão, pois o sujeito, de certa forma, também deseja que seu pedido
não seja satisfeito, pois se seu desejo for satisfeito totalmente, o sujeito
não pode mais continuar desejando.
Bernard & Dumoulin (2019), também nos apontam que o
sujeito eurótico se aliena no desejo do Outro, para que assim esse
Outro lhe ordene o que desejar, se colocando como objeto do desejo
desse Outro. Eles nos dão como exemplo um sujeito no restaurante.
Vamos pensar em um sujeito com seus pequenos cons-
trangimentos em um restaurante, quando o menu chega
às suas mãos, ansioso para dizer o que quer, ele se volta
para o Outro para ele fazer alguma sugestão, ou seja, a
oferta, senão a ordem do dia.

Parece, portanto, haver uma alienação voluntária do


sujeito neurótico diante do Outro, para o qual ele deixa

26
No original: qu’une demande non satisfaite «laisse à désirer».
119
Flavia Gaze Bonfim (org.)

se enganar em seu desejo. Em vez de seguir o caminho


de seu desejo, isto é, de sua falta, do que “deixa a dese-
jar” e o separaria do Outro, o neurótico escolhe pron-
tamente uma alienação tranquilizadora, que poderia
então ser entendida como “Deixa desejar”. O maître
então indica ao sujeito aonde e como ir, até mesmo lhe
fazendo várias propostas contraditórias, promovendo
a ilusão inibidora de um “constrangimento quanto à
escolha” (BERNARD & DUMOULIN,2019, p. 713.
Tradução nossa)27

É a partir dessa afirmação que os autores traçam um cruzamento


entre a lógica da neurose com a lógica capitalista, no chamado jogo
da oferta e demanda. É por meio desse jogo, que eles afirmam que o
capitalismo soube industrializar a dialética do desejo e da demanda.
Para demonstrar isso melhor, eles recorrem a um pequeno apólogo
conhecido como “a arte do vendedor” que Lacan apresenta em seu
seminário A lógica da fantasia (1966-1967). Por meio desse apólogo,
Lacan demonstra uma arte da oferta disposta a criar demanda, que
se fundamenta em fazer um sujeito desejar um objeto do qual não
necessita, para assim levar esse sujeito a desejar tal objeto. De acordo
com Bernard & Dumoulin (2019), é possível observarmos, por meio
desse apólogo, não só como o sujeito pede ao Outro o objeto do qual
sente falta e que deveria desejar por si mesmo, mas como esse sujeito
está disposto a pagar por um objeto. Com isso, eles elucidam o primeiro
princípio da arte de um bom vendedor, que é a de persuadir alguém
a desejar um objeto do qual ele não precisa.
O desejo, lembramos, é sempre o desejo d’Outra coisa,
portanto precisamente do que se distingue da necessi-
27
No original: Pensons ici à ses petits embarras au restaurant, quand le menu entre les mains, pressé
de dire ce qu’il veut, il se tournera alors vers l’Autre pour lui demander quelque suggestion, c’est à dire
l’offre, si ce n’est l’ordre, du jour. Il apparaît donc une aliénation volontaire du sujet névrosé à la demande
de l’Autre, à laquelle il se laisse aller pour tromper son désir. Plutôt qu’emprunter la voie de son désir,
c’est-à-dire de son manque, de ce qui «laisse à désirer» et le séparerait de l’Autre, le névrosé opte volontiers
pour une aliénation rassurante, ce qui pourrait être alors entendu comme une «laisse à désirer». Le maître
indique alors au sujet où et comment se diriger, quitte à lui faire plusieurs propositions contradictoires,
lui laissant l’illusion inhibante d’un «embarras du choix».
120
Leituras Psicanalíticas

dade. E é por isso que nada como a besteira, o supérfluo,


algo que não precisamos, faz brilhar o objeto do desejo.
Assim, é só uma questão de estimular o sujeito a solicitar
esse objeto do Outro, ou seja, convidá-lo a substituir
o objeto da lógica de seu desejo a de sua demanda, de
acordo com o princípio da neurose. (BERNARD &
DUMOULIN,2019, p. 713. Tradução nossa)28.

Conforme Lacan (1966-1967), o segundo princípio da arte de


um bom vendedor está relacionado ao fato de o vendedor convencer o
sujeito de que se ele não comprar o objeto, esse lhe fará muita falta. Isso
também ocorre frente a uma ameaça. Melhor dizendo, se o sujeito em
questão não comprar o objeto que está disponível naquele momento, há
a possibilidade de um outro sujeito vir e comprar em seu lugar o objeto
do qual se trata. Com isso, esse outro sujeito terá posse do objeto, e ao
possuí-lo será superior e mais feliz diante do sujeito que não comprou.
Todavia, Bernard & Dumoulin (2019) apontam que o neurótico
está alienado ao desejo do Outro, às suas ofertas e promessas de feli-
cidade, e tentará substituir o seu próprio desejo pelo pedido que esse
Outro lhe faz, ao indicar o que o sujeito deve comprar. Conforman-
do-se ao fato de que esse Outro, que pode estar no papel do mercado,
de uma publicidade ou de um vendedor, lhe sugira os objetos a serem
consumidos. Os autores acrescentam ainda que o sujeito compra
repetitivamente na tentativa de se redimir de sua dívida simbólica –
que ao instituir o desejo, funda uma falta irremediável – ao adquirir
uma dívida financeira em seu lugar e nos lembram que, para Lacan,
a dívida simbólica existe, pura e simplesmente, pelo fato do sujeito
falar e por mais que se tente, a dívida simbólica jamais será liquidada.
A consequência é que mesmo que o sujeito insista, alienando-se às
promessas de felicidade sugeridas pelo Outro, ou seja, à felicidade

28
No original: Le désir, avons-nous rappelé, est toujours désir d’Autre chose et donc justement ce qui
se distingue du besoin. Et c’est pourquoi rien de tel qu’une connerie, que le superflu, que quelque chose
dont on n’a nul besoin, pour faire miroiter l’objet du désir. Après quoi il s’agira en effet de pousser le
sujet à demander cet objet à l’Autre, c’est à dire de l’inviter à substituer à la logique de son désir celle de
la demande, selon le principe de la névrose.
121
Flavia Gaze Bonfim (org.)

ofertada em forma de objeto por um vendedor, o que ocorre é que ele


se afasta cada vez mais de seu desejo singular.

REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo (1970). Portugal: Edições 70. (2014).
BERNARD, D; DUMOULIN, Q. Désirer, acheter, consommer. Approche lacanienne. Rev.
latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 22, n. 4, p. 710-724, dez. 2019. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142019000400710&ln-
g=pt&nrm=iso>. Acesso em: 28 jan. 2022.
COSTA, P. M. Propaganda: o prazer como mercadoria. Signos do consumo – V.3, N.2,
2011. p. 167-180.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer e outros textos (1920) In: Obras Completas.
Vol. 14 / Sigmund Freud; Tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psica-
nálise e outros textos. (1930) In: Obras Completas. Vol. 18 / Sigmund Freud; Tradução e
notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, Jacques. Séminaire la logique du fantasme. (1966-1967), Inédito. Disponível em:
<http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2022.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Jacques
Lacan; Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; Tradução Ari Roitman. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992.
LACAN, Jacques. Televisão (1973). In: Outros escritos. Jacques Lacan; Tradução Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
SANTOS, E. J. O discurso do capitalista e a questão do sujeito no laço social. Dissertação
de mestrado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia. p. 165. Belo Horizonte, 2009.
TEIXEIRA, M. R. Vicissitudes do objeto. Salvador, BA: Àgalma, 2005.
ZARETSKY, Eli. Segredos da Alma: Uma história sociocultural da psicanálise. Tradução:
Marta Rosas. São Paulo: Cultrix, 2006.

122
CONSUMO E MÍDIAS DIGITAIS NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO: CONTRIBUIÇÕES DA
PSICANÁLISE

Camila de Paula Caldeira29


Simone Ravizzini30

INTRODUÇÃO

O crescimento das mídias e plataformas digitais deu origem a


questionamentos acerca do seu uso e também sobre a relação que se
estabeleceu entre elas e a produção de subjetividade na contempora-
neidade. Como o acesso ao consumo está cada vez mais facilitado, uma
vez que não há mais necessidade de ir até lojas físicas para tomarmos
conhecimento de novidades, temos maiores facilidades com a pos-
sibilidade de pagamento digital e observamos um encurtamento da
distância entre o consumidor e os produtos.
A partir de tal constatação no ideário social, este estudo visa
questionar se, ao consumir tais objetos, se estaria mais próximo
de uma sensação de completude, de satisfação, e quais as con-
sequências disso para o sujeito.

DESENVOLVIMENTO

Os consumidores têm a impressão de que a posse de determinados


objetos ou a possibilidade de realizar qualquer intervenção no corpo
que responda às exigências culturais possam trazer felicidade, uma
sensação de completude e de satisfação que não existe na realidade, a
não ser por um momento muito específico e passageiro. As próprias

29
Pós-graduação em Clínica Psicanalítica (UNILASALLE). Psicanalista.
CV: http://lattes.cnpq.br/2460838552626728
30
Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Docente e coordenadora. Psicanalista. Membro do Coletivo
Entrelinhas da Psicanálise. CV: http://lattes.cnpq.br/8233551200025079
123
Leituras Psicanalíticas

exigências culturais se modificam ao longo do desenvolvimento da


sociedade, ou seja, sempre existirá algo novo por meio do qual seja
possível alcançar essa suposta felicidade que inclusive é uma ideia
vendida pelos meios publicitários e pelo discurso capitalista.
De acordo com Freud (1930/2020), o que os seres humanos
querem alcançar na vida – e fazem disso seu propósito – é a felicidade,
querem ser felizes e permanecer assim. Nota-se, assim, que o que
determina o propósito da vida é o programa do princípio do prazer
(FREUD, 1930/2020). Por estar em conflito com o mundo inteiro, ele
é irrealizável, já que a felicidade não é contínua e só é possível enquanto
fenômeno episódico. Assim, a felicidade é limitada de acordo com a pró-
pria constituição do ser humano, e, portanto, esse conceito de felicidade
como obtenção apenas de prazer é impossível que de fato se alcance.
A infelicidade, por outro lado, é muito mais facilmente experi-
mentada (FREUD, 1930/2020). O sofrimento e a infelicidade podem
surgir por meio de três fontes: do próprio corpo, do mundo exterior
(poder superior da natureza) e da relação com os outros seres humanos,
portanto, dos dispositivos que regulam essa relação e da inadequação
dos indivíduos a eles. Por conta disso, as exigências de felicidade são
reduzidas a um ponto onde seja mais fácil de alcançar.
No que diz respeito à terceira fonte de sofrimento, chamada
social, Freud (1930/2020) questiona como os dispositivos criados por
nós mesmos, que deveriam trazer segurança, benefícios e proteção,
são, ao contrário, fonte de sofrimento. Daí a possibilidade de que
isso venha da própria constituição psíquica, e a questão de que uma
grande parcela da culpa pelo nosso sofrimento vem da nossa cultura,
pois a cultura implica ganhar algo e ao mesmo tempo perder outra
coisa. Segundo Freud (1930/2020), grande parte da culpa pela miséria
dos seres humanos vem da cultura, e seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Por outro
lado, é através da mesma cultura que tentamos nos proteger da ameaça
que provém das fontes de sofrimento.
124
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Ademais, o desenvolvimento da cultura é caracterizado pelas


modificações que ele empreende nas disposições pulsionais humanas,
“cuja satisfação não deixa de ser a tarefa econômica de nossa vida”
(FREUD, 1930/2020, p. 346). Como consequência, a cultura é construída
sobre a renúncia pulsional, tendo como pressuposto a não satisfação de
poderosas pulsões e dominando as relações sociais dos seres humanos.
Freud (1920/2020) observa que a pulsão recalcada não desiste
de alcançar sua completa satisfação, o que significaria a repetição
de uma experiência primária de satisfação. A pressão por um contí-
nuo aperfeiçoamento em alguns seres humanos pode ser entendida
como consequência do recalcamento pulsional. Entretanto, mesmo
as formações substitutivas, reativas e sublimações não são suficientes
para desfazer essa tensão que impele a satisfazer a pulsão, o que não
significa que o indivíduo é livre em tal tentativa. Ao contrário, ele “é
escravo de um impulso que o impele para um prazer cuja natureza é,
ao mesmo tempo, paradoxal, pois em nada se confunde com o bom
ou o agradável” (BAUMAN; DESSAL, 2017, p. 21).
Segundo Freud, uma pulsão seria “uma pressão inerente ao
orgânico animado para restabelecer um estado anterior, pressão
que esse ser animado precisou abandonar sob a influência de forças
perturbadoras externas” (1920/2020, p. 131). É aí que a pulsão se
associa à compulsão à repetição, pois, ainda que não seja uma expe-
riência prazerosa ou que leve à satisfação, ela é repetida por pressão
da compulsão (FREUD, 1920/2020).
Dessa forma, observa-se que a pulsão não tem apenas o caráter de
transformação e de desenvolvimento, mas também existe nela o fator
da conservação do ser vivo forçada pela repetição, orientada à regressão.
As pulsões, entretanto, não são da mesma ordem. Elas são divididas
entre pulsões de vida e pulsões de morte. As primeiras constituem as
pulsões sexuais, conservadoras, no sentido de trazerem de volta esta-
dos anteriores. Também são mais resistentes às influências externas,
preservando a vida por períodos mais longos (FREUD, 1920/2020).
125
Leituras Psicanalíticas

Entretanto, é necessário que haja outra pulsão em oposição a essa e


que ao invés de tentar conservar a substância vivente e desenvolvê-la,
anseia pelo retorno ao estado primordial, inorgânico, a pulsão de morte
(FREUD, 1930/2020). A satisfação da pulsão de morte “está conectada
a um gozo [Genβ] narcísico extraordinariamente elevado, pelo fato de
essa satisfação mostrar ao Eu a realização de seus antigos desejos de
onipotência” (FREUD, 1930/2020, p. 375), tentando propiciar ao Eu
a satisfação de necessidades vitais e controle sobre a natureza.
A cultura encontra nessa pulsão seu obstáculo mais poderoso,
uma vez que a pulsão de morte carrega com ela a inclinação origi-
nária e autônoma do ser humano à agressão. Ela seria um processo
a serviço de Eros, ao tentar agrupar os sujeitos isolados em grupos,
tribos, famílias, ou seja, em uma unidade. Esses conjuntos de sujei-
tos devem ser ligados uns aos outros libidinalmente, pois apenas o
campo das necessidades e do trabalho não seriam suficientes para que
ficassem unidos (FREUD, 1930/2020).
Em determinadas circunstâncias essa estrutura pode desatar e
disso pode resultar o desprendimento da pulsão de morte, liberando
as barreiras de contenção e impondo até o extremo a autodestruição
ou a agressão contra o outro. Na atualidade, isso pode ser relacionado
com a convergência entre o discurso do capital e o discurso técnico-
-científico, na intenção de estabelecer um modelo definitivo, absoluto
e imperecível da verdade (BAUMAN; DESSAL, 2017).
Para Freud (1930/2020), a forma como a cultura inibe essa
tendência à agressividade dos indivíduos é através de sua introjeção,
interiorização. Na verdade, a agressão retorna para o lugar de onde
veio, ou seja, é voltada contra o próprio Eu e uma parte do Eu –
Supereu – opondo-se ao restante como se fosse uma “consciência
moral”. O Supereu exerce a agressão contra o Eu e a tensão entre
essas duas instâncias resulta na consciência de culpa, que se mani-
festa pela necessidade de punição. Dessa forma, a cultura lida com a

126
Flavia Gaze Bonfim (org.)

tendência à agressão enfraquecendo e vigiando os indivíduos através


do Supereu (FREUD, 1930/2020).
O sentimento de culpa também tem origem no medo da auto-
ridade externa, a princípio o medo da criança da autoridade dos
pais e, portanto, o medo da perda do amor. Nesse caso, o sujeito – a
criança – é obrigada a renunciar às satisfações pulsionais para não
perder o amor. Já no caso do Supereu, uma vez que, ao contrário do
que ocorre com a autoridade, não se pode esconder os desejos proibi-
dos dele, obriga, então, à punição. A severidade do Supereu prolonga
a severidade da autoridade externa, interioriza-a, numa espécie de
substituição (FREUD, 1930/2020).
Ao questionar qual seria a relação entre a renúncia pulsional e
a consciência de culpa, Freud (1930/2020) aponta que ao se realizar
a renúncia por medo da autoridade externa não restaria sentimento
de culpa, pois estaria mantendo, garantindo, o amor. Porém, isso não
ocorre com o medo do Supereu. Apesar da renúncia ser bem-su-
cedida, restará o sentimento de culpa e a tensão de tal sentimento
resulta em uma contínua infelicidade.
Freud (1930/2020) articula também a ideia da “consciência moral”
relacionada à cultura e, logo, com a forma de estarmos em sociedade.
Ainda que essa seja uma instância interna, ela é também afetada pelo
meio externo, havendo um lado do Supereu que trabalha com as
exigências próprias do sujeito e outro que internaliza as exigências
externas, por meio da educação, por exemplo.
De tal forma, a comunidade também forma um Supereu e sua
origem é semelhante àquela do sujeito. Tanto o “Supereu-da-cultura”
quanto o do sujeito estabelece severas exigências ideais – como se
deve pensar, agir, falar –, que se não forem cumpridas levam à punição
(FREUD, 1930/2020). Os processos de desenvolvimento cultural da
massa e da própria pessoa são, portanto, colados um ao outro.
Nesse ponto, retornamos ao que Freud expõe acerca da terceira
fonte de sofrimento, a social. Entre o sujeito e o coletivo – tanto os
127
Leituras Psicanalíticas

semelhantes quanto as instituições que os organizam –, sempre haverá


um conflito, pois as condições externas dificilmente serão ideais.
Segundo Bauman e Dessal (2017), os impulsos dos seres humanos
vão de encontro com as exigências culturais.
Uma vez que para a cultura se desenvolver requer que se perca
algo à custa de outra coisa, Bauman e Dessal (2017) enunciam que a
tensão entre os desejos individuais e as demandas sociais se afrouxa-
ria caso fosse possível atender às duas exigências ao mesmo tempo,
mas é impossível que isso ocorra. Para atingir uma vida suportável,
“vivível”, são indispensáveis tanto a liberdade de agir de acordo com
os próprios impulsos e desejos, quanto às restrições impostas pela
cultura. Assim, é possível o equilíbrio para que não resulte em uma
desorientação e nem em uma escravidão. Afinal, o descontentamento
é fruto do processo civilizador (BAUMAN; DESSAL, 2017): para
estar na cultura é necessário perder algo.
Em nosso tempo, entretanto, a fartura na oferta de produtos gera
ansiedade e urgência para consumir e a facilidade de abandonar os
outros objetos comprados anteriormente, que, agora, já não possuem
mais o mesmo valor, porque ultrapassados (BAUMAN; DESSAL,
2017). Segundo Bauman e Dessal (2017, p. 43),
A vida da geração jovem é vivida hoje num estado de
emergência perpétua. É preciso manter os olhos bem
abertos e aguçar os ouvidos de forma constante para
captar de imediato as visões e os sons do novo: o novo
que sempre “já está vindo”, a uma velocidade só com-
parável à de um bólido que passa e se esfuma num
instante. Não há um momento a perder. Desacelerar
é desperdiçar.

LAÇO SOCIAL E DISCURSOS

O psicanalista Romildo do Rêgo Barros (2005) declara que há


uma transformação no laço social e na relação mantida com os objetos
128
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de consumo, em que muitas vezes sequer se questiona o porquê de se


estar consumindo, comprando-se apenas por existirem. Dessa forma,
no consumismo, a demanda do sujeito se torna menos específica, a
sociedade passa a se concentrar na produção propriamente e o objeto
perde a sua referência (ainda que ilusória) à necessidade.
A publicidade e o marketing agem continuamente ao não abrir
espaço para o intervalo em que o objeto faltaria, pois vendem sempre
algo novo que vem para ocupar esse lugar de falta. Consequentemente,
os objetos passam a ser considerados em série, um em relação a outro,
e o recurso utilizado para que se mantenha essa lógica e um equilíbrio
entre objetos e demandas do sujeito é por meio de estratégias baseadas
na repetição e na insistência (BARROS, 2005).
Na dinâmica das mídias digitais é possível perceber com cla-
reza essa relação que se estabelece com o consumo, pois atualmente
elas são um dos principais lugares onde o laço social acontece, ainda
que virtual. É nesse espaço que o consumo é compartilhado, como,
por exemplo, as mais novas compras, os objetos mais atualizados, os
procedimentos de estética, as viagens mais interessantes. Com isso, o
próprio limite entre o público e o privado fica cada vez menor diante
da “necessidade” de ter que compartilhar para poder, de alguma forma,
validar o que foi feito e atestar a felicidade.
Portanto, a partir do que foi exposto por Freud (1930/2020)
acerca da felicidade e do processo civilizador, é plausível o questio-
namento sobre qual relação existe entre a busca da felicidade ideal e
a forma como os sujeitos se inserem no laço social, que atualmente é
cada vez mais mediado pelas redes sociais.
A partir do momento que essa busca da felicidade passa pelo
consumo e se dá como um tipo de prestação de contas – enquanto
resposta a um “Supereu-da-cultura” (FREUD, 1930/2020, p. 400)
–, isso tem consequências nas formas de enlace entre os seres. Ao
mesmo tempo em que os meios de comunicação são aprimorados,
as formas de enlace são ampliadas. Entretanto, no mundo contem-
129
Leituras Psicanalíticas

porâneo, apesar das muitas possibilidades de conexão, ouve-se, por


toda parte, muitas queixas sobre infelicidade, solidão e uma sensação
de incompletude e de vazio. Como pensar esse enlace entre um e
outro ser de fala na atualidade?
Para Lacan, o laço social deve ser pensado enquanto discurso e
em articulação com a linguagem, fundado sobre ela (LACAN, 1972-
73/2008). Os laços sociais são também aparelhos de gozo, pois esses
vínculos suscitam um esvaziamento e enquadramento de gozo ao
estabelecer maneiras conviviais de se relacionar com o outro (QUI-
NET, 2012), pois é assim que a civilização se estrutura.
Então, para elaborar essa noção de discurso, Lacan (1969-
70/1992) pontua que há nele uma estrutura que está além das pala-
vras propriamente, e que elas são até mesmo um tanto ocasionais,
chamando-o de “discurso sem palavras”. É sem palavras porque o
discurso pode subsistir sem elas, mas, estabelecendo certas relações
fundamentais que só podem se manter através da linguagem.
O discurso enquanto laço social “funda um fato estabelecendo
vínculo entre aquelas pessoas concernidas” (QUINET, 2012, p. 48). O
que se trata aqui é de uma relação entre um agente (dominante) e um
outro (dominado), estabelecendo o laço entre o par e provocando uma
produção, um efeito. Para que isso aconteça, não é necessário palavras,
um lugar físico ou uma posição específica no meio social, basta um
ato. Logo, uma mesma pessoa pode ser agente de discursos diferentes.
Uma relação fundamental se define entre dois significantes, os
quais se escrevem como S1 e S2, e disso resulta a emergência de um
sujeito, pois ele é sempre efeito do discurso, consequência da estrutura
que o determina (KOSOVSKI, 2010). Ou seja, um significante (S1)
funciona representando esse sujeito ($) junto a outro significante
(S2), definindo as estruturas dos discursos. Como aponta Kosovski
(2010, p. 290), “o discurso é o que estrutura o mundo real, e sobre
suas diferentes configurações se fundam os laços sociais mais funda-
mentais entre os seres falantes”.
130
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Lacan, então, formula a teoria dos discursos partindo da estru-


tura do discurso do inconsciente (VALAS, 2001), o qual ele considera
como o discurso de base, e que vem a ser formalizado como do mestre,
desenvolvendo, em seguida, mais três discursos. Essa estrutura dos
discursos é constituída de quatro lugares fixos: o agente, que também
é o lugar do semblante e vai caracterizar o discurso, o outro (trabalho),
a produção (perda) e a verdade.

Figura 1: Os lugares do discurso

Fonte: LACAN, 1970/2003, p. 447

Além disso, compõem essa estrutura quatro elementos variáveis


que irão ocupar esses lugares e definir o discurso: S1 é o significante
mestre, que representa o poder e é aquele que ordena a cadeia signifi-
cante, S2 é o saber, $ é o sujeito dividido e a é o objeto mais-de-gozar.

Figura 2: Os discursos

Fonte: LACAN, 1972, p. 32.

131
Leituras Psicanalíticas

Todo discurso é sustentado por uma verdade a partir da qual


o agente se autoriza. Desse lugar partem vetores, mas nunca chegam
vetores, pois não há relação da verdade com a produção. Isso é indicado
como uma impotência, uma não-relação, uma barreira, uma disjunção.
O lugar da verdade suporta o agente do discurso e o agente se relaciona
com o outro (ou trabalho) e disso extrai uma produção.
Os discursos também são compostos por uma impossibilidade
(acima da barra, entre o agente e o outro). Lacan formula isso a partir
do que Freud denomina como as três profissões impossíveis: governar,
educar e psicanalisar, e introduz uma quarta relação impossível que
seria fazer desejar. Segundo Freud (1937/2017, p. 332), “é quase como
se o analisar fosse aquela terceira das profissões ‘impossíveis’, em que
se tem certeza de antemão do resultado insuficiente”. São impossíveis
porque nunca serão realizadas completamente, uma vez que o resultado
sempre vai deixar a desejar. Apoiado nos impossíveis denominados
por Freud, Lacan também nomeia os quatro discursos: o discurso do
mestre, o discurso da universidade, o discurso do analista e o discurso
da histérica, respectivamente. “Eles são uma proposta de formalização
dessas modalidades de vínculo entre as pessoas” (QUINET, 2012, p. 50).
A sucessão dos elementos no discurso não pode ser desarrumada
em sua ordem, mas os elementos podem mudar de localização obede-
cendo à operação de um quarto de giro. A partir do deslocamento dos
elementos, obtêm-se os quatro discursos que se diferenciam em função
do lugar que esses elementos irão ocupar. Mais tarde, na conferência
de Milão em 1972, Lacan formaliza o discurso do capitalista como
uma inversão, deslizamento ou derivação do discurso do mestre, sendo
ele que nos interessa neste estudo.
Na virada do discurso do mestre para o discurso do capitalista,
diferentemente do que ocorre com os outros discursos, a verdade é a
do capital: ele é o significante mestre, o agente é o consumidor, o saber
é o da ciência e da tecnologia e o que se produz são os objetos de con-
sumo enquanto objetos de gozo. A relação estabelecida nesse discurso
132
Flavia Gaze Bonfim (org.)

não é do sujeito (agente) com o outro, mas com um objeto (a), que
nesse caso é a mercadoria, gadget, fabricado pela ciência e tecnologia
(S2) e que é vendido como se fosse o objeto de desejo do consumidor
(QUINET, 2012). Além disso, não existe o vetor indicando a relação
de impossibilidade que caracteriza os discursos como laço social, não
ligando o agente ao outro, portanto, não fazendo laço.
Assim, o sujeito dividido tem acesso direto, sem mediação do
saber, ao objeto a (mais-de-gozar), resultando em uma alienação e em
um sujeito submetido ao imperativo do significante mestre, que é o
imperativo do gozo. Isso indica uma passagem do “supereu freudiano”
que nega e que proíbe o gozo, para o “supereu lacaniano, que diz ‘goza’
(consuma), ‘trabalhe’ (funcione) e goze trabalhando” (DUNKER, 2019,
p. 126). Por essa relação direta, o sujeito, reduzido a consumidor, é ele
mesmo consumido. Assim, o próprio consumidor, de certa forma, se
confunde com o produto que passa a definir o sujeito (DUNKER, 2019).

O PAPEL DA INTERNET E DAS MÍDIAS DIGITAIS

Enquanto os outros discursos colocam a castração e a falta em


jogo, ainda que seja tentando recobri-la, o discurso do capitalista a rejeita
e não considera o furo. Ao negar a castração, nega-se a falta estrutural
que concerne ao sujeito e que movimenta o desejo. Tenta-se manter,
assim, um sujeito completo, não dividido, implicando uma “infinitiza-
ção” dessa busca pela completude. Quinet (2012) aponta que o discurso
capitalista fabrica um sujeito que gira em torno do “desejo capitalista”
e interpreta sua falta estrutural, a falta-a-ser. Segundo o autor, essa
falta vira falta-a-ser-rico e a falta-de-gozo vira falta-a-ter-dinheiro.
A relação que é promovida no discurso capitalista é entre o
sujeito e um objeto de consumo curto e rápido (gadget), estimulando a
ilusão de completude com um parceiro conectável e desconectável que
está ao alcance das mãos, e não mais com uma pessoa. Regida por tal
discurso, a sociedade se nutre pela fabricação da falta de gozo, produ-
zindo sujeitos insaciáveis que nunca conseguem comprar tudo aquilo
133
Leituras Psicanalíticas

que supostamente desejam em sua demanda de consumo (QUINET,


2012). Entretanto, Crary (2014, p. 46) afirma que
O mais importante agora não é o aprisionamento da
capacidade de atenção por um objeto delimitado – um
filme, um programa de televisão ou uma música –, cuja
recepção em massa parece ser a grande preocupação de
Stiegler, mas a transformação da atenção em operações
e respostas repetitivas que sempre se sobrepõem a atos
de olhar e de escutar. Não é a homogeneidade dos
produtos de mídia que perpetua a segregação, o isola-
mento e a neutralização dos indivíduos, mas os arranjos
compulsórios nos quais esses elementos, assim como
muitos outros, são consumidos. O “conteúdo” visual e
auditivo é na maioria das vezes um material efêmero,
substituível, que, além de sua condição de mercadoria,
circula para habituar e validar nossa imersão nas exi-
gências do capitalismo do século XXI.

Conforme aponta Crary (2014), as ilusões de domínio, vitória e


posse, são modelos cruciais para a intensificação do consumo 24/7 (24h
por dia nos sete dias da semana). As atividades do mundo real, que
não tem o correlativo virtual, acabam por perder sua relevância, pois
sempre haverá algo online mais informativo, interessante, surpreendente,
divertido do que qualquer coisa disponível nas condições reais imedia-
tas. Além disso, os algoritmos fazem com que, ao visitar uma página
ou visualizar um produto, apareçam na tela várias opções de compra
desse produto ou similares em lojas diferentes. Ou seja, os dispositivos
colocam os consumidores em contato com vários outros produtos que
não estavam nem mesmo procurando a princípio (CRARY, 2014).
Atualmente, com a diversidade de dispositivos capazes de ocu-
par todo o nosso tempo, há pressão para que os sujeitos se recon-
figurem e reimaginem a si mesmo, e aí reside a diferença para os
dias atuais. As pessoas passam a se identificar com as uniformi-

134
Flavia Gaze Bonfim (org.)

dades e valores das mercadorias, assim como dos vínculos sociais


desmaterializados (CRARY, 2014).
Entretanto, o incentivo desses supostos benefícios acoberta o
fato de que a maioria das relações sociais é transferida para formas
monetizadas e quantificáveis. As condições e o estilo da vida indivi-
dual também mudam, pois a privacidade se torna impossível já que as
pessoas são transformados em local permanente de vigilância e coleta
de dados. O alinhamento aos vários produtos, serviços e “amigos” que
consumimos, administramos e acumulamos tem consequências, como
o empobrecimento sensorial, a redução da percepção do hábito e as
respostas programadas. Um exemplo disso é o fenômeno dos blogs,
onde prevalece o diálogo unidirecional consigo mesmo. Não há, nesse
tipo de mídia/plataforma digital, a possibilidade de escutar ou espe-
rar outra pessoa (CRARY, 2014).

CONSIDERAÇÕES

Tudo se tornou rápido demais. O consumo, hoje, está presente


em todas as horas de nossos dias e o limite entre público e privado é
cada vez mais estreito. Uma vez que tal consumo se tornou uma via para
adquirir certas posições sociais, leva também a competições entre as
pessoas sobre quem tem mais, quem compra mais, e consequentemente
quem é mais feliz. Mas algo resta e insiste em não ser completado.
Para a psicanálise, o desejo, por definição, é sempre insatisfeito
e é isso que faz o ser falante se movimentar sempre em busca de outra
coisa. Isso só é possível devido à incompletude, à falta estrutural de
cada um. Entretanto, sustentar tal posição perante a falta fica cada vez
mais difícil em tempos em que a tentativa de apagamento do desejo
através da ideia de completude, de que não há espaço para a falta, é
perpetuada pelas propagandas e pelo discurso capitalista.
O objeto que se encontra nunca é aquilo pelo qual se anseia, e
nessa insatisfação reside a marca distintiva do desejo. Pensando nos
objetos de consumo, eles não são sinônimos de objetos de necessidade.
135
Leituras Psicanalíticas

O capitalismo existe justamente porque “se dedica à fabricação em


massa de objetos cuja virtude fundamental consiste em entrar em
sintonia com o objeto inconsciente que opera como causa de nossos
desejos” (BAUMAN; DESSAL, 2017, p. 56).
Tal relação que se estabelece com os objetos, leva a um apaga-
mento dos sujeitos, que estão imersos nos imperativos de consumo, de
gozo. O sujeito, dividido, surge como efeito da articulação significante,
e é nessa divisão que o desejo pode aparecer. Assim, ele pode encontrar
outra forma de se relacionar com os objetos, não mais pela via da com-
pletude, mas sim sustentando a falta. Resta à psicanálise possibilitar
àqueles que a seguem um lidar melhor com esta falta sem pretender
extirpá-la. Diante desta, é preciso um saber fazer, um inventar, tal
como na poesia, escrevendo no vazio as letras possíveis de nosso existir.
As mídias digitais vieram para ficar e problematizar o uso delas
não significa demonizá-las ou dizer que não se pode fazer isso ou aquilo,
mas colocar em questão qual é exatamente o uso que se faz delas e como
determinada forma de participar desse ambiente pode, na maioria das
vezes, tentar suprir algo que é da ordem do impossível, ou seja, a falta.

REFERÊNCIAS
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neidade, [s.l.], n. 16, ano X, 2005. Disponível em <https://www.yumpu.com/pt/document/
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Acesso em: 19 jan. 2022.
BAUMAN, Z.; DESSAL, G. O retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo
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CRARY, J. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
DUNKER, C. O discurso do capitalista: espectros de Marx em Milão. Teoría y Crítica de
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e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 1930/2020.

136
Flavia Gaze Bonfim (org.)

FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo


Horizonte: Autêntica, 1937/2017.
KOSOVSKI, G. F. O semblante, o corpo e o objeto. Fractal, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p.
285-296, maio/ago. 2010. Disponível em <https://www.scielo.br/j/fractal/a/HtmjBWrX-
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LACAN, J. Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972. In: Lacan in
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LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1969-70/1992.
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Jorge Zahar Ed., 2001.
QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

137
FUTURO DE MERCADOS COMUNS:
EFICÁCIA E DOCILIDADE

Marcos Vinicius Brunhari31

Os avanços e os progressos civilizatórios, segundo a perspectiva


de Freud em seu “Mal-estar na cultura” (1930/2020), envolvem certo
preço a ser pago por aquele que aí se insere. Trata-se da subtração
daquilo que idealmente poderia compor a plenitude do programa
de felicidade e que, por outro lado, se apresenta como sentimento
de culpa derivado das restrições que se impõem ao campo pulsional.
Mal-estar fundante da coletividade e da sociedade, sua incidência é
indicada por Freud a partir da distinção de três patamares desde os
quais o sofrimento pode se originar: o próprio corpo como fonte de
sofrimento por estar condenado ao declínio e à dor; a externalidade
desde onde forças esmagadoras geram catástrofes naturais e acidentes;
e, a mais penosa das fontes de sofrimento, aquela que provém dos
relacionamentos humanos e que pode ser entendida como de ordem
social, já que inclui a mutualidade em sociedade enquanto originária
do mal-estar. É a partir deste terceiro item que se torna verificável
a insuficiência dos regimentos sociais para dar conta do sofrimento,
dado que sua edificação se sustenta pela renúncia pulsional. Essa perda
referente à satisfação é o esteio da mutualidade e do funcionamento
disso que se sustenta pela impossibilidade, visto que o laço social não
se confunde com uma restituição do que se perdera.
Será na segunda metade da década de 1960, com um pon-
tual comentário de Lacan (1967/inédito), que um além do mal-
-estar poderá ser cogitado nos termos dos efeitos de segregação. A
saber, afirma Lacan (1967/inédito):

Doutorado em Psicologia Clínica (USP). Professor Adjunto (UERJ).


31

CV: http://lattes.cnpq.br/3882607540204690
138
Leituras Psicanalíticas

Os progressos da civilização universal vão se traduzir


não apenas por certo mal-estar como já o Sr. Freud
havia se dado conta, mas também por uma prática que
verão se tornar mais estendida, e que não mostrará sua
verdadeira face imediatamente, mas que tem um nome
com o qual, mude ou não, sempre irá dizer o mesmo e
vai ocorrer: a segregação.

Dessa maneira, é possível vislumbrar uma descontinuidade no


cerne do processo civilizatório que não é apenas atrelada à destruição,
mas sim ao próprio avanço. É enquanto efeito de segregação que o
progresso pode ser pensado em seu avesso; e, como além do mal-estar,
sua problemática pode ser franqueada sob a forma de engodo político.
Seja como avesso do progresso civilizatório ou como engodo político,
o efeito de segregação permite-se atrelar à atualidade do neolibera-
lismo. Tomando isso como objetivo, buscaremos destacar - a partir de
Achille Mbembe (2020) e de Giorgio Agamben (2008) - dois pontos
cruciais que articulam os efeitos de segregação ao que Lacan refere a
respeito do futuro de mercados comuns.

ALÉM DO MAL-ESTAR, O PROGRESSO SOB O


NEOLIBERALISMO

Em “Políticas da inimizade” (2020), Achille Mbembe propõe


uma releitura retroativa do presente em uma empreitada cujo mote se
edifica enquanto crítica do tempo atual e que leva em consideração a
atualidade do repovoamento e da globalização do mundo. É a partir
da égide do militarismo e do capital que o filósofo camaronês delimita
uma inversão da democracia desde traços característicos da época em
que essa forma de governo encontra a sua política ameaçada.
A narrativa oficializada que conjuga democracia e pacificidade se
torna efêmera quanto à afirmação que sustenta a ausência da brutalidade
e da violência física sob a égide do Estado e da restrição imposta, desde
então, aos membros da sociedade. Segundo Mbembe (2020, p. 37), “a
139
Flavia Gaze Bonfim (org.)

brutalidade das democracias somente foi abafada” e, em seu princípio,


o processo democrático inclui certa tolerância a determinadas formas
de violência como, por exemplo, aquelas executadas por instituições
privadas ou por forças de grupos de milícias ou paramilitares. O
abafamento constitucional, já vislumbrado pela perspectiva freudiana
(1930/2020) a respeito da agressividade e do mal-estar implícito ao laço
social, é apregoado pelo filósofo ao inventário amargo da democracia,
que traz em seu cerne a integração entre três ordens: da plantation,
da colônia e da democracia. Trata-se da mesma matriz que histori-
camente sustenta as distintas ordens em sua estrutura e que permite
uma perspectiva contemporânea sobre a brutalidade. Nesse sentido, as
conquistas coloniais se ofereceram como espaço privilegiado e expe-
rimental para o poderio técnico que, em suas últimas consequências,
abriu o caminho para o campo de concentração e para as ideologias
genocidas da modernidade (MBEMBE, 2020, p. 46):
A história da democracia moderna é, no fundo, uma
história de duas faces, ou melhor, de dois corpos: o corpo
solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro. O império
colonial e o Estado escravagista – e, mais precisamente,
a plantation e a colônia penal – constituem os maiores
emblemas desse corpo noturno.

Se a democracia carrega em si o mundo colonial, o contrário


também se faz legítimo. É assim que o funcionamento e a sobrevi-
vência das democracias “são pagas ao preço da externalização da sua
violência originária em lugares outros, os não lugares cujas figuras
emblemáticas são a plantation, a colônia ou, atualmente, o campo e
a prisão” (MBEMBE, 2020, p. 53). Os não lugares que perpassam a
história não são desvitalizados nas democracias, que relutam frente
ao temor de que essa violência, idealizada em uma ideia de latência,
venha à tona e perturbe a ordem política. Ameaça causada por aquilo
que alteraria a concepção de uma política feita de si mesma; um perigo
que faz recuar diante a brutalidade implicada no não-lugar – ou, como
podemos aventar: o umbigo da democracia.
140
Leituras Psicanalíticas

Em continuidade ao que se destaca sobre o não-lugar nas demo-


cracias, e mantendo as devidas singularidades históricas de cada tema,
é possível também recuperar em Agamben (2008) a proposta de um
fator de indizibilidade presente no testemunho dos horrores dos cam-
pos de concentração e de extermínio da Segunda Guerra Mundial.
Segundo o autor, Auschwitz tem certa localização na medida em que
deflagra um descompasso histórico. É aí que uma lacuna se presen-
tifica na função do testemunho derivado daquele período histórico
específico: aquilo que se testemunha pelos sobreviventes apresenta
uma dimensão intestemunhável em relação à amplitude dos horrores
vivenciados. Para Agamben (2008, p. 43):
A testemunha comumente testemunha a favor da ver-
dade e da justiça, e delas a sua palavra extrai consistência
e plenitude. Nesse caso, porém, o testemunho vale
essencialmente por aquilo que nele falta; contém, no seu
centro, algo intestemunhável, que destitui a autoridade
dos sobreviventes. As ‘verdadeiras’ testemunhas, as
‘testemunhas integrais’ são as que não testemunharam,
nem teriam podido fazê-lo. São os que ‘tocam o fundo’,
os muçulmanos, os submersos.

Primo Levi ilustra a sustentação dessa tese, especialmente naquilo


que Agamben denomina de uma “descoberta inaudita” (2008, p. 30),
ao isolar um elemento ético derivado da conjunção entre o algoz e
a vítima. A zona cinzenta que caracteriza essa conjunção alude, por
exemplo, aos que compunham o Sonderkommando – prisioneiros que,
concomitantemente ao lugar ocupado, eram responsabilizados pela
logística das câmaras de gás e dos fornos crematórios. O relato de uma
partida de futebol entre estes prisioneiros e os membros da organização
paramilitar nazista poderia ser compreendido com um momento de
normalidade em um cenário tão aterrador, mas é pungente e brutal à
medida em que escapa a qualquer possibilidade de escrita e de tradução.
A palavra da testemunha vale por aquilo que falta e seu relato
inclui, em seu âmago, um não-testemunhável que se reporta àqueles que
141
Flavia Gaze Bonfim (org.)

não puderam falar. O ato de testemunhar adquire potência mediante o


impossível enxertado na estrutura do campo da linguagem. Agamben
(2008) vai além ao afirmar ser o testemunho sempre um ato de autoria
e que este é verdadeiro pois se ocupa daquele que já deixou de existir.
O testemunho tem como parâmetro tanto a impossibilidade, enquanto
operador que faz frente à plenitude do dito, quanto a destituição mais
aterradora da condição de ser falante.
Aquilo que ressaltamos sobre o não-lugar nas democracias e
o fator de indizibilidade diante dos horrores testemunhados a partir
dos campos de concentração e de extermínio devem ser considerados
em sua singularidade histórica e política. Resguardado o sustentáculo
ético que assegura o fator histórico em sua forma e ressonância única,
é possível indicar, a partir daquele que se localiza na zona do indizível
e do inaudito, uma condição na qual se destitui o ser falante mediante
a brutalidade que se impõe de forma maciça por via de uma política.
Essa condição foi destacada por Lacan (1967/2003), em sua “Propo-
sição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, e pode
ser aqui recuperada pontualmente com a finalidade de introduzir um
argumento sobre os efeitos de segregação.
Lacan (1967/2003) trata das estruturas asseguradas da psicanálise
e, dentre estas, considera a diferenciação entre psicanálise em extensão
e em intensão como que sustentada na proposta da psicanálise enquanto
experiência original, orientada pela transferência, cujo termo aponta
para o sujeito em um “decair de sua fantasia” (p. 257). Esse decair se
alinha, neste período do ensino, à travessia da estrutura fantasmática
proposta no “Seminário livro 15: o ato psicanalítico” (1967-68/iné-
dito) como “queda do sujeito suposto saber e sua redução ao advento
desse objeto a, como causa da divisão do sujeito, que vem ao seu lugar”
(1967-1968/inédito). A destituição, de tal forma operada, assinala o
decair em direção ao saber sobre a falta fundamental. Diferencia-se,
dessa maneira, uma de outra forma de destituição – aquela que pode
ser promovida pelo uso político do avanço tecnológico. Segundo Lacan
142
Leituras Psicanalíticas

(1967/2003, p. 257), o real da ciência “destitui o sujeito de modo


bem diferente em nossa época quando apenas seus partidários mais
eminentes, como um Oppenheimer, perdem a cabeça”. Destituição
outra, portanto, que pode vir a ser sinônimo de morte e destruição,
como a provocada pela bomba atômica. Essa forma de destituição do
sujeito é, na Proposição, tomada como uma ampliação dos processos de
segregação, que tem um horizonte no que se viu emergir dos campos
de concentração, sua antecipação (LACAN, 1967/2003, p. 262):
A terceira facticidade, real, sumamente real, tão real
que o real é mais hipócrita [bégueule] ao promovê-la
do que a língua, é o que torna dizível o termo campo
de concentração, sobre o qual nos parece que nossos
pensadores, vagando do humanismo ao terror, não se
concentraram o bastante. Abreviemos dizendo que o
que vimos emergir deles, para nosso horror, represen-
tou a reação de precursores em relação ao que se irá
desenvolvendo como consequência do remanejamento
dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da
universalização que ela ali introduz.

Atrelados ao real dos campos de concentração e aos aspecto


de não-lugar na história das democracias e ao impossível de se teste-
munhar, os efeitos de segregação são asseverados por Lacan em uma
lógica mercadológica: “nosso futuro de mercados comuns encontrará
seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de
segregação” (p. 263). Um equilíbrio mercadológico se tornará factível
em um futuro em que a segregação será ampliada com base em uma
certa lógica que não se restringe à da produção. Isto que se configura
como mercado comum pode corresponder ao que vislumbramos
atualmente como uma razão neoliberal, cujo imperativo normativo se
fixa como uma lógica que incide sobre o Estado e sobre o mais íntimo
de cada membro da sociedade (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 34).
A razão que se equilibra pela ampliação dos efeitos de segre-
gação pode ser equiparada aos processos desde os quais se destitui o
143
Flavia Gaze Bonfim (org.)

sujeito ao preço de fazer emergir uma ontologia empresarial de si. É


possível, assim, propor que seja em nome da empresarização de si que a
destituição do sujeito opera. De acordo com Morozov (2018, p. 33), “o
capitalismo dadocêntrico adotado pelo Vale do Silício busca converter
todos os aspectos da existência cotidiana em ativo rentável”. A vida
rentável é parte do escopo da racionalidade neoliberal e seu alcance
massificante encontra pleno licenciamento na Web 2.0 enquanto
política a não ser, estrategicamente, assim definida.
Trata-se de uma política que o Discurso Capitalista (BRU-
NHARI, 2021) difunde com a ascensão do mercado, a qual não deixa
de ser notada por Lacan (1968-1969/2008) ao afirmar que “o capita-
lismo introduz algo que nunca se vira, isso que é chamado de poder
liberal” (p. 232). Observa-se que essa política não se ocupa apenas de
um plano econômico em que o mercado exerce suas práticas livres.
Há uma interferência disso sobre a normatização da vida cotidiana e
a imposição de uma competição generalizada, e isso pode se funda-
mentar nas proposições de Foucault (1978-1979/2004), referentes a
um estudo sobre o neoliberalismo, em que o autor procura analisar a
razão política da governamentalidade. Esta razão se constitui como uma
gestão, que remete aos princípios do liberalismo político, determinante
sobre as condutas humanas. Segundo Foucault (1978-79/2004, p. 94):
A nova arte governamental vai então apresentar-se
como gestora da liberdade, não no sentido do impe-
rativo ‘sê livre’, como a contradição imediata que esse
imperativo pode implicar. Não é o ‘sê livre’ que o libe-
ralismo formula. O liberalismo formula simplesmente
isto: vou produzir-te algo com o qual se pode ser livre.
Vou fazer com que sejas livre de ser livre.

É como dispositivo de governamentalidade que essa razão política


se difunde em seu aspecto de normatização da vida cotidiana. A
liberdade se torna o produto que, doravante, não coincide apenas com
o estatuto de mercadoria, mas também com a capacidade de consumir
144
Leituras Psicanalíticas

o consumidor. Essa coincidência entre consumo e consumidor pode ser


notada pelo velamento da divisão do sujeito, processo que propomos
ser associável ao encontro entre sujeito e objeto proporcionado pelo
Discurso Capitalista. Esse encontro de consumação, em que uma falsa
restituição se consuma pela via do consumo do objeto produzido em
larga escala, corresponde ao velamento da divisão e destituição do
sujeito. Isto aponta para o fato de que este discurso não promove o
laço social, já que a (não) relação que se estabelece é entre o sujeito
ordenado pela falta de gozo e o objeto de consumo acessível, o gadget.
Diferentemente do Discurso do Mestre (hegeliano) em que o laço se
estabelece entre o senhor e o escravizado, o senhor moderno tende a
desaparecer do lugar dominante e tornar agente aquele sujeito voraz.
Compreende-se que “a mais-valia é a causa do desejo do qual uma
economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insa-
ciável, da falta-de-gozar” (LACAN, 1970/2003, p. 434). O gadget é
o fundamento de uma economia que, em larga escala, se torna uma
gestão na qual o sujeito padece disto que é fabricado para ser con-
sumido em uma acoplagem que visa suspender a divisão e ratificar a
consumação. Como destacamos anteriormente, a partir de Dardot e
Laval (2016, p. 16), temos que cada membro da sociedade deve “con-
ceber a si mesmo e comportar-se como uma empresa”. Trata-se de
uma empresa-de-si que se funda na gestão de acordo com a qual os
esforços e resultados devem ser intensificados e os gastos minimizados
em função de uma determinada eficácia. Sobre isso, acompanhamos
a afirmação de Milton Santos (2000, p. 53):
Como as técnicas hegemônicas atuais são, todas elas,
filhas da ciência, e como sua utilização se dá ao serviço
do mercado, esse amálgama produz um ideário da
técnica e do mercado que é santificado pela ciência,
considerada, ela própria, infalível. Essa, aliás, é uma
das fontes do poder do pensamento único.

A política que não se faz pelo laço social gera como resultado o
indivíduo tecnologicamente dócil que tem como causa o objeto produzido
145
Flavia Gaze Bonfim (org.)

em larga escala. Propomos que a relação de consumação do sujeito


com este objeto gera como efeitos as possibilidades de supressão de
uma divisão em nome da resposta a um projeto de eficácia para este
que tem velada sua divisão em um isolamento que o conduz à estra-
tificação e à miséria subjetiva.

A EMPRESA-DE-SI COMO RECHAÇO DO SINGULAR

A proposta de que esse processo pode ser entendido a partir


das referências ao corpo noturno das democracias e ao indizível do
testemunho encontra auxílio para sua fundamentação nas afirmações
de Agamben (1995) a respeito do campo de concentração como fato
histórico e, mais além, como matriz oculta do espaço político no qual
vivemos atualmente. Aliás, questiona-se se o presente é marcado pela
característica oculta dessa matriz, já que podemos alinhar alguns exem-
plos bastante evidentes durante a pandemia de COVID-19 no Brasil.
A interrogação acerca do estatuto jurídico e político do campo
de concentração expande a incidência do que é materializado sem
estar circunscrito ao passado sombrio da Europa em guerra. Esse
espaço político remete ao que Agamben (1995) reconhece como
estado de exceção em sua mais plena soberania e prática. O campo
torna-se assim um território (não necessariamente em termos físi-
cos) exterior às coordenadas do ordenamento jurídico, embora sua
presença de fato esteja assentada sobre um território interno a essas
ordenações legais. Esse espaço conjuga, em um conjunto indissociável,
o que se define como vida nua e a norma em um Estado moderno
que centraliza em seus cálculos a vida biológica, e a esta impõe regras
por possuí-la à sua disposição.
O poder soberano dispor da vida significa que a morte está em
jogo. Dentro desse domínio, Agamben (1995) recupera do direito
romano arcaico a figura do homo sacer, o qual tem a vida nua totalmente
disponível à soberania. Essa vida torna-se banal e o espaço do campo
prevalece em razão desta ser uma vida ser matável.
146
Leituras Psicanalíticas

Recentemente, esse aspecto da vida matável se reconfigura em


uma proposta conceitual sobre a necropolítica, de Achille Mbembe
(2018), na qual a tecnociência oferece subsídios à construção de
um maquinário empregado na destruição máxima de pessoas e na
criação de mundos mortos como novas formas de existência social.
A devastação das massas, que podemos entender como o extremo
do remanejamento, é pensada pelo autor em associação à coloniza-
ção, ao escravismo e ao massacre.
Para finalizar, há um preço a ser pago que pode ser atribuído
ao velamento da estrutura na qual o sujeito se divide em sua relação
com o objeto a. A concentração das massas humanas universaliza a
empresa-de-si como agente eficaz e dócil não como um animal ou
mesmo como cadáver, mas pelo rechaço do que é mais singular.
A universalização do sujeito supõe que a divisão seja extirpada
em nome de um encontro forjado com o gozo. Esse encontro tem
como fundamento a destituição operada pelo ilimitado da tecnicização
e remete à matriz do campo de concentração na medida em que reduz
a divisão do sujeito assim incorporado a uma categoria isolada. O
velamento da divisão e a destituição da estrutura fantasmática podem
ser compreendidos como a disponibilização do que ocuparia o lugar
de resto. O futuro de mercados comuns se equilibra, desse modo, em
um efeito de segregação que anula a divisão em nome da estratificação.

REFERÊNCIAS
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Editora UFMG.
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147
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SANTOS, M. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record.

148
DISCURSO DO CAPITALISTA, SEGREGAÇÃO
E RACISMO

Flavia Gaze Bonfim32

O racismo é uma estrutura que organiza o campo social, a sub-


jetividade, a economia, a política e as instituições. Ele constitui uma
forma de mal-estar que produz exclusão e sofrimento psíquico para a
população de negros no Brasil, não podendo ser pensado desarticulado
do capitalismo. Nesse sentido, esse trabalho tem como proposta abordar
a relação entre capitalismo, segregação e racismo, tomando como refe-
rência o pensamento de Lacan, mas – como propõe Andrea Guerra et
al. (2021) – interpretando seu ensino de forma geopoliticamente demar-
cada a partir de coordenadas decoloniais. Sendo assim, tomarei como
ponto de partida a teoria dos discursos, decantando dessa formalização
o discurso do capitalista e seus efeitos de homogeneização de gozo
que fomenta, no caso de uma sociedade com marcas coloniais como
a do Brasil, as práticas segregativas pela via da manutenção racismo.

DISCURSO DO CAPITALISTA

A teoria dos discursos é uma elaboração que permite articular a


dimensão do sujeito, do gozo, do saber inconsciente e do laço social.
Precisamente, Lacan (1992 [1969-70]) propõe que o sujeito é efeito do
discurso e é a partir deste que temos a produção do laço social, loca-
lizando quatro estruturas discursivas: discurso do mestre, discurso da
histérica, discurso do universitário e discurso do analista. No caso do dis-
curso do capitalista, Lacan não o pensa propriamente como um quinto
discurso, mas o localiza com a forma contemporânea de pensar o mestre.
Lacan (ibid.) situa os discursos como uma estrutura sem pala-
vras, propondo sua organização por meio da coordenação de quatro

32
Psicanalista. Doutora em Psicologia (UFF). CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576
149
Leituras Psicanalíticas

elementos: S1, S2 , a, $, distribuídos em quatro lugares diferentes: 1)


lugar do agente/poder ou semblante; 2) lugar do trabalho ou Outro;
3) lugar da produção/perda e 4) lugar da verdade. O S1 corresponde
ao significante mestre, designado pelo campo do Outro; O S2 repre-
senta o saber, constituído pela bateria significante; o a indica o objeto
a, mais-de-gozar, enquanto perda no trajeto S1-S2; e o $ representa o
sujeito dividido. Quanto aos lugares, Carolina Coelho (2006) assinala
que o agente organiza a produção discursiva; o Outro é aquele a quem
o discurso se dirige; a produção é o efeito do discurso e a verdade aquilo
que o sustenta. Assim, todo discurso se organiza por meio de uma
“verdade” que o movimenta, havendo um “agente” que se direciona e
coloca em trabalho um “outro” a fim de obter uma “produção”.
AGENTE OUTRO
VERDADE PRODUTO

O discurso do mestre é o ponto de partida dos discursos, segundo


Lacan (1992 [1969-70]), por motivos históricos e por ele incorporar a
função alienante do significante. Ele representa o discurso do poder, da
dominação, operando uma apropriação do saber a serviço do mestre.
No lugar do agente, está o S1 que se dirige ao S2, visando obter uma
produção. Ele busca representar o sujeito, que deveria ser idêntico ao S1,
ocultando, porém, uma verdade: o sujeito é dividido. A partir do discurso
do mestre, por meio da operação de quarto de giro, os outros discursos
são extraídos na medida em que seus elementos sofrem uma permuta.

150
Flavia Gaze Bonfim (org.)

O discurso do capitalista é o único que quebra essa ordem lógica


ao desarrumar a cadeia simbólica, S1 – S2. Ele não se produz pelo giro,
mas por uma distorção do discurso do mestre. Trata-se, portanto, de
um falso discurso, cuja configuração se apresenta da seguinte forma:

A distorção é localizável no lado esquerdo, bem como na ausência


da seta que articula o agente ao Outro – o que indica a falta de relação
entre esses lugares. Precisamente, Lacan diz que “Uma coisinha de
nada que gira e o discurso do mestre de vocês mostra-se tudo o que
há de mais transformável no discurso do capitalista.” (2009 [1971],
p. 47) Essa “coisinha de nada” que gira, esse “ínfimo deslizamento”
(LACAN, 2011 [1972]) corresponde às condições sócio-históricas33
para a emergência do capitalismo e é demonstrável por Lacan através

33
Essas condições serão retomadas no próximo item “Capitalismo e racismo”.
151
Leituras Psicanalíticas

da inversão entre o lugar do $ e o S1, no qual o sujeito está no lugar


de agente, como um consumidor com pretensa soberania e o S1, o
capital, é a verdade oculta. Ou seja, é o capital que comanda o discurso
do capitalista e não o sujeito.
Nos termos de Lacan, ocorreu uma “mutação capital”, que con-
feriu “ao discurso do mestre seu estilo capitalista.” (1992 [1969-70], p.
160) Isso implica em assinalar que o advento do capitalismo produziu
impacto no laço social e, consequentemente, na subjetividade a ponto
do sujeito ser comandado pelo capital. A questão que se coloca aqui –
interroga Vladimir Safatle – é por quê os sujeitos se submetem a tais
condições de servidão e sujeição social. Pensar essa resposta pela via da
coerção e violência direta é insuficiente, sendo necessário considerar que:
“ao produzir uma mutação na racionalidade da produção econômica,
o capitalismo mudou nossa forma de gozar.” (SAFATLE, 2002, p. 71)
Ele introduziu uma relação com o gozo a partir do mais-de-gozar.
No que se refere ao discurso do capitalista, Lacan (2011 [1972])
situa que aquilo que o distingue é Verwerfung, a rejeição, a foraclusão
da castração, ressaltando que se trata de um discurso que deixa de lado
as “coisas do amor”. Segundo Ana Beatriz Freire e Fabio Malcher: “A
foraclusão da castração visada no discurso do capitalista se baseia na
promessa de acesso ao gozo perdido pela via dos objetos de consumo,
incontáveis e efêmeros, gadgets”. (2015, p. 330) Uma promessa de gozo
infinito e imediato que não se cumpre, vale dizer, mas que alimenta o
sistema. O sujeito permanece, então, capturado na trama de mercado,
pois passa a buscar um novo objeto de consumo em um deslocamento
metonímico na procura do gozo prometido. O gozo, pelo contrário,
não se deixa capturar, deixando o sujeito frustrado, mas ao mesmo
tempo, pronto para um novo consumo. (MALCHER; FREIRE, 2016)
Convém ainda ponderar que o discurso do capitalista não libera
o desejo, mas o reprime, o objeta de tal forma que rejeita a castração.
É importante lembrar que o desejo – as “coisas do amor”, no dizer de
Lacan – visa o gozo, mas também a proibição do gozo. Temos aqui
152
Flavia Gaze Bonfim (org.)

uma dialética inerente ao desejo, mas cuja operação é obturada pelo


discurso do capitalista, pois só há o imperativo do gozo: Consuma! Um
consumo que oferece todo tipo de engodo, pois, como ressalta Malcher
(2019), o objeto pulsional, privilegiado da fantasia, é sempre singular e
não pode ser tamponado por nenhum objeto que o capitalismo oferece.
Notadamente, trata-se de uma modalidade de discurso que
propõe eliminar a distância entre o sujeito e o objeto a, supondo ser
possível ter acesso direto ao gozo através dos objetos. Tais objetos, os
gadgets, funcionam como mais-de-gozar na medida em que buscam
capturar o gozo perdido ao entrar na linguagem. Mais ainda, o capi-
talismo produz um pseudo déficit para que o sujeito seja incitado a
consumir, gerando ilusoriamente novos e novos objetos, como alter-
nativa ao amor e a dor de existir.
Resumindo, é possível afirmar que Lacan não analisa o capi-
talismo pelo viés de uma economia política, mas de uma economia
libidinal, extraindo considerações da crítica marxista em torno da
mais-valia e forjando o termo mais-de-gozar. Ou seja, Lacan pensa o
capitalismo a partir do impacto sobre o campo do desejo, na medida
em que “produz a crença de que o gozo que nos impulsiona pudesse se
realizar no interior das dinâmicas imanentes ao Capital” (SAFATLE,
2002, p. 68) Capturado pelo capital, o campo do desejo passa a se
organizar a partir do mais-de-gozar. Nesse sentido, o capitalismo
conseguiu colonizar nosso gozo, formando nosso interesse a partir da
oferta de objetos e indicando modos de satisfação, além de moldar
nossa relação com o trabalho, no qual se introduziu a necessidade de
produção constante, de performance e de competitividade. (ibid.)

LAÇO SOCIAL E PROCESSOS SEGREGATÓRIOS

Para falar em segregação, convém delimitar o que significa o verbo


segregar, a saber: separar do rebanho. Proveniente do latim, grex, gregário,
corresponde aqueles que não desfrutam dos mesmos cuidados do pastor,
sendo o rebanho aqueles que fazem parte de um grupo que comparti-
153
Leituras Psicanalíticas

lham dos mesmos preceitos e ideais, existindo um laço emocional de


caráter libidinal que os une. (MALCHER, 2019). Paradoxalmente, ao
se formar um grupo, há sempre uma outra parcela de sujeitos que fica
de fora. Logo, inevitavelmente, é inerente ao laço social algo da ordem
de uma segregação, separação entre quem é e quem não é do grupo.
Desdobrando essa questão, Malcher (2019) retoma a proposição
freudiana de que a possibilidade do laço social remete à constituição
do Eu, precisamente, a passagem do Eu-prazer ao Eu-realidade. A
constituição do Eu implica em uma separação entre o sujeito e a alteri-
dade, entre o Eu e o não-Eu (exterior). O exterior e seus estímulos são
considerados como fonte de desprazer e, por meio dessa experiência,
a alteridade tem um caráter de fremde [estrangeiro, ameaçador]. Nesse
sentido, Freud aponta que “O exterior, o objeto, o odiado seriam, bem
no início, idênticos.” (2020 [1915], p. 55) E complementa: “Se, depois,
o objeto se apresenta como fonte de prazer, ele passa a ser amado, mas é
também incorporado ao Eu, de modo que, para o Eu-prazer purificado, o
objeto coincide novamente com o que é alheio e odiado.” (ibid., ibid.) Por
fim, Freud é levado a afirmar que “O ódio, como relação com um objeto, é
mais antigo que o amor; ele brota do repúdio primordial do Eu narcísico
perante o mundo externo portador de estímulos.” (2020 [1915], p. 61)
Ao se constituir, o Eu precisa passar do Eu-prazer para o Eu-rea-
lidade. Essa passagem implica em uma renúncia de ordem pulsional
e é justamente ela que abre espaço para o laço social, pois permite
ao sujeito abrir mão do seu narcisismo para manter relação com o
outro. Contudo, a alteridade continua a produzir no sujeito um cará-
ter de estranhamento e ameaça, e por isso ele produz mecanismos
de rechaçá-la. (MALCHER, 2019)
Freud (1996 [1921]) também abordou os impasses no laço social,
destacando a dificuldade na relação de contato com o semelhante e
cunhando para tanto a ideia de “narcisismo das pequenas diferenças”. Foi
sua maneira inicial de pensar a problemática da hostilidade e do ódio.
Contudo, quando se aproximava na Europa a ameaça do nazismo, Freud
154
Flavia Gaze Bonfim (org.)

(1996 [1930]) considerou que o narcisismo das pequenas diferenças não


era suficiente para explicar essa hostilidade, localizando na pulsão de
morte a fonte do ódio inerente ao humano. Complementando, Freud
levanta a questão do mandamento do “Amor ao próximo”, dizendo tra-
tar-se de uma formação reativa, pois o que está em jogo na relação com
outro caminha muito mais em direção a uma agressividade. O próximo,
nos diz Freud (ibid.), é quem o sujeito quer satisfazer sua agressividade,
explorando, dominando, causando sofrimento e até matando.
Freud também indicou que a ligação de amor entre os seme-
lhantes acabam por ter como condição a existência de outros sujeitos
para poder exteriorizar a agressividade. (ibid.). Como bem ponderou
Lacan (1992 [1969-70]), na origem da fraternidade, está a segregação.
Ao unir-se ao semelhante, o sujeito pode fazer o diferente alvo de sua
exclusão. Para articular essa questão, Lacan faz menção, inclusive, aos
princípios da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraterni-
dade – ridicularizando a obstinação de tais ideais, considerando mais
importante captar o que eles recobrem, a saber: a segregação. (ibid.)
Não podemos deixar de lembrar que tais princípios excluíram as
mulheres em termos de direitos, ainda que tivessem contado com o
apoio e a luta das mesmas nos movimentos sociais que antecederam
e se desdobraram na própria revolução. Ou seja, tais princípios desti-
navam-se a um único grupo: o dos homens brancos europeus.
Lacan (1992 [1971-72]) pontua ainda que as noções de “irmão”,
“irmandade” e “fraternidade” não devem ser vistas a partir de bons
sentimentos, do bem comum, pois a fraternidade corresponde a uma
forma de laço social que se estrutura pela formação de um grupo no
qual está em jogo a identificação e a homogeneização dos modos de
gozo. Isso acaba por culminar na segregação e no ódio ao diferente,
podendo chegar a violência, perseguição e assassinato. Assim, Lacan
pondera que aquilo que “se enraíza no corpo, na fraternidade do
corpo, é o racismo.” (ibid., p. 227) Guerra et al. entende que, com
este comentário, Lacan parece indicar que “a questão da valorização
155
Leituras Psicanalíticas

contemporânea do corpo tem como efeito a segregação em relação


àqueles que possuem outra configuração de corpo e que aparecem
enquanto alteridade materializada pela raça.” (2021, p. 11)
Ao problematizar de que modo essa alteridade passa a ser mate-
rializada na raça, Miller (2010) propõe pensar o problema do racismo
através da noção de extimidade, de Outro interior, incluindo também a
dimensão do gozo neste tipo de segregação que envolve inegáveis aspectos
históricos, sociais, econômicos, culturais e estéticos. Ele afirma que o
racismo tem relação com o ódio do gozo do Outro, a uma intolerância
ao modo particular com que o Outro goza. Isso, porém, tem relação com
o próprio modo como o sujeito vivencia seu gozo. Toda relação com o
gozo envolve algo da perda, de uma subtração de gozo. Essa subtração
acaba por ser localizada no Outro, como se este fosse o responsável
pelo roubo de gozo que cada um experimenta com a castração. Perda e
excesso caminham aqui juntos, pois o gozo é sempre excessivo. Assim,
tolerar reconhecer esse Outro como próximo é somente na condição de
separado. (ibid.) Nesse sentido, Lacan coloca a questão nos seguintes
termos: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas
na medida em que estamos separados dele.” (2003 [1974], p. 533).
Uma aproximação mais intensa é sentida como excessiva. A
dimensão do excesso é atribuída ao Outro, mas na verdade trata-se
de algo inerente ao gozo: ele é excessivo; puro desatino, inassimilável,
deslocalizado a ponto de não ser reconhecido como próprio. Esse
excesso faz morada em cada sujeito, mas é desconhecido a ponto de ser
rejeitado e odiado. Por esse viés, Miller (2010) pensa que se trata de um
ódio ao próprio gozo, recuperando daí a questão da extimidade; esse
dentro e fora, esse estranho familiar, que habita o sujeito e que ele odeia.

CAPITALISMO E RACISMO

Ao falar que “alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir


de certo momento da história”, Lacan diz que “Não vamos esquentar
a cabeça para saber se foi por causa de Lutero·, ou de Calvino, ou de
156
Flavia Gaze Bonfim (org.)

não sei que tráfico de navios em tomo de Gênova, ou no mar Mediter-


râneo, ou alhures”. E complementa: “pois o importante é que, a partir
de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí
começa o que se chama de acumulação de capital.” (2012 [1969-70,
p. 188) Nesse ponto, contudo, precisarei discordar de Lacan. Sendo
uma psicanalista do Sul Global, é preciso “esquentar a cabeça” com
isso, pois desprezar os aspectos históricos que envolvem o capitalismo
e escravização dos africanos seria silenciar um problema que continua
a produzir efeitos deletérios sobre a população negra.
No que se refere a Martinho Lutero e João Calvino, é possível
extrair do pensamento do sociólogo Max Weber34 que a Reforma Protes-
tante introduziu um novo modo de subjetividade centrado no trabalho
e da renúncia aos prazeres mundanos que amadureceu a passagem do
feudalismo para o capitalismo. Além disso, a acumulação de capital
também foi possibilitada pelo mercantilismo e pela “descoberta de novas
terras” – o que precisou contar com uma forjada teoria das raças para
justificar o racismo e a escravização dos negros. Pois, como pondera Silvio
Almeida, “a história da raça ou das raças é a história da constituição
política e econômica das sociedades contemporâneas” (2018, p. 21).
Segundo Almeida (2018), a cada limite histórico que o capitalismo
encontrou para a acumulação de capital e necessidade de produção, ele
obteve com o racismo formas renovadas de violência e subjugação dos
negros. Inicialmente, com o imperialismo, o capitalismo se expandiu
através da dominação colonial, tendo como base de argumento ideológico
o racismo e o eurocentrismo de progresso, no qual os povos africanos
seriam “salvos” do seu atraso pelo conquistador europeu. Em um segundo
momento, após a segunda guerra – mesmo quando a produção em larga

34
Em seu livro A ética protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber considerou que a teologia da
predistinação do Calvinismo é uma das condições para a emergência do capitalismo. Criticando a doutrina
católica da indulgência, o Calvinismo considerava que não era possível fazer nada para garantir a ida para
o céu e que os escolhidos de Deus eram predestinados ao nascerem. Sem saber se era um escolhido ou
não, o sucesso financeiro tornou-se indícios da benção divina e do fato de ser um predestinado. Assim,
formalizou-se uma ética no qual devia-se trabalhar muito, manter uma modo de vida pautado na vir-
tude racional e abster-se de gastar o que conquistou com os paixões carnais. (STANGROOM, 2008)
157
Leituras Psicanalíticas

escala e o consumo de massa caminhavam na Europa associado a ideia


de bem-estar social – o acesso aos direitos pelos trabalhadores não se deu
da mesma forma. Assim, havia alguns setores da indústria sem a proteção
de sindicatos fortes que se mantinham por meio de baixos salários e
subcontratação de mulheres, negros e imigrantes. (ALMEIDA, 2018)
Atualmente, porém, é o neoliberalismo que indica novos dispo-
sitivos de exploração. Mediante a crise do Estado de bem-estar social
e do modelo de produção do fordismo, a supressão dos direitos sociais
é realizada por meio de uma austeridade fiscal que transfere parte
do orçamento público para o setor financeiro privado. Promove-se
privatizações, precarização do trabalho, desregulamentação de setores
da economia e um desmonte da rede de proteção social. Com esse
desmonte, a vulnerabilidade social da população negra é reforçada e a
sociedade, em face a essa instabilidade social, encontra no pensamento
racista um inimigo (os jovens negros), distraindo-se dos reais problemas
causados pelo neoliberalismo. Esses jovens são tidos como aqueles que
ameaçam a vida social e a paz, naturalizando a intervenção repressiva
do Estado que se manifesta por uma necropolítica. (ALMEIDA, 2018)
É digno de nota que a ideia do homem negro como ameaçador e
propenso à criminalidade vem sendo historicamente construída. Se no
Brasil Colonial e Imperial, o corpo negro era um corpo para o trabalho
escravo, após a Abolição seu corpo foi recobertos por novos sentidos.
Sem uma política de reparação social, nem as mesmas possibilidades
de acesso aos cargos de trabalho que foram ocupados pelos imigran-
tes que chegaram ao país, o homem negro passou a ser visto como o
vadio, desqualificado, aquele que causa medo, propenso à violência, à
irresponsabilidade. Por essa construção social, o homem negro tor-
nou-se um corpo perigoso, carregando o estereótipo de criminalidade.
(MELGAÇO DA SILVA JR.; CAETANO, 2018)
Ainda sobre a não incorporação dos homens negros aos postos
de trabalho após a Abolição, Pedro Jaime (2017) assinala que a escolha
pelos imigrantes europeus teve relação com o racismo e não propria-
158
Flavia Gaze Bonfim (org.)

mente com a questão da desqualificação técnica dos negros. Apesar


de terem vindo de países com maior nível de industrialização que o
Brasil, os imigrantes em sua maioria residiam em zonas rurais, de modo
que tal como os negros não estavam tecnicamente preparados para o
trabalho industrial. Com isso, sem possibilidade de acesso ao mercado
de trabalho, foi se reforçando cada vez mais a situação de vulnerabili-
dade e de desigualdade social entre brancos e negros. ( JAIME, 2017).
Ou seja, na medida em que os jovens negros não são integrados
ao mercado, seja como trabalhadores ou consumidores, corrobora-se
para sua segregação, localizando em seus corpos o estereótipo de cri-
minalidade sempre prontos a roubar os objetos do mais-de-gozar dos
brancos. E se isso nos importa enquanto psicanalistas é porque inevita-
velmente a raça indica maiores ou menores condições de vulnerabilidade
social, em quem pode viver e morrer, no qual o sofrimento psíquico
não pode ser dissociado de uma configuração política e econômica. Se
há opressão, há sofrimento e, portanto, isso diz respeito aos analistas.
São corpos que passam a ser aprisionados por discursos degradantes
e por olhares desconfiados, tomados constantemente como suspeitos
na rua e em cada estabelecimento que adentra.
Ao pensar o tema da segregação o próprio Lacan nos indicou
que ela representa uma reação de uma universalização promovida pela
“curiosa copulação” (1992 [1969-70], p. 103) entre ciência e capitalismo,
prenunciando que: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu
equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segre-
gação.” (2003 [1967], p. 263) Tanto a ciência quanto o capitalismo estão
amparados por uma lógica que promove uma quantificação, onde tudo
pode ser contável, mas que, para tanto, a exceção precisa ser desprezada.
Ou seja, conforme o capitalismo promove uma universalização em termos
de ofertas de bens de consumo e de modos de gozo, mais ele corrobora
para a anulação particularidades – o que tende a alimentar efeitos
segregatórios. Em outras palavras: os objetos são ofertados de forma
massificada para o consumo e quem não os possui, está fora. Pois, como
159
Leituras Psicanalíticas

indica Malcher: “quanto mais se rebaixam as diferenças, maior o empuxo


à segregação.” (2019, p. 50) A mínima diferença passa a ser insuportável.
Lacan também observa que estamos uma “época planetária” que
modificou a antiga ordem imperialista e introduziu um novo problema:
“como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não
apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se man-
tenham separadas?” (2003 [1967 b], p. 361) Se esse problema pode
ser verificado na Europa com a questão da imigração, no Brasil essa
segregação configura nosso território e pode ser facilmente identificada,
por exemplo, na desigualdade social e territorial da cidade do Rio de
Janeiro: de um lado as comunidades, sem estrutura e ações políticas
do Estado (que não seja as de extermínio), e do outro, a Zona Sul.
Juntos no mesmo espaço geográfico, mas profundamente separados.
Sendo assim, o que Lacan nos ajuda a compreender é que toda
universalização se traduz em mal-estar e segregação, pois quanto mais
se caminha em direção ao universal do gozo, mais se exclui o singular.
Toda homogeneização na produção e no consumo imposta pelo capi-
talismo também produz a ideia de um gozo indiferenciado para todos,
um gozo indiferenciado que despreza a singularidade e, com isso, produz
um ataque à diferença. É evidente que essa promessa de gozo para todos
é uma falácia, pois só se destinam aqueles que podem pagar. (MAL-
CHER, 2019) Nesse jogo, todavia, o capitalismo não possibilita que
todos os sujeitos possam ter acesso aos bens; pelo contrário, ele produz a
pobreza e desigualdade social, bem como tem-se servido historicamente
da manutenção do racismo para garantir maior acumulação de capital.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

A partir da discussão aqui travada é possível destacar que a segre-


gação faz parte do laço social, pois só se organiza um grupo quando
se estabelece quem está fora dele. Além disso, ela retoma um impasse
estrutural que emerge na constituição do sujeito em sua relação com
a alteridade. Contudo, se podemos pensá-la dessa forma, é necessário
160
Flavia Gaze Bonfim (org.)

fazer uma distinção quanto àquilo que converge para práticas propria-
mente segregadoras e excludentes, especialmente, quando levamos em
consideração os efeitos trágicos do racismo produzido pelo capitalismo.
Historicamente, o capitalismo vem encontrando no racismo
meios para acumulação de capital e para os problemas na produção.
Notadamente, essa temática tem sido abordada pelo viés político,
econômico e social, por outro lado, a aposta aqui foi introduzir a
psicanálise neste debate, indicando que ela pode contribuir para esta
discussão a partir de um elemento heterogêneo: o gozo. O capitalismo
opera por uma intensificação de uma universalização e homogenei-
zação em termos de bens de consumo e oferta de gozo, que anula as
particularidades e fomenta ainda mais os impasses dos sujeitos com
infamiliar que concerne à própria dimensão do gozo. Assim, a forma
diferente do Outro gozar é tomada como roubo de gozo, fazendo
dos corpos negros sinônimo de ameaça fruto dos mitos racializantes.
Um mito que inversamente coloca as vidas negras sobre uma con-
creta ameaça, haja vista o genocídio dos jovens negros pelo Estado e
o seu encarceramento em massa.
Assim, encerro com um trecho da música, “A carne”, inter-
pretada de maneira visceral e em tom de denúncia por Elza Soares,
que recentemente nos deixou. Sua voz única que, como ela afirmou,
era usada para dizer o que se cala, vem assim perturbar o descanso
e a mudez conveniente dos que colhem os privilégios simbólicos e
materiais da branquitude sem se responsabilizar pelo problema do
racismo. Sem sombra de dúvidas, sua letra diz de maneira mais con-
tundente sobre os efeitos da relação entre capitalismo, segregação e
racismo do que aqui pude empreender.
A carne mais barata do mercado
É a carne negra
Tá ligado que não é fácil, né, mano?
Se liga aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra (4X)
Só-só cego não vê
161
Leituras Psicanalíticas

Que vai de graça pro presídio


E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Dizem por aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra (3X)
Que fez e faz história
Segurando esse país no braço, meu irmão
O cabra que não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador eleito
Mas muito bem intencionado35

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
COELHO, Carolina. Psicanálise e laço social – uma leitura do Seminário 17. In: Revista
Mental, Barcelona, v. 4, n. 6, jun. 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272006000100009 Acesso em: 15 fev. 2021.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. (1915) In: Obras incompletas de Sigmund
Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 13-69.
______. O mal-estar na civilização (1930) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI, p. 67-148.
______. Psicologia das massas e análise do eu. (1921) In: Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII, p. 81-183.
GUERRA, Andrea; RIBEIRO, Cristiane; JORGE, Enrico; BISPO, Fabio, SOUZA, Mar-
cela; ROSA, Nayara; MENDONÇA, Renata; PENHA, Sonia; SANTOS, Tayná. Ocupação
Antirracista e decolonial no espaço psicanalítico. Quaderns de Psicologia. v. 23, n. 3, p. 1-19.
Disponível em: https://quadernsdepsicologia.cat/article/view/v23-n3-guerra-ribeiro-jorge-
-etal/1787-pdf-pt. Acesso em: 28 jan. 2021.
LACAN, Jacques. Alocução sobre as psicoses da criança. (1967) In: Outros Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 508-543.

35
Esta música faz parte do álbum “Do Cóccix Até O Pescoço”, lançado em 2002, tendo sido escrita por
Seu Jorge, Ulises Capelleti e Marcelo Fontes Do Nascimento.
162
Flavia Gaze Bonfim (org.)

______. Estou falando com as paredes: conversas na capela de Sainte-Anne. (1972). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.
______. O Seminário, livro 17 – O avesso da psicanálise. (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1992.
______. O Seminário, livro 18 – De um discurso que não fosse semblante. (1971) Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
______. O Seminário, livro 19 - ... ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.
______. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967) In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 248 – 264.
______. Televisão. (1974) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,
p. 508-543.
FREIRE, Ana Beatriz; MALCHER, Fabio. O corpo de consumo entre a ciência e o capi-
talismo. In: MANSO, Rita; DARRIBA, Vinicius. Psicanálise e Saúde: entre o Estado e o
sujeito. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2015. p. 327-339.
JAIME, Pedro. Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial. São
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CARDOSO, Marta; HERZOG, Regina (org.). Diferença e segregação. Curitiba: Appris
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culinidade, mulheres e religião. In: De guri a cabra macho: as masculinidades no Brasil. Rio
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SAFATLE, Vladimir. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
STANGROOM, Jeremy. Pequeno livro das grandes ideias. São Paulo: Ciranda Cultural
Ed., 2008.

163
A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO
DO ANALISTA À LUZ DE FRAGMENTOS DE
UM CASO CLÍNICO

Rogério Paes Henriques36

DISCURSO: SEM PALAVRA, MAS NÃO SEM ESCRITA

No Seminário, livro 17, Lacan (1969-70/1992) assinala que o


discurso do qual se trata em psicanálise é “um discurso sem palavras” (p.
11; grifo original). Com isso, Lacan faz deslizar os sentidos atribuídos
pela linguística à noção de discurso associado à fala (ato individual de
vontade e inteligência) e ao enunciado (encadeamento lógico de propo-
sições) (MOISÉS, 1974, p. 152-153). Lacan parece filiar-se aos retóricos
clássicos - sobretudo Aristóteles, Quintiliano e Horácio - tomando
deles a noção de discurso como estrutura (ibid., p. 153), porém, deslo-
cando-a do dito (campo da oratória) rumo ao dizer. Tal deslocamento,
sua subversão, lhe permite escrever37 algebricamente quatro discursos:
do mestre, da histérica, do universitário e do analista (LACAN, 1969-
70/1992, p. 19; p. 44), entendidos como “uma ordem estabelecida no
real a partir da linguagem”38 (GOLDENBERG, 2014, p. 119).

36
Pós-doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e em Psicologia (UFF). Professor Associado III (UFS).
CV: http://lattes.cnpq.br/6173994821157043
37
As dimensões do dizer e do escrever estão no centro da experiência analítica, na medida em que o que
se diz e o que se escreve, em uma psicanálise, se enlaçam e estabelecem o ponto extremo da relação do
sujeito com o inconsciente (BONNAUD, 2014, p. 123). Não à toa, Lacan (1969-70/1992, p. 47 e seg.)
toma a repetição em Freud, que se funda num retorno e numa perda do gozo, para elucidar sua noção
de “mais-de-gozar”, articulando-a ao traço unário: “...é no traço unário [marca de gozo] que tem origem
tudo o que nos interessa, a nós, analistas, como saber” (LACAN, 1969-70/1992, p. 48). Todavia, não
se trata de qualquer saber, mas do saber na condição de “gozo do Outro” (ibid., p. 13). “É com o saber
como meio de gozo que se produz o trabalho que tem um sentido, um sentido obscuro. Esse sentido
obscuro é o da verdade” (ibid., p. 53). “É ao analista [...] que se endereça essa fórmula que tantas vezes
comentei, Wo es war soll Ich werden. [...] É lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do outro, que eu,
na medida em que profiro o ato analítico, devo advir” (ibid., p. 55).
38
Lacan (1972) afirma: “O discurso é o que? É o que, na ordem... no ordenamento do que pode ser
produzido pela existência da linguagem, faz função de laço social” (p. 20).
164
Leituras Psicanalíticas

Há, assim, quatro modalidades de renúncia à tendência pulsional


em tratar o outro como objeto a ser consumido (sexual e fatalmente) em
prol do laço social - localizado por Freud (1930/2020) como a principal
fonte de mal-estar para o ser falante -, que definem quatro formas de
relacionamento: governar, correspondente ao discurso do mestre no
qual o poder domina; educar expressa o discurso universitário regido
pelo saber; analisar nomeia o discurso do analista, que se apaga como
sujeito erigindo-se como causa libidinal do processo analítico; e fazer
desejar no discurso da histérica, onde predomina o sujeito da interro-
gação levando o mestre não somente a querer saber, como também a
produzir um saber (QUINET, 2001, p. 13). Os discursos são modos
de aparelhar o gozo com a linguagem. A cultura exige do sujeito uma
renúncia pulsional e todo laço social implica um enquadramento da
pulsão e resulta em perda real de gozo: “...há perda de gozo. E é no lugar
dessa perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função
do objeto perdido, disso que eu chamo a” (LACAN, 1969-70/1992,
p. 50). O objeto a mais-de-gozar engendra no sujeito uma incessante
recuperação de gozo, pois a defasagem não pode ser reabsorvida.
A formalização lacaniana dos quatro discursos utiliza quatro
lugares: a verdade, que sustenta o laço social sendo ao mesmo tempo
escondida; o agente do discurso, que domina o laço social conferindo-lhe
o tom e sua característica primordial; o outro, aquele a quem o discurso
se dirige ou se submete; e a produção, o resultado, o efeito ou o que
resta da aparelhagem do gozo pelo discurso (QUINET, 2001, p. 14).
AGENTE OUTRO

VERDADE PRODUÇÃO

Há também quatro elementos que ocuparão sucessivamente


esses lugares: S1, o significante-mestre; S2, o saber; $, o sujeito; e a, o
objeto mais-de-gozar. Desse modo, a descrição dos quatro laços sociais
fundamentais de nossa sociedade é feita por meio da circulação desses
quatro elementos em cada um dos lugares disponíveis.

165
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Discurso do Mestre Discurso da Histérica


S1 → S2 $ → S1
[Quarto de giro]
___ ___ ___ ___
$ // a a // S2

Discurso do Analista Discurso Universitário


a → $ S2 → a
[Quarto de giro]
___ ___ ___ ___
S2 // S1 S1 // $

Esses quatro discursos constituem a matriz de todo laço social


e uma maneira - sempre fracassada - de tratar o gozo com os sem-
blantes: o poder, no discurso do mestre; o saber, no da universidade; o
desejo, no da histeria; e o objeto a, no discurso do analista. Este último,
ao colocar o gozo na dianteira do laço social, desvela aquilo que os
demais discursos ocultam: “que o significante trabalha para o gozo e
que, desse trabalho, cada discurso extrai alguma satisfação e nenhum
sentido” (BRODSKY, 2011, p. 118).

DISCURSOS DO MESTRE NA ATUALIDADE

O discurso universitário: imperativo de saber

No Seminário, livro 17, Lacan (1969-70/1992) designa o dis-


curso universitário como “discurso do mestre modernizado” (p. 36).
Se ao mestre antigo cabia o poder dissociado do saber, cujo suporte
era o escravo, no discurso universitário, o mestre moderno (saber uni-
versal científico) se apropria do saber do escravo, o que lhe permite
dominar – trata-se aí de um saber-poder. Consequentemente, há uma
tirania do saber que exige, a todo custo, a obediência ao imperativo
epistemológico de “tudo-saber” (ibid., p. 32). No discurso universitário,
portanto, a verdade do sujeito (S1) é rejeitada em prol do saber (S2),
caracterizado como “a ideologia da ciência, falsa ciência, e a buro-
cracia associada a esse tipo de saber” (TUDANCA, 2008, p. 94). Na
166
Leituras Psicanalíticas

condição de mestre do discurso universitário, nada consegue deter a


“fantasia de um saber-totalidade”, a despeito das tentativas frustradas
de regulação dos comitês de ética.
O sujeito que corresponde ao discurso universitário é o “aluno
como objeto a, chamado por Lacan de astudado, a fim de indicar com
esse termo o lugar de objeto em que está instalado” (TUDANCA, 2008,
p. 95), condenado a ser “apenas unidade de valor” (LACAN, 1969-
70/1992, p. 84), um produto tão consumível quanto qualquer outro.
Em um acolhimento feito por mim na condição de psicólogo
voluntário de um programa de escuta à comunidade acadêmica de
uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública da Bahia, em 2020,
ao longo de oito sessões, encontrei na modalidade on-line Clara,
aluna de meia-idade dessa IES, que se queixa inicialmente de não
pertencimento ao cenário acadêmico. Ingressante via cotas raciais,
ela se percebe mais lenta intelectualmente que suas colegas de turma,
efeito - segundo ela - da extrema pobreza que lhe impôs a postergação
de sua formação escolar, só completada relativamente recente. Atual
funcionária pública concursada de nível superior, seu curso avançado
viria coroar sua trajetória de estudos. Todavia, Clara se questiona se
este seria mesmo o seu lugar. Apoiando-se no discurso decolonial, ela
me relata as adversidades que uma “negra de pele clara” - como ela se
declara - teve que enfrentar para ingressar na pós-graduação. E segue
enfrentando, uma vez que os próprios professores que lhe apresentaram
os estudos decoloniais parecem não lhe reconhecer academicamente.
Por não ser bem avaliada, ela se percebe segregada da instituição.

O discurso capitalista: imperativo de gozo

Numa conferência proferida em Milão, “Do discurso psicanalí-


tico”, Lacan (1972) assim apresenta o discurso capitalista como substituto
do discurso do mestre: “...uma pequenininha inversão simplesmente
entre o S1 e o $... que é o sujeito... basta para que isso ande como sobre

167
Flavia Gaze Bonfim (org.)

rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido


demais, se consome, se consome tão bem que se consuma” (p. 18).
Discurso do Mestre Discurso capitalista
S1 → S2 $ S2 consumidor ciência
___ _↓_ ___ ___↓___ ____↓___ ___↓___ ___↓___
$ // a S1 a capital gadgets

Esse é, na verdade, o laço social dominante em nossa sociedade,


emendou-se Lacan, e não o discurso universitário na condição de dis-
curso do mestre moderno, tal como ele havia afirmado dois anos antes
no Seminário, livro 17. “A sociedade regida pelo discurso capitalista
se nutre da fabricação da falta de gozo e produz sujeitos insaciáveis
em sua demanda de consumo – consumo de gadgets que ela oferece
como objetos do desejo -, promovendo, assim, uma nova economia
libidinal” (QUINET, 2001, p. 17).
Tal discurso não promove efetivamente a ocorrência de laços
sociais, reduzindo as parcerias do sujeito aos objetos de consumo cur-
tos e rápidos ($ ← a). Nesse sentido, promove-se “tanto um autismo
induzido quanto um empuxo-ao-onanismo” (QUINET, 2001, p. 17),
pois não só se realiza a economia do desejo do Outro, como também
se estimula a ilusão de completude - ilustrada, por exemplo, na fantasia
ciborgue39 em Donna Haraway (2009).
O capital se apresenta como significante-mestre desse discurso,
materializado por um sujeito animado pelo dinheiro ($ → S1). Por sua
vez, o saber científico capitalizado, subsumido pela tecnologia, produz
gadgets que operam como se fossem causa de desejo (S2 → a), quando de
fato não passam de objetos de gozo que visam a saturar o sujeito (tor-
nado consumidor) e a tamponar sua falta, desconsiderando seu desejo.
Dado que “Um mesmo circuito econômico vale no capitalismo
e na pulsão: perda e retorno de gozo sintomático” (AFLALO, 2008, p.

39
Grosso modo, trata-se de fazer existir a relação sexual (no sentido de Lacan) entre o ser humano e as
máquinas. Isso ressoa na “epistemologia mutante” de Paul Beatriz Preciado e sua noção de “monstro”
ilustrada, no Brasil, com a HQ de Lino Arruda Monstrans: experimentando horrormônios. O hibridismo
entre o humano e a biotecnologia é uma das ilusões que perpetuam o ideal do discurso do capitalista.
168
Leituras Psicanalíticas

84), o sujeito do discurso capitalista “é um santo, pois com seu corpo


ele se consagra a fazer existir esse novo objeto a para os outros. Ele
sabe que seu ser é refugo do discurso, pois consentiu com o saldo cínico
da pulsão” (ibid., p. 85). O discurso capitalista “é astucioso por deixar
cada um diante da liberdade do imperativo do mais-de-gozar” (GOL-
DENBERG, 2014, p. 120), apresentando-se como “verdadeiramente
pestilento”. Esse discurso sem avesso e não regulador opera “a segre-
gação determinada pelo mercado entre os que têm ou não acesso aos
produtos da ciência” (QUINET, 2001, p. 18). “A droga contemporânea
[...] é um derivado da ciência”, seja um produto tecnológico, seja uma
nomeação por ela fornecida: TDAH, TOC, disforia de gênero etc.
(BRODSKY, 2011, p. 119-120). Contudo, “O discurso capitalista é
destinado a arrebentar, pois a soma dos objetos a, que ele faz consomar
[consumir], é limitada pelo corpo, que se consuma tão rápido quanto lhe
é imposta a insuflação dos mais-de-gozar” (AFLALO, 2008, p. 85).
Clara me relata sua dificuldade em assumir seus cabelos crespos
e como a militância vem influenciando positivamente em seu processo
de aceitação. Foram anos e anos de dolorosos alisamentos contínuos
nos quais ela consumiu uma infinidade de produtos capilares, numa
tentativa sempre fracassada de embranquecimento – fracasso esse
também encontrado ao seu próprio modo nos testemunhos de passe
da psicanalista argentina Marina Recalde (2014a; 2014b; 2016). Afinal,
por mais lisos que fossem os cabelos de Clara, ela me relata outros
fenótipos denunciadores de sua negritude, mesmo para uma “negra de
pele clara” como ela: seu nariz e seus lábios. No novo ambiente univer-
sitário, Clara não tem mais motivos para camuflar sua negritude, que
ela agora enaltece. Quando finalmente seu estilo Black de cabelo lhe
parece, ao sabor da decolonialidade, uma “declaração política de cons-
ciência racial através do qual ela redefine padrões dominantes de beleza”
(KILOMBA, 2019, p. 127), e isso em pleno ápice de sua realização
acadêmica, Clara contudo sente que seu mal-estar retorna e procura

169
Flavia Gaze Bonfim (org.)

ajuda psicológica... Há um resto não assimilável pelos discursos do


mestre dominantes, que denota um gozo desconhecido para si própria.

A SEGREGAÇÃO E SEU FURO: O DISCURSO DO


ANALISTA

Soler (1998, p. 43-46) afirma que a tese lacaniana faz da segrega-


ção, em seu desenvolvimento recente, um efeito, ou melhor, uma conse-
quência inevitável daquilo que caracterizamos como sendo a universali-
zação introduzida na civilização pela ciência. Trata-se de fazer funcionar
um “para todos” que suprima as diferenças nos planos do desejo e do
gozo. “A extensão da segregação se vale da substituição do sujeito divi-
dido pelo sujeito puro [saber] da ciência” (BROUSSE, 2019, p. 157).
Aos refratários à universalização regida pelo mercado de bens
comuns, isto é, aos insubmissos ao gozo fálico competitivo, impõe-se
a via espacial da repartição territorial. Mas, além da segregação pelo
Outro social, há também a autossegregação ou segregação voluntária:
aqueles que escolhem segregar-se de uma massa qualquer, em nome
da ideia de irmandade: são os egos que fazem grupo. A segregação se
apresenta, portanto, na atualidade, como uma via principal de tratar
o insuportável, o impossível de suportar: o gozo do Outro.
Soler se pergunta então se os discursos não seriam fontes de
segregação, afinal, todo discurso é racista - eis a tese de Lacan -, na
medida em que cada um deles visa a submeter os indivíduos à sua
própria ordem de gozo, rivalizando com os demais. Resta saber se o
discurso analítico, apesar de discriminatório, tal como os outros três,
pode evitar a segregação (SOLER, 1998, p. 46).
À fragmentação do significante-mestre do Pai responde a “função
do Progresso” na civilização como ideologia comum, atrelada à justiça
distributiva dos benefícios do progresso. Todavia, como nos lembra
Lacan, não cabe ao analista ser o “Cervantes de tal justiça distributiva”.
Pois, na atual “civilização unissex” deixa-se de lado a zona de exceção
que faz menos-um ao todo: a zona da relação sexual. O espaço que do
170
Leituras Psicanalíticas

todo não pertence à relação sexual é aparentemente o da igualdade.


Há no mundo atual tentativas de tratar a discriminação (no sentido
de diferença, precisamente situada e definida) que a psicanálise cul-
tiva, a discriminação sexual, pelo ideal igualitário. Alguns, inclusive,
tomam essa discriminação em termos de segregação (SOLER, 1998,
p. 48-49) servindo-se do discurso jurídico para fazer existir a relação
sexual no nível do significante, no sentido da proporção, como se o
Direito pudesse lhes garantir uma justiça distributiva do gozo sexual
(MILLER, 2015, p. 105). Cabe ao discurso analítico promover a
operatória de um avesso: dedicar-se a curar os sintomas renegados
da esfera sexual e resistir à ideologia igualitária. “O discurso analítico
pretende escapar à segregação pela via do um por um, o que [também]
é astuto” (SOLER, 1998, p. 49).
Conceber a posição de agente ao analista como objeto a mais-
-de-gozar implica ao discurso do analista operar com a noção de
real, com uma experiência orientada para tocar o real. Todavia, ao
formalizar os quatro discursos, Lacan assinala que eles, apesar de
serem tratamentos do gozo, pertencem ao registro do semblante, ou
seja, não tocam o real. O objeto a faz-se, portanto, agente do impos-
sível e o discurso do analista opera em relação ao real como avesso do
semblante. Nessa operação pelo avesso, o discurso do analista “Faz
cair o Outro como fundamento do sujeito, leva a fantasia à impossi-
bilidade de unir com o Outro, produz a ruptura da articulação S1-S2
e seu efeito de sentido, e põe em prática o avesso do inconsciente
transferencial” (YACOI, 2008, p. 82).
A despeito de também ser uma maneira de tratar o real com os
semblantes, no que concerne ao discurso analítico, sua ficção não é a
do Pai da tradição nem a do direito ao gozo para todos, tampouco a
do direito à felicidade. “Sua ferramenta é o paradoxo de uma lei sin-
gular chamada sintoma” (BRODSKY, 2011, p. 120). O sintoma como
‘acontecimento de corpo’, no ensino tardio de Lacan, talvez reflita sua
aposta num saber prévio aos discursos. “É que um saber, por assim
171
Flavia Gaze Bonfim (org.)

dizer, ‘inscrito no corpo’, evidentemente não provém da universidade


nem da ciência e, consequentemente, bem que poderia como as baratas,
sobreviver à sua propagação” (BENITO, 2011, p. 127).
Eis então que surge uma lembrança de infância que toca o singu-
lar em seu corpo: a mãe de Clara, branca, penteia os seus cabelos crespos
rudemente, causando-lhe muita dor. Durante parte de sua infância,
seus cabelos chegaram inclusive a ser cortados bem curtos, de modo a
poupar sua mãe dessa penosa tarefa. Ao relatar essa sua “marca humana”
(ROTH, 2002), Clara toca algo de uma inscrição corporal singular
para além do discurso universitário e da ciência. Aberto o processo
associativo, a atual angústia que sente ante o fantasma do abandono
de sua filha caçula - retinta e também lenta na aprendizagem como
seu marido: “vale à pena continuar a ensiná-la?” “Ela não teria puxado
ao pai, e não a mim?” - lhe assombra como repetição do seu próprio
abandono por sua mãe. Oriunda de família numerosa muito pobre
interiorana, Clara mudou-se para a capital aos 13 anos, ofertada por
sua mãe a duas irmãs mais velhas para cuidar dos sobrinhos. Apesar
de reconhecer oportunidades daí advindas, ela se pergunta porque sua
mãe a deixou-cair tão precocemente, cernindo algo de sua posição de
objeto (filha excluída da série familiar) e advindo lá onde ela era o
Isso, pura repetição tíquica. A partir de um reviramento dos discursos
do mestre que até então lhe organizavam, Clara toma a palavra para
que um outro faça d’Isso (da causa de gozo - seu estatuto de objeto -
colocada no lugar da verdade desse sujeito) um saber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 1978, Lacan afirma: “Há quatro discursos. Cada um se crê


a verdade. Só o discurso analítico é uma exceção. Seria melhor que
este dominasse, concluir-se-á, porém justamente esse discurso exclui
a dominação, em outras palavras, não ensina nada. Não tem nada de
universal...” (LACAN, 1978/2011). No lugar do consumo de um ensi-

172
Leituras Psicanalíticas

namento, é a falta de se deixar levar pelas ilusões dos outros discursos


que nos torna psicanalistas, a operar o discurso analítico.
O discurso analítico só se sustenta como exceção aos outros três
discursos de dominação. “A ciência modificou o discurso do mestre e
aumentou os poderes a força de algoritmos, o discurso histérico con-
quistou o campo social e o discurso universitário reina sobre os saberes”
(BROUSSE, 2020, p. 218). Já o discurso analítico dissipou-se sempre
que pretendeu dominar: sua inserção social é, ao mesmo tempo, seu
desaparecimento. Sua estrutura o coloca como furo aos discursos do
mestre - universitário e capitalista.
“A experiência analítica, ao associar o inconsciente a ser decifrado
ao inconsciente real, abre uma nova via sobre os processos segregativos.
Na verdade, ela alia o real da cifração àquele do organismo, enoda a
materialidade das palavras à marca de gozo no corpo” (BROUSSE,
2019, p. 159). A psicanálise responde pela subversão do desejo à
orientação segregativa do gozo, substituindo o universalismo pelas
soluções singulares (não coletivizáveis) dos seres falantes. “Não há
identidade do analista. Esse reviramento dos discursos do mestre é, em
si e para cada um, uma alegre experiência de subversão. Os analistas
são inclassificáveis!” (ibid.).

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lítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
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174
O RACISMO E A RECUSA DA
TRANSFERÊNCIA: RESISTÊNCIAS DO
PSICANALISTA

Mariana Mollica da Costa Ribeiro40


Fabio Santos Bispo41

INTRODUÇÃO

Propomos uma discussão sobre como as relações raciais com-


parecem nos fenômenos transferenciais. Freud (1905/1996) destaca
que a transferência pode funcionar como o motor do tratamento e
ao mesmo tempo interromper a associação livre. O que determina
sua passagem de obstáculo a uma poderosa aliada é justamente a
especificidade do manejo da estratégia transferencial pelo psicana-
lista. Nossa questão se situa exatamente nesse ponto: como o racismo
pode interferir nessa operação?
Consideramos, primeiramente, os entraves que o racismo estrutu-
ral coloca para uma escuta efetiva na análise, principalmente a partir da
emergência da transferência negativa e da resistência, quando a surdez
por parte do psicanalista impede que sujeitos historicamente marcados
pela violência colonial sejam escutados. Nos perguntamos acerca das
condições de possibilidade para que o discurso psicanalítico atinja e
trate, não apenas o sofrimento racial de cada um, mas as relações de
colonialidade presentes na polis e atualizadas na cena analítica. Para
tanto, é preciso reconhecer as resistências dos psicanalistas, ligadas à
própria denegação do racismo, principal marca do racismo brasileiro
(GONZALEZ, 2020; MUNANGA, 2017), e que pode ser encoberta
inconscientemente sob o manto de uma suposta neutralidade clínica.

40
Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Pós-Doutoranda (PNPD/CAPES). Professora colaboradora
(UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/2046000937874008
41
Doutor em Psicologia (UFMG). Professor (UFES). CV: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747
175
Leituras Psicanalíticas

Esse é um obstáculo que pode implicar uma recusa de escuta da repe-


tição e da resistência oriundos da transferência. Para enfrentar esse
impasse, é necessária uma sensibilização, na formação do psicanalista,
quanto à leitura e comprometimento com os estudos pós-coloniais e
decoloniais, mas também uma transformação concreta das relações
raciais que permeiam o laço analítico. Isso pode ocorrer, por exemplo,
com a abertura, nas escolas de psicanálise, de programas de ações afir-
mativas que inclua um número cada vez maior de pessoas negras e de
origem periférica e com o engajamento teórico e político efetivo em
relação às violências subjetivas e sociais de nosso tempo. Um número
importante de psicanalistas negras e negros já vem lutando para o
resgate das contribuições de autoras negras brasileiras, que trazem
leituras originais e fundamentos para uma experiência psicanalítica em
solo brasileiro, com uma escuta das trajetórias e experiências periféricas
atravessadas pela incidência da segregação racial.
Outro eixo de análise, diz respeito ao impacto do racismo no
próprio estabelecimento da transferência, na medida em que a supo-
sição de saber, numa sociedade racista, pressupõe a brancura como
condição de possibilidade. Frequentemente, a questão racial interroga
a dimensão da transferência de forma mais explícita quando o paciente
negro demanda ser atendido por um analista negro ou, o que nem
sempre significa a mesma coisa, quando o paciente negro recusa um
analista branco. Como somos atravessados pelos ideais coloniais da
branquitude (FANON, 2020; SOUZA, 1983/2021), mesmo as pessoas
negras raramente demandam analistas negros. Nossa hipótese é de que
a população negra ainda deposita no branco a suposição de saber e
somente uma minoria, marcada por certo confronto com o racismo e um
saber advindo dos movimentos sociais, arrisca um passo na superação
dessa preferência. Talvez seja o incômodo com essa virada que tem
levado muitos psicanalistas a recorrer a argumentos que escamoteiam
a lógica racial implicada no caráter colonialista e europeizante dos
saberes acadêmicos, que pode mesmo atingir a transmissão da psica-
176
Flavia Gaze Bonfim (org.)

nálise. Discutimos a seguir a forma como esses argumentos reforçam


a recusa a um debate franco acerca do racismo, remetendo-o a um
suposto identitarismo. Autores críticos da colonialidade (FANON,
2020; MBEMBE, 2018; RIBEIRO, 2017; GROSFOGUEL, 2016;
DUSSEL, 1993) nos ajudam a responder essa crítica, abrindo espaço
para uma psicanálise implicada na superação do negacionismo.

DA ALEGAÇÃO DE IDENTITARISMO A UMA ESCUTA


DO CARÁTER VIOLENTO DAS IDENTIDADES
NORMATIVAS

Por que pessoas negras têm procurado analistas negros e tem


evitado os brancos? É comum o argumento, no campo psicanalítico,
de que esta busca se dá em função de uma identificação imaginá-
ria e que esta é uma tendência dos nossos tempos, que tem encon-
trado no identitarismo um meio de defesa contra a segregação, atra-
vés de uma busca pelo semelhante.
Do ponto de vista político, os críticos de noções como o “lugar
de fala” (RIBEIRO, 2019), por exemplo, argumentam que a política
identitária presentificaria um essencialismo político, carente de sofisti-
cação teórica, que mascara a luta de classes, tomada como o verdadeiro
problema a ser enfrentado para combater as opressões no capitalismo.
Sugerem que a política identitária fratura o corpo político, reificando
identidades, criando hierarquias e acirrando ainda mais a fixação de
sujeitos em determinados lugares. No caso de psicanalistas, a crítica
aponta que o problema é dar ênfase demasiada ao imaginário, aos
atributos do eu que mascaram a dimensão do inconsciente, e leem
os movimentos identitários com a mesma lógica do grupo do tipo
“mente grupal” descrita por Gustave Le Bon, como aponta Freud
(1921/1996) em Psicologia das massas. A tese clássica de Freud é
que os membros do grupo se reúnem a partir de identificações entre
si e por colocar o mesmo líder no lugar do ideal do eu. Ainda que
não haja um líder, uma ideia ou um ideal poderia consolidar um
177
Leituras Psicanalíticas

tipo de grupo que pudesse encobrir o inconsciente, produzindo uma


homogeneização entre os integrantes, reforçando o narcisismo das
pequenas diferenças e a alienação dos eus dos “irmãos” em relação a
sua própria dimensão pulsional.
Através do estudo dos quilombos e das noções de quilombismo,
desenvolvidas por autores como Beatriz Nascimento (2021), Abdias
Nascimento (1980), Clovis Moura (2001) e outros historiadores,
antropólogos e ativistas negros, temos colocado em questão a ideia de
que os coletivos de luta política, que extraem da tradição quilombola
um saber fazer contra a opressão racial, sejam eles próprios organiza-
dos pela mesma lógica da Igreja e do Exército. O quilombo pretende
ser uma brecha no sistema escravista e fazer resistência justamente
à lógica colonial que se serviu da estrutura da igreja e do exército
para dominar os territórios conquistados e manipular, ludibriar e
controlar a população autóctone (RIBEIRO, ROSA e ASSIS, 2022).
Seria mesmo honesto e ético, da parte dos psicanalistas, utilizar um
modelo grupal lido por Freud de organizações erigidas sob a lógica
do nazismo para destrinchar o que se opera nas organizações popu-
lares de luta contra o extermínio?
Djamila Ribeiro (2017) e demais defensores do conceito de lugar
de fala afirmam que esses argumentos são falaciosos e escondem uma
manutenção de certos privilégios para que as coisas não se modifi-
quem (BISPO, 2022). Estariam a serviço do que Cida Bento (2002)
nomeou como o pacto narcísico da branquitude que, sob o manto da
universalidade, admitem que sejam omitidas as forças de extermínio de
subjetividades negras, indígenas e lgbtqia+. Essas forças permanecerão
atuantes de forma insidiosa caso os problemas da raça, do gênero e da
etnia não sejam levantados, com a reivindicação de urgentes transfor-
mações. O poder é quem determina essas identidades e, portanto, as
estruturas de opressão isolam e encerram alguns grupos em lugar de
dejeto social, de subalterno, de objeto do gozo e do capricho de outros,
retirando seu estatuto subjetivo e sua cidadania. A estratégia criada
178
Flavia Gaze Bonfim (org.)

pelos movimentos sociais é de dar a ver os marcadores sociais, ao invés


de encobri-los. Ou, como diria Freud acerca das coisas sexuais, “dar
nome aos bois” [“j’apelle un chat un chat”] (FREUD, 1905/1996, p. 54).
Essa estratégia dialoga com a proposta de Freud sobre o modo
de lidar com a repetição na transferência. Se não houver um esforço de
trazer para a fala os cenários de dominação que se repetem, será difícil
superá-los, pois “é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie”
(FREUD, 1912/1996, p. 119). Essa expressão histórica do vocabulário
jurídico antigo é trazida por Freud nessa formulação tão enigmática
quanto genial, para mostrar a importância da presença real do analista,
naquilo que ele encarna o lugar de Outro nas experiências que recolhe.
O paciente o inclui nas tais “séries psíquicas que o sujeito já formou”
e, se avançamos com Lacan, atualiza precisamente o ponto em que o
sujeito é objeto de um Outro que goza. Se o analista encarna o opressor
que nada quer saber acerca da dimensão racial, como é próprio da socie-
dade colonial, os sofrimentos decorrentes do racismo não aparecerão.
Não se trata de essencialismo ou de uma crença na identidade fixa,
muito pelo contrário, a questão é subverter a nomeação violenta advinda
do Outro. Reafirmar: Sou negra/o! Não é você racista que afirma o que sou.
Minha afirmação como negra/o é a de subverter o apagamento da minha
história, das minhas origens, da minha cultura, da minha subjetividade e
da história de um povo. Tornar-se negro é condição, segundo as teses de
Fanon e Neuza Santos, para superar a tendência do negro colonizado
em forjar uma identificação aos ideais de matriz europeia e branca.
Em termos psicanalíticos, a enunciação e autodesignação presente
nesses grupos opera a favor de uma des-identificação, destituindo os
ideais recalcados da branquitude. Trata-se de deslocar o que Neusa
Souza (1983/2021) chamou de Ideal do Eu Branco. Antes de qual-
quer crítica precipitada, que utilize a psicanálise para deslegitimar
a atuação política de grupos minoritários, é preciso escutá-los e se
perguntar acerca da importância dessas vozes para a superação do
extermínio, da tortura e da objetificação de seus corpos que ocorre
179
Leituras Psicanalíticas

cotidianamente e ir além; produzir um giro de discurso no laço social,


uma transformação no racismo estrutural.
A insistência da crítica pelo imaginário desconsidera completa-
mente os mais complexos e inquebrantáveis determinantes do racismo,
perpetuadores da violência colonial, que podem ser presentificados
nas análises. Neste ponto, é essencial adentrar às questões relativas
à identificação, para em seguida avaliar os aspectos mais delicados e
complexos, portanto, menos evidentes.

O QUE SE REPETE NA TRANSFERÊNCIA?

Vale lembrar da crítica que Jacques Lacan (1963-64/1985)


faz à psicanálise do ego, que baseava o manejo da transferência, bem
como a direção da análise, na identificação ao analista. Essa é uma
questão que diz respeito mais ao final da análise do que ao início.
No estabelecimento da transferência, essa identificação é um dos
motivos que leva alguém a uma análise. A escolha inconsciente se dá
a partir de algum traço identificatório, um significante qualquer, que
demarca a determinação simbólica da transferência, para além do
eixo imaginário especular. A própria definição de transferência em
Freud se serve dessa dimensão. Ele propõe que a ligação do analisando
com o analista conta com um amor provocado por “ideias libidinais
antecipadas” e “clichês estereotípicos” (FREUD, 1912/1996, p. 111).
A repetição evoca, pois, tanto a dimensão econômica, entrevista na
intensidade da libido investida no analista, quanto a dimensão sim-
bólica, das marcas inscritas no encontro com a alteridade, cujos traços
mnêmicos determinam um modo próprio de posição subjetiva no laço
com o Outro. São as reimpressões desses traços que se presentificam
na transferência. O psicanalista consente em entrar na série psíquica,
pagando com seu corpo e com sua pessoa, advertido do manejo que
terá que realizar para fazer oscilar o semblante do lugar que ele ocupa
na transferência. Ele vai assumindo o lugar de várias identificações e
encarnando uma série de objetos até que possa vir a cair e ser esvaziado
180
Flavia Gaze Bonfim (org.)

de representações. Portanto, se para o analisante a identificação é uma


via fundamental para estabelecer a transferência, para o analista, algo
dessa identificação terá que ser deslocada.
É perfeitamente possível que uma pessoa negra busque um
analista negro supondo que este terá mais condições de ouvi-lo do
que um analista branco. Isso pode ser mais ou menos consciente e
constituir uma manifestação da suposição de saber que fundamenta
a transferência. O cuidado que o analista deve ter, sempre, é o de não
encarnar de fato a suposição de saber, permitindo que a questão do
desejo emerja como causa do trabalho analítico. O psicanalista abre mão
de seu lugar de poder na transferência, inaugurando a passagem para
a associação livre, como regra primordial da clínica, na qual a palavra
do sujeito toma a dianteira, deixando falar o inconsciente por meio
do próprio discurso que assume o protagonismo na cena analítica. O
saber que importa é o que está suposto, abaixo da barra do recalque,
como retrata o matema da transferência (LACAN, 1967/2003).
Lacan localiza no ato analítico a precipitação da entrada em análise,
quando há uma oscilação do analista enquanto um ideal de saber e
a causa da análise se desloca para a cadeia significante trazida pelo
sujeito, articulada à questão que lhe permitiu formular uma demanda
de análise que inclui o analista como um significante qualquer.
Geralmente não se levantam muitas preocupações quando a
preferência do paciente é por analistas brancos, primeiramente por que
essa preferência raramente é enunciada. Nunca se interroga, inclusive,
porque pessoas brancas só procuram analistas brancos. Talvez também
pelo racismo implícito na desconfiança em relação à capacidade de o
negro atuar como analista. Entretanto, se nem o paciente enuncia o
traço racista que fundamenta a transferência, quando ele está presente,
nem o analista admite o peso dessa dimensão, a possibilidade de intervir
no ciclo de repetição torna-se mais remota ou inexistente. A grande
pergunta que merece ser colocada não é, pois, como o analista negro
deve manejar a suposição de saber quando ela ocorre – seguimos o que
181
Leituras Psicanalíticas

já é a política da psicanálise de recusar a posição de mestria – a grande


questão é como possibilitar que essa face branca da transferência seja
negritada. Ou seja, como intervir para que os ideais da branquitude
sofram algum abalo na análise, se eles não são sequer nomeados? Como
analista e analisante podem superar a denegação do racismo que per-
meia o laço social e interrogar o mito negro e o ideal de branquitude?
Em Observações sobre o amor transferencial, Freud (1915/1996)
aponta o quanto o paciente nos demanda a correspondência de seu
amor e o quanto nos convoca para responder frente ao seu sofrimento
de forma a ocultar os imbróglios da castração, apaziguar suas culpas
e decepções da vida. O lugar do analista na transferência, seja frente
à transferência positiva, quando lhe é direcionado conteúdos incons-
cientes sexuais, seja frente à hostilidade que lhe é imposta por meio
da transferência negativa – é o de abster-se de oferecer uma resposta
fechada, abrindo a possibilidade de presentificação do inconsciente na
neurose de transferência (FREUD, 1914/1996). Esse conceito se refere
ao surgimento, durante o processo analítico, de repetições ou atuações
(acting out) no lugar da recordação. A associação livre colocará em mar-
cha o processo de elaboração na medida em que o sujeito em análise vai
nomeando os acting out e rememorando o que estava latente. O pro-
cesso de simbolização da repetição, fazendo do autômaton tiqué, como
diria Lacan (1963-64/1985), leva o sujeito à elaboração da repetição.
O modo como Freud (1905/1996) maneja a transferência com
Dora, levando a paciente a atuar, em vez de elaborar, é elucidativo
quanto aos obstáculos dos preconceitos do analista, que é a forma
direta como Lacan (1953-1954/1986) nomeia a contratransferência.
Essa atuação pode ser uma saída prematura da análise, ou pode ser
uma permanência que leva o paciente a fixar-se em uma posição de
não poder falar sobre o racismo. A análise coloca-se, então, como um
reforço do recalque. O que leva Freud (1905/1996), diante da questão
da feminilidade, a escutar sua resistência à posteriori no caso Dora? Ele
percebe que seu “lugar de fala”, enquanto homem, o localizava na série
182
Flavia Gaze Bonfim (org.)

paterna: pai, Sr. K. Só depois ele pôde extrair do ensino de sua própria
resistência, a impossibilidade de legitimar a questão que Dora trazia
acerca do saber sobre a feminilidade que supunha presente na Sra. K.
Partindo dos consultórios de psicanalistas que são negras e
negros, Kwame dos Santos e Fernando Teixeira-Filho (2020) afirmam
que a vantagem da escolha por identificação, segundo os analisantes,
é, primeiro, não sofrer racismo na análise, já que os brancos estariam
tomados, sem que eles próprios percebam, pelos cruéis e naturaliza-
dos vícios do racismo estrutural. Além disso, o analisando não ficaria
incumbido de apresentar ao analista as discussões sobre o tipo de
opressão que sofre, já que partem de certo conhecimento sobre um
pior atravessado no próprio corpo.
Apesar desses riscos e efeitos, entretanto, se essas razões são leva-
das para a análise, significa que podem ser interrogadas e enfrentadas,
visto que cada corpo é afetado de maneira singular pelas opressões
sociais. Dois fragmentos de casos atendidos na clínica do Ocupação
Psicanalítica42 podem ilustrar o acolhimento dessa dimensão sin-
gular. Em um deles, uma jovem negra confessa a sua analista, tam-
bém uma mulher negra, que preferia ser atendida por um homem.
Em vez de simplesmente repassar o caso sem escutá-lo, a analista
suporta essa rejeição inicial e abre espaço para que aquela demanda
fosse interrogada. Após algumas associações, outro significante surge
para redefinir a primeira afirmação. Além de relatar uma experiência
anterior positiva com um analista homem, ela alega a dificuldade de
falar sobre algumas questões com seu corpo diante do olhar de outra
mulher, ainda mais se tratando de uma mulher magra. Depois de várias
sessões, um dos pontos em torno do qual a análise da paciente gira é,
justamente, o olhar racista de sua mãe, com uma ostensiva demanda
para que a paciente emagrecesse. O outro caso, foi com um analista

42
Trata-se de um coletivo de psicanalistas que vem investindo, desde 2020, na pesquisa, na transmissão
e na prática clínica voltada para uma psicanálise antirracista. Atualmente, está vinculado ao Núcleo de
Psicanálise e Laço Social – PSILACS (UFMG) e conta com núcleos no Rio de Janeiro (UFRJ), no
Espírito Santo (UFES) e na Bahia (UFRB).
183
Leituras Psicanalíticas

homem, branco, cuja paciente relatou dificuldades de falar diante de


um homem devido a situações de violências sexuais sofridas. Nesse
caso, o analista chega a propor a possibilidade de encaminhamento,
não sem acolher e escutar cuidadosamente o que a paciente tinha
a lhe dizer. Ao relatar o caso em supervisão, o analista mostrou-se
surpreso com o fato de a paciente, mesmo tendo se esquivado com
faltas reiteradas em algumas sessões, ter retomado mais uma vez seu
impasse e ainda assim decidido permanecer com o mesmo analista.
Em ambos os casos, foi importante suportar a transferência negativa,
escutando os impactos que o corpo e a cor da analista provocam na
vinculação do paciente ao trabalho de análise. Admitir a incidência
do racismo e do sexismo é, pois, fundamental para que a resposta do
analista não seja obstaculizada pela sua resistência ao sofrimento racial
e sexista recalcado pelo sujeito ou a recusa automática da transferên-
cia. É importante suportar a enunciação acerca da branquitude do
analista, dentro e fora da análise.
A superação da resistência do analista é, pois, uma operação
clínica, mas também política que vai da formação à transmissão dos
problemas cruciais que interrogam a psicanálise. Destacamos espe-
cialmente aquele que foi proscrito, não dito, inexplorado na história
da psicanálise, a saber, a estrutura colonial e racista presente na trans-
ferência. Há, nesse âmbito, algumas perguntas cruciais que precisam
ser feitas de forma bem direta: por que não há analistas negros nas
instituições psicanalíticas? Por que não citamos os analistas pretos em
nossas pesquisas e prosseguimos valorizando mais os autores europeus?

CONTRIBUIÇÕES FERENCZIANAS PARA O DEBATE

Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1937/1996) traz


à tona a crítica de Ferenczi ao fato de ele não levar em consideração a
dimensão da transferência negativa, quando esse polo da ambivalência
afetiva se encontra escamoteado. O psicanalista húngaro, que foi ana-
lisante de Freud e percebeu o quanto sua análise não tocou nos afetos
184
Flavia Gaze Bonfim (org.)

hostis dirigidos ao analista – e, portanto, o impediu de avançar em sua


análise – propõe uma transformação da técnica psicanalítica. Criou a
técnica ativa, de forma que o analista estivesse numa postura menos
passiva frente ao seu paciente, na busca de provocar, fazer aparecer os
afetos desagradáveis dirigidos ao médico. Ferenczi acaba posterior-
mente por abandonar a técnica ativa, mas mantém a proposição ética
de que o analista não poderia ser neutro, apontando a hipocrisia dos
analistas frente à falta de sensibilidade diante da dor do seu paciente.
Essa indiferença não se dava por uma simples defesa individual ou
algo específico daquele analista, mas sobretudo por aspectos ligados
ao lugar social e à impossibilidade de perceber as próprias resistências.
Considerando que o caso a caso, a singularidade própria ao fazer clínico,
poderia não evidenciar os determinantes sociais, Ferenczi alerta que
corremos o risco de estarmos nós “tranquilos, fumando nosso charu-
tinho, entediados, às vezes fazemos uma observação convencional, às
vezes cochilamos(...)” (FERENCZI, 1932/1990, p. 224), enquanto
resistimos aos desafios maiores que o tratamento exige. Canavêz e
Verztman (2021), destacando esse ponto, perguntam se os psicanalistas
são capazes de escutar os desmentidos sociais.
Sem deixar em segundo plano a realidade psíquica, a concepção
ferencziana do traumático acentua elementos até então pouco valo-
rizados na psicanálise. Para além do trauma como excesso pulsional
inassimilável e que escapa à representação, Ferenczi sugere que o terror
se deve não apenas àquele evento terrificante, mas à consequência de
o sujeito não ter seu sofrimento reconhecido. Portanto, não se trata
apenas de como o sujeito vive de forma singular o acontecimento
traumático, mas é preciso sobretudo considerar todo o seu entorno
social (GONDAR, 2016, p. 137). A recusa radical do reconhecimento
de um sofrimento decorrente de uma violência é, segundo Gondar,
a própria negação do sujeito. Esta seria justamente a dimensão do
desmentido em Ferenczi. O impacto do descrédito foi desenvolvido
pelo autor quando descreveu uma situação de abuso sexual vivido por
185
Leituras Psicanalíticas

uma criança, envolvendo também situações de sujeição, humilhação


e tortura, nas quais o sujeito está submetido sem que possa reagir. A
criança do mito ferencziano tem sua experiência desacreditada por um
adulto que não pode escutá-la. Mais do que não escutar, ele ratifica
e desmente o abuso, fazendo além de uma negação, uma afirmação
à criança, afirmação que legitima o abusador. Não se trata aqui da
própria abolição de uma representação que retorna desde fora, como
na psicose, ou de um esquecimento radical do desejo, produzido pelo
recalcado rechaçado da consciência. Nesse caso, o sujeito é “subtraído
violentamente não de seus conteúdos mentais, mas de processos de
reconhecimento de si” (CANAVÊZ e VERTZMAN, 2021, p. 7).
O antídoto ferencziano para essa postura é a própria presença do
psicanalista. Para ele, a ênfase exclusiva nas fantasias impede os analistas
de estarem atentos à incidência da realidade social que comparece na
análise, seja do lado do analista, seja do analisando, apontando que
a saída de uma espécie de “burocratização da escuta” (CANAVÊZ e
VERTZMAN, 2021) estaria ligada a conhecer os determinantes sociais
aos quais ele próprio estaria sujeito. Vale lembrar as iniciativas de Freud
no entre guerras, com o incentivo às clínicas públicas, apresentadas
no livro organizado por Danto (2019). Como afirma Ayouch (2019),
a psicanálise começa como uma prática judaica, num ambiente no
qual a Alemanha assistia a ascensão do Nazismo e, portanto, trata-
va-se de uma prática fundada por um estrangeiro judeu, considerado
um inimigo a ser exterminado. A psicanálise é fundada a partir de
uma ética subversiva também por ter surgido para que a sexualidade
feminina, impedida de se expressar pela moral sexual civilizada da
família burguesa europeia, pudesse sair da clausura através da escuta
do sintoma histérico pelo analista.
Há uma espécie de elitização característica da institucionalização
do movimento psicanalítico bastante questionada ao longo da história
da psicanálise e que hoje vem sendo subvertida por uma práxis nova
que se incomoda com a ausência de pessoas negras e indígenas nas
186
Flavia Gaze Bonfim (org.)

instituições de formação psicanalítica, bem como nas universidades


e outros espaços decisórios politicamente relevantes. Kupermann
(2019) chega a dizer que, além do núcleo irrepresentável do trauma,
indizível para cada sujeito, é preciso perceber que, frente aos grupa-
mentos humanos mais vulneráveis, há formas violentas de poder que
são tacitamente aceitas como coisa natural. São repetições que se per-
petuam diante de nossa indiferença e, portanto, no lugar do indizível,
o inaudível que “tende a tornar o outro insensível à voz daquele que
deseja testemunhar a sua dor” (KUPERMANN, 2019, p. 67).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diálogo com os estudos pós-coloniais e decoloniais é funda-


mental para termos uma postura crítica em relação a um universalismo
pretensamente abstrato. Enrique Dussel (1993) sugere que o mito da
modernidade origina o empreendimento colonial que resultou no exter-
mínio de povos indígenas e na escravização de povos africanos. Tanto
os indígenas quanto os negros foram considerados seres sem alma e essa
desumanização mantém suas consequências; que precisam ser escutadas.
Como vimos, há repetições que não são exclusivas do paciente
na transferência com seu analista, mas que são determinadas pela
atualização das condições discursivas de dominação. Lacan (1969-
70/1992) nos oferece, a partir da lógica dos discursos, um modo de
circunscrever as dimensões políticas mais amplas dessa repetição no
laço social, sem perder de vista o modo como cada um atualiza isso em
sua trajetória. Como na análise o paciente precisa superar a resistência
e falar para que algo da repetição sintomática cesse de se escrever,
assim também, no âmbito político, a psicanálise precisa tomar cora-
gem e falar sobre as dimensões racistas e coloniais que atravessam a
nossa história e a nossa prática institucional e clínica. Se Fanon inicia
esse exercício corajoso de rasgar o véu da hipocrisia e falar da pele
negra e das máscaras brancas, desde a leitura da psicanálise freudiana,
temos autoras que prosseguiram com esse exercício, se debruçando
187
Leituras Psicanalíticas

sobre a realidade brasileira. Neuza Souza, Lélia Gonzalez, Isildinha


Baptista, são mulheres que precisam ser estudadas. Mas é preciso
também convocar os psicanalistas brancos a tomar a palavra no exer-
cício de superação das resistências e denegações. Por serem maioria e
ocuparem os espaços de poder, têm condições e responsabilidade na
formação política dos novos analistas. Nesse sentido, a reversão teórica
e política do apagamento do racismo e da negritude terá certamente
ressonâncias clínicas tanto para analisantes – permitindo que muitas
pessoas hoje excluídas sejam encorajadas a se candidatarem à análise
– quanto para analistas, cuja escuta estaria mais aberta às questões
específicas da periferia brasileira.

REFERÊNCIAS
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Leituras Psicanalíticas

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190
SOBRE O TECNOPOPULISMO E A
“SERVIDÃO APAIXONADA”

Raul Max Lucas da Costa43

“...as massas nunca conheceram a sede pela verdade.


Elas exigem ilusões, a que não podem renunciar.”
(FREUD, 1921/2020, p. 150)

INTRODUÇÃO

Este manuscrito almeja lançar uma discussão sobre o traço de


“servidão apaixonada” na relação entre as massas e os líderes populistas
de extrema-direita na atualidade. O termo em questão foi destacado
por Freud (1921/2020, p. 189) em sua análise do estado de enamo-
ramento, característico da relação entre a massa e seu líder, tal qual o
laço entre o hipnotizado e o hipnotizador. Fascinação foi outra palavra
utilizada neste contexto para esta peculiar relação de identificação,
condição esta que não se limita a uma espécie de adoração passiva e
apaixonada, mas que podem também conduzir as massas ao ato, seja
na forma de violência ou a situações de sacrifício com riscos de morte.
Considerando as particularidades do laço social contemporâneo,
em destaque para a aliança entre capitalismo, tecnologia e ciência
(PINHEIRO & COSTA, 2017), é notável a influência das redes
sociais nos rumos da política governamental e na formação de novas
massas artificiais. Neste sentido, destaco o surgimento de uma nova
versão do agrupamento massificado, as chamadas “massas digitais”
(DUNKER, 2019). Estas teriam a peculiaridade de se valer do ano-
nimato e da articulação em rede para inflamar manifestações de ódio
e de detração no âmbito virtual. Por sua vez, Lacan, anteviu o poder

Psicanalista. Doutor em Psicologia (UNIFOR). Professor (UNILEÃO).


43

CV: http://lattes.cnpq.br/0225116375934219
191
Leituras Psicanalíticas

da mass media, ao atentar para a novidade da prevalência da voz e do


olhar através das tecnologias comunicacionais.
No contexto de hoje, a expressão “tecnopopulismo” (MELLO,
2020), parece indicar melhor o alcance de uma nova configuração
política que se apresenta, onde as mídias digitais possuem um papel
central na dinâmica eleitoral, na doutrinação ideológica e na espeta-
cularização das personagens políticas.

DESENVOLVIMENTO

Enquanto conceito da ciência política, populismo é um termo


carregado de história e de indeterminações. O Dicionário de Polí-
tica organizado por Bobbio, Matteucci e Gianfranco (1998), define
populismo como um regime político onde o líder populista esta-
belece uma discursividade governista protecionista endereçada ao
povo. Daí surge a prerrogativa de qualquer governo populista: manter
distância ou mesmo eliminar o Outro ameaçador. Isso acentua o
aspecto afetivo, seja nos apaixonados discursos nacionalistas ou na
devoção popular ao seu líder/pai.
Nos critérios conceituais da análise política, outras características
de um governo populista seriam: o interesse pelo desenvolvimento
industrial, a supremacia e legitimidade popular, a relação direta entre o
líder e o povo e, por fim, uma narrativa protecionista diante das ameaças
à unidade nacional. Poderíamos pensar a partir desses elementos como
se constituiu na história do século XX movimentos como o peronismo,
a fase populista da Era Vargas, o castrismo cubano, dentre outros. É
possível ainda localizar aspectos populistas em governos socialistas e
da direita liberal do século XX.
Valeria um comentário mais detalhado sobre a diferença entre
populismo (política emancipatória) e totalitarismos (formação de
massa), mas por hora, neste escrito, nos interessa considerar o traço
populista na extrema direita atual, especificamente a relação direta com
os apoiadores, e sua propaganda autoritária através da mídia digital.
192
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Como ponto de partida, destaco a marca definidora, ou ainda, a fórmula


do governo extremista: o líder, a massa, o inimigo, uma nominação.
Incluo esta última categoria, considerando a constância do nome do
líder/pai e da consequente filiação que gira em torno dele, como, por
exemplo, o que nome que se dá aos seus partidários ou seguidores.
A respeito da relação entre o líder e o povo, encontramos no
dicionário já citado a seguinte observação:
O apelo à força regeneradora do mito — e o mito do
povo é o mais fascinante e obscuro ao mesmo tempo,
o mais imotivado e o mais funcional na luta pelo poder
político — está latente mesmo na sociedade mais articu-
lada e complexa, para além da sistematização pluralista,
pronto a materializar-se, de um instante para o outro,
nos momentos de crise. (BOBBIO, MATTEUCCI
& GIANFRANCO, 1998, p. 986)

Buscando lançar uma luz analítica sobre as obscuridades con-


ceituais e políticas do populismo, Ernesto Laclau (2013) considera
importante atentar para seu aspecto lógico e estrutural em vez de uma
longa descrição tipológica de suas variações em cada país e época.
Surpreendente ou não, o autor recorre primeiramente a Freud por
considerar que este diferente de seus contemporâneos apresentou
uma análise radical sobre a constituição da sociabilidade. Em seguida,
Laclau reconhece em Lacan, sobretudo na teoria do significante, um
autor essencial para pensar o populismo a partir de sua estrutura de
linguagem, enquanto narrativa.
Da vasta contribuição deste autor sobre o tema, destaco sua
exortação de que não basta a influência ou o carisma do líder para
o estabelecimento do povo unificado. Só há governo populista se o
líder se dispor como aquele que responderá às demandas do povo.
Retornarei a questão mais adiante.
Embora eu desconheça algum comentário específico de Freud e
Lacan sobre o tema do populismo, é inevitável não pensar nas contri-
193
Leituras Psicanalíticas

buições teóricas que eles deixaram sobre as massas e a lógica coletiva,


respectivamente. Aliás, recentemente, o ano de 2021 marcou os cem
anos do livro Psicologia das Massas e Análise (1921/2020) do Eu, de
Freud, publicado originalmente em 1921. Muito já se comentou sobre
este texto, desde sua suposta condição de ultrapassado à sua notória
atualidade para pensar a política do mundo de hoje, especialmente
na ascensão da extrema direita.
Que Freud tenha com este texto antevisto a ascensão do fas-
cismo italiano e do nazismo alemão não é grande novidade. A quem
diga que a fonte de inspiração do pai da psicanálise foi a Revolução
Russa de 1917 (ROUDINESCO & PLON, 1998). As manifestações
políticas formadas por multidões “sem líderes” e anônimas dos anos
2000 pareciam ter sepultado qualquer possibilidade no mundo glo-
balizado, marcado historicamente por guerras e ditaduras, de arranjos
ou constituições de massas (HARDT & NEGRI, 2005).
Inevitável não lembrar das cenas iniciais do filme A Onda de
2008, onde um professor de história interpela sua turma sobre a
possibilidade do fascismo e do nazismo no mundo de hoje. Diante
da resposta negativa e incrédula por parte dos estudantes, o professor
reproduz e comprova através de um experimento social todos elemen-
tos constituintes do nazi-fascismo com seus alunos. As consequências
disso, porém, vocês devem imaginar quais foram.
A explosão da extrema direita nos últimos anos (EUA, Brasil,
Hungria) ainda nos chocam, sobretudo, as imagens de manifestações
antidemocráticas e favoráveis ao retorno à ditadura militar. A socióloga
Esther Solano (2019) situa as origens do bolsonarismo como uma
demanda de dada parcela populacional por uma solução antissistema,
apartidária e idealmente imune à corrupção, ou seja, íntegra.
Uma novidade da extrema direita de nossos dias é sua apresenta-
ção tecnopopulista. Vale aqui enumerar suas características (MELLO,
2020): 1) o uso privilegiado do aplicativo de conversação Whatsapp
como veículo propagador de notícias falsas e de detração política.
194
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Como se sabe, os disparos em massa de mensagens pró-bolsonaro


através do Whatsapp na campanha presidencial brasileira de 2018 foi
financiado por empresários bolsonaristas que contrataram empresas
de marketing digital para este fim. O caso continua sob investigação
judicial por se configurar como crime eleitoral. 2) a proximidade do
líder com seus seguidores através de mensagens e comentários nas
redes sociais, em geral: Twitter, Facebook, Instagram e a comunica-
ção direta com o público através de “lives” no YouTube. A pesquisa
jornalística de Patrícia Campos Mello (2020) revelou que durante a
campanha eleitoral de 2018, o número de seguidores de Bolsonaro
nas redes sociais era notadamente superior em comparação aos outros
candidatos. Por exemplo, no Facebook, Bolsonaro tinha 6,9 milhões
de seguidores enquanto Haddad, 689 mil. 3) os ataques organizados
através de bots e trolls às pessoas e às instituições contrárias ao posi-
cionamento ideológico extremista. A constatação de um “gabinete do
ódio” sintetiza muito bem como funciona esta operação de uso das
redes sociais como arma de hostilidade.
Toda esta mobilização no meio digital revela uma nova confi-
guração das massas, onde o anonimato, a desinibição e o ódio segre-
gativo, potencializa o efeito de coesão massiva. Isso está evidenciado
na capacidade, via internet, de formar e articular grupos isolados
geograficamente. O ódio ao inimigo consiste em um dos elementos de
união entre diversos grupos virtuais de extrema direita. A nomeação
do inimigo perpassa um deslizamento significante muito peculiar:
“A contiguidade do ódio passa do PT para o comunismo, daí para o
esquerdismo, gênero, ideologia e disso para qualquer sintagma que
contenha a expressão social...” (DUNKER, 2019, p. 128).
A lógica dessa coesão é a própria segregação que lhe é constituinte.
Na origem da fraternidade está a segregação (LACAN, 1970/2003),
aqui com o requinte destrutivo, haja vista que o recurso à palavra, ao
simbólico fica fora na manifestação de ódio, enquanto uma paixão do
ser situada entre o real e o imaginário (LACAN, 1953/1994). Junto a
195
Leituras Psicanalíticas

isso, a figura do líder/pai tecnopopulista surge como um protetor garan-


tidor da segurança e combatente capaz de deter a ameaça comunista.
Retomando a questão do estudo freudiano das massas, e sua
proximidade com a comunicabilidade tecnopopulista de hoje, é impor-
tante considerar que a atualidade da análise freudiana consiste em
permitir uma leitura estrutural e lógica, muito bem introduzida por
Freud através do conceito de identificação. História e estrutura per-
passam este texto freudiano e por esta via dupla que podemos pensar
nas massas digitais de hoje. O próprio título da obra já nos fornece
uma indicação de uma torção moebiana entre o individual e o social,
as massas e o Eu. A leitura atenta de autores sociólogos e antropó-
logos e a escrita vagarosa de Freud sobre o assunto é encerrada no
último capítulo com uma bela reflexão clínica sobre a melancolia e a
funcionalidade singular do ideal do Eu.
Freud aponta três fontes (e não tipos!) da operação de identi-
ficação. A primeira, ao pai, considerada por Lacan como anterior a
experiência do sujeito. A segunda fonte, a identificação sintomática,
regressiva, fazendo recuar a escolha de objeto à identificação. É desta
que Lacan isola a função do traço unário. A terceira fonte, consiste na
identificação histérica, onde se toma o desejo alheio como próprio e se
apresenta na forma de uma contaminação psíquica, diz Freud. As três
fontes se articulam revelando a identificação como uma operação con-
tínua e crucial na constituição do sujeito em sua relação com o Outro.
Basicamente, foi esta a tônica destacada por Lacan sobre este
livro. O próprio não se furtou a tecer considerações sobre os efeitos
de massa no laço social. Percebeu na formação psicanalítica de sua
época um funcionamento institucional massificado e hierárquico,
onde se concebia o final de análise como uma identificação ao ideal
do Eu do analista. Em suma, a massa busca o Um, fazer um todo.
Oposto a isso, Lacan nos convida a pensar a lógica do não todo, da
incompletude nas questões coletivas.

196
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Dito isso, retomo uma questão destacada anteriormente sobre


as demandas do povo. Um dos traços destacados por Freud sobre a
psicologia (no sentido de psiquê, “mentalidade”) das massas é a predo-
minância dos afetos sobre a razão. Tal fato, nos faz pensar a prevalência
do ódio enquanto uma paixão destrutiva do ser do outro. Contudo, após
lançar as bases do conceito de identificação (fazendo Lacan dedicar
um seminário sobre o tema), o que faz Freud? Escreve um capítulo
exclusivo em seu livro para problematizar o enamoramento e seu
paralelo com a hipnose. Isso me faz lembrar a consideração de Lacan
de que “o afeto é feito do efeito da estrutura”. (LACAN, 1977, p. 16).
A dinâmica do estado amoroso extremo não coincide, a priori,
com a identificação, pois na análise freudiana, a identificação acrescenta
algo ao Eu e no amor é o oposto, algo se perde. Mais adiante, avança
nesta ideia e conclui: “Uma massa primária como essa é uma quantidade
de indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu ideal do
Eu e, em consequência disso, identificaram-se uns com os outros em seu
Eu” (FREUD, 1921/2020, p. 192).
Quando se está enamorado ocorre a experiência de um esvazia-
mento do próprio Eu e uma espécie de engrandecimento do amado,
uma idealização. Isso promove uma equivalência entre o estado de
apaixonamento ao de hipnose (que seria a lógica da massa reduzida a
relação dual). Neste momento, Freud destaca uma forma mais elevada
de enamoramento: a servidão. Esta seria uma fascinação das massas
pelo seu líder. Enamorada, a massa celebra, aplaude e se lança em
situações de risco de morte, por amor.
Lacan chama esta situação de “fascinação coletiva” e destaca a
função do olhar, como uma das formas do objeto a. O sujeito se olha
do lugar do ideal do Eu. Se pretende ser amado pelo líder, por exemplo.
Contudo, este líder nada quer saber de seus súditos fechando-se em
uma condição narcísica. Considerando a prevalência do olhar e da voz
no mundo contemporâneo e sua função na mass-media, Lacan constata
que: “...tudo isso se esclareça pela referência a esses dois objetos (…) - a
197
Leituras Psicanalíticas

voz, quase que planetizada, senão estratoferizada por nossos aparelhos


– e o olhar, cujo caráter invasor não é menos sugestivo, pois por tantos
espetáculos, tantas fantasias, não é tanto nossa visão que é solicitada,
mas o olhar que é suscitado” (LACAN, 1964/1998, p. 259). De fato,
hoje o olhar e a voz se propagam pelo mundo através da internet.
Dito isso, enfatizo a possível aproximação dessa massa apaixo-
nada e seduzida pelo olhar e pela voz, sua participação como servos
ativos, classicamente chamada de “servidão voluntária”, vide o livro
clássico de Étienne de La Boétie (2017). Mais do que uma mani-
pulação unilateral do líder para seus súditos, o que assistimos é uma
demanda de certa parcela populacional sendo respondida. Falando
de outra forma e tomando como exemplo um aspecto da história
do Nazismo: a tese polêmica do livro de Daniel Goldhagen (1997)
Os carrascos voluntários de Hitler é de que foi o cidadão comum, o
alemão médio, que aderiu ao Nazismo. Ele, o cidadão alemão, sabia
dos campos de concentração e contribuiu de forma efetiva para o
Holocausto. O antisemitismo germânico era anterior a Hitler e além
disso era de um tipo peculiar, um antisemitismo de eliminação. O que
quero chamar à atenção é que para além do líder genocida precisamos
conversar também sobre seus apoiadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A persistência histórica das massas no laço social, nos faz refletir


sobre seu estatuto de regressão social, apontado por Freud (1921/2020).
Na leitura de Safatle (2020), o grande mérito de Freud ao elaborar o
mito científico do pai primevo e sua horda, foi atentar justamente pela
permanência na política moderna da referência nostálgica do líder/pai.
Embora o assassinato do pai marque a constituição de um lugar vazio
na vida coletiva, a insistência em ocupá-lo conduz ao pior, sobretudo,
quando falamos do autoritarismo extremista de hoje.
A lógica discursiva que está em jogo é do capitalista. Discurso
de exceção, cujo movimento ininterrupto e sem limites, tende a se
198
Flavia Gaze Bonfim (org.)

consumir. Nesse sentido, ao não se interessar pelas coisas do amor,


penso aqui no laço civilizatório constituído em torno do Eros, o discurso
do capitalista tenta promover uma foraclusão da castração (LACAN,
1970/2009). Em nome da prevalência do mercado e da capitalização
generalizada, o projeto neoliberal de destruição das políticas sociais e
de doutrinação do pensamento avança.
Movido pela lógica capitalista, o líder tecnopopulista e extremista
anseia pelo totalitarismo, fazendo ecoar ainda hoje a aguda consta-
tação do dramaturgo alemão Bertolt Brecht à época do Nazismo: “o
fascismo é a face verdadeira do capitalismo”.
Sabemos que a psicanálise só pode ter um lugar em uma sociedade
que aposte na democracia, pois esta carrega em si a lógica do não todo,
o lugar vazio através da representatividade. Se massa e hipnose, segundo
Freud, se equivalem, é importante lembrar que a clínica psicanalítica
surgiu e segue como uma ruptura dessa pregnância totalizante.

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Leituras Psicanalíticas

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200
UMA LEITURA PSICANALÍTICA SOBRE
PÓS-VERDADE

Alexandre Dias Rosa Torres44


Maycon Rodrigo da Silveira Torres45
Paula de Oliveira Santarossa46

INTRODUÇÃO

Post-Truth [Pós-Verdade], a palavra escolhida como Word of the


Year [A palavra do ano, em inglês] de 2016 pela Oxford Dictionary tem
como descrição: um adjetivo definido como relacionado a ou denotando
circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação
da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal. Isso
significa que fatos derivados de artigos científicos e pesquisas feitas
com método não estão conseguindo ter a influência na opinião de
determinada parcela da população. Sua primeira aparição foi feita por
Steve Teich para a revista The Nation em 1992, como um fenômeno
de inclinação social na qual a verdade não seria tão importante como
imaginávamos. Foi em 2016 com a chegada de Donald Trump a pre-
sidência dos Estados Unidos e a separação do Reino Unido da União
Europeia que o termo começou a ser mais discutido, momento em
que as projeções feitas pelas mídias tradicionais não se concretizaram
e novos meios de comunicação vinda da internet começaram a surgir
trazendo conteúdos que colocavam em dúvida a credibilidade das
informações desses canais convencionais.
O presente trabalho tem como tema a pós-verdade e fake news
como instrumento político de manipulação das massas na vida contem-
porânea. O objetivo é discutir algumas consequências da propagação
44
Possui graduação em Psicologia (FAMATH). CV: http://lattes.cnpq.br/5870645596795921
45
Doutor em Psicologia (UFF). Psicólogo. Psicanalista. Professor e Coordenador (FAMATH).
CV: http://lattes.cnpq.br/7552210600986070
46
Doutora em Psicologia (UFF). Psicóloga. Psicanalista. Professora (FAMATH).
CV: http://lattes.cnpq.br/2273241120246161
201
Leituras Psicanalíticas

de informações pelos meios de comunicação digital potencializada


por aparelhos eletrônicos, pelo arcabouço teórico da psicanálise, na
medida em que a experiência humana é necessariamente atravessada
pela linguagem, em sua relação com a pulsão e o gozo.
De acordo com Seixas (2018), a morfossemântica do prefixo
“pós”, segundo o próprio dicionário Oxford, deixou de significar apenas
algo após um determinado evento para também indicar que um certo
conceito específico tornou-se irrelevante. Ou pelo dicionário online
Dicio (2021), o prefixo “pós” pode ser atribuído a um juízo de valor
negativo, desvalorizando o conceito ao qual está ligado. Esse prefixo
vai além de uma descredibilização ou um período após a verdade, mas
sim uma superação do desejo de verdade que está em divergência com
as convicções do sujeito. Isso resultaria numa leitura pré-programada,
em que o movimento de averiguar os fatos estaria paralisado em con-
trapartida na continuidade da manutenção de suas ideologias.
A análise de Silvânia Siebert e Israel Pereira (2020) contribui
para a compreensão da pós-verdade por um antagonismo entre o valor
de verdade e o efeito da verdade. O valor de verdade são os saberes
legítimos da ciência onde as instituições dão suporte e valor; é carac-
terizado pela vontade de um mundo estável e racional. Já o efeito de
verdade surge a partir das subjetividades do indivíduo em relação
com o mundo, podendo ser verdadeiro caso seja compartilhável e
reconhecido por outras pessoas.
A pós-verdade seria uma forma de dominação ideológica
na qual haveria uma disseminação intencional de notícias falsas,
como uma tentativa de mudar os fatos conforme a reação das mas-
sas, na medida em que se mostra um mecanismo de poder ao tor-
cer as narrativas (CUNHA, 2018).
Outro aspecto da pós-verdade a ser considerado é o momento
histórico resultante do grande esforço de dar significado na vasta
velocidade de informações e comunicação que a população tem que
lidar diariamente, uma tentativa de dar contorno aos inúmeros acon-
202
Flavia Gaze Bonfim (org.)

tecimentos do mundo. É sugerido que seria uma defesa contra fatos


desconfortantes. A pós-verdade poderia nascer numa sociedade que
se importa mais com seu bem-estar do que os fatos em si, e a ideo-
logia seria fator crucial para as inclinações e seleções que o sujeito
abraçaria para si, anulando quaisquer argumentos científicos e meto-
dológicos (SIEBERT; PEREIRA, 2020).
Essa busca da construção de significado talvez possa ser expli-
cada através da ideologia de interpretação, na qual colocar em dúvida
uma informação representa um esforço de posicionamento, acarretado
pelo forte caráter ideológico para interpretar os fatos. A ideologia é
um excesso de evidências dos sentidos institucionalizados em que os
acontecimentos não mais importam, mas sim apenas as inclinações
seletivas de suas crenças para decidirem o que é verdade ou mentira.
As convicções políticas não estão tão distantes das crenças religiosas,
e como tal, estabelece uma racionalidade própria na qual pode validar
as verdades de cada grupo (SEIXAS, 2008).

A PSICANÁLISE E OS EFEITOS DA PÓS-VERDADE

As consequências da pós-verdade vão além dos danos indivi-


duais. Para Cunha (2019), a sistemática da pós-verdade pode impactar
gravemente regimes democráticos, abrindo caminhos perigosos para
o autoritarismo. As empresas de comunicação tradicionais tentaram
se adaptar ao novo mercado, atravessado pela ascendência revolucio-
nária dos meios da informação e da facilidade do compartilhamento
de notícias, oferecendo informações que corroboram e confirmam as
crenças subjetivas dos leitores. Somado a isto, o surgimento das redes
sociais digitais promoveu o aumento da confusão entre o limite da
opinião e dos fatos, junto da maior facilidade de compartilhamento
de fake news por influenciadores.
É associado ainda a uma distorção do pós-modernismo por
negacionistas da ciência na argumentação que fatos sociais são sempre
construídos e que argumentos sobre um determinado assunto podem
203
Leituras Psicanalíticas

depender de uma narrativa ou ponto de vista. Esse intuito seria para


lançar dúvidas sobre argumentos científicos e tirar a credibilidade de
cientistas, alegando que são grupos com interesses particulares. Cunha
(2018) descreve o termo falsa equivalência para denominar como esses
fatores levariam a uma relatividade total, na qual não existiria uma
verdade objetiva, mas sim que pessoas comuns poderiam chegar a uma
equivalência entre suas opiniões sentimentais para construir evidências.
A questão da relatividade da verdade por serem relativas depende
de seus domínios de validação, como exemplos a área científica com
seus critérios metodológicos que podem fornecer bases epistêmicas de
validação, as jurídicas com bases deônticas e por fim as políticas com
bases de validação ideológicas. A realidade social é o lugar do contin-
gente, onde não há verdade última, e não tem como sua característica
o princípio da necessidade, aquilo que consideramos na proposição
como irrenunciavelmente verdadeira ou irrenunciavelmente falso.
Apesar das fakes news estarem muito associadas com a pós-ver-
dade, de acordo com Seixas (2018), há uma diferença fundamental que
os leitores e pesquisadores não podem resumir num único fenômeno.
Em primeiro lugar, ambas têm a intenção de dissuadir pessoas para
levá-las à desinformação, porém, na pós-verdade há um processo de
reprodução automática de convicções já antecipadamente instituídas,
mesmo que o discurso não corresponda a uma mentira comprovada
ou obedeça a uma intencional manipulação dos sujeitos produtores
do discurso. Em certas situações, podem haver em meio a informa-
ções falsas outras tantas verdadeiras, no entanto, a pós-verdade é uma
combinação calculada entre observações corretas e interpretações
plausíveis, mas com interpretações errôneas e tendenciosas.
A consequência dessa busca de confirmação nas amarrações
ideológicas poderia gerar uma sociedade polarizada e fragmentada,
onde a pós-verdade seria uma forma de domínio e manipulação política
com grande propensão a demonização dos adversários e decadência
de regimes democráticos. Cunha (2018) usa o termo transbordamento
204
Flavia Gaze Bonfim (org.)

epistêmico para descrever a desconfiança ideológica do outro para além


da vida política, o que resultaria numa câmara de ecos, uma segregação
de estilos de vidas e visões de mundo incapazes de tolerar o diferente.
Seixas (2018) denominaria a pós-verdade como um autoritarismo da
interpretação, onde há uma rejeição sem maiores críticas do diferente
e o acolhimento do que se assemelha.
Através da propaganda e da análise do discurso, partidos de
extrema direita operaram na vida política combinando liberalismo
com antielitismo, além de reforçarem o pensamento “nós contra eles”,
na qual fica estabelecido que há os bons, os homens comuns contra os
estrangeiros que se comportam e pensam diferente. O populismo se
beneficia dessa retórica da fronteira do “nós e eles” de forma que pode
ser entendido como uma ação política constante em que conteúdo e
forma importam. No texto “Psicologia das massas e análise do eu”,
Freud (1920/2011) localiza a identificação ao líder ou a um ideal no
elemento que promove o agrupamento dos membros identificados
entre si. A fascinação substituiu o ideal do eu individual por um ideal
coletivo e é reforçado pelo processo de diferenciação em relação a
outros grupos, compreendidos como inimigos.
A comunicação digital mudou drasticamente a relação entre a
figura política e a comunidade, de tal sorte que, nas redes sociais, criou-
-se uma maior possibilidade do aumento de um eleitorado, junto com
a sensação de aproximação do indivíduo, já que facilitou os meios de se
passar informações de suas ideias, posições e a própria vida particular.
Arão (2020) conta que a combinação entre as redes sociais e
a publicidade já trouxe mudanças drásticas na alteração do rumo
das eleições, como a dos EUA e do Brexit. A propaganda personali-
zada gerenciada por empresas como a Cambridge Analytica e pessoas
como Steve Bannon usaram a psicologia comportamental aliada aos
algoritmos fornecidos pela Big Data47 para levar ao eleitor notícias

47
Conjunto de fontes de dados variados e complexos que chegam em grandes volumes e velocidade.
205
Leituras Psicanalíticas

oportunistas de algum candidato, tudo baseado por seus gostos, per-


sonalidade e preferências políticas.
O populismo digital definido por Viscardi (2020) como efeito
da alta velocidade das informações somada à insegurança e instabili-
dade dos eventos no mundo fazem a população buscar um sentido no
senso comum para construir uma base de segurança. Esse fenômeno
expressa a manutenção da mensagem e persona de certos políticos nas
redes sociais, como uma arquitetura bem elaborada capaz de dinamizar
a relação com os seguidores/leitores por meio de uma construção de
imagem e compartilhamento de propostas, mas também com uma
disseminação de teorias da conspiração, informações mentirosas e
manipulação eleitoral. Outro elemento muito importante do populismo
digital é caracterizado pela participação incisiva dos eleitores nas redes
sociais por meios de criação e compartilhamento dos conteúdos nos
mesmos moldes discursivos, e essas atividades foram pontos chaves
para a vitória de Jair M. Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018.
Este efeito pode ser explicado com a busca por legitimação de posições
políticas pela construção de verdades não legitimadas de forma a haver
“efeitos de verdade” em enunciados que operam como comandos.
As eleições de Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (Bra-
sil) demonstraram como nesses períodos de 2016 e 2018 houve um
aumento de trocas de mensagens de cunho político nas redes sociais e
como o show midiático desses dois candidatos levaram a população de
seus respectivos países a um binarismo radical “ou você é a favor, ou você é
contra”, além de ter sido possível registrar cinco padrões de mensagens
em grupos de Whatsapp48 durante o ano de 2018: criar uma fronteira
amigo-inimigo; fortalecer o carisma do candidato e traçar paralelos
entre ele e seus seguidores; manter a audiência mobilizada através de
mensagens alarmistas e conspiratórias; canibalizar o oponente e des-
qualificar fontes de conhecimento padrão como a mídia e a academia.

48
Aplicativo digital de comunicação por texto, fotos, vídeos, áudio e telechamada.
206
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Assim como no texto da “Psicologia das massas e análise do


eu” de Freud, Viscardi (2020) pensam que o povo tem uma iden-
tificação com o líder, por consequência de um ato performático do
populismo das redes, na qual há uma estratégia discursiva carregada
de afetos, onde o povo, que tem uma falsa sensação de proximidade
com a figura política por mediação das redes, consegue encontrar um
representante. Há também a necessidade de criação de uma unidade
de demanda social em comum para assim criar uma identidade glo-
bal, um exemplo de unidade poderia surgir a partir de uma demoni-
zação de uma parte da população.
Cunha (2018) considera a pós-verdade como um facilitador
de regimes autoritários, visto que se há uma relativização total da
realidade, as pessoas ficariam mais influenciadas pelas manipulações
políticas, e sem uma base forte de confiabilidade, as críticas ao poder
ficariam mais insólitas. O autor acredita também que determinados
agentes políticos utilizam-se da polarização e fragmentação ideológica,
oriunda da pós-verdade, como meio de domínio e disseminação de
suas narrativas. É uma forma de mostrar poder e de manipulação das
massas, quando muitos acreditam que estão agindo por conta própria.
Pode-se dizer que para esse autor, a pós-verdade como manifestação
de propaganda é um passo para os regimes autoritários.
Tendo a mídia tradicional perdendo o monopólio e a confiabili-
dade da entrega de informações pelas redes sociais e pelos formadores
de opiniões, a facilidade da distribuição de notícias cresceu descon-
troladamente, e com isso mais pessoas têm autonomia para buscar
um meio de se informar, contudo, nunca houve uma distribuição tão
grande de narrativas falsas como na era digital.
A definição de pós-verdade é quando o apelo emocional em
certas crenças têm mais importância do que os fatos em si, mesmo
quando respaldado em bases científicas ou provas documentadas.
Nos conceitos psicanalíticos desenvolvido por Freud, há o termo
chamado de realidade psíquica, sobre a qual o psicanalista trabalha
207
Leituras Psicanalíticas

numa análise. No inconsciente, o mundo é lido através das fantasias


e desejos, de tal forma que a realidade é uma construção ficcional tão
real para o sujeito quanto os acontecimentos no mundo exterior. Com
isso, podemos perceber que o apelo do emocional carregado de afeto
já está vinculado às construções de verdades bem antes da populari-
zação do termo pós-verdade em 2016.
Izabel Azzi (2007), ao citar O Projeto, afirma que a realidade
psíquica é regida pelo princípio do prazer e a realidade externa, que
além de ser inicialmente pensada como traumática, é guiada pelo
princípio da realidade. Esta distinção vai se fazendo cada vez menos
necessária no texto freudiano. Posteriormente, com outras elaborações,
a realidade psíquica é vista na psicanálise como entrelaçada com a
realidade externa, assim como uma Banda de Moebius, e estruturada
pela fantasia, para encobrir algo que o sujeito não quer saber. A relação
do sujeito com a realidade é articulada no laço social e marcada pela
alteridade radical e, em certa medida, insuportável, do Outro.
Miranda e Caldas (2021) destacam que diferente da teoria da
sedução inicialmente proposta por Freud, cujo objetivo tinha a reme-
moração da cena traumática, um efeito de verdade está relacionado
com a fantasia, uma tentativa de solução para o enigma do desejo do
Outro. Numa análise, utiliza-se a associação livre como regra funda-
mental para operar a cadeia significante no sentido de transpor esse
enigma para o plano da linguagem na transferência com o analista.
A verdade construída em psicanálise se evidencia a partir
das variedades de associações construídas em torno de
um ponto de gozo opaco e traumaticamente constituído.
A cadeia significante das associações gravita em torno
desse ponto, cicatriz de um encontro original traumático
com o gozo. São articulações feitas pelo simbólico e
imaginário que contornam e indicam o real como um
furo devido à impossibilidade de este ser traduzido em
palavras. Todas as associações são, portanto, ficções e
podem variar, o que não implica que sejam mentiras
208
Flavia Gaze Bonfim (org.)

no sentido comum do termo. As ficções ganham algum


estatuto de verdade pela presença constante dos ditos
ao redor de um afeto no corpo impossível de ser intei-
ramente transposto para a linguagem. (MIRANDA;
CALDAS, 2021, p. 5)

Uma constatação importante a ser pontuada com as fake news,


poderosa arma na era da pós-verdade, é de sua característica de preen-
chimento do vazio pulsional; é uma oferta de gozo do sentido para o
sujeito em dúvida. Miranda e Caldas (2021) defendem que notícias
falsas são instrumentos para aqueles que estão no desamparo total
diante o enigma da existência, diante o real da vida e das mudanças
da contemporaneidade, como a diversidades de gênero e do declínio
do patriarcado, quando um mestre começa a ser apresentado como
não todo e furado. A fácil aceitação de fake news pode ser método de
acolhimento para um suposto retorno e restabelecimento a uma ordem
tradicional-nostálgica. A máquina de produção de sentido é um modo
peculiar de gozar, já que apontam para um mal que está no Outro.
“Essa diversidade, que a cada dia aumenta, revela que a linguagem não
dá conta do gozo sexual, o que se transforma numa ameaça. As fakes
news difundem, assim, essa ameaça pulsional que há em cada um de
nós.” (MIRANDA; CALDAS, 2021, p. 9).
Algo que vai na contramão do trabalho analítico, pois se durante
uma análise o indivíduo que nela aparece tem um discurso carregado
de verdades e fantasias que apontam para uma posição do sujeito
diante o mundo e do desejo do Outro, nosso trabalho não é tampo-
nar dúvidas, mas sim assinalar o vazio pulsional e com isso apostar
numa operação simbólica e na modificação que ela pode proporcionar.
Assim, o discurso politicamente igualitário, a diversidade sexual e a
aceitação de uma identidade simbólica, algo que se distancia de um
sexo anatômico, fez crescer uma onda conservadora com o sentimento
que é necessário defender certos valores tradicionais e ameaçados, não
aceitando nenhum tipo de divergência.

209
Leituras Psicanalíticas

Na psicanálise, um sintoma é um resto das relações infantis com


os pais, em que o sujeito se faz objeto de desejos deles (ou não); é um
gozo que aponta o modo de satisfação inconsciente bem particular
de como a criança foi amada pela função materna e como um pai
simbólico exerceu uma função. Sobre a questão do sintoma e como
um sujeito perde a realidade em sua volta, Freud em 1924 escreve o
texto “A perda da realidade na neurose e na psicose”, em que elabora
a divisão nessas duas estruturas clínicas de como o Eu lida e evita com
situações no confronto com o real. Na psicose, Freud (1924) explica
que, quando há um conflito com a realidade exterior, o Eu, a serviço
do Id, retira-se de uma parte da mesma para posteriormente criar
uma alternativa na tentativa de substituir a anterior. No texto “As
neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/2006) discorre que o psicótico
utiliza-se de duas defesas diante a castração: a rejeição, que posterior-
mente Lacan utilizará o termo “foraclusão”, e a projeção. Os delírios e
alucinações tem como objetivo a formação dessa nova realidade, são
elementos do inconsciente expelidos e projetados no mundo exterior.
Já na neurose não há um rompimento com a realidade, em sua
dependência com ela, e com o recalque da vida pulsional, há uma
porção de realidade a ser evitada mediante uma fuga, um modo de
“não querer saber”. “Nele vemos que se reage com angústia a cada vez
que o instinto reprimido faz um avanço, e que o resultado do conflito
é apenas um compromisso, imperfeito como satisfação.” (FREUD,
1924/2006, p. 197). Freud usa o termo “retorno do recalcado” para
designar o efeito do material inconsciente ao nível da consciência e
como essa organiza a realidade, contudo, esse material é deformado pelo
deslocamento e condensação; há uma mensagem secreta e simbólica
que se articula na linguagem – sonhos, sintomas, lapsos, atos falhos,
esquecimentos, acting-out e a trama efetiva do sujeito.
Na vida psíquica, o outro é sempre considerado, enquanto objeto,
auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é desde o
início uma psicologia social, psicologia dos grupos, como já dizia Freud
210
Flavia Gaze Bonfim (org.)

no texto “Psicologia das massas e análise do Eu”. Freud considera que


mesmo um sujeito estando fora de um grupo, sempre carrega a marca
e presença do outro, havendo uma indissociação do âmbito social.
Arão (2020) apresenta a ideia da horda primeva, mito freudiano que
tenta explicar como o homem nunca foi um sujeito isolado, mas há
muito se constituiu em sociedade, como um animal de bando sob
poder de um pai soberano de pleno gozo, na qual resulta em seu
assassinato pelos próprios filhos.
Para Freud, as massas podem ser consideradas uma encarnação
da horda primeva, seus participantes partilham de uma alma coletiva,
uma mente grupal homogeneizada que trabalha em perfeita harmo-
nia. Se na vida fora das massas parte de nossos impulsos é barrado
pela censura, dentro de um grupo, o sujeito tem uma tendência de
transformar-se em algo diferente. Arão numa perspectiva freudiana,
explica que a massa tem a capacidade de retirar a individualidade de
um sujeito, cria-se um sentimento de poder e unificação, mesmo que
o mesmo se julgue independente e autônomo.
A censura da vida cotidiana é afrouxada, e todas as atitudes,
pensamentos e desejos que o sujeito não tinha coragem de colocar
em prática quando sozinho tem como brecha quando inserido num
grupo – racismo, apoio a torturadores, homofobia e afins. É o retorno
dos conteúdos inconscientes, pois o ser da massa é regido por pulsões
primitivas ao nível do contágio e influência com seus semelhantes; há
uma desinibição das mesmas. O senso crítico é outra questão prejudi-
cada, na medida em que o sujeito fica mais suscetível à subserviência
de um líder eleito como representante de seus ideais.
Freud considera que esse líder, através das identificações incons-
cientes, tem um poder hipnótico sob seus seguidores, além de uma
conexão libidinosa que mantém o grupo em conjunto. Essa autori-
dade não necessita de nenhum tipo de convencimento racional, pois
sendo a massa o inconsciente manifesto, o líder é a personificação
dos anseios de seus seguidores.
211
Leituras Psicanalíticas

O que aprendemos dessas três fontes pode ser resumido


assim: primeiro, a identificação é a mais primordial
forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via
regressiva ela se torna o substituto para uma ligação
objetal libidinosa, como que através da introjeção do
objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova
percepção de algo em comum com uma pessoa que não
é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais significativo
esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser
essa identificação parcial, correspondendo assim ao
início de uma nova ligação. (FREUD, 1924/2006, p. 50)

José Martins Neto (2018) considera que o mundo digital tem


a mesma capacidade de formação de massas tão quanto na vida real,
junto com todos seus mecanismos de ações, como constantes conta-
minações e direcionamentos de afeto de ódio que colaboram para um
deficit do pensamento crítico. O trabalho de pensar é fundamental
para uma democracia saudável, é de extrema importância um clima de
tolerância com o diferente para que possa haver debates entre forças
políticas opostas. As intrigas nas redes sociais durante as eleições de
2018 demonstraram como esses ciberespaços foram centrais para a
disseminação de uma retórica de ódio contra minorias em prol de um
candidato. Neto compara essas retóricas o que Hannah Arendt chamou
de “banalidade do mal”. “As palavras perdem seu valor e seu papel de
único meio para evitarmos o confronto violento. Não há mais espaço
algum para o debate de ideias e propostas, uma vez que incitações ao
mal não são levadas a sério.” (NETO, 2018, p. 3)
Neto (2018) também indica que a psicanálise freudiana é enfática
ao citar que, para fazer parte da civilização, é necessário a renúncia
de algo da ordem pulsional. Assim como os filhos do pai da horda
fizeram após o parricídio, uma parcela da pulsão tem que ser renegada.
Em terceiro lugar, enfim, e isto parece ser o mais impor-
tante, é impossível não ver em que medida a civiliza-
ção é construída sobre a renúncia instintual, o quanto

212
Flavia Gaze Bonfim (org.)

ela pressupõe justamente a não satisfação (supressão,


repressão, ou o quê mais?) de instintos poderosos. Essa
“frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos
sociais entre os homens; já sabemos que é a causa da
hostilidade que todas as culturas têm de combater. Ela
também colocará sérias exigências ao nosso trabalho
científico; aí teremos muito o que esclarecer. Não é
fácil compreender como se torna possível privar um
instinto de satisfação. É algo que tem seus perigos;
se não for compensado economicamente, podem-se
esperar graves distúrbios. (FREUD, 1930/2006, p. 40)

A renúncia do gozo pleno tem que ser realizada para que uma
cultura progrida, mas, como menciona Freud, a renúncia de poderosas
pulsações leva à frustrações e a causa de todas as hostilidades que
ocorreram na história humana. Os relacionamentos de hoje em dia,
principalmente nas questões políticas, são de extrema intolerância,
quase que da ordem do insuportável, algo que se pode considerar o
que Freud (1920/2011) chamou de narcisismo das pequenas diferenças.
Algumas figuras políticas são idealizadas pelas massas como uma
idealização do próprio Eu reprimido, quando esses líderes atacam
ou prometem políticas que prejudiquem determinados grupos. Esses
sujeitos ficam em fácil posição de manipulação justamente pelo con-
ceito do narcisismo das pequenas diferenças. Arão (2020) explica que o
medo do diferente, a impotência e a ânsia de uma resposta demanda
a procura de uma figura poderosa, como o extremista que age de uma
forma que os outros membros não são capazes de fazer sozinhos.
O desenvolvimento da nossa civilização não é retilínea. Para
Bauman (2017), trata-se de um movimento pendular. Em sua espe-
culação a respeito do diagnóstico de Freud sobre o mal-estar de nossa
cultura nos dias de hoje, acredita que nossa principal fonte de insa-
tisfação seja a carência de segurança, um temor de desamparo na
qual a troca de uma certa liberdade seria o suficiente para tamponar

213
Leituras Psicanalíticas

essa angústia – algo oposto da época de Freud com seus pacientes


que necessitavam de liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, é interessante articular e refletir a questão do


pêndulo de Bauman com o “gozo culposo” da elite brasileira – ideia
presente no artigo de Marcos Nunes (2020) sobre a antologia política
do gozo com as fake news. O autor descreve como a elite brasileira tem
raízes colonialistas, é predatória e se considera pertencente a outro
lugar que não o Brasil. A relação que os colonos portugueses tinham
com o Brasil era de violência e de expropriação, tanto das riquezas
da terra quanto dos corpos escravizados. “O corpo do escravo está aí,
à disposição do seu senhor. O corpo da escrava está aí, para gozar e,
eventualmente, produzir um ou outro bastardo.” (NUNES, 2020, p. 8).
O resultado de trezentos anos de escravidão e violência teve resultado
num gozo culposo, não pela moral ética, mas pelo medo da retaliação
(“racismo reverso”, “agenda gay”, “genocídio branco”).
As políticas higienistas e de segregação de minorias são formas
de lidar com esse medo, um retorno do recalcado que se instaura a
partir do momento em que esses grupos oprimidos também lutam por
partilhar esse gozo antes usufruído apenas por uma elite. Hoje, essas
minorias estão cada vez mais assumindo um espaço que antigamente
era inimaginável de se ter, o que produz na elite um sentimento de
invasão e usurpação por aqueles que antes estavam à margem da
sociedade, mas agora ocupam as universidades, shoppings e lugares
considerados como espaço de gozo do senhor.
Nunes (2020), no final de seu artigo, termina abordando que o
gozo das fake news é o gozo do colonizador, uma ficção que funde o ódio
e erotismo abjeto na qual tem raízes na nossa história e cultura, onde
a violência proporciona algum tipo de prazer. Além disso, a máquina
das fake news é uma narrativa perfeita de uma ficção para sustentar a
falta, o não senso do Real da política. É um modo de colocar o sujeito
214
Flavia Gaze Bonfim (org.)

num lugar de produção de verdade na qual há o gozo do não-saber que,


aliado ao fundamentalismo religioso e do negacionismo científico, não
necessitam de nenhum procedimento de verificação, apenas uma bela
ficção de retorno a um passado mitológico onde não havia o medo de
retaliação pela ascensão de grupos minoritários.
E quais as implicações para a condução da análise? Ainda em
Freud (1920/2011), aponta-se para a importância do final de análise
como marcada pela queda dos ideais, ponto de emergência da sin-
gularidade para além de um narcisismo egóico que reforce os efeitos
imaginários dos discursos segregatórios.

REFERÊNCIAS
ARÃO, Cristian. “As Redes Sociais e a Psicologia das Massas: A Internet como Terreno e
Veículo do Ódio e do Medo”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília,
v.8, n.3, p. 181-206; 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/issue/
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AZZI, Izabel. “Realidade, Uma Razão Que Não Se Explica”. Ágora, Rio de Janeiro, v. X, n. 2, 2007.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/NgGGQV5PtFLJCYh3xvKHJDD/?lang=pt
BAUMAN, Zygmunt. O retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo
líquido. Zahar; 1ª edição, 2017.
CUNHA, Marcio. “Post-Truth and Authoritarianism: Reflections about the Ante-
cedents and Consequences of Political Regimes Based on Alternative Facts”. Bras.
Political Sci. Rev. v.13, n. 2, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.
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Leituras Psicanalíticas

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Nota: trabalho derivado da monografia intitulada “Análise das questões da pós-verdade e


fake news como instrumento político e das massas: uma investigação sócio psicanalítica”
apresentada por Alexandre Dias Rosa Torres em dezembro de 2021 na Faculdade Maria
Thereza (FAMATH).

216
A SEXUALIDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES
CLÍNICAS: NOTAS SOBRE O GOZO E O AMOR

Renata Sales Martins49


Luciana Ribeiro Marques50

INTRODUÇÃO

Em 1905, no texto Três ensaios da teoria sexual (1905/2020),


Freud, já dispondo do conceito de inconsciente e da articulação do
aparelho psíquico como um aparelho de linguagem, traz o conceito
de pulsão para falar da sexualidade como o alicerce de toda a teoria
psicanalítica. A teoria da sexualidade é efeito de seu extenso percurso
clínico, onde pôde perceber que o eu se utiliza do recalque como defesa
diante das constantes exigências de satisfação das pulsões, sendo os
sintomas neuróticos o produto desse conflito. Ao ofertar um dispositivo
em que a fala do sujeito, endereçada ao analista sob transferência, é o
seu material de trabalho, Freud pôde operar e ter notícias do circuito
pulsional em suas dimensões simbólica e real; ou seja, através do que
se coloca em significantes e do que escapa, por ser impossível de
representar, restando e retornando para o sujeito como tentativa de
recuperação de um gozo perdido.
Lacan, ao retomar e avançar com a teoria freudiana da sexuali-
dade, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, articula as moda-
lidades de gozo em relação ao falo, apontando as diferentes posições
assumidas pelo sujeito, através da linguagem, frente à falta e à castração.
O falo, como um significante da falta, orienta o desejo a partir da
operação metafórica do Nome-do-Pai, organizando, assim, o campo
do gozo, porém, não-todo: sempre haverá algo que escapa à represen-
tação significante e aponta para a ausência de complementariedade
49
Doutoramento em Psicanálise (UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/4866118695237925
50
Pós-Doutoramento e Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise
(PGPSA–UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/3540771560141062
217
Leituras Psicanalíticas

entre as posições de gozo do homem e d’Ⱥ mulher expressos tanto


através da relação entre os sexos, que não vai, quanto na impotência
do amor em fazer Um. Assim, pretendemos trabalhar, através de dois
casos clínicos, o mal-estar inerente às parcerias amorosas – tal como
escutamos na clínica –, mas não sem tecer uma articulação entre
a sexualidade, o gozo e o amor.

DESENVOLVIMENTO

No texto As neuropsicoses de defesa (1894/2020), Freud afirma a


existência de representações hiperinvestidas, de caráter sexual e incom-
patíveis ao eu, diante das quais o psiquismo precisa produzir defesas.
Essa teoria, retomada um ano depois no texto Projeto para uma psicologia
(FREUD, 1895/2020), aponta para a ideia de um psiquismo regido
pelo princípio de prazer, uma lei de quantidades que tem como visada
a eliminação do excesso de energia acumulada em seu interior e sentida
como desprazer. Nesse texto, Freud descreve uma primeira experiên-
cia mítica de satisfação, vivida pelo indefeso bebê, recém-chegado ao
mundo, na tentativa de neutralizar o excesso de energia proveniente de
estímulos endógenos e exógenos. Sua primeira tentativa é lançar mão
de um recurso motor, como choros e gritos, mas que não produzem
o alívio necessário, sendo imprescindível a intervenção de um Outro
que oferte o alimento ou o aquecimento do corpo, colocando um fim
ao desprazer suscitado pelo aumento das excitações:
Se o indivíduo auxiliador operou o trabalho da ação
específica do mundo exterior no lugar do indivíduo
desamparado, este, por meios de dispositivos reflexos,
é capaz de consumar no interior do seu corpo, a ativi-
dade necessária para cancelar o estímulo endógeno. A
totalidade do evento constitui, então, uma experiência
de satisfação que tem as consequências mais radicais no
desenvolvimento das funções do indivíduo (FREUD,
1950[1895]/2020, p. 363).

218
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Para Freud, portanto, a consequência da relação do bebê com esse


Outro é a inscrição do que chamou de traços mnêmicos, ou seja, marcas
significantes que fundam o aparelho psíquico e banham seu corpo de
linguagem, transformando o corpo orgânico em um corpo erógeno.
Com isso, Freud marca a presença de uma alteridade que pré-existe ao
sujeito e possui uma especificidade distinta das demais presenças que
o cerca, se tratando de uma instância a qual o bebê passa a direcionar
seu apelo na tentativa de parcializar os efeitos de seu desamparo.
Ao conceber o psiquismo fundado pelas marcas significantes que
se constituem na relação com o Outro, Freud desnaturaliza a condição
humana como da ordem instintual e orgânica, situando sua constituição
a partir do investimento materno que dá suporte ao apelo infantil e
produz um registro de representações da ordem da sexualidade. Essa
marca, produzida mediante intervenção externa no prematuro corpo
do bebê será metabolizada e incluída no registro de representações.
Porém, por se tratar de um excesso, uma parte não será integrada em
tal registro, permanecendo como algo inassimilável e que restará como
Coisa, como das Ding. Trata-se, portanto, de dois componentes:
[...] um dos quais se impõe por uma montagem cons-
tante, mantém-se reunido como uma Coisa do mundo,
enquanto o outro é compreendido por um trabalho
mnêmico, isto é, pode ser reconduzido a uma notícia
do próprio corpo (FREUD, 1950[1895]/2020, p. 373).

Em outras palavras, desse encontro com o Outro, o bebê se


depara com um excesso que o aparelho psíquico não encontrará meios
para absorver por inteiro e incluí-lo no sistema de representações, se
tornando uma memória inconciliável com o eu e, portanto, traumática.
Como presença, essa lembrança inassimilável se constituirá como um
núcleo de fixação, ou seja, um núcleo atrativo com o qual se ligarão as
experiências posteriores do sujeito, denotando, para sempre, uma impos-
sibilidade de satisfação total mediante descarga completa de excitações.

219
Leituras Psicanalíticas

No Manuscrito K (1896/2020), Freud reafirma a natureza sexual


que está em jogo no evento traumático e acrescenta sua constituição
em um momento prematuro, equivalente às primeiras experiências de
satisfação. A ocorrência de sua lembrança, no entanto, precisa se dar
em um instante posterior, onde há uma reedição da defesa vivida com
uma intensidade ainda maior, visto que ela se soma à anterior. Nesse
segundo momento, o psiquismo já teria condição simbólica para res-
ponder de outro lugar, porém, reage da mesma maneira, o que denota
uma repetição a partir da tal fixação produzida pelo núcleo traumático.
Sendo assim, “fator econômico, sexualidade e temporalidade definem
o trauma. As ficções de sedução estão inscritas no traço mnêmico de
um trauma infantil. A sexualidade é traumática” (BERTA, 2012, p. 83).
Cabe destacar que Freud, inicialmente, alicerçava suas teorias
sobre o trauma tendo as cenas de sedução por parte de um adulto como
base. A virada teórica, documentada em duas cartas a Fliess, ambas
de 1897 (FREUD, 1950[1897/2020]), apontam para o importante
papel das fantasias neuróticas infantis na constituição do trauma. Com
isso, Freud traz a noção de realidade psíquica ao afirmar que o afeto
que não conseguiu se ligar a uma representação pode ser investido
em uma ficção. A partir desse momento, a fantasia ganha lugar de
destaque ao longo da obra de Freud que passa a considerar a conco-
mitância entre duas realidades: externa e interna. A relação do sujeito
com o mundo externo passa a ser, então, mediada por representações
singulares que se repetem insistentemente com a intenção de oferecer
ao psiquismo certa homeostase:
[...] tais representações constituem uma verdadeira
matriz psíquica que funciona como uma espécie de
filtro em relação ao mundo externo, do qual são retiradas
apenas os traços que com elas coadunam (COUTI-
NHO JORGE, 2010, p. 10).

O intuito é trazer uma proteção para o aparelho psíquico contra


os excessos de estímulos, sejam externos ou internos. Os externos,
220
Flavia Gaze Bonfim (org.)

vividos através de experiências muitas vezes de ordem traumática,


produzem grandes exigências de simbolização, isto é, um trabalho de
elaboração psíquica constante que, mesmo assim, não compreende
todo o excesso. Os internos são efeitos do que se produz a partir do
núcleo de fixação, ou seja, a partir desse resto inassimilável, proveniente
do encontro sempre traumático com o sexual e que se presentificarão
nas poderosas forças pulsionais.
Ao se ocupar da sexualidade infantil e seus desvios, Freud traz
em seus Três ensaios da teoria sexual (1905/2020) a pulsão como pro-
duto da linguagem, pois, vindo ao mundo desamparado e sem o
saber que o instinto lhe concederia, o bebê precisa, necessariamente,
submeter-se ao Outro em uma aposta de manter-se vivo. A inter-
pretação que, por exemplo, poderá dar sentido ao seu choro com a
oferta de alimento e acalento, o introduzirá no campo da sexualidade
a partir da erogenização da carne: será a articulação entre a linguagem
e o corpo-carne que produzirá um corpo pulsional, mapeado pelos
significantes que a língua materna banhou. Diante dessa operação, o
bebê passará a endereçar suas demandas de satisfação ao Outro, mas
não sem que uma fenda se abra entre o almejado e o alcançado, sendo
justo dessa hiância que surge o desejo. A necessidade – transformada
em demanda de amor pela incidência da linguagem –, dará a conota-
ção do inerente desencontro que restará na relação do sujeito com o
Outro e que o desejo irá ratificar, revelando assim, a impossibilidade
de completude (cf. MARQUES, 2016).
Desde o início de sua teoria sobre as pulsões, Freud destaca ser
a satisfação o objetivo da pulsão; satisfação que, sendo sempre parcial,
será postulada como aquilo que se coloca na relação do sujeito com a
falta, com o objeto vazio que causa o desejo do sujeito e faz reverberar
nos encontros e desencontros amorosos estabelecidos na vida. Dito
de outro modo, se a pulsão leva o sujeito em direção à falta e não há
vínculos pré-estabelecidos entre a pulsão e o seu objeto, essa relação
será sempre montada pelo sujeito, levando-a a não atingir o objeto
221
Leituras Psicanalíticas

em si, mas apenas o contornar. Neste sentido, podemos entender o


objeto como um vetor, um orientador que instiga o sujeito em uma
direção que, ao não atingir seu alvo, revela o descompasso que a pulsão
instaura no sujeito. O mal-estar, próprio da pulsão, está na satisfação
produzida no contorno do objeto e não em seu encontro, pois, tal
satisfação não deve ser situada, a partir de Freud, como da ordem
do prazer, mas sim da repetição:
Temos, então, a força da pulsão emergindo de sua fonte
na borda da zona erógena, aspirando ao encontro com
o objeto. Se o encontro com o objeto, que seria o objeto
da satisfação, é o encontro com o oco, com o vazio
do objeto, a satisfação da pulsão está no retorno e no
recomeço, em sua própria insistência, na compulsão à
repetição (RIBEIRO, 2015, p. 23).

Em 1920, Freud retoma tais pressupostos a partir dos avanços


de sua clínica e afirma que, na impossibilidade, pela via do princípio
de prazer, de se produzir uma descarga que ponha fim nessa tensão
provocada por esse excesso, o sujeito repete as experiências anteriores:
pela via de sonhos, como nos traumas de guerra; nas brincadeiras
infantis como o for-Da; ou, ainda, na própria transferência endere-
çada ao analista. Ao destacar que, para além da satisfação obtida com
a diminuição da tensão do aparelho psíquico havia uma compulsão
à repetição, Freud ainda enfatiza que entre o que se busca repetir e o
que de fato se repete, há uma perda, um resto que insiste, levando-o
ao conceito de pulsão de morte: uma energia livre, muda, sem palavras,
desligada de qualquer significante.
A partir da leitura do Mais além do princípio de prazer (FREUD,
1920/2020), Lacan pôde criar o conceito de gozo, primeiramente, em
O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise
(1954-55/2010), ainda como uma noção e, posteriormente, em O
Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise (1959-60/2008), onde o gozo
surge como um conceito que comporta um inassimilável na constitui-
222
Flavia Gaze Bonfim (org.)

ção de todo ser de linguagem, ou seja, como um “fora-do-significado”


(LACAN, 1959-60/2008). O processo de subjetivação, tanto para Freud
quando para Lacan, é efeito da entrada do significante do Outro no
corpo bebê, o que possibilita sua inscrição na ordem da sexualidade
pulsional e parcial, ao mesmo tempo em que aponta para aquilo que,
diante de um excesso, permanece fora do sistema de representações
significantes. Em A significação do falo (1958/1998), Lacan aborda o falo
como um significante que, a partir da operação da metáfora paterna,
servirá para o sujeito como um vetor que permite unir desejo e lei,
impossibilitando qualquer acesso a um gozo todo. O falo, como signi-
ficante da falta no Outro, possibilitará ao sujeito orientar o seu próprio
desejo a partir da pergunta “o que o Outro quer de mim?”. Assim, ele
servirá como um significante que garantirá aos demais a possibilidade
de inscrição, vindo a organizar o campo do gozo, porém, não-todo.
Em O Seminário, Livro 20: mais, ainda (1972-73/2008), Lacan
apresenta, através das fórmulas quânticas, a desproporção entre os
sexos a partir dos distintos modos de gozo:

O lado masculino se caracteriza por uma exclusividade do gozo


fálico, afirmando o conjunto de todos os homens a partir da exceção
que funda esse conjunto, sendo o que a mítica freudiana desenvolveu
como o pai da horda primitiva, o Totem; do outro lado, Lacan vai dizer
223
Leituras Psicanalíticas

que Ⱥ mulher não goza de forma complementar, nem simétrica, pois


ela teria acesso a duas modalidades de gozo: o gozo fálico e o Outro
gozo. No terceiro andar das fórmulas outra disparidade, aqui, a posição
masculina toma o objeto a como causa de seu desejo, e Ⱥ mulher toma
o homem no lugar de falo, permitindo que Lacan aponte para a não
existência da relação sexual. Como pura alteridade, o não-todo fálico
da posição feminina adverte que nem tudo na mulher vai dizer respeito
ao falo e ao significante, pois inclui o que dele escapa e que, por isso,
é da ordem do real: resto que sobra e por vezes transborda, como já
afirmava Freud no início de sua obra ao falar do sexual traumático a
partir de um excesso não metabolizado pelo aparelho psíquico.
No 2º Ciclo Internacional Interuniversitário de Psicanálise do
Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ (2021), Heloisa
Caldas aponta para o fato de que a noção de Outro gozo em Lacan
é análoga à ideia de trauma em Freud. Conforme a conferencista, o
primeiro gozo, aquele da primeira experiência de satisfação, implica
uma invasão no corpo do bebê diante do qual o aparelho psíquico
metabolizou apenas o que pôde dar conta, restando um excesso que
permanece como alteridade: “somente parte do gozo pode ser subme-
tido à mestria de um saber através do significante, o que implica que
resta um Outro gozo irreconhecível e, por isso mesmo, inassimilável”
(CALDAS, 2021). O Outro gozo faz vacilar aquilo que se sabe pela
via do significante, garantindo o mal-entendido das parcerias amo-
rosas, o mal-entendido advindo da completude idealizada que vai
inexoravelmente fracassar e desvelar a inexistência da relação sexual.
Diante disso, passaremos agora a dois fragmentos de casos clínicos.
Caso 1: Daniel chega em análise contabilizando suas perdas
diante do uso abusivo de cocaína: o casamento, o trabalho em uma
multinacional, os bens materiais e os amigos. De volta à casa da mãe
no interior, ao trabalho na pequena empresa do pai, Daniel estava cheio
de dívidas e tinha acabado de ter um infarto. Iniciou o uso de drogas
na vida adulta, em festas de música eletrônica onde partilhava seu
224
Flavia Gaze Bonfim (org.)

uso com o companheiro e com os seus amigos. Sua mãe, sempre teve
questões com a homossexualidade de Daniel; em alguns momentos
convivia com seu parceiro, mas, em outros, se afastava, mantendo seu
desconforto por vezes velado, por vezes explícito, oscilações análogas
as que fazia com a religião. Até que, em um momento de aproximação
com a religião, ela pede que o filho retorne com ela ao convívio religioso
como condição da aproximação entre ambos: “não há felicidade fora da
religião”, dizia ela. Ao ouvir a negativa de Daniel, ela completa: “se é
sua escolha, arque com ela. Eu não vou mais conviver com vocês. Eu te
amo muito, mas amo meu Deus mais que a você e ele não permite que
eu aceite essa vida que você leva”. Daniel localiza esse como o momento
em que passou a usar drogas de um outro modo, ou seja, diariamente,
em situações que iam do lazer ao trabalho, chegando a passar dias em
quartos de hotéis onde consumia drogas e sexo em um movimento
masturbatório: “não importava quem estava comigo. Ficava horas e
mais horas sem nem ter orgasmos. Foi assim que perdi tudo, quase
morri e continuo gastando o que não tenho porque não consigo parar”.
Caso 2: Fernanda chega em análise ao saber que a pesquisa
acadêmica de quem escolheu para ser a sua analista tinha relação com
as mulheres, o amor e a clínica das toxicomanias: “isso aí que você
descreve, já fiz tudo”. A primeira vez em que se apaixonou, Fernanda
tinha 15 anos: uma amiga do colégio lhe apresentou o Rafael, um
traficante que vendia drogas próximo à escola. Fernanda já tinha usado
maconha algumas vezes com amigos, mas começou a comprar com
Rafael para se aproximar dele, o que funcionou. Certa vez, antes de
transarem, ele lhe entrega um saquinho com cocaína e diz: “você não
tem ideia de onde isso aqui pode levar a gente. Eu não tinha mesmo.
Mas com ele, eu ia para qualquer lugar”.
Ao descobrir esse namoro, sua mãe começou a proibir suas
saídas, trocou Fernanda de escola, mudaram para uma cidade vizinha
e não lhe dava dinheiro para nada. Naquela época, começou então a
sair com um homem muito mais velho, com quem passou a fazer sexo
225
Leituras Psicanalíticas

em troca de dinheiro; dinheiro esse que passou a ser usado como meio
para encontrar Rafael: “Eu era muito louca. Tudo que ele pedia, eu
fazia: fugi de casa, larguei a escola, levava droga escondida em bolsas,
roupas e até no meu corpo. Eu passava melhor pela polícia por ser
mulher, nunca me paravam. Nessas horas eu só pensava: esse homem
nunca mais me deixa depois desse risco todo que corri por ele... Nem
sei te dizer se aquela altura eu tinha prazer usando droga. Eu gostava
mesmo era de como ele me olhava quando eu chegava com a droga”.
Retornando às fórmulas quânticas para pensar a desproporção
entre os gozos apontada por Lacan, temos, do lado do homem, o gozo
fálico que aponta para uma relação de exclusividade com o significante
e que toma o parceiro como objeto da sua fantasia. No entanto, a partir
das vinhetas clínicas trazidas aqui, o que podemos perceber com o
caso Daniel é um recurso à droga na tentativa de tamponar a angústia
frente à castração, atualizada na escolha de sua mãe por Deus e não
por ele. Daniel, então, elege a droga como seu próprio deus, em uma
relação exclusiva onde passa a não mais se relacionar com parceiros
que possam ocupar o lugar de objeto a na sua fantasia, suscitando,
com isso, um rompimento com o gozo fálico. O que temos, a partir
disso, é uma relação mortífera em busca de um gozo todo que aponta
para um desintrincamento pulsional, uma pura cultura da pulsão de
morte, como já apontava Freud desde 1923.
Fernanda, por sua vez, se utiliza da droga para se ligar a Rafael.
Na divisão entre o gozo fálico e o Outro gozo, Fernanda se agarra ao
significante fálico, tendo um parceiro que lhe serve como conector,
pois, do outro lado, o que encontra é S (Ⱥ), ou seja, aquilo que falta
como significante no Outro e que é vazio de significação. É por essa
ligação das mulheres com o Outro barrado da linguagem e pela falta
de um significante que diga Ⱥ mulher, que Lacan nos lembra que
quando se trata da relação das mulheres com o amor, há algo da ordem
da loucura: “a ponto de não haver limites às concessões que cada uma
faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens” (LACAN,
226
Flavia Gaze Bonfim (org.)

1973/2003). O que percebemos é que as mulheres, embora não-to-


das, permanecem ligadas ao falo em uma aposta de que o amor seja
a possibilidade de encontrar sua subsistência: “sem o amor do Outro
não se teme perder um objeto valioso: teme-se perder a si própria,
tragada pelo não-ser” (RIBEIRO, 2011, p. 163). Daí concluirmos,
com Lacan, que entre os sexos a coisa não vai!

CONSIDERAÇÕES

Uma vez que a coisa não vai, propomos considerar algumas ques-
tões sobre o amor como suplência ao impossível da relação sexual, falha
que faz surgir a aposta na ficção e implica na distinção entre o modo
masculino e o modo feminino de lançar mão do amor51 como aquilo
que pode vir a ocupar o lugar do que rateia. Por um lado, temos um
homem, cujo gozo é limitado ao gozo fálico, uma vez que O Homem,
o Todo-Homem, esse não existe; ou melhor, só existe como proposição
universal, como significação produzida por efeito de discurso: um
Totem. Por outro, Ⱥ mulher que não existe, mas se duplica, na medida
em que além de sua relação com o falo [Ⱥ → Φ] – meio pelo qual as
mulheres podem encontrar o significante de seu próprio desejo –, elas
também mantém relação com o Outro [Ⱥ → S(Ⱥ)]; questão que nos
lança a um retorno a Freud quando afirma a diferença advinda por
efeito do complexo de castração: se para os homens incide a angústia
de castração, para as mulheres a angústia se dá pela via do abandono,
pelo medo da perda do amor (cf. MARQUES, 2016).
Embora sem o recurso da lógica, Freud já havia desde cedo
percebido que o fracasso da relação sexual determinava a diferença
entre o modo masculino e o feminino de amar. Entre 1910 e 1918,
escreve três textos de contribuição à psicologia do amor: Sobre um
tipo particular de escolha de objeto nos homens (1910/2007), Sobre a mais
generalizada degradação da vida amorosa (1912/2007) e O tabu da vir-

51
Aqui estamos tratando do amor como amor-paixão. O amor como paixão é imaginário, é o amor que
tem como visada ser amado pelo outro (LACAN, 1953-54/1983|) e (cf. FERREIRA, 2004).
227
Leituras Psicanalíticas

gindade (1918[1917]/2007). Nos homens, observa Freud (1910/2007),


a primeira condição para a escolha do parceiro aponta para um terceiro
prejudicado, de modo que um outro homem possa reivindicar o direito
de posse da mulher escolhida, tornando-a supervalorizada. A segunda
é designada como amor à má reputação do objeto, relacionada com a
experiência do ciúme, que se torna necessária. A terceira revela-se por
sua natureza compulsiva, com enorme dispêndio de energia, já que
exclui quaisquer outros interesses do sujeito. Por fim, a quarta condição
indica a ânsia de salvar a mulher amada, por onde se desenvolve o
desejo de manter a mulher escolhida no caminho da virtude:
[...] o que Freud vem nos salientar é que o tipo de amor
dos homens, quer esteja pautado em uma ou em mais de
uma das condições aqui descritas, tem os traços de fixação
nas fantasias infantis, [...] sendo a mãe idolatrada com
ternura como santa, mas não sem revelar ao menino o
seu lado erótico, ao entregar-se ao desejo do pai. É esse o
pano de fundo presente nas derivadas condições de esco-
lha por parte dos homens (MARQUES, 2016, p. 127).

Foi a partir dessas constatações que Freud (1912/2007) pôde


pensar a impotência presente na vida sexual de alguns homens dotados
de natureza intensamente libidinosa. Em certos casos a fixação da libido
em fantasias incestuosas inconscientes é a causa da debilidade do órgão.
Já em outros, a restrição se coloca na escolha, através da qual a corrente
erótica que permanece ativa procura objetos que não remetam às ima-
gens incestuosas proibidas. Desse modo, a fim de evitar o incesto, toda
a esfera do amor permanece cindida: “Quando amam não desejam, e
quando desejam não podem amar. Buscam objetos que não precisem
amar, a fim de manter afastada sua sensualidade dos objetos amados [...]”
(FREUD, 1912/2007, p. 176). No caso das mulheres, embora Freud não
verifique a necessidade de depreciação do objeto sexual – provavelmente
pelo fato das mulheres não supervalorizarem o objeto no encontro com
o parceiro –, muitas vezes elas são incapazes de desfazer a conexão entre
o erotismo e a proibição, o que pode torná-las psiquicamente impotentes
228
Flavia Gaze Bonfim (org.)

quando o sexo finalmente lhes é permitido; destacando, para homens e


mulheres, o obstáculo como algo presente na vida sexual e meio através
do qual há a intensificação da libido:
[...] “essa condição do proibido é equiparável, na vida
amorosa feminina, à necessidade de degradação do
objeto sexual no homem” (FREUD, 1912/2007, p. 180),
ponto de falha necessário que conduz à valorização do
amor (MARQUES, 2016, p. 129).

Dito de outro modo, com Lacan: para o homem, o(a) parcei-


ro(a) porta uma marca fálica na medida que, sendo o objeto escolhido,
apresenta-se no lugar do significante fálico [Φ (a)], por onde o desejo
masculino aposta no tamponamento da falta no Outro (LACAN,
1960/1998). Para as mulheres, o que está em jogo é o desejo de falo,
que na forma erotomaníaca aposta no parceiro como aquele em quem
ela vai encontrar o significante de seu desejo, único capaz de responder
a sua falta: Ⱥ. Ou seja, na forma fetichista, prevalece o desejo, já que o
ato de amor dos homens é a perversão polimorfa do macho, por onde
a satisfação em ter um objeto não só apazigua sua angústia de castração
como ratifica sua posição do lado masculino da partilha dos sexos. Já no
modo erotomaníaco a exigência de ser amada não se reduz à demanda
do diga-me que me ama, mas, antes, se estende para as diversas provas de
amor que solicita ao parceiro. Será que ele me ama? Essa é a eterna ques-
tão, um véu que encobre seu mote fundamental: o enigma do feminino,
o Outro que as mulheres são para si mesmas (cf. MARQUES, 2016).
Logo, a relação das mulheres com a demanda de amor – erotomaníaca
– e dos homens com o desejo – fetichista – surge como anteparo ao real,
sendo o recurso ao amor o reflexo da presunção de que há uma riqueza
no interior do outro, por onde o sujeito supõe um ser.
É aí que está o paradoxo, pois o que falta em si é justamente o
que o amado também não tem: o objeto de desejo que seria capaz de
conduzir à felicidade plena, à salvação, promovendo a união por onde
amado e amante se fundem e se confundem. Contudo, justamente
229
Leituras Psicanalíticas

porque a ideia do Um é introduzida no mundo pelo significante


que a miragem do amor-paixão é possível. Ou seja, se no plano do
amor a visada é o ser, aquilo que na linguagem mais escapa, por outro
lado, é a única aposta possível:
No amor, o que se visa, é o sujeito, o sujeito como tal,
enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se
ordena ou pode se ordenar por uma vida inteira. Um
sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o
gozo. Mas, por outro lado, seu signo é suscetível de
provocar o desejo. Aí está a mola do amor (LACAN,
1972-73/2008, p. 69).

A ideia do Um é o que leva à aposta na dissolução com o outro.


Dissolver-se com o outro é a miragem que o amor-paixão oferece e
que, desde Aristófanes (PLATÃO, 1999), mantém viva a crença no
encontro com a cara-metade. No entanto, se só há Um sozinho, como
pode haver amor por um outro? Está aí o engodo, pois quando um
sujeito é tomado por outro, ele sempre é tomado como objeto, não
havendo qualquer relação possível de sujeito a sujeito. Cada sujeito,
ao ocupar-se de seus objetos, esquece que o outro, quando tomado
como parceiro, também é um sujeito e, sem a menor consideração
com esse outro, o recorta em função de seus interesses, podendo o
interesse ser a droga-deus, no caso de Daniel, ou a sua própria sub-
sistência, como no caso de Fernanda.

REFERÊNCIAS
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torado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
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Leituras Psicanalíticas

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cologia de Freud, um século depois. Contracapa.

232
ADOLESCÊNCIA, INTERSEXO E SEXUAÇÃO.
QUESTÕES QUE SE COLOCAM À
PSICANÁLISE

Heloene Ferreira da Silva52


Sonia Alberti53

Onde melhor terei eu feito compreender que pelo impossível de


dizer se mede o real?
Lacan, 1972, p. 497.

Geneviève Morel (1996) em seu texto, “Anatomia analítica”,


ao abordar o que definiu como os três tempos lógicos da sexuação, é
enfática ao afirmar que há uma oposição de dois reais: aquele da ciência
biológica e aquele do analítico. O real do sexo biológico natural, physis,
como possível em uma relação sexual entre gametas, e o real psicanalí-
tico do sexo, como impossível em decorrência dos impasses secretados
pelo fato de que o sexo se aborda apenas pelo viés da linguagem, o que
consiste em uma equação: “não há relação sexual”. Tal diferença é de
extrema importância na clínica com sujeitos intersexo. Voltaremos a isso.
Sabemos que o campo da ciência é restrito ao fato de que em seu
mundo só existem as representações com as quais o cientista trabalha.
Aquilo que não é do campo do simbólico é intangível pela ciência.
Dito de outra forma, a ciência encontra seu limite ao só poder afirmar
algo que se encontra na ordem do dizer, do que é passível de ser dito.
Tudo que escapa ao campo do dizível, do simbólico, está fora de seus
limites (ALBERTI & ELIA, 2008). Daí, a ciência pretende operar
com o significante como se ele fosse decepado de sua relação com o
sujeito. Lacan (1967-68), em seu Seminário XV, O ato psicanalítico,
aponta que a “condição do progresso da ciência é que não se queira

52
Doutora em Psicanálise (UERJ). Psicóloga (UDA) de Urologia do Hospital Universitário Pedro
Ernesto (HUPE/UERJ). CV: http://lattes.cnpq.br/5453106128938553
53
Professora Titular e Procientista (PGPSA-UERJ). Pesquisadora do CNPq e Membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (A.M.E.). ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5120-5247
233
Leituras Psicanalíticas

saber nada sobre as consequências que este saber da ciência acarreta


ao nível da verdade” (LACAN, 1967-68, p. 17).
No que concerne à psicanálise, ela se dirige ao sujeito, o que ins-
taura um discurso que está para além do dito. Embora o sujeito esteja
na dependência da cadeia articulada que representa o legado científico
(LACAN, 1967), que o inscreve no plano simbólico, há algo que escapa
ao possível de dizer, ao simbólico, que é intangível pela ciência e do qual
a psicanálise se ocupa. Se a ciência visa fundar, produzir como efeito
de seu discurso, um objeto, recalcando, em seu movimento, o sujeito,
a psicanálise ao contrário, faz agenciar a sua prática discursiva (teórica
e clínica) pelo objeto, dirigindo-se assim a um sujeito, situado como o
outro dessa prática, tomada em sua singularidade. (ELIA, 1995, p. 12).
Temos assim, uma diferença importante ao abordar a questão do real.
A distinção na concepção da ciência médica de sexo biológico
e o real do sexo psicanalítico, na clínica com sujeitos intersexo, em
um ambulatório público, engendra uma prática multidisciplinar que
evidencia a necessidade de termos acesso ao saber médico que não
tínhamos para poder, então, escutar os sujeitos que estão ali implica-
dos: mãe, médico, sujeito intersexo, família, equipe multidisciplinar...
Toda essa problemática se adensa quando procuramos agir levando
em conta o entrecruzamento dos vários saberes que necessariamente
tem os seus furos com os quais fazemos girar os discursos. Ora, o tra-
balho em equipe de saúde multidisciplinar no hospital com sujeitos
adolescentes intersexo é baseado na articulação com questões sociais,
psíquicas, sexuais e mediação técnico-científica-cirúrgica que pro-
porciona novas possibilidades de existência. Todavia, não se faz sem
a história do corpo medicalizado.

SEXO BINÁRIO OU NÃO BINÁRIO?

No que tange o sexo biológico, o binário masculino ou femi-


nino, se impõe como um pretenso truísmo científico e dita as normas
sociais de gênero tendo a anatomia genital como principal marcador da
234
Flavia Gaze Bonfim (org.)

diferenciação dos sexos. Quanto a esta, lacan (1972/2003) é enfático a


afirmar que a análise prescinde, em seu discurso, de “qualquer savoir-
-faire dos corpos” (LACAN, 1972/2003, p. 479) segundo a linha da
ciência, uma vez que evoca uma “sexualidade de metáfora, metonímica
à vontade por seus acessos mais comuns, aqueles ditos pré-genitais, a
serem lidos como extragenitais”. E então questiona: “seria porventura
descabido dar o passo do real que explica isso traduzindo-o por uma
ausência perfeitamente situável – a da ‘relação’ sexual em qualquer
matematização”? (LACAN, 1972/2003, p. 480).
Este “passo do real” proposto por Lacan ao localizar a “não-relação
sexual” como isso que “não cessa de não se inscrever” em oposição à
abordagem científica do corpo, nos parece encontrar uma demonstração
na clínica com sujeitos adolescentes intersexo.
Seguimos a pista deixada por Lacan (1972-73/2010) no Seminá-
rio XX quando se refere à teia de aranha de Spinoza. Segundo Lacan
(1972-73/2010), do trabalho de texto que sai do ventre da aranha
podemos vislumbrar uma escrita que tangencia o real “único ponto
onde achávamos apreensíveis esses limites, esses pontos de impasse, de
sem saída, que fazem entender o real como se acedendo, do simbólico,
ao seu ponto mais extremo” (LACAN, 1972- 73/2010, p. 187). O real
que acede do simbólico, no campo do intersexo, encontra uma série de
tentativas (pseudo)científicas de apreender o sexo do sujeito por leituras
biomoleculares em detrimento daquilo que o sujeito pode dizer sobre si.
Mas, o que é intersexo? Questão que se coloca de saída uma
vez que o prefixo –inter, causa o equívoco de um “entre sexos54”. No
entanto, o que temos é uma questão biológica, uma indefinição quanto
ao sexo que pode ser genético, hormonal, gonadal, anatômico (genital
interno e/ou externo). Ressaltamos aqui que com os avanços da biolo-
gia molecular, mais de quarenta condições intersexo foram mapeadas.
Cada condição pode apresentar uma ou mais das seguintes caracterís-
ticas: genitália atípica, incongruência entre genitália interna e externa,
54
O significante sexo, por si só, dá margem a questões de transição de gênero e de comportamento sexual.
235
Leituras Psicanalíticas

virilização da genitália durante a puberdade, variantes numéricas ou


estruturais do cromossomo sexual, desenvolvimento incompleto da
genitália e variações da determinação gonadal.
Uma clínica na qual os binários pênis e vagina, XX e XY, estro-
gênio e testosterona, útero e testículo, óvulo e espermatozoide, como
significantes naturalmente antitéticos, que sustentam as “leis da segre-
gação urinária” (LACAN, 1957/1998), não são suficientes para abarcar
os corpos únicos intersexo. Nesses casos, ao par masculino e feminino,
que se mostra insuficiente, o discurso médico oferece nomenclaturas
variadas: DDS55 46XY, DDS ovotesticular, DDS 46XX... escruti-
nando os recônditos do corpo para avaliar qual é o “sexo certo” em
meio à incerteza. Conhecidos popularmente como hermafroditas56,
esses corpos questionam o binarismo do sexo e suscitam intrincadas
questões normativas e discursivas.
Como pudemos observar anteriormente em nossa pesquisa
(FERREIRA DA SILVA, 2021), são corpos ininteligíveis (BUTLER,
1990/2018) cuja potência questionadora se coloca na cidade dos dis-
cursos atrelada a preconceitos que limitam a possibilidade de existirem
como humanos. O que nos remete à questão: quanto ao corpo, ele
testemunha tão diretamente uma atribuição de sexo masculino ou
feminino? Levantar a questão da diferença entre os sexos, enquanto
diferença anatômica observada através do testemunho do corpo, equi-
vale a se perguntar o que o corpo atesta aqui (AYOUCH, 2014). Dado
o fato de que ao nascimento atribui-se um sexo a partir do genital que
se possui, questionamos: como se constitui um corpo sexuado quando
o lastro imaginário genital (pênis/vagina) não se sustenta?
Quando saímos do campo do suposto determinismo anatômico,
cromossômico, gonadal, hormonal do sexo, quais são as variáveis que

55
Distúrbios do desenvolvimento do sexo. Termo que tem sido substituído por Diferenças do desen-
volvimento do sexo numa tentativa de despatologização da condição intersexo, termo adotado pelo
movimento social.
56
Hermafrodita é um termo que caiu em desuso por ser considerado estigmatizante, uma vez que a
sociedade o atrela ao que é considerado aberrante.
236
Flavia Gaze Bonfim (org.)

estão em jogo na sexuação do sujeito? Como esse impasse aparece na


relação clínica? E, que tipo de contribuição a psicanálise pode dar para
que o médico se coloque de maneira sensível ao impasse? Para além
disso, a questão intersexo é atravessada não apenas pelo diagnóstico,
mas também pelo momento de vida, pelas questões sexuais que se
colocam diferentes, quer se trate da infância ou da adolescência. Por
isso, no pequeno recorte que escolhemos tratar nesse capítulo, nos
debruçaremos na interseção: adolescência, intersexo e sexuação a partir
de questões suscitadas pela clínica com sujeitos intersexo à psicanálise.

CLÍNICA COM ADOLESCENTES INTERSEXO

A adolescência presentifica a emergência do real do sexo. As


mudanças corporais que advêm com o real da puberdade e que pro-
vocam uma alteração no imaginário do corpo, aliam-se ao trabalho
que a adolescência traz consigo, de elaboração da falta no Outro
(ALBERTI, 2004, p. 10), tendo como efeito a necessidade, algo que
não cessa de se escrever, de se preparar para o encontro faltoso com o
sexo, o encontro com o Outro sexo, aquele que é heteros, ou seja, aquele
que é outro, diferente. Heteros em relação ao que não está dentro da
norma daquele sujeito, o diferente (ALBERTI, 2017).
Em nossa clínica, com sujeitos intersexo, alguns adolescentes
sofrem transformações na puberdade que podem introduzir questões
de identidade de gênero57, relacionado à sua variação biológica do sexo
(VBS). Por variantes genéticas, hormonais ou fenotípicas, ao chegarem
à puberdade os caracteres sexuais secundários não se desenvolvem ou
se desenvolvem em oposição ao sexo designado ao nascimento, como
nos casos de hiperplasia adrenal congênita58 (HAC) com controle
57
É importante diferenciar a variação biológica do sexo (intersexo), da identidade de gênero (trans, cis,
não binário...) e da orientação sexual (homo, hétero, bissexual...). Os três componentes não são solidá-
rios, não implicam de maneira necessária, mas contingente, o desenvolvimento sexual do sujeito (Cf.
FERREIRA DA SILVA, 2021).
58
Hiperplasia adrenal congênita (HAC) está presente em cerca de 1 para 16.000 indivíduos nascidos. 90%
dos casos de HAC decorrem da deficiência da enzima 21-hidroxilase, que está intimamente relacionada à
síntese de aldosterona e cortisol. Essa condição leva à conversão de altos níveis de testosterona durante a
237
Leituras Psicanalíticas

medicamentoso irregular. As meninas “virilizam”: crescem pelos,


barba, músculos, a voz engrossa...
Numa das consultas ambulatoriais de Carla, adolescente de treze
anos, que não utiliza a medicação que impediria a virilização de seu
corpo, ela diz que odeia a mãe, declara-a como “sua maior inimiga”,
que se fosse menino as coisas seriam bem mais fáceis: poderia voltar
para casa na hora que quisesse, poderia jogar bola, não teria que ajudar
nas tarefas de casa, em resumo: seria livre!
O corpo musculoso e a barba de Carla ela esconde embaixo de
um casaco com capuz. Diz não saber o que significa seu diagnóstico,
nem fazer nenhuma questão de saber. “Minha mãe é quem sabe”, frase
repetida pela adolescente frente a qualquer pergunta sobre sua condição.
A equipe médica faz uma leitura que talvez ela esteja querendo
virar um menino por não aderir corretamente ao tratamento que
inibiria a ação da testosterona em seu corpo. A equipe médica aventa
a possibilidade de que Carla apresente uma disforia de gênero e que
virilizar faça parte de uma escolha da adolescente. Nesse momento
intervimos: “para escolher, ela precisa saber como a HAC acomete seu
corpo e só quem sabe é a mãe. Alguém precisa falar com ela e não com
a mãe, para que a própria adolescente possa escolher”.
A mãe, que se ocupa dos cuidados de Carla desde o diagnóstico
ainda nos primeiros dias de vida, queixa-se das crises de agressividade
da filha, que começaram na adolescência, diante de suas proibições,
tais como: não ficar até tarde na rua, não pegar ônibus sozinha, não
andar com meninos... Em suas palavras, a filha sempre foi uma menina
tranquila e educada, mas nos últimos tempos “ela tem umas crises”.
Inclusive, chegou a dar um soco na parede da escola quando a proi-
biram de jogar futebol. Questiona se a filha gostaria de namorar uma
menina, o que lhe parece mais tolerável do que deixar sua filha andando

gestação, gerando desenvolvimento genital atípico no sexo feminino. No sexo masculino, os sinais clínicos
se tornam mais sutis, já que estes podem não apresentar alterações ao nascimento, levando ao diagnós-
tico tardio. Na puberdade, com controle medicamentoso irregular, os androgênios virilizam a menina.
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Flavia Gaze Bonfim (org.)

por aí sozinha, como uma menina “perdida”. Carla, por sua vez, não
consegue dizer nada além de “se eu fosse um menino eu seria livre”!
Passados alguns meses, Carla retorna ao Ambulatório. Agora
está namorando, diz se sentir mais livre e introduz a demanda por uma
intervenção cirúrgica, pois, em suas palavras, sua vagina é diferente
e ela queria que fosse normal. “Os pequenos lábios são grandes, que
piada, não? Se eu tiver clitóris, é uma bolinha estranha que fica muito
lá no alto... Eu não tenho aquela linguinha que fica no meio e o buraco
que eu tenho só cabe a ponta do meu dedo. Tem uma paredezinha
que segura”, Carla fala sobre sua vagina:
- É estranha. Diferente e eu queria uma normal!
- Vou anotar aqui no meu caderno que você quer o
normal para ver se você me explica que normal é esse
que eu não conheço!
Carla então questiona:
- Você anotou o que eu te disse da última vez? Que se
eu fosse um menino eu seria livre?
- Não anotei, mas vou anotar agora! (Anoto: Se eu
fosse um menino eu seria livre!) Bem... Você chegou
aqui dizendo que está se sentindo livre, mas ao que
parece, você não virou um menino... Como você se
virou com isso?!?
- Ahh, eu arrumei um menino!
Conta então, agora já sem o casaco, que, na verdade, tudo no
seu próprio corpo sempre a incomodou: aqueles músculos, aquela
barba, aquele peito chapado... “tudo é tão masculino... Aí, da última
vez que eu vim aqui, você me falou uma coisa bem estranha sobre me
sentir menina... Não sei explicar, mas foi a primeira vez que alguém
me perguntou como eu me sentia”.
O namoro e a demanda pela cirurgia estética genital não duram
muito tempo... Passados alguns meses, Carla retorna ao Ambulatório
e em poucas palavras diz que não quer a cirurgia agora porque isso
239
Leituras Psicanalíticas

atrapalharia seu campeonato de futebol. Conta que a mãe “deu um


pouco de liberdade” e ela está podendo viver a própria vida. Entu-
siasmada, relata sobre suas vitórias nos jogos de futebol e como a
possibilidade de treinar em um clube profissional a fez se desenvolver
como uma atleta de alta performance. “Em campo eu sou a atacante e
não quero cirurgia agora porque isso iria me atrapalhar muito”, nos diz
taxativa. Relata estar feliz podendo viver a vida que sempre sonhou e
que no meio de suas colegas de time “ninguém liga muito para o meu
jeito diferentão. Tô de boa! Aprendi a usar meu corpo a meu favor!
Sou a menina que eu escolhi ser”!
Como o caso clínico ilustra, nossa aposta é que a possibilidade
de fala que foi franqueada à Carla lhe permitiu saber, e a partir daí
tomar uma decisão sobre o que ela queria. Esta, embora contrarie a
decisão médica, que inclusive havia marcado a cirurgia, aponta que
Carla desistiu porque pode saber. Ter um corpo, ser um corpo, sentir-se
em um corpo sexuado, dizer sobre o semblante sexual... Essas escan-
sões presentes na adolescência são uma forma de a cada momento se
posicionar diante do real que acedeu do simbólico. Simbólico que só
lhe foi possível porque um médico falou com ela, explicou sua condi-
ção conferindo-lhe “uma dimensão a mais: a de bordejar, contornar o
furo real de modo a permitir que o sujeito se situe em relação ao que
não pode domesticar pelo saber e pelo dizer” (ALBERTI & ELIA,
2008, p. 788). Para que isso possa acontecer é preciso que o sujeito
tenha as referências necessárias.
A psicanálise tem o que dizer na atualidade da ciência! Sem
esperar utopias, podemos afirmar que dar lugar à palavra do sujeito,
escutar sua demanda (ou permiti-lo formular sua demanda), reintroduz,
nos discursos atuais, a dimensão ética da clínica. Ao longo dos anos,
as frases que ouvimos dos médicos expressam um desconhecimento
sobre o que está em jogo. Toda situação em torno da intersexualidade
desafia padrões éticos e questiona o vocabulário cotidiano. Dessa forma,
somos levados de forma bastante incisiva a levantarmos a hipótese de
240
Flavia Gaze Bonfim (org.)

que o intersexo aponta de forma radical para o fato de que o advento


do ser sexuado é sempre uma aposta! Essa formulação, acreditamos,
corrobora o estatuto do lugar da psicanálise em relação à medicina:
o de participar de um ato clínico que, no avesso da categorização
normativa, recupera o olhar como dedicado à particularidade de cada
caso (cf. ALBERTI & FERREIRA DA SILVA, 2020).
Uma pergunta se impõe: como é possível, no atendimento clí-
nico de sujeitos intersexo, se servir da ciência sem ocluir o sujeito?
Privilegiando a escuta, o ato e a intervenção na prática cotidiana que
não desconsidere as diferentes perspectivas éticas, políticas e cientí-
ficas que estão em jogo num campo por si mesmo heteróclito. Nós,
analistas, não podemos não querer saber! Depreende-se, portanto,
que para que a prática médica não se dê exclusivamente a partir do
saber médico científico é necessário que os analistas, que integram a
equipe multidisciplinar, não se coloquem numa posição de nada querer
saber sobre o discurso médico.
A anatomia genital, a sexuação e as incertezas quanto à escolha
de objeto, condensam o enigma da diferença sexual no momento da
adolescência. Por isso, optamos por uma articulação com a clínica com
adolescentes e o encontro com o real do sexo. Já pudemos observar
em outra ocasião que a partir do momento em que o sujeito, saído da
infância, depara-se com o real do sexo, a puberdade é o próprio encontro,
malsucedido traumático, com esse real. “O real do sexo é, por definição,
algo que jamais poderá ser totalmente simbolizado, deixando o sujeito
– na linguagem do senso comum – ‘sem palavras’” (ALBERTI, 2009, p.
31). Esse encontro que preconiza uma escolha de objeto, no momento
da adolescência, ao incluir a diferença sexual, se realiza em um plano
no qual o corpo sexuado inclui as marcas que a cultura dispõe como
legíveis para interpretar a dita diferença (ROSTAGNOTTO, 2020).

241
Leituras Psicanalíticas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adolescência, por si só, já se impõe como uma travessia e um


período de trabalho de elaborações frente àquilo que não mais se
sustenta da infância. O que pudemos observar no caso relatado é que
quando o corpo remete o sujeito a uma experiência exilada da lógica do
coletivo, quando é um saber restrito biológico molecular que poderia
dizer o que o acomete, o adolescente intersexo se vê sem palavras, não
encontrando, via discurso, uma possibilidade de elaboração sobre esse
corpo que muitas vezes “não se encontra no Google”. No caso Carla,
quem sabe é a mãe e os médicos. Para tomar algum rumo, o sujeito
precisa saber para trançar uma referência simbólica.
Precisamos considerar que a posição subjetiva na partilha dos
sexos não é sem relação com as profundas questões que o sujeito se
coloca sobre seu lugar para o Outro e a importância de um encontro
com um analista, quando este não se coloca na posição de quem tem
um saber, mas, em função de sua função e abstinência diante da miríade
de questões que se colocam no trabalho em equipe multidisciplinar,
permite que um sujeito construa sua própria resposta, seja ela qual for
(Cf. ALBERTI & FERREIRA DA SILVA, 2019).
A psicanálise não desconsidera as singularidades embutidas no
processo de sexuação, muito pelo contrário. A cada sujeito, sua singular
forma de gozo em seu encontro com o corpo sexuado. Que não se
reduz às determinações do sexo anatômico, nem à questão de gênero.

REFERÊNCIAS
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Paulo, Agente Publicações. p. 77-94, 2017.
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questões da atualidade. Anotação feita em aula, 2020.

243
MASCULINIDADE E FEMINILIDADE COMO
MODOS DE GOZO: SEXUAÇÃO, DIFERENÇA
SEXUAL E MAIS ALÉM

Vinícius Moreira Lima59

Do que estamos falando exatamente quando dizemos de “mas-


culinidade” ou de “feminilidade”? Na cultura ocidental, temos a ten-
dência de vincular esses termos a atributos expressivos de “macho”
e “fêmea”: a masculinidade como uma propriedade dos homens e a
feminilidade como uma propriedade das mulheres. Desafiando essa
perspectiva, o teórico queer Jack Halberstam (2018) nota como esses
termos são curiosamente vagos: não sabemos muito bem o que seria
ao certo “masculino” ou “feminino”, tampouco temos definições muito
precisas do que seriam “homens” ou “mulheres” – sem contar as suas
variações históricas, geográficas, sócio-culturais, locais e mesmo sub-
jetivas (isto é, as variações singulares do que um sujeito entende por
masculinidade/feminilidade, bem como as mutações e instabilidades
desse mesmo “entendimento” ao longo da vida de um sujeito).
Nessa direção, o autor nos coloca a seguinte pergunta: “Se a
masculinidade não é a expressão social, cultural e mesmo política do
macho biológico [maleness], então o que ela é?” (HALBERSTAM,
2018, p. 1, tradução nossa). Em seu livro, Halberstam sustenta a impor-
tância de separar homens (cisgêneros) e masculinidade, não deixando
que esta se reduza a uma propriedade biológica extraída da anatomia
do “macho”. Sua empreitada, como coloca o título do livro – Female
masculinity –, é a de pensar masculinidade em corpos nascidos com
vagina: mulheres cis com expressão de gênero lida como masculina,
performances de drag kings, lésbicas butch e homens trans são algumas
das apresentações subjetivas que orientaram a pesquisa de Halberstam

Psicanalista. Mestrando em Estudos Psicanalíticos (UFMG).


59

CV: http://lattes.cnpq.br/2932481213382246
244
Leituras Psicanalíticas

cerca de 20 anos atrás, a qual poderia se estender, hoje, também às


pessoas não-bináries transmasculines.
Ainda que o recorte do autor seja a construção de masculinidade
em corpos com vagina, acreditamos ser possível e desejável ampliar
o escopo de seu trabalho e pensar também o trânsito de feminili-
dade em corpos nascidos com pênis – o que pode se apresentar em
homens cis gays afeminados, homens cis heterossexuais ou bissexuais
permeáveis ao feminino, mulheres trans, travestis etc. (e, como escreve
Carla Rodrigues (2018), sobretudo etc.). Esse cenário nos convida a
entender masculinidade e feminilidade como configurações subje-
tivas que transitam entre corpos com vaginas e corpos com pênis,
bem como entre corpos intersexo cuja anatomia não se enquadra
nas categorias binárias de apreensão dos genitais. Tal perspectiva
nos convoca a reapresentar alguns aspectos das teorias de Freud e
Lacan à luz das questões contemporâneas de gênero e sexualidade que
interrogam os enquadramentos normativos derivados de uma matriz
cisgênera e heterossexual que eventualmente encontramos em certas
formulações no campo analítico.
Neste trabalho, gostaríamos de reconhecer – e não denegar
de maneira simplificadora – as tensões existentes dentro da obra de
Freud, assim como da obra de Lacan, que incluem tanto elemen-
tos para pensar gênero e sexualidade de formas subversivas quanto
momentos de reiteração de normas sociais prévias que participam de
suas formulações e bloqueiam a potência antinormativa da própria
psicanálise. Sem desconsiderar estes momentos, e dada a extensão
limitada deste capítulo, proporemos aqui enfatizar a dimensão sub-
versiva aberta tanto por Freud quanto por Lacan para pensarmos os
trânsitos de masculinidade e feminilidade entre os seres falantes mais
além de sua redução normativa à cisgeneridade e à heterossexualidade.
Recorreremos, portanto, a uma leitura marginal da teoria freudiana da
bissexualidade e da formalização lacaniana da sexuação para pensarmos
a própria diferença sexual sem reduzi-la à cis-heteronormatividade.
245
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Tradicionalmente, na cultura ocidental, tendemos a conside-


rar (ou costumamos instituir) que a diferença sexual se conecta aos
genitais. A distinção anatômica entre pênis e vagina (ou entre falo
e castração, nas teorias sexuais infantis) estaria na base da assunção
respectiva de masculinidade e de feminilidade por meninos e meninas,
imbricando aspectos heterogêneos do sexual em torno de uma coe-
rência fictícia da cis-heterossexualidade. Portadores de pênis devem se
identificar como homens, assumir posições legíveis como masculinas
(preferencialmente, viris), arranjo que deve se expressar ainda por
uma orientação heterossexual e por práticas sexuais ligadas ao uso
do pênis como órgão penetrante e à defesa do ânus como buraco a
ser protegido. Portadores de vagina, por sua vez, devem se identificar
como mulheres, assumir posições legíveis como femininas, arranjo que
deve também se expressar pela heterossexualidade – a menos que se
possa fetichizar, da perspectiva masculina, o encontro erótico entre
duas mulheres – e por práticas sexuais que envolvam o consentimento
com ter seu corpo penetrado pelo pênis de um parceiro.
Vale observar que essas normas são formuladas tendo a branqui-
tude do norte global como forma de subjetivação hegemônica, tendo
diferentes consequências e atravessamentos para pessoas racializadas
ao redor do globo, bem como para dissidentes de gênero e sexualidade,
na medida em que subjetivações que não obedecem a esse arranjo nor-
mativo são frequentemente punidas com a subalternização, a violência
e a morte, a partir das linhas de força do racismo, do machismo, da
homofobia, da transfobia, entre diversas formas de ódio e segregação
das alteridades na cultura ocidental. Tal arranjo normativo é, assim, a
figuração tradicional da “diferença sexual” em nossa cultura, entendida
como a naturalização dos semblantes de “homem” e “mulher” cisgêneros,
brancos e heterossexuais. É nesse sentido que Paul B. Preciado (2020)
nos convoca a enxergar a diferença sexual como peça-chave de uma
epistemologia binária e normativa, a serviço do poder hetero-patriar-
cal-colonial, na medida em que contribui para enquadrar a diversidade
246
Leituras Psicanalíticas

dos corpos numa ordem violenta, comprometida com o patriarcado,


a cisgeneridade, a heterossexualidade e a colonialidade do poder. Em
seu trabalho, o filósofo nos exorta a buscar formas de nos aliar, como
psicanalistas da transição epistêmica, aos mutantes que desafiam as
normas de inteligibilidade dessa epistemologia.
Nessa direção, gostaríamos de explorar aqui a possibilidade de
que uma saída da epistemologia da diferença sexual talvez possa se dar
por meio de uma subversão interna a esse mesmo dispositivo. Uma
forma de desenhar esse tipo de saída, mais ao modo de uma linha de
fuga do que de uma revolução, seria nos arriscando a pensar masculi-
nidade e feminilidade fora das identificações normativas de homem e
mulher, bem como a pensar as identificações com as categorias homem
e mulher (quando é o caso) fora de suas pretensas determinações ana-
tômicas. Mas essa estratégia só terá valor se for possível também dar
lugar àquilo que foge a essas categorias normativas mesmo quando
deslocadas de seus suportes hegemônicos. Trata-se aí, mais uma vez,
do “sobretudo etc.”, com o qual somos convidades a levar em conta a
dimensão singular do gozo e das formas de nomeação e subjetivação
que se aproximam da ordem do inclassificável, do não categorizável,
aliás tão caro à própria psicanálise.
Partamos, então, da posição de Freud quanto à masculinidade e
à feminilidade. Ao longo de sua obra, o psicanalista sustenta a impos-
sibilidade de defini-los estritamente do ponto de vista psicanalítico.
Ele dirá que, no sentido biológico, esses termos se definiriam pelos
produtos sexuais, espermatozoides e óvulos, ao passo que, no sentido
sociológico, eles se articulariam pelas convenções sociais (isto é, de
uma perspectiva contemporânea, os performativos de gênero) respon-
sáveis por determinar o que conta como masculino e como feminino.
Enquanto isso, no sentido psicológico, poderíamos tentar certa apro-
ximação entre masculinidade-atividade e feminilidade-passividade,
mas mesmo essa precária tentativa de definição nos diz muito pouco
e se desmancha no ar. Para Freud (1933/2010), masculino e feminino
247
Flavia Gaze Bonfim (org.)

não seriam inteiramente definíveis nem pela anatomia, nem pelas


convenções sociais, mas tampouco pela psicologia, o que não impede
masculinidade e feminilidade de atravessarem os corpos dos seres
falantes em proporções as mais diversas.
Está em jogo a concepção freudiana da bissexualidade, que
opera “como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre
as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra” (FREUD,
1933/2010, p. 265). Nessa perspectiva, não se trata apenas da flutua-
ção de escolhas de objeto entre homens e mulheres (como nos faria
pensar o sentido contemporâneo do termo bissexualidade no campo
da orientação sexual), mas também da coexistência de identificações
masculinas e femininas em um mesmo sujeito (o que quer que elas
signifiquem para cada um), bem como de modalidades de satisfação
ativa e passiva da pulsão e ainda de uma consideração da anatomia
de todo sujeito como fazendo parte de um continuum entre “macho”
e “fêmea”, sendo que nenhum desses polos seria jamais inteiramente
materializado em um corpo qualquer. Freud desmonta, a partir de den-
tro do dispositivo, a ficção de que seríamos univocamente homens ou
mulheres, machos ou fêmeas, masculinos ou femininos, evidenciando
a multiplicidade que habita cada “indivíduo”.
É certo que a noção de bissexualidade encontrou também
uma série de limitações: seja pela permanência de sua matriz de
inteligibilidade binária (os polos são sempre masculino e feminino),
seja pelo raciocínio heteronormativo que por vezes assombra seu uso
freudiano (o masculino só se dirige ao feminino e vice-versa) – pontos
que foram assinalados por Judith Butler (1990/2015). Outra questão
que nos caberia desdobrar se refere às tensões produzidas pelas formas
de conexão da bissexualidade aos complexos de Édipo e de castração,
conexão que, por um lado, foi empregada de maneiras normativas ao
longo da história da psicanálise (numa teoria do desenvolvimento
que envolveria renunciar à bissexualidade e à perversão polimorfa
das pulsões em prol da adesão a uma posição sexual pretensamente
248
Leituras Psicanalíticas

unívoca, genital e adulta). Mas, por outro lado, essa conexão também
pode nos permitir localizar criticamente de que modo tais complexos
operam como elementos de normatização do gênero e da sexualidade
no percurso de um sujeito, sempre falhando em produzir uma unificação
completa da subjetividade em torno da genitalidade.
Ao mesmo tempo, gostaríamos ainda de apostar aqui na noção de
bissexualidade enquanto um modo de Freud se aproximar da dimen-
são de indeterminação e da multiplicidade que constituem a sexua-
lidade humana, tornando obsoletas as tentativas de definição binária
e inequívoca de uma posição sexuada. Nessa perspectiva, o Édipo e a
castração podem ser relidos como modos neuróticos de se relacionar
à masculinidade e à feminilidade a partir das teorias sexuais infantis
que equacionam a feminilidade com a castração e a masculinidade com
a posse do falo, tornando o feminino um campo de horror diante do
qual os sujeitos identificados com a masculinidade passarão a recuar.
Não estaria uma análise na direção de buscar dissolver essas ficções
infantis e permitir a um sujeito melhor circular entre a masculinidade
e a feminilidade que todavia já o atravessam? Nesse sentido, a contri-
buição de Freud ao debate da diferença sexual, entendida aqui como
uma subversão interna ao regime epistemológico do qual ele parte,
repousa em sustentar que não existe um conceito (uma determinação
específica de conteúdo) de masculino e de feminino e que, ao mesmo
tempo, cada sujeito é atravessado por masculinidade e feminilidade
em proporções diversas, ainda que não saibamos ao certo o que são.
Podemos considerar que Lacan (1972-1973/2008) retorna a
esse cenário ao formular que “homens” e “mulheres” não são mais
que significantes, isto é, elementos de linguagem que, por si só, não
possuem nenhuma significação a priori, não estão colados a nenhuma
significação, podendo ser empregados de maneiras as mais diversas, mas
sendo frequentemente chapados de forma normativa nos processos de
subjetivação – a exemplo do que o psicanalista francês chamará de “leis
da segregação urinária”. Trata-se do problema do uso dos banheiros
249
Flavia Gaze Bonfim (org.)

públicos, cujas portas idênticas só são diferenciadas pelo significante,


o qual convoca sujeitos divididos, isto é, sem substância e sem iden-
tidade, a se alinharem à lógica fálica que distribuirá os corpos entre
diferentes lugares simbólicos – de “homens” e de “mulheres” – a partir
da leitura normativa de sua anatomia pelo discurso sexual.
O que é curioso observar é que os seres falantes só se reconhecem
como tais ao responderem a essas injunções normativas do discurso
à sua maneira, podendo inclusive recusar, subverter, rearticular tais
injunções de modo contingente em suas identificações e em seus
modos de gozo. É precisamente essa dimensão que nos parece entrar
em jogo na tábua da sexuação, que formaliza os modos de gozo fálico
ou masculino e não-todo fálico ou feminino, da qual podemos depreen-
der usos bastante diversos. Por um lado, uma vez que é repartida por
Lacan (1972-1973/2008), mesmo que como uma “abreviatura”, entre
os lados “homem” e “mulher”, a tábua pode – o que não significa que
deva – servir para reforçar estereótipos de gênero e tipologias sexuais
provindos da cis-heterossexualidade normativa – uso que devemos
constantemente recusar. Por outro lado, essa mesma partição pode
também servir para apontar criticamente a maneira como a cultura
ocidental buscou distribuir os corpos de “homens” e de “mulheres”
(cisgêneros, brancos e heterossexuais) entre essas posições de gozo
(cf. LIMA & VORCARO, 2020; LIMA, 2021), na medida em que
as normas sociais (de gênero, raça, sexualidade, entre outras) não inci-
dem apenas como uma regulação mecânica e asséptica de atributos ou
comportamentos permitidos ou proibidos, elas são também tentativas
de normatizar as formas pelas quais um corpo pode ou não gozar,
tentativas de determinar quais posições sexuadas poderão ou não ser
assumidas e subjetivadas por corpos específicos.

250
Leituras Psicanalíticas

Assim, numa primeira aproximação à tábua sob a ótica das


fronteiras normativas do gênero, deveria se posicionar do lado dito
“homem” da sexuação todo aquele – e tão somente aquele – que nasce
dotado de um órgão no corpo que podemos situar discursivamente
como um pênis. Sua posição de sujeito [$], presumidamente viril e
portadora do falo simbólico [Ф], deve envolver a objetificação da
alteridade, reduzindo-a a um objeto de seu fantasma [a]. Por sua
vez, do lado dito “mulher”, deveria estar cada um que nasce despro-
vido de atributo fálico, fato que expõe esses seres falantes à condição
de inexistência [La] em um universo patriarcal. Ao mesmo tempo,
busca-se reduzir estes seres ao lugar de objeto da fantasia masculina
[a], devendo reencontrar o falo no corpo de um homem [La → Ф] e
permanecendo sem acesso a Outro gozo além do falo. Um gozo que,
no entanto, acessam de maneira contingente, ao se abrirem para um
ponto de indeterminação identitária que se situa mais além dos sem-
blantes fálicos atualmente instituídos [La → S(Ⱥ)]. Na tradição cis-
heteronormativa ocidental, esses limites não deveriam ser transpostos:
quaisquer trânsitos nesse campo – a exemplo dos dissidentes de gênero
e sexualidade, que recusam ou subvertem as designações advindas
251
Flavia Gaze Bonfim (org.)

dessa tradição discursiva – são punidos com violência e mesmo com a


morte, numa tentativa sempre falha de resguardar a fronteira binária
entre os sexos (cf. LIMA, 2021).
Caberia, ainda, introduzir alguns elementos que nos permitam
inserir a dimensão de raça no debate da sexuação, na medida em
que, quando Frantz Fanon afirma que “o negro não é um homem”,
ele constata, a seu modo, a segregação fundadora de homens negros
como condição para a formação do conjunto “universal” dos homens
no laço social do Ocidente, marcado não apenas pela cisgeneridade
e pela heterossexualidade, mas também pela branquitude. É nesse
sentido que podemos situar a fetichização dos homens negros pelo
mundo branco, que os delega ao campo do Outro e os torna, por isso,
passíveis de serem tomados como alvos preferenciais da violência
social, já que não são reconhecidos em sua humanidade como sujei-
tos, ainda hoje sendo lidos pelo universo branco, muitas vezes, como
objetos inferiorizados e animalizados. Do ponto de vista da sexuação,
esse tratamento fetichizado dos homens negros no laço social não os
impede de se situarem no gozo todo fálico, mas eles aí serão marcados
pelos efeitos subjetivos do racismo, ora pela via da emasculação, ora
pela via da hipervirilização (FAUSTINO, 2014).
Por sua vez, quando Grada Kilomba (2019) afirma que a mulher
negra representa “a ‘Outra’ da Outridade” – ou “o ‘outro’ do outro”, na
leitura de Djamila Ribeiro (2019) –, ela assinala, também a seu modo, o
que entendemos aqui como um suplemento de alteridade das mulheres
negras em relação às mulheres brancas. Se estas são marcadas pela
condição de inexistência em relação ao universo masculino, as mulheres
negras estariam numa posição de dupla alteridade: são o Outro para
os homens, mas também são o Outro para as mulheres brancas, sendo
negadas tanto pela masculinidade quanto pela branquitude, posição
que imprime importantes consequências subjetivas para as mulheres
negras. Numa cultura em que a universalidade é tradicionalmente uma
prerrogativa masculina e branca, tendo o falo (e, implicitamente, sua
252
Leituras Psicanalíticas

própria branquitude) como operador da partilha dos corpos no laço


social ocidental, o significante d’A mulher passa a ocupar aí um lugar
de inexistência, assim como o significante d’A negritude.
Dessa forma, os termos “homem” e “mulher” presentes na tábua
da sexuação, uma vez reconhecidos em sua dimensão racializada,
podem também nos ajudar a localizar a incidência discursiva da raça
sobre os seres falantes no laço social – o que deve ser articulado, a
cada vez, com o modo singular como cada sujeito irá se apropriar
de seu corpo para o gozo em resposta à forma como foi lido e con-
vocado pelo discurso que o (con)forma. Mas vale observar que essa
é apenas a forma normativa como os seres falantes são convocados
a ocupar lugares na sexuação, pois existem maneiras muito diversas
de dar corpo aos elementos da tábua, de modo que a sexuação não é
redutível à versão narrativa que construímos aqui pela via das normas
raciais, sexuais e de gênero. Afinal, se o que nos orienta é o caráter
contingente e singular da sexuação de cada ser falante (não sem o
coletivo que o circunda e o antecede), a lógica da sexuação lacaniana
não precisa ser utilizada apenas centrando-se na tábua como imagem
(do fracasso) da norma ou como consolidação (do impossível) da
diferença sexual branca e cis-heteronormativa.
Nesse caso, podemos recorrer ao fato de a lógica da sexuação
ser formalizada como uma estrutura, o que significa que ela se pro-
põe a comportar (mas não significa que o cumpra inteiramente) uma
dimensão vazia de conteúdo que lhe permite ser utilizada, apropriada e
deformada de formas muito diversas. Não se trata aqui de pensar uma
estrutura a priori, transcendental ou fora da história, como muitas vezes
se tendeu a fazer na psicanálise lacaniana. Trata-se, antes, de pensar uma
estrutura lógica em conexão com as formas históricas de determinação
de seres falantes mediante sua interação com os semblantes de gênero,
raça e sexualidade na cultura, na medida em que essa lógica permite
situar pelo menos duas maneiras de se fazer um corpo para o gozo

253
Flavia Gaze Bonfim (org.)

que podem ser assumidas e modalizadas em formas de subjetivação


não apenas hegemônicas, mas também dissidentes da norma.
Lacan (1972-1973/2008) ele mesmo nos parece abrir o caminho
para situarmos essa dimensão queer na sexuação. Ao partir de uma
matriz epistemológica cis-heterossexual para pensar a partilha dos
corpos entre os lados “homem” e “mulher” da tábua, o psicanalista
depara com um tipo de trânsito de seres falantes entre esses lados que
desconsidera as pretensas determinações da anatomia. A histérica e
a mãe seriam figuras paradigmáticas do lado “homem”, ao passo que
o místico São João da Cruz seria um paradigma do lado “mulher”,
de modo que, ao cabo desse percurso, já não sabemos mais o que são
ao certo homens e mulheres, uma vez que o trânsito entre modos de
gozo não obedece necessariamente à partição binária inculcada pelo
discurso sexual. Testemunhando um gender trouble à sua maneira, a
obra lacaniana nos permite evidenciar o modo como a epistemologia
da diferença sexual é subvertida internamente pelo trajeto singular
de cada ser falante na sexuação, que, a despeito das normas sociais,
pode assumir posições de gozo incoerentes em relação aos ideais que
nos governam. Dessa forma, em resposta à violência da segregação
urinária, cada ser falante elege a porta que melhor cerne um traço de
seu modo de gozo, ainda que de forma precária e incompleta.
Não é disso que se trata também no trabalho de Jack Halberstam?
Sua obra Female masculinity poderia ser tomada como uma apresentação
de diversas formas de encarnar modos de gozo fálico – articulados aqui
à incorporação subversiva de semblantes da masculinidade, somados a
um embrutecimento fálico do corpo, à sustentação de uma posição de
sujeito, recusando um lugar de objeto de gozo do Outro, bem como
um lugar de inexistência no laço social – por parte de sujeitos que não
são portadores de pênis, mas que podem assumir uma posição sexuada
tradicionalmente marcada como propriedade dos homens cisgêneros e
heterossexuais, a qual, no entanto, não lhes pertence (porque não pertence
a ninguém em particular). O argumento de Halberstam (2018) é que,
254
Leituras Psicanalíticas

“longe de ser uma imitação da condição do macho biológico, a mascu-


linidade em corpos com vagina na verdade nos oferece um vislumbre
de como a masculinidade é construída como masculinidade” (p. 1, tra-
dução nossa). Nesse sentido, somos convocades pelo autor a pensar uma
“masculinidade sem homens”, no sentido da circulação de masculinidade
entre corpos que não coincidem com o “macho biológico” da espécie.
Relendo, então, Halberstam com Lacan e muitos Outros, pode-
mos considerar que a masculinidade normativa tradicional seria cons-
truída por meio da assunção (socialmente autorizada) de um modo
de gozo fálico, acompanhada pelo reconhecimento de um lugar de
universalidade na cultura ocidental. No entanto, sabemos também
que o modo de gozo fálico e os semblantes da masculinidade que fre-
quentemente (embora não necessariamente) a ele se articulam podem
circular entre os mais diversos corpos falantes, sejam eles portadores de
pênis ou não, sem encontrar um suporte corporal que lhe seja próprio
ou adequado. É precisamente isso que nos ensinam alguns relatos de
Preciado em Testo junkie, em que ele nos conta de sua “carreira sexual
como um conquistador sem pau”, que teria se iniciado em sua “mais
tenra infância” (PRECIADO, 2018, p. 99). Desde o tempo de escola,
Preciado se interessa pelas “meninas mais sexies da classe”, com um
“desejo de trepar apenas com o topo da pirâmide da feminilidade, as
fêmeas alfa, as superputinhas”. Com seu circuito fantasmático, ele
recorta as “bundas” no corpo do Outro como objeto a que mobiliza seu
erotismo fálico (ou ainda, “díldico”, se pudermos formular esse termo):
Desde menina, possuo um pau fantasmagórico de ope-
rário. Reajo a quase qualquer bunda que se mova. Para
mim, dá na mesma que sejam bundas de meninas ou de
mães, de burguesas ou camponesas, de bichas, de freiras,
de lésbicas ou de piranhas. A reação do meu órgão sexual
mental é imediata. Todas as garotas, as mais bonitas, as
mais heterossexuais, [...] estão na realidade destinadas,
ainda sem saber, a se tornarem vadias penetradas pelos
meus dildos (PRECIADO, 2018, p. 99).
255
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Os relatos de Preciado, juntamente ao trabalho de Halberstam,


nos convidam a evidenciar que o gozo fálico na sexuação não é exclu-
sividade dos homens cis, podendo circular entre seres falantes que se
nomeiam das formas as mais diversas – sendo, inclusive, a categoria
do dildo uma importante ferramenta para evidenciar a discordância
entre portadores de pênis e posse do falo. Nessa perspectiva, o gozo
fálico se constitui como um modo de gozo a serviço do roteiro soli-
tário da fantasia [$ → a], mesmo quando diante de outro corpo. Tal
modo de gozo se apresenta como uma satisfação limitada, circunscrita
e localizada – seja no seu próprio falo (ou melhor, num pênis, num
clitóris ou em qualquer parte do corpo que seja investida como tal, a
exemplo dos dildos de Preciado), seja em uma parte específica do corpo
do Outro (sob as múltiplas formas do objeto a), seja em semblantes
fálicos da cultura que viriam fornecer ao sujeito a ilusão de seu poder
[Ф]. Dessa forma, a crença de ter o gozo ao alcance da mão, localizado
num instrumento de suposta potência, daria ao sujeito a ilusão de uma
totalidade possível, de um fechamento de sua consistência corporal,
ao se orientar pelo elemento fálico que assim se extrai do corpo.
Do lado do não-todo, por sua vez, encontramos frequentemente
sujeitos designados pelo discurso como mulheres ou em posição femi-
nina: trata-se, ali, daqueles que são convocados discursivamente a
ocupar uma posição de objeto [a] para a fantasia de um outro corpo,
mas que, em virtude dessa mesma posição, por não precisarem bancar
o lugar de quem tem o falo (uma vez que é o corpo do outro que fica
encarregado de sustentá-lo), podem acessar um Outro gozo [La →
S(Ⱥ)], “louco, enigmático”, que não é inteiramente circunscrito pelo
regime fálico [Ф]. Nesse ponto, está em jogo um modo de satisfação
que não se localiza em uma parte específica do corpo. Diferentemente
do gozo fálico, o não-todo conduz um ser falante à experiência de
uma abertura corporal àquilo que não se encaixa no universo fálico.
Enquanto a vertente fálica do gozo precisa se preocupar com a
norma discursiva da castração, seja para obedecê-la, seja para transgre-
256
Leituras Psicanalíticas

di-la, mantendo a satisfação pulsional inteiramente referida ao limite


fálico e àquilo que o ultrapassa, o não-todo permite um modo de gozo
que não se orienta pela relação entre a norma e a transgressão ou
entre a regra e a exceção. Uma vez que não há aí um ponto de exceção
que dê um limite ao gozo, essa abertura ao ilimitado dá margem ao
encontro com o arrebatamento amoroso, o êxtase místico, a devas-
tação, bem como às experiências produtivas de indeterminação, que
permitem acessar um modo de satisfação que não se deixa restringir
pelas determinações identitárias que regulam a subjetividade – deter-
minações ligadas seja à masculinidade, seja à feminilidade. Em vez de
se aferrar ao gozo fetichista do fantasma, isolado do amor, e em vez
de manter distante a posição de objeto a qualquer custo, a dimensão
não-toda do gozo consente com o risco e a delicadeza da experiência
amorosa, bem como é mais permeável a ocupar contingencialmente
o lugar de objeto para um Outro.
O feminino do gozo não-todo, esse “feminino de ninguém”, como
escreve Maria Gabriela Llansol (1994), vem nomear uma posição que
comumente se apresenta sob os semblantes da feminilidade (qualquer
que seja o corpo que lhes dê suporte), mas somente na medida em
que esses semblantes tendem a preservar o lugar do furo, da indeter-
minação, daquilo que abre para um mais além da norma fálica – ao
modo do êxtase de Santa Tereza na escultura de Bernini que estampa
a capa do Seminário 20. A Santa ali se permite gozar do iminente
atravessamento de seu corpo pelas flechas do amor divino, gozar da
entrada de elementos de alteridade em seu corpo assim outrificado – um
modo de gozo que desperta horror em quem está muito apegado aos
semblantes da posse fálica, aqui desvelada em seu caráter contingente.
Nessa direção, valeria resgatar o próprio São João da Cruz – um
ser falante dotado de pênis – como figura do gozo feminino. Em suas
experiências místicas, ele escreve sobre a abertura de seu corpo à pene-
tração pelo ser amado (isto é, pelo amor de Deus), contrastando com
o policiamento rígido das fronteiras corporais e com a recusa radical
257
Flavia Gaze Bonfim (org.)

à alteridade que costumam marcar a masculinidade em nossa cultura:


“Oh! chama de amor viva, / Que ternamente feres / De minha alma
no mais profundo centro!” (CRUZ, 2002, p. 827). São João desdobra
da seguinte maneira, em prosa, o que entende estar em jogo nesse
trecho de sua escrita poética:
Assim a alma, nesta chama, sente tão vivamente a Deus
e dele goza com tanto sabor e suavidade, que diz: Oh!
chama de amor viva, / Que ternamente feres. / Isto é, com
teu ardor, ternamente me tocas. Sendo uma chama de
vida divina, fere a alma com ternura de vida de Deus;
e tão intensa e entranhavelmente a fere e a enternece,
que chega a derretê-la em amor (CRUZ, 2002, p. 831,
grifos do autor).

Nesse amor, “Acontece-lhe [à alma] como à lenha quando


dela se apodera o fogo, transformando-a em si pela penetração de
suas chamas” (CRUZ, 2002, p. 826).
Diante disso, um de nossos desafios hoje talvez seja o de pensar
a sexuação além da tábua (um além que não é sem) enquanto dois
modos de se fazer (e de se desfazer) um corpo para o gozo. Nessa
perspectiva, encontramos em Miller (2016) e Dafunchio (2011) uma
reescrita da sexuação que nos permitiria situar os modos de gozo a
partir dos usos do corpo entre os quais cada ser falante irá circular:

258
Leituras Psicanalíticas

De um lado, trata-se de buscar fazer do seu corpo um todo que


se fecha, sustentando uma relação rígida ao semblante, mais afim
ao funcionamento do gozo fálico, que localiza a satisfação no falo
ou num objeto a. De outro lado, trata-se de permanecer atravessado
pelo elemento de alteridade que faz furo nas tentativas de encerrar o
corpo numa totalidade fechada, abrindo-se àquilo que se situa entre
a norma fálica e seu mais além, o que permite um uso mais maleável
dos semblantes (não-todo fálico). Tal partilha possibilitaria pensar
masculinidade e feminilidade – ou ainda, todo e não-todo – como
modos de gozo a partir dos usos do corpo em cada ser falante, para
além das determinações de gênero, raça e sexualidade. Enfatizamos aqui
as possibilidades de trânsito entre esses usos do corpo, pendentes do
modo com que cada um se relaciona aos gozos fálico e não-todo fálico.
Mas, mesmo que o embrutecimento corporal e o fechamento
fálico sejam tradicionalmente articulados aos semblantes da virili-
dade em nossa cultura – tal como a abertura à alteridade também se
conecta frequentemente com os semblantes do feminino –, ainda nos
interessa sublinhar a singularidade da sexuação mais além do binário
normativo do gênero. Trata-se de dar lugar ao uso que cada ser falante
faz do seu corpo, a partir da forma como cada um se nomeia e busca,
por esse ato de nomeação, cernir algo da opacidade da sua experiên-
cia subjetiva com o gozo. Nesse sentido, torna-se tarefa de cada ser
falante inventar sua maneira de vincular um semblante ao seu modo
de gozo, seja recorrendo à tradição, seja subvertendo suas designações
e produzindo uma nomeação própria.

REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990) (9ª
ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CRUZ, São João da. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
DAFUNCHIO, Nieves Soria. Nudos del amor. Buenos Aires: Del Bucle, 2011.
HALBERSTAM, Jack. Female masculinity (1998). Durham: Duke University Press, 2018.
259
Flavia Gaze Bonfim (org.)

FAUSTINO, Deivison. O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, mas-
culinidades e racismo. In: BLAY, Eva Alterman (Coord.). Feminismos e masculinidades:
novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica,
p. 75-104, 2014. Disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Femi-
nismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf. Acesso em: 26 fev. 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.
FREUD, Sigmund. A feminilidade (1933). In: ______. Obras completas, volume 18. São
Paulo: Cia. das Letras, 2010. p. 263-293.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LIMA, Vinícius Moreira; VORCARO, Ângela Maria Resende. O pioneirismo subversivo da
psicanálise nos debates de gênero e sexualidade. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v.
40, p. 1-13, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/yvkKk3GRHmdM8758cY-
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LIMA, Vinícius Moreira. Psicanálise e homofobia: o infamiliar na sexuação. Revista lati-
no-americana de psicopatologia fundamental, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 397-420, jun. 2021.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/T6z5ZfV8N5mYMzMNmx6wjBJ/?forma-
t=pdf&lang=pt. Acesso em: 26 fev. 2022.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig II: o ensaio de música. Lisboa: Rolim, 1994.
MILLER, Jacques-Alain. O osso de uma análise (1998). Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica
(2008). São Paulo: n-1 edições, 2018.
_________. Yo soy el monstruo que os habla: informe para una academia de psicoanalistas.
Barcelona: Anagrama, 2020.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
RODRIGUES, Carla. Nós, o falo e a escuta. Cult, São Paulo, n. 238, p. 36-39, nov. 2018.

260
A INDIVIDUALIZAÇÃO DO RITO NA ERA DO
OUTRO QUE NÃO EXISTE EM UM CARTAZ
DE SITE PORNOGRÁFICO

Hugo Bento60

No ano de 2014, a empresa PornHub, que hospeda e divulga


vídeos pornográficos na internet, propôs um desafio em forma de
concurso aos designers de todo o mundo: criar anúncios dos serviços
oferecidos pela empresa para as famílias, que pudessem ser veiculados
em diferentes horários e localidades por meio da televisão, outdoors
e revistas. O vencedor do concurso seria contratado como diretor
de criatividade do site. Após a seleção de distintas peças gráficas,
audiovisuais e performativas enviadas por concorrentes de todos os
continentes, quinze trabalhos foram escolhidos e apresentados no site
para votação do público. Dos quinze trabalhos finalistas no concurso,
destaco o cartaz produzido por Ben H., intitulado Everyone has a ritual,
como expoente da individualização dos ritos de passagem em o con-
texto atual, na época do Outro que não existe. Para isso, brevemente,
apresentarei algumas informações sobre a pornografia na internet e
o consumo de vídeos pornográficos; explicarei por qual motivo, em
meio aos psicanalistas de Orientação Lacaniana, convencionou-se
chamar de era do Outro que não existe o mundo pós-industrial; proporei
uma leitura dos ritos que, anteriormente, demarcavam a passagem da
infância para a vida adulta na contemporaneidade. Iniciemos, então,
pela pornografia e a internet.
A produção e o consumo de material pornográfico em todo o
mundo movimentam aproximadamente cem bilhões de reais anual-
mente (MARIANO, 2020). De sexo caseiro às práticas fetichistas
muito específicas, que exigem preparações cenográficas, por meio

Psicanalista. Psicólogo (CRP 04/39401). Mestre em Psicologia / Processos de Subjetivação (PUC


60

Minas). Coordenador (UNIVERITAS). CV: http://lattes.cnpq.br/7751333484823732


261
Leituras Psicanalíticas

da conexão com a internet, o consumidor pode acessar fotografias


e vídeos pornôs em segundos. Especificamente na adolescência, um
estudo qualitativo desenvolvido por estudantes e pesquisadores da
Universidade Federal do Ceará com 58 sujeitos de 10 a 19 anos de
idade indicou a idade dos primeiros contatos com material porno-
gráfico: entre os 10 e 14 anos (LIMA et al, 2019). De modo seme-
lhante, em uma pesquisa qualitativa empreendida por Baumel et al
(2019), com 10 homens e 10 mulheres, com idade entre 23 e 30 anos,
residentes do Espírito Santo e de Minas Gerais, sobre pornografia
e comportamento sexual, verificou-se que o contato com o material
pornográfico também se deu nos anos iniciais da adolescência. Além
disso, a pesquisa sinalizou que para os pesquisados “a pornografia
parece ser a primeira fonte de informação sexual, contribuindo com
o aprendizado sobre práticas sexuais e descobertas sobre si mesmo e
sobre o corpo do outro” (BAUMEL et al, 2019, p. 140)
Curiosamente, no país em que assistimos mobilizações políti-
cas contrárias à Educação Sexual no ambiente escolar e docentes de
diferentes níveis de ensino sofrem perseguições por pautarem gênero
e sexualidade em suas aulas, os dois estudos acadêmicos acima citados
apontam a pornografia como elemento de iniciação sexual. Sobre
esse caráter pedagógico ou iniciático da pornografia em nossa época,
reconheço a necessidade de maiores estudos no contexto brasileiro.
Entretanto, parece-me importante ressaltar que, com aproximada-
mente vinte e quatro milhões de crianças e adolescentes navegando
pela internet no Brasil (CETIC.BR, 2020), o contato dos menores
de idade com material pornográfico é uma realidade possível.
Neste sentido, ainda que produzido em um cenário socioeconô-
mico distinto do contexto brasileiro, o cartaz de Ben H. (2014) para
a plataforma pornô PornHub apresenta-nos a dimensão individual e
estritamente masturbatória da iniciação sexual no mundo globalizado.
Diante disso, cabe-me perguntar se a aprendizagem erótica de meni-

262
Flavia Gaze Bonfim (org.)

nos e de meninas, em outros momentos históricos, esteve conectada


a recursos coletivos e dispositivos culturais compartilháveis.
O psicanalista italiano Massimo Recalcati (2022), em o ensaio
O Complexo de Telêmaco, registrou suas considerações sobre o lugar
da autoridade familiar e paterna em os nossos dias, baseando-se na
experiência clínica com adolescentes e jovens. De acordo com Recalcati
(2022), a clínica da juventude contemporânea ensina aos psicanalistas
que os meninos e as meninas de nossos dias dão prova da irremediável
queda do pai-austero, da ficção da potência paterna e da tradição. Ao
mesmo tempo, essa clínica coloca os praticantes da psicanálise diante
de apresentações do pai marcadas pelo afeto, pela explicitação dos seus
próprios limites, ou, simplesmente, pela singularização do interesse
vivificador de um cuidador para com um jovem. Trata-se de uma
clínica psicanalítica desenvolvida na época do Outro que não existe,
da “evaporação do pai” (LACAN, 1968/1969, p. 84).
Entretanto, que época é essa? Junto de Éric Laurent, Jacques-
-Alain Miller (2013) dedicou um seminário ao tema da inexistência
do Outro nos anos de 1996 e 1997. Neste seminário, os psicanalistas
elucidam que o tempo em que vivemos não é caracterizado pela
ausência do Nome-do-Pai ou pela eliminação de qualquer discurso
normatizador – como a expressão “não existe” pode nos levar a concluir
erroneamente. Referem-se à uma época em que o caráter unívoco
do Outro é interrogado e o aspecto de semblante das instituições é
explicitado. No lugar em que outrora podia-se encontrar uma única
maneira de proceder e de atribuir significação à vida, sem tomá-la
como objeto de questionamento, constatamos a pluralidade.
Por isso, nossa época vê inscrita em seu horizonte
(melhor horizonte do que muro) a sentença de que
há apenas semblante. De fato, a era atual está presa no
movimento cada vez mais acelerado de uma desmate-
rialização vertiginosa que coroará de angústia a questão
do real. É um tempo em que o ser, ou melhor, o sentido

263
Leituras Psicanalíticas

da realidade, tornou-se um ponto de interrogação.


(MILLER, 2013, p. 11, tradução nossa)

Se em uma época Outra, as coisas do cotidiano e as relações entre


os seres humanos estavam vetorizadas por um sentido coletivamente
compartilhado e inquestionável (porque naturalizado), não é assim
em nossos dias. A diretriz normatizadora do Outro se materializa
de diferentes maneiras, em nosso contexto; e, em última instância,
esta é a prova maior de sua inexistência. A inexistência do Outro, aqui
sublinhada, pode ser percebida na convivência mais ou menos pacífica
de distintos grupos ideológicos em um mesmo território, bem como
na evocação da experiência individual como norte de conduta. Nestas
duas situações, não se verifica um único termo cultural que organize
as relações dos sujeitos uns com os outros e consigo mesmos.
Como afirmei em um trabalho anterior, sobre a questão da
família, da filiação e dos processos de adoção, a passagem do tempo
em que o Outro existia para o mundo em que a “valorização dos inte-
resses individuais” e o “declínio da obediência radical aos princípios
coletivos” são a tônica, “não ocorreu apressadamente” (BENTO, 2017,
p. 8). Movimentos intelectuais, acontecimentos históricos e alterações
econômicas substanciais resultaram no estabelecimento desta época em
que a tradição cede à experimentação, em que a relativização alcança
figuras antes tomadas como imutáveis: a Reforma e a Contrarreforma,
a invenção da imprensa e o surgimento das fábricas, por exemplo.
Servindo-se de referenciais da História, dos Estudos Sociais e
da Economia, podemos constatar que a força da coletividade fazia-se
notar, nas sociedades tradicionais, em diferentes aspectos da vida
cotidiana. O tornar-se homem ou a masculinização dos meninos, por
exemplo, nas sociedades pré-modernas, ou seja, naquelas organizações
sociais em que uma única orientação de conduta pode ser localizada,
era marcada pelos ritos de passagem. Ritos que, apesar de incidirem
marcas em um corpo, não ocorriam sem a presença dos demais. De
acordo com Badinter (1992), tais ritos de masculinização, empreen-
264
Flavia Gaze Bonfim (org.)

didos por um coletivo investido de autoridade, baseados em uma


cosmovisão compartilhada, incluíam: a) distanciamento da figura
materna; b) alocação em um mundo desconhecido; c) demonstração
pública e intensa de virilidade.
Os rituais de iniciação masculinos compõem-se, espe-
cialmente, de um conjunto de provações físicas e emo-
cionais, fixação de conhecimentos, valores, crenças etc.
Na sociedade Xavante, por exemplo, existe a casa dos
solteiros para onde se dirigem os meninos em processo
iniciático. Essa casa pode estar localizada no pátio da
aldeia, portanto, à vista e ao alcance de todos, mas na
qual está proibida a entrada das mulheres, que só vão lá
para levar alimentos. Durante a iniciação, os meninos
podem freqüentar a casa de sua mãe, mas do ponto de
vista simbólico, a permanência na casa dos solteiros
representa a separação entre o filho e a mãe e, portanto,
o preparo para o relacionamento com outra mulher,
com quem terá filhos e partilhará responsabilidades
familiares. (RANGEL, 1999)

Ao me deter um pouco mais demoradamente no cartaz de Ben


H. (2014) para a campanha publicitária do site pornográfico, interes-
so-me pela presença da ideia de ritual conjugada com a de sexualidade.
Recordo alguns trabalhos antropológicos lidos ainda quando estudante
de graduação, evoco detalhes de algumas etnografias e dou-me conta
de que se o mundo contemporâneo inaugura um modo de fazer com
o sexo e com o corpo explicitamente individual, ele não prescinde de
noções anteriormente relevantes: ele as modifica, individualizando-as.
A peça gráfica produzida por Ben H. (2014), originalmente, é
uma proposta de cartaz vertical onde se lê, centralizado e acima de
todos os ícones, a frase Everyone’s got a ritual., aqui traduzida como Todo
mundo tem um ritual. . Na sequência, vê-se fones de ouvido, seguidos
de um pote de creme, uma meia, um computador notebook e a frase
Discover yours., Descubra o seu. . Por fim, o logotipo da empresa PornHub.
265
Leituras Psicanalíticas

Figura 1: Everyone has a ritual

Fonte: H., Ben.61

A menção ao ritual, na peça gráfica aqui analisada, conec-


ta-se aos rituais de passagem e de masculinização acima citados e
amplamente estudados pela Antropologia. Apesar de mencionados,
os rituais de virilidade característicos das sociedades pré-modernas,
no cartaz, são substancialmente modificados: no lugar dos outros
homens que testemunham a passagem do menino em homem, os
objetos adquiridos na indústria farmacológica e informacional dos
nossos dias. Onde antes se encontrava o coletivo que atestava a saída
da meninice e a entrada no mundo dos homens, atualmente o corpo
que goza ritualisticamente sozinho.

61
Disponível em: <https://pornhubcampaign.tumblr.com/post/78784795654/ben-h-2#.XbCC_2Z7nIV>.
266
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Miller (2013) e Éric Laurent, em o Seminário já citado, propuseram


a escrita de um “pequeno matema”, na tentativa de comunicação do uso
do corpo característico de nossa época: “I < a”. Onde se lê que, em nosso
contexto, o Ideal é menor que o objeto, ou, ainda, que “nosso modo
de gozo se situa pelo mais de gozar” e não implica em uma passagem
necessária “pelo Outro social” (p. 372, tradução nossa). Nas sociedades
pré-modernas, marcadas pelos ritos de passagem, pelo predomínio da
coletividade, havia satisfação corporal, mas esta, necessariamente, passava
pelo Outro. Em nosso tempo, a satisfação pode ser obtida sem que o
circuito de gozo inclua a coletividade testemunhal, o Outro.
Ao estar particularizada pelo mais de gozar [a satisfa-
ção], deixa de ser organizada, solidificada, pelo Ideal.
Consequentemente, nosso modo contemporâneo de
gozar se vê de alguma maneira funcionalmente atraído
pelo estatuto autista do gozo. (MILLER, 2013, p. 372-
373, tradução nossa)

Em O Seminário, Livro 19, Jacques Lacan (1971-1972/2012)


apresentou aos seus alunos os desdobramentos radicais do princípio
de “que não existe relação sexual” (p. 29). Abordando as diferenças
lógico-estruturais entre homens e mulheres e a impossibilidade de
garantir que o ato comunicacional seja pleno, Lacan colocou em evi-
dência a desarmonia e a falta de determinação biológica no que diz
respeito ao encontro sexual. É neste Seminário, segundo Jacques-Alain
Miller (2012), que o correlato do aforisma da inexistência da relação
sexual é apresentado. Que correlato vem a ser este?
‘Há-um.’ No cerne do presente Seminário, esse afo-
rismo, que passara despercebido, completa o ‘Não existe’
da relação sexual, enunciando o que há. Entenda-se,
o Um-sozinho. Sozinho em seu gozo (essencialmente
autoerótico), assim como em sua significação (fora da
semântica). (MILLER, 2012, s/p)

267
Leituras Psicanalíticas

É, no entender de Miller (2012), este o tempo da inauguração


do último ensino de Lacan. Tempo marcado pelo real e pela impos-
sibilidade de tudo significantizar. Período do ensino lacaniano em
que o gozo é destacado e a superação ontológica/ôntica já proble-
matizada em O Seminário, Livro 11 pode ser encontrada na Henolo-
gia62 e no campo do Uniano. Ensino que apresenta uma abordagem
do corpo que ultrapassa as significações culturais e as construções
discursivas, mas destaca a experiência única e impossível de ser inte-
gralmente relatada e testemunhada.
Considero o trabalho gráfico de Ben H. (2014) como expressão
de uma época – a atual –, e, também, como uma sinalização: a psica-
nálise para este tempo não é outra senão aquela que podemos chamar
de henológica. A clínica contemporânea coloca cada praticante da
psicanálise em encontro com seres falantes, com sujeitos dotados de
corpos pulsantes, vívidos, que podem se sentir motivados (ou não) a
tentarem fazer passar pelas palavras as especificidades de seus rituais.
Para outros, talvez, uma psicanálise sirva para que ocorra a invenção
de um ritual. Por fim, parece-me que há, aqui, de diferentes maneiras,
a possibilidade alegre de utilizar o corpo de modos mais ou menos
satisfatórios, mais ou menos destrutivos, mais ou menos agradáveis,
mais ou menos aceitos socialmente, mais ou menos...
Há a possibilidade de fazer uso do corpo.

REFERÊNCIAS
BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1992.
Baumel, Cynthia Perovano Camargo et al. Atitudes de Jovens frente à Pornografia e suas
Consequências. Psico-USF [online], 2019, v. 24, n. 1, pp. 131-144. Disponível em: <https://
doi.org/10.1590/1413-82712019240111>. Acessado em: 13 mar. 2022.
BENTO, Hugo. O desejo de filho na adoção homoparental: uma perspectiva psicanalítica.
Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2017.

62
Henologia, do grego τò ἕν to hen; hen = “um”, diz respeito ao estudo d’O Um; à reflexão filosófica
sobre a unidade e a transcendência desde o pensamento pré-socrático.
268
Flavia Gaze Bonfim (org.)

CETIC.BR. Tic Kids Online Brasil 2019: Principais resultados. São Paulo: UNESCO,
2020. Disponível em: < https://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2019_cole-
tiva_imprensa.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2022.
H., Ben. Everyone has a ritual, March 2014. Disponível em: <https://pornhubcampaign.
tumblr.com/post/78784795654/ben-h-2#.XbCC_2Z7nIV>. Acesso em: 23 out. 2019.
LACAN, Jacques. Intervention sur l’exposé de M. de Certeau: “Ce que Freud fait de l’histoire.
Note à propos de ‘Une névrose démoniaque au XVIIe siècle’” (1968). Congrès de Strasbourg,
out. 1968. Lettres de L’École Freudienne, n. 7, 1969, p. 84.
______. O Seminário, Livro 19: ... ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2012.
LIMA, Lana Mara Matias. MARREIRO, Igor Shayder. MARQUES DA SILVA, Naira.
GONÇALVES, Natália Lima. RIBEIRO, Maria Carolina Queiróz. ANDRADE, Jakeline
Alencar. A relação dos adolescentes com o consumo de pornografia. Encontros Universitários
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MARIANO, Helena Maria. As problemáticas da pornografia na era do capitalismo informa-
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MILLER, Jacques-Alain. El Otro que no existe y sus comités de ética: Seminario en cola-
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RECALCATI, Massimo. O Complexo de Telêmaco: pais, mães e filhos após o ocaso do
pai. Belo Horizonte: Âyiné, 2022.

269
ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E FEMINISMO:
REFLEXÕES SOBRE A DOMINAÇÃO
MASCULINA A PARTIR DE TEXTOS
FREUDIANOS

Bárbara Breder Machado63

INTRODUÇÃO

Este capítulo tem por objetivo seguir as sendas do caráter político


da psicanálise, reafirmado por Marie-Hélène Brousse em seu livro O
inconsciente é a política (2018). E, a partir daí, realizar uma ponte com
o pensamento feminista – através das obras de Silvia Federici: Calibã
e a Bruxa (2017) e de Gerda Lerner A origem do Patriarcado: a história
da opressão das mulheres pelos homens (2019) – a fim de extrair uma
reflexão interdisciplinar sobre a dominação masculina e os processos
de subjetivação que dela decorrem. Para tanto, utilizaremos os textos
freudianos, que versam sobre o impacto da cultura na dimensão psí-
quica, a saber: “Moral civilizada e doença nervosa moderna” (1908),
“Esclarecimento sexual às crianças” (1907), “Novas Conferências
Introdutórias à Psicanálise XXXIII - Feminilidade” (1933), em costura
com o livro da Maria Rita Kehl: Deslocamentos do feminino: a mulher
freudiana na passagem para a modernidade (2016).
Assim, os campos temáticos que buscaremos costurar e pensar
suas tensões e imbricações são: a psicanálise e a ciência política. E,
em última instância, objetivamos provocar a psicanálise, a partir do
campo do feminismo, para extrair dela, seu caráter político.
É importante destacar que nosso interesse é investigar, não
somente como a cultura patriarcal deflete nos processos de identificação,
dado a oferta simbólica do campo da cultura, como também analisar,
Doutora em Ciência Política (UFF). Professora adjunta e coordenadora (UFF).
63

CV: http://lattes.cnpq.br/6132106075115936
270
Leituras Psicanalíticas

de que forma a condição subjetiva atravessada por estes norteadores


é, por si, condição de re(produção) da subalternidade feminina. Pois,
assim, sustenta as relações de poder postas em nossa sociedade.
Este esforço está norteado na afirmação lacaniana de que o ana-
lista deve ter, inevitavelmente, a subjetividade de sua época como hori-
zonte. Assim, pretendemos pensar através da psicanálise e para fora de
seu eixo, implicada politicamente em temas cruciais para a democracia,
como neste caso, sobre as relações de gênero e a dominação masculina.
[...] alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua
época” citação de “Função e Campo da fala e da lin-
guagem em psicanálise”, texto de 1953, no qual Lacan
enuncia claramente, pela primeira vez, a tese que irá
orientá-lo e sua leitura de Freud e revolucionar a psi-
canálise. É o momento em que o Lacan apresenta
o axioma “o inconsciente é estruturado como uma
linguagem. (BROUSSE, 2018, p. 26)

Desta forma, interessa-nos destacar, já de saída, que a empreitada


lacaniana do chamado retorno a Freud, parte justamente da concepção
do caráter político da psicanálise64. E, como aponta Brousse (2018): a
oposição entre individual x coletivo não se sustenta dado que o desejo
que o sujeito visa decifrar é sempre o desejo do Outro e passa pelos
desfiladeiros significantes da linguagem.
Podemos dizer que para Lacan existe, do ponto de vista
do analista, um imperativo de deciframento do movi-
mento simbólico.(...) Decifrar, portanto, um Outro, que
é Outro simbólico, enquanto efeito da língua. (BROU-
SSE, 2018, p. 29)

Logo, trata-se de pensar a tomada de lugar no campo feminino


ou masculino não como resultado do jogo biológico, mas sim como
um processo que inclui aspectos civilizatórios e, portanto, culturais, na
construção do que hoje entendemos como gênero. E isso não estaria
Na medida em que o que coloca em questão é a relação do sujeito com a verdade. Como aponta Foucault
64

em seu curso “Hermenêutica do Sujeito”, em 1982. Publicado no Brasil em 2010.


271
Flavia Gaze Bonfim (org.)

em dissonância com o avanço da concepção dos matemas lacanianos


e a questão da lógica frente à diferença sexual.
Vale destacar a assertiva de Diana Rabinovich acerca de
certo “ponto de vacilação” de Lacan sobre essas duas modalidades
de leitura do campo simbólico:
Lacan sempre deixou um ponto de vacilação a respeito.
Há épocas que enfatiza mais um do que o outro. Por
exemplo, na primeira época enfatiza mais o simbólico no
sentido cultural que o simbólico no sentido matemático
. (...) mas não há de se considerar que um anula o
outro. Se usualmente tomar o simbólico matemático
se esquecendo da outra dimensão do simbólico e que a
ordem simbólica é uma articulação original de ambos
os aspectos. (RABINOVICH – teórico n° 6, 1995)65

Então nos cabe, aqui neste trabalho pensar, qual a oferta sim-
bólica centrada na cultura patriarcal que habilita a condição de ser
mulher, tendo em vista, o lugar estrutural de sujeição e subalterni-
dade, a partir do qual se habita o mundo (bell hooks, 2020). Interes-
sa-nos também refletir se a psicanálise pode oferecer recursos para
enfrentar o patriarcado. Ou se trata, pelo contrário, de um dispositivo
que reifica a submissão e a dominação masculina? A psicanálise nos
oferece escopo para desnaturalizar a condição de gênero ou nos apri-
siona ainda mais em suas amarras? Nossa aposta é a primeira opção.
Isto é: que este campo de conhecimento pode oferecer ferramentas
importantes para a luta feminista.

65
Grifo e tradução nossos – documento da cátedra I: Psicoanálisis: Escuela Francesa. Teórico n 6
22/06/1995: “lo imaginario, lo simbólico, lo real” – Profesora Diana Rabinovich. “Entonces. Lacan en
cierto momento, enfoca lo simbólico no solo en el sentido de la lingüística, de la historia cultural, de la
determinación social, de todo lo que Hegel puede agregar a esto, de todas las determinaciones filosóficas
complejas de lo simbólico, dando un vuelco, y lo simbólico pasa a significar las pequeñas letras de sus
matemas, es decir, de sus fórmulas. (…) Lacan siempre dejó un punto de vacilación al respecto. Hay
épocas en que enfatiza más uno que otro. Por ejemplo, en la primera época enfatiza más el simbólico en
el sentido cultural que el simbólico en el sentido matemático. (…) Pero, no hay que considerar que uno
anula el otro. Se suele tomar lo simbólico matemático olvidando la otra dimensión de lo simbólico de
una articulación original en ambos los aspectos”.
272
Leituras Psicanalíticas

DESENVOLVIMENTO

Gerda Lerner, em seu célebre livro A criação do Patriarcado:


História da opressão das mulheres pelos homens (2019)66 afirma que:
As teorias de Freud reforçaram ainda mais as teorias
tradicionalistas. (...) Apesar de muitos aspectos da
teoria freudiana se provarem úteis na construção da
teoria feminista, foi a máxima de Freud de que para
as mulheres a anatomia é o destino que deu nova vida
e força ao argumento da supremacia masculina. As
aplicações da teoria freudiana à criação dos filhos e à
literatura popular de autoajuda, não raro vulgarizadas,
deram novo prestígio ao velho argumento de que o papel
da mulher é ter e criar filhos. (LERNER, 2019, p. 45)

Nesta passagem, a autora traz a tensão existente entre o femi-


nismo e a psicanálise na origem do texto freudiano, apontando
que, se por um lado alguns aspectos da teoria foram úteis à cons-
trução da teoria feminista, por outro, contribuíram para a reifica-
ção do lugar da maternidade como natural, fortalecendo um dos
argumentos da dominação masculina.
A afirmação de Lerner traz em si o âmbito paradoxal do encontro
do feminismo com a teoria psicanalítica: se, por um lado, encontramos
traços da dominação masculina, por outro, conceitos como a bissexua-
lidade humana, a moral civilizada, a compreensão do Complexo de
Édipo como processo e a inter-relação do aparelho psíquico com as
exigências sociais, contribuem para a desconstrução da ideia de natureza
humana. E, assim, da “naturalização” do lugar da mulher como inferior.
De acordo com o pensamento de Simone Beauvoir (1949)67, a
força do opressor está relacionada à cumplicidade entre os próprios
oprimidos. De modo paradoxal, as mulheres participam do processo
de sua subordinação, na medida em que internalizam a ideia de sua

66
Este livro somente foi traduzido para o português 33 anos depois de sua publicação.
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Este livro somente foi traduzido para o português 33 anos depois de sua publicação.
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Flavia Gaze Bonfim (org.)

inferioridade. Assim, nos cabe colocar a pergunta se em Freud pode-


mos encontrar a explicação da forma que se dá esta interiorização da
moral sexual burguesa através do dispositivo do Complexo de Édipo.
Portanto, retornar aos estudos sobre a criação dos estados burgueses,
centrados no dispositivo da família nuclear, no casamento monogâmico
e na necessária submissão da mulher ao homem, faz-se necessário.
Desta forma, se revisitarmos a história da fundação do Capi-
talismo, veremos, através da análise de Silvia Federici (2017), que
sua empreitada só se efetiva pela sua sustentação no patriarcado.
E, assim, nos permite incidir, a pergunta de que modo o mal-estar
produzido por este sistema decanta nas falas das pacientes, desde o
consultório freudiano até os atuais.
Freud é quem abre o caminho e tenta, talvez de maneira
precária mas ao mesmo tempo precisa, dar conta desta
determinação histórica na subjetividade. É ele quem
vai tratar de mostrar de que maneira a história está
presente e articulando e organizando sobre esse aparato
psíquico, onde a sociedade se interiorizou até o ponto
em que o sujeito apareça congruentemente integrado
dentro da re-produção do sistema que o produziu. Que
funcione para ele e de acordo com ele. (ROZITCH-
NER, 1982, p. 15)

Ao percorrermos a história da psicanálise, nos deparamos com


a primeira formulação freudiana acerca da produção sintomática.
Inicialmente, ele parte da hipótese de que as suas pacientes haviam
sido submetidas a uma cena de abuso infantil. Uma sedução perpe-
trada por um adulto em seus primeiros anos de vida. Hipótese que
foi abandonada, e sua proscrição é responsável por uma das grandes
descobertas freudianas: a realidade psíquica e as fantasias histéricas,
que serviriam de base para as produções sintomáticas.
Nossa intenção de retomar a primeira e abandonada teoria da
sedução, é decantar sobre ela algumas reflexões, a partir do arcabouço
teórico sobre violência de gênero e relacionamentos abusivos, ampla-
274
Leituras Psicanalíticas

mente estudados e difundidos na atualidade. É comum hoje mapearmos,


a partir do que a teoria feminista produz de arcabouço teórico, as ações
coercitivas aplicadas às meninas, via educação restritiva e cerceadora,
que podem ser compreendidas como parte da violência simbólica cons-
tantemente silenciada pelo vetor de naturalização dos papéis de gênero.
E, para responder às acusações dos que sustentavam que
as confissões das histéricas não mereceriam créditos ou
eram induzidas por seus médicos, Freud constituía-se
em vigoroso defensor dos pacientes aflitos. Promo-
vendo ao mesmo tempo um desmantelamento feroz
da ordem familiar do fim do século. Em geral, ele dizia,
as meninas são vítimas de abuso cometidos por seus
irmãos mais velhos, os quais foram iniciados por uma
babá ou empregada. Porém pior ainda, Freud afirmava a
existência, no seio de todas as famílias, de um “atentado
precoce”, sempre cometido por um adulto sobre uma
criança quase sempre na faixa entre dois e cinco anos
de idade. (ROUDINESCO, 2016, p. 89)

Talvez a primeira possibilidade de olhar para a violência simbó-


lica, que ocorre de maneira reificada, sub-reptícia e crônica às quais as
mulheres estão submetidas cotidianamente, tenha sido mapeá-la via
abuso sexual. Pois, não podemos perder de vista que o efeito civiliza-
tório centrado na moral burguesa opera, via educação para as meninas,
promove a destituição de seu valor e assim, a violenta e correlata oferta
do lugar simbólico de desvalor, no qual a partir deste período passa a
ser exigido a cada menina atender.
Resgatando essa argumentação e aplicando o que temos acu-
mulado em teoria feminista sobre as múltiplas formas de violência,
podemos atualizá-la e entender que, embora não fosse uma violência
sexual, no sentido da sedução ou as vias de fato, poderia estar articu-
lada a uma violência simbólica, ao configurar como lugar da mulher
como destituída de valor. E, dado que a educação e sociabilidade
são executadas por atores familiares, estes abusos são cometidos por
275
Flavia Gaze Bonfim (org.)

membros da família e entorno, coagindo as meninas a ocupar um


lugar social reduzido em potência e relegado a segundo plano. Ou
como aponta Virgínia Woolf (2012):
O opressivo e sufocante era o que podemos chamar de
educação negativa, que decreta não o que se pode fazer,
e sim o que não se pode fazer. Provavelmente apenas
mulheres submetidas a ela podem entender o peso do
desestímulo ao ouvirmos constantemente que, como
mulheres nunca esperam grande coisa de nós...mulheres
que viveram na atmosfera criada por tal doutrinação
sabem como isso sufoca e desanima, como é preciso
coragem para superá-la. (WOOLF, 2012, p. 54)

Tal fato não passou despercebido pela visada freudiana, que


no texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908)
aponta a dupla exigência burguesa sobre os gêneros, e como esta
divergência é produtora de sofrimento.
Logo, podemos refletir a partir daí, se o caráter traumático da
neurose na origem dos sintomas histéricos não seria uma primeira
aproximação ao fato de que a diferença sexual está fundada e sustentada
por uma desigualdade social estruturante. Ou ainda, que a diferença
lógica, apontada posteriormente por Lacan, não destitui a análise
da divisão sexual social baseada na desigualdade entre os gêneros,
sustentado pela dominação masculina, como defende Lerner (2019).
Seguindo esta pista, podemos afirmar que a psicanálise lança
luz ao que podemos nomear na atualidade como efeitos nefastos da
dominação masculina, no cerne da sociedade burguesa e do capitalismo.
Em 1895, a histeria das mulheres examinadas por tantos
cientistas conservava seu mistério. E foi aos romancistas
suas heroínas – de Fleubert a Tolstói, de Emma Bovary
a Anna Karenina – que coube o mérito de lhes dar um
rosto humano: o de uma revolta impotente que levava ao
suicídio ou a loucura. Em vão afirmava-se a existência
da histeria tanto em Paris como em Viena: a “doença”
276
Leituras Psicanalíticas

parecia golpear sobretudo as mulheres. O paradigma


da “mulher histérica” progressivamente abandonado ao
longo do século XX, permaneceu ligado a um estado
da sociedade no qual para exprimir sua aspiração à
liberdade, as mulheres não tinham outro recurso senão a
exibição de um corpo atormentado. (ROUDINESCO,
2016, p. 81)

Desta forma, o gênio freudiano, avançando pela reorientação


do percurso clínico em relação a Charcot, fundou uma clínica susten-
tada pela transferência, abrindo lugar para a construção da narrativa
das pacientes sobre sua história, abandonando a clínica do olhar, e a
correlata exibição dos sintomas, apostando na escuta e a elevação do
sintoma à categoria de enigma. Roudinesco aponta ainda que:
Ao abandonar sua neurótica e definir as condições ori-
ginais de uma terapêutica da confissão, Freud explorava
de uma maneira inédita de pensar a sexualidade humana
(...)ele estendeu a noção de sexualidade a uma dispo-
sição psíquica universal, tornando- a própria essência
da atividade humana. (ROUDINESCO, 2016, p. 96)

A autora segue afirmando que a teoria freudiana foi tomando


forma inspirada no romantismo negro, abraçando os trágicos gregos,
tendo o homem como ator inconsciente de sua própria destruição.
Afastando-se, assim, da psicologia médica, propondo uma concepção
de sujeito sustentada em um determinismo inconsciente amparado na
máxima: “eu é um outro” colocando a psicanálise numa rota de trans-
gressão como uma: “disciplina bizarra, uma combinação frágil unindo a
alma e corpo, afeto e razão, política e animalidade: sou um zoon politikon,
dizia Freud, citando Aristóteles” (ROUDINESCO, 2014, p. 100).
Transgressão que visamos aqui reativar e animar com este tra-
balho em nossa combinação “frágil” e “bizarra”68 entre feminismo e
psicanálise. Avançando sobre o texto “Moral civilizada e doença nervosa
moderna” (1908), munidos da leitura de Silvia Federici (2017), para
68
Para usar os termos de Roudinesco.
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Flavia Gaze Bonfim (org.)

operar a reflexão feminista ao texto vienense, que de dedicou a loca-


lizar importantes argumentos para sustentar a diferença da exigência
cultural entre homens e mulheres.
Neste texto, Freud parte da análise do livro Ética sexual, publi-
cado em 1907 por Von Ehrenfels, e dedica-se a inserir contribuições
sobre a diferença da moral sexual “natural” e a “civilizada”. Em seu
âmago, o texto freudiano sustenta o argumento que o sofrimento
psíquico possui relação com exigência de renúncia de satisfação sexual
exigida pela moral civilizada. E que esta se coloca de maneira dis-
tinta para os homens e mulheres. Ponto que aqui nos interessa, pois,
embora Freud não problematize, se incidirmos a marcação de gênero,
as consequências que essa dupla moral se impõe sobre estes dife-
rentes corpos ganha outro relevo.
Ainda que esta teoria etiológica tenha sofrido importantes
mudanças ao longo da sua obra, nos interessa salientar que, segundo
Freud, esta disparidade de exigência é instilada pela educação oferecida
às crianças e está comprometida com os ideais da moral civilizada.
É importante ressaltar que essa moral é a burguesa, orientada pelo
advento da modernidade e do capitalismo. Ou seja, dispositivo de
execução de controle de corpos e uso das sexualidades segundo os
objetivos vitorianos. Desta forma, profundamente comprometidos
com a divisão sexual do trabalho. (FEDERICI, 2017).
As páginas que seguem neste célebre texto freudiano nos ofe-
recem um rico exemplo da efetivação daquilo que Foucault aponta
como controle dos corpos, em História da sexualidade: A vontade de saber
(1988). Assim como, a crítica pontual de Silvia Federici em indicar
necessidade de incluir na análise foucaultiana, a especificidade do que
o modelo capitalista operou sobre a existência e corpos das mulheres.
Segundo Federici, a acumulação primitiva que permitiu o desen-
volvimento do capitalismo tem como um dos tripés a expropriação das
mulheres de seus corpos na divisão sexual do trabalho, que se sustenta
com a necessária degradação da figura da mulher.
278
Leituras Psicanalíticas

A acumulação primitiva não foi então, simplesmente


uma acumulação e uma concentração de trabalhadores
exploráveis e de capital. Foi também, uma acumulação de
diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que
as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como
raça e a idade, se tornaram constitutivas da dominação
de classe e da formação do proletariado moderno;
(FEDERICI, 2017, p. 119, grifo da autora).

Retornando ao texto freudiano, é possível encontrar as conse-


quências psíquicas do efeito da educação das meninas baseadas na
coerção e na proibição, que dialogam com a ideia de degradação da
figura da mulher e seu rebaixamento. Nele, podemos ler que a interdição
das mulheres as impede de se ocupar intelectualmente de problemas
sexuais e, assim, as afastam de toda a possibilidade de pensar, levando
à perda de valor do conhecimento em geral.
A educação das mulheres a impedem que se ocupem
intelectualmente dos problemas sexuais, embora o
assunto lhes desperte uma extrema curiosidade, e as
intimida condenando tal curiosidade como pouco
feminina e com indício de disposição pecaminosa.
Assim, a educação as afasta de qualquer forma de pensar
e o conhecimento perde para elas, o valor. Essa inter-
dição do pensamento estende-se para além do sexual,
em parte através de associações inevitáveis, em parte
automaticamente, como interdição do pensamento
religioso ou a proibição de ideias sobre a lealdade entre
cidadãos fiéis” e conclui: “acredito que a inegável infe-
rioridade intelectual de muitas mulheres pode antes
ser atribuída à inibição do pensamento necessária a
supressão sexual” (FREUD, 1908, p. 204, grifo nosso)

Esta tese freudiana também está posta em outro texto: “Escla-


recimento sexual às crianças” (1907), no qual apresenta uma crítica
à interdição de saber sobre a sexualidade que, segundo ele, traz con-
sequências drásticas para a comum curiosidade infantil e promove
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Flavia Gaze Bonfim (org.)

danos a seu desenvolvimento intelectual posterior. Ora, podemos então


questionar que a suposta “inferioridade intelectual de muitas mulheres
pode ser atribuída à inibição do pensamento necessária a supressão sexual”
tem sido parte de um projeto que está a serviço da divisão sexual do
trabalho, e tem efetuado de maneira sistemática a degradação da figura
da mulher na sociedade, sustentado sua exploração.
Assim, podemos aqui estabelecer que a severidade de cercea-
mento, via educação, sustentada pela moral civilizada, no que tange o
conhecimento da menina sobre seu corpo, sobre sua sexualidade, bem
como sua expressão, promove exigências mais rigorosas às mesmas,
impedindo-as de exercer sua curiosidade e avançar no campo do
conhecimento acerca de si e do mundo. O que tem resultado em uma
discrepância no cenário do exercício intelectual. De fato, hoje bem
diferente da época da escrita destes textos, porém que se mantém atual,
apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho. Esta que se rea-
lizou reificando e acirrando as desigualdades e contradições existentes.
Neste texto, nos interessa ressaltar que o curso de desenvol-
vimento da pulsão sexual (passando para o autoerotismo ao amor
objetal; da autonomia das zonas erógenas à subordinação destas à
primazia dos genitais, postos à serviço da reprodução) atende à lógica
da coerção social. Dado que reorganiza a forma de obtenção de prazer,
balizado por aquilo que a moral burguesa exige, a saber: reprodução.
Promovendo uma grave cisão na existência das mulheres ao reduzi-las
ao reduto doméstico, ao trabalho reprodutivo e não pago.
Isso se destaca ao longo do texto, quando Freud divide em três
os estágios da civilização. 1- quando a pulsão manifesta-se livre; 2-
quando a pulsão está reprimida, exceto quando serve ao objetivo da
reprodução; e 3- só a reprodução legítima é admitida como meta.
E estabelece como desvio a esta, a homossexualidade e a fixação
infantil a um objeto preliminar.
Nosso primeiro grifo tem como intuito destacar que, aquilo
que se estabelece como “sexualidade dita normal, isto é útil a sociedade”
280
Leituras Psicanalíticas

é definida por parâmetros morais burgueses. Isso não passou desper-


cebido à análise freudiana: “essa moral dupla em nossa sociedade é válida
para homens, é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita
que seus preceitos possam ser obedecidos” (FREUD, 1908, p. 200). O que
também nos fez destacar o caráter preliminar do objeto de desvio da
sexualidade normal, dado que aquilo que a moral burguesa exige é
o uso da sexualidade para a procriação, estabelecendo a base para a
construção da narrativa da existência da mulher reduzida à materni-
dade e ao trabalho reprodutivo. Vale, então, ressaltar que o controle dos
corpos femininos e sua domesticação também reverbera naquilo que se
prescreve como uso possível da sexualidade. Isto equivale à construção
da imagem da mulher e o discurso sobre o feminino sustentado pela
realização da maternidade, como plena e destino esperado.
É preciso destacar, que muitas das falas das pacientes no divã,
estão diretamente relacionadas com aquilo que ele denomina como
moral civilizada moderna, que atende aos ideais burgueses norteadores
do nascimento do sistema capitalista. Sistema este que, segundo Silvia
Federici, surge escorando-se e promovendo o feminicídio em escala
genocida conhecido como “caça às bruxas”. Nota-se, assim, que a
condução da mulher para o reduto doméstico, extinguindo-se seu
direito de habitar a esfera pública, o espaço político, provém de uma
estratégia econômica sócio histórica, que está diretamente relacionada
à expropriação promovida pelo capitalismo.
Sistema que se vale da construção do discurso sobre a femi-
nilidade, a partir da perspectiva masculina, estabelecendo, além da
assimetria de gênero, a produção da degradação da figura da mulher
como objeto pertencente ao homem, caso ela se enquadre na produ-
ção discursiva sobre o feminino; ou como o lugar de abjeto, passível
a violência e extermínio na fogueira, caso ela não se enquadre neste
discurso. A construção da figura da bruxa foi, portanto, empreendimento
de Estado, viabilizado pela lógica religiosa. Fato que está na base de
emergência do capitalismo e que reverbera e o sustenta até os dias atuais.
281
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Portanto, faz-se necessário ter isso em mente ao questionarmos o


campo simbólico organizado e oferecido às meninas, antes mesmo de
seu nascimento. Dado que este aporte cultural específico – misógino e
restritivo – a partir do qual cada mulher toma lugar no jogo simbólico,
apropriando-se imaginariamente e construindo seu lugar no mundo,
coloca-a em posição de desvalor.
Segundo Maria Rita Kehl (2016), podemos pensar a feminili-
dade como um discurso construído para além da diferença anatômica,
que estabelecem o pertencimento a um de dois grupos identitários
binariamente definidos, carregados de significações imaginárias e
centrado na lógica masculina sobre o que é uma mulher.
Até aqui, denominei feminilidade é uma construção
discursiva produzida a partir da posição masculina, à
qual se espera que as mulheres correspondam, na posição
que a psicanálise lacaniana designa como sendo a do
Outro do discurso. (KEHL, 2016, p. 56)

E, sendo assim, ao aceitar a posição do Outro do discurso, Kehl


destaca que as mulheres renunciam a falar por si próprias, de se apro-
priar de uma das formas universais do falo: o falo da fala; e deixam
de participar das grandes tarefas da cultura, permanecendo social-
mente invisíveis e silenciadas.
Nota-se então, que o silenciamento das mulheres é algo que está
na fundação da experiência societária em que vivemos. Assim, a psica-
nálise pode nos ajudar a compreender de que forma essa experiência
social é internalizada e desejada (ainda que na esfera inconsciente)
pelas próprias mulheres, ao mesmo tempo em que pode nos ajudar na
construção de narrativas outras – especialmente na clínica – que façam
enfrentamento à essa noção de feminilidade imposta pela ótica burguesa.
Cabe-nos, portanto, afirmar que aspectos estabelecidos na ordem
social refletem na organização psíquica. Ou seja, a lógica patriarcal
interfere na construção de um eu-ideal em desvantagem ao oferecer,
no caso da menina, material para forjar o ideal-de-eu comprometido
282
Leituras Psicanalíticas

com a lógica misógina, inculcados em nossa sociedade. Afinal: “É o


gênero que vem sendo o principal responsável por determinar o lugar
das mulheres na sociedade” (LERNER, 2019, p. 48).

CONSIDERAÇÕES

Dado o percurso argumentativo realizado até aqui, podemos


concluir que a psicanálise nos oferece recursos para compreender a
internalização da desigualdade de gênero. E abre possibilidade para
investigar os mecanismos íntimos de submissão, que promovem a
condição subjetiva comprometida com esta relação de poder. Logo,
aquilo que Freud formula como complexo de Édipo é o dispositivo
vital para introjeção da desigualdade de gênero, necessária para a
divisão sexual do trabalho e a expropriação da mulher de seu corpo e
sua liberdade, necessárias à manutenção do sistema capitalista.
Pois, como bem aponta Gerda Lerner (2019), há uma contra-
dição entre a centralidade e o papel ativo das mulheres na criação da
sociedade e sua marginalização, fazendo com que elas mesmas lutem
contra a própria condição. Através da reflexão que a autora lança: “Há
milênios, as mulheres participam do processo da própria subordina-
ção por serem psicologicamente moldadas de modo a internalizar a
ideia da própria inferioridade”. (LERDA, 2019, p. 268) Abre-se uma
fenda, a partir da qual podemos atualizar a psicanálise a seu tempo, e
contribuir para o avanço da compreensão dos mecanismos psíquicos
envolvidos na produção desta cumplicidade. Uma condição subjetiva
submissa sustentada em uma certa aceitação de sua posição de desvalor,
cabendo-lhe apenas “ser” o falo para alguém, esconder com véus a sua
falta constitutiva através dos semblantes. E, supostamente “realizar-se”
na maternidade, construindo para si a possibilidade de possuir o “falo”,
através de um filho, a fim de restituir a si algum valor social/existencial.
Não devemos esquecer que a falta é constitutiva da condição
humana, desta forma, também está posta para os homens. Aqui é
interessante ressaltar que a masculinidade também é uma produção,
283
Flavia Gaze Bonfim (org.)

não é dada de saída (BONFIM, 2021). Entretanto, para os meninos


há uma espécie de oferta de “carta” ou “cartada” futura que ele poderá
lançar mão, após o período de latência. Possuir o “falo” viabiliza para
ele a abertura ao lugar da esfera pública, do trabalho pago, da política,
no sentido aristotélico, de tomar a palavra na polis, lugar privilegiado
e à custa da subalternização das mulheres. Ressaltamos a precisão da
análise de Virgínia Woolf (2012): o reservatório que conduz os homens
ao destaque nas atividades da civilização é o mesmo que empurra
as mulheres ao silenciamento e as aprisionam no reduto doméstico,
retirando-as da cena pública e das realizações civilizatórias.
É importante ressaltar, que, se até a esta altura do texto, nos
dedicamos a uma análise macroestrutural, é na singularidade que
cada mulher - que não pode ser contata senão, uma a uma - vai tomar
lugar frente a este discurso sobre a feminilidade, de modo particular e
intransferível. E, que a riqueza da clínica é justamente poder resignificar
e se reposicionar (também) em relação a esses vetores de opressão.
[...] ao desnaturalizar o que foi construído ela cultura,
espero que tenhamos maior mobilidade na clínica das
neuroses de nossas analisandas mulheres a fim de pos-
sibilitar que a partir de uma análise, possam constituir
como lhes convier a relação com a feminilidade. (KEHL,
2016, p. 39)

Cabe a nós (psicanalistas e feministas) essa tarefa, de incidir a crí-


tica feminista sobre a psicanálise e assim, dela extrair seu caráter político.

REFERÊNCIAS
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ideal viril, o feminismo e o feminino – tese defendida no PPGP/UFF, Niterói/RJ, 2021.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Vol. 2: A experiência vivida. Rio de Janeiro/RJ:
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BROUSSE, Marie-Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de
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284
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FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”. São


Paulo/SP, Editora Elefante, 2017.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo/SP: Ed.
Graal, 2005.
FREUD, Sigmund. Esclarecimento sexual às crianças (1907). In: Obras Psicológicas Com-
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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.
_______ Moral civilizada e doença nervosa moderna (1908). In: Obras Psicológicas Com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro:
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KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. A mulher freudiana na passagem para
a modernidade. São Paulo: Ed. Boitempo, 2016.
LERNER, Gerda. A criação do Patriarcado. História da opressão das mulheres pelos
homens. São Paulo: Ed. Cultrix, 2019.
RABINOVICH, Diana. Teórico n° 6 – fecha 22/6/95 – Psicoanálisis: Escuela Francesa,
Cátedra I – Universidad de Buenos Aires – Argentina.
ROUDINESCO, Elisabeth. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. São Paulo:
Ed. Zahar, 2016.
ROZITCHNER, León. Freud e o problema do poder. São Paulo: Ed. Escuta 1982.
WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Rio de Janeiro:
Ed. L e MP pocket, 2012.

Nota: este trabalho é fruto do Pós-doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Universidade Federal Fluminense PPGP/UFF Projeto: Psicanálise profana a
clínica entre a causa analítica e a causa feminista, 2020-2021. Sob orientação da professora
Doutora Giselle Kosovski Falbo.

285
MAUS HÁBITOS: SINTOMAS ALIMENTARES
NO CORPO EM CENA

Carolina Carvalho Dutra69


Bianca Bulcão Lucena70

O instigante filme mexicano Maus Hábitos (2008), dirigido por


Simon Bross, revela uma trama que diz do corpo em sua relação com
comida, sexualidade e desejo. Um som de chuva constante percorre
todo o filme e, aos poucos, o diretor apresenta as personagens guias:
uma noviça chamada Matilde (Ximena Ayala), uma mãe chamada
Elena (Elenia de Haro) e sua filha Linda (Elisa Vicedo).
Matilde é apresentada como num prólogo. Uma cena inaugural
nos mostra a infância da jovem. À mesa, sua família e um convidado, o
novo namorado da tia. O casal está envolto numa atmosfera de prazer,
até que o rapaz se engasga. Matilde reza. A menina atribui ao desengasgo
à sua oração, fazendo aí uma colagem mística e obsessiva, um ritual
em que supostamente controla uma ação, da qual em nada participa.
Na sequência, o diretor nos apresenta a imagem religiosa de Jesus
Cristo na cruz, evidenciando o sacrifício pelo corpo. Um oferecimento
da carne em prol da salvação de algum mal. Assim vai amarrando a
relação do divino com a penitência, do pão com o corpo de Cristo, da
hóstia insípida com o alimento para a alma.
Passado o tempo, Matilde se forma médica. Esse é o mesmo
dia em que ela ingressa no convento. Quando fica sabendo da notícia
de uma tia hospitalizada com uma grave enfermidade resolve abdicar
do prazer de comer. A jovem passa a ir atrás da comida estragada
de uma lata de lixo, coloca grande quantidade de sal em sua pró-

69
Psicanalista. Mestra em Psicologia e Estudos da Subjetividade (UFF).
CV: http://lattes.cnpq.br/3510369887584090
70
Psicanalista. Mestra em Alimentação e Nutrição (UERJ).
CV: http://lattes.cnpq.br/3182922979961172
286
Leituras Psicanalíticas

pria comida, bebe vinagre. A tia se recupera. A moça atribui sua


recuperação à sua autopenitência.
Um novo acontecimento convoca a noviça ao seu jejum místico:
uma forte tempestade causa uma enchente que destruiu parte de uma
cidade vizinha. A personagem resolve parar de comer até que a chuva
cesse, levando sua restrição alimentar às últimas consequências, até ser
hospitalizada por alterações patológicas decorrentes da desnutrição.
Elena é extremamente preocupada com o próprio corpo e o
ganho de peso. Acompanhando seu sintoma anoréxico, segue ao longo
de todo o filme buscando compulsivamente soluções para compensar
qualquer ingestão de calorias. Malha, restringe sua alimentação com
rigor, se pesa com inegável prazer ao ver exibido seus poucos quilos.
Confere sistematicamente sua silhueta no espelho e notadamente
sofre de uma distorção de sua imagem corporal. Seu descontentamento
e impossibilidades se estendem para a filha, Linda. Quanto mais se
apresentam os fracassos na tentativa de fazer a filha perder peso, mais
ela fica severa em sua própria privação de alimentos.
A obsessão de Elena em fazer com que a filha emagreça nos
leva a acompanhar uma corrida insana para que a menina se ajuste
ao padrão estético deturpado da mãe. As tentativas com a menina são
muitas; ela é levada a médicos, submetida a tratamentos em clínicas
especializadas onde tem suas refeições controladas, entre outros.
Linda é uma menina com sobrepeso censurada não só pela mãe,
ainda que essa seja seu algoz, mas também pelo olhar social, onde os
julgamentos encontram respaldo no discurso médico.

DO TRANSTORNO AO SINTOMA

O filme apresenta a relação de diferentes mulheres com seu


próprio corpo. A constante chuva, que cai no decorrer de todo o
filme, pode ser considerada uma metáfora para este comportamento
sem-limite que as personagens estabelecem com seus corpos.
287
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Esse transbordamento aparece como marca do que não cessa, e


que insiste por meio de sintomas ligados à alimentação. No tocante
à discussão sobre os sintomas alimentares, nos deparamos com essa
dimensão implicada no corpo e suas determinações inconscientes.
É possível acompanhar através dos hábitos da personagem Elena,
que corre horas na esteira, bem como nas cenas de vômito provocado,
medidas compensatórias com o objetivo de anular as calorias ingeridas.
Em uma festa de aniversário insistem para que ela prove um pedaço
do bolo delicioso. Inicialmente, ela resiste, depois acaba cedendo.
Come, mas imediatamente vai para o banheiro.
No mesmo momento sua filha Linda, sem o olhar constante da
mãe, devora um pedaço do mesmo bolo. Elena arruma meticulosamente
a pasta, a escova de dentes e a toalha, numa tentativa de eliminar ras-
tros, enquanto Linda esconde a comida em seu coelhinho de pelúcia
para comer escondida da mãe. O meio pelo qual a pequena Linda
consegue barrar a mãe, diferenciando-se desta, é justamente através
do comer. É o modo com o qual consegue posicionar-se enquanto
sujeito frente a esta mãe, devastadora.
Lalo, amigo de Linda, também é levado por sua mãe a um centro
de tratamento para obesidade. As crianças tornam-se parceiras na luta
pelo direito de comer. O menino ensina para ela o segredo de como
emagrecer sem perder o prazer de comer o que gosta: mastigar, mas-
tigar e cuspir. Assim como Matilde, que segue seu sacrifício alimentar.
No momento das refeições, a jovem coloca o alimento na boca para
que as irmãs do convento não percebam seu plano de jejum, mas em
seguida cospe, escondendo a comida dejeto.
Apesar dos transtornos alimentares levarem imediatamente
às deficiências nutricionais e comprometimentos biológicos, é atra-
vés do lugar conferido pela psicanálise que poderemos ponderar
sobre o não assimilável que esses sintomas revelam. O corpo para
a psicanálise vai além da noção de corpo enquanto organismo e seu

288
Leituras Psicanalíticas

funcionamento orgânico, diz também da ideia própria de corpo


enquanto afetado pela linguagem.
A pulsão foi um dos conceitos fundamentais que permitiram a
fundação do campo psicanalítico, diferenciando-se do campo médico,
e que marca de forma indelével a especificidade das formações sin-
tomáticas relacionadas ao corpo. Esse é um corpo pulsional, que se
revela para nós por meio de uma imagem corporal.
Os mais diversos registros dos fenômenos de repetição levaram
Freud (1920) a propor a existência de uma pulsão de morte, sendo essa
uma afirmação do que há de mais radical no desejo inconsciente. A
dimensão compulsiva que se apresenta como estranha e não simbo-
lizável seria uma característica fundamental da pulsão de morte, ou
seja, uma saída possível para o excesso pulsional que se faz presente
por meio de uma compulsão a repetir.
Deste modo, Freud ampliava o conceito de satisfação subs-
titutiva passando a comportar os paradoxos da pulsão como sendo
algo de estranho e irreconhecível. O que começava a acenar nas for-
mações sintomáticas e que não se sujeitavam à cura, mas se presta-
vam a permanentes deslocamentos.
Para Lacan, a linguagem é o que circunscreve o real do corpo, real
este que está para além do nosso acesso direto. Nos casos de sintomas
alimentares, o corpo captura a atenção. Fica evidente nos sintomas
de anorexia e bulimia que, na busca pelo emagrecimento, o controle
sobre o corpo ocupa um lugar privilegiado.
Neste sentido, há uma inversão em relação ao domínio do Outro,
trata-se, nos termos de Recalcati (2008), de um curto-circuito na
demanda que, ao não interagir com o Outro, acaba sendo uma maneira
de anular o Outro. Por isso mesmo, Lacan (1956-1957/1995) entende o
sintoma anoréxico como um “comer nada”, e não como um não-comer.
Sobre o sintoma da compulsão alimentar, segundo Birman,
essa seria uma modalidade de agir caracterizada pela repetição, já
que o alvo da ação não é jamais alcançado: “Daí a sua repetição
289
Flavia Gaze Bonfim (org.)

incansável, sem variações e modulações, que assume o caráter de


imperativo” (BIRMAN, 2012, p. 84).
Recalcati (2002) afirma que a dinâmica em jogo na compulsão
alimentar estaria, em última análise, referida à instauração da refe-
rência à alteridade, o que forneceria ao sujeito recursos simbólicos
para lidar com a frustração resultante da impossibilidade de preen-
chimento e satisfação da demanda.
Nesse sentido, Recalcati nos aponta que o corpo obeso e a pró-
pria fome parecem manifestar o real acéfalo da pulsão, no ponto em
que não há a captura pela linguagem, evidenciando a estreita relação
entre o corpo somático e o corpo pulsional da psicanálise.
Os sintomas contemporâneos evidenciam os sintomas alimen-
tares, onde há a presença recorrente de episódios de compulsão por
comer, assim como casos de anorexia e bulimia, em que a compulsão
é seguida de métodos compensatórios, que fazem com que não haja
uma alteração significativa de peso.
Tais sintomas sugerem que já não se trata de saber se é possível
ampliar a margem do que pode ser simbolizado, o que seria coerente
com a estratégia freudiana, mas de ampliar a própria noção de sin-
toma, que já não seria um representante simbólico do sujeito, mas uma
forma de gozo pulsional, sem mediação discursiva (BARROS, 2002).
Na conferência “Os caminhos da formação dos sintomas” (1917),
Freud faz claramente uma distinção entre os sintomas e a doença,
sustentando que a eliminação dos sintomas não é a cura da doença,
pois permanece a capacidade de gerar novos sintomas.
Em qualquer sintoma há algo de compulsivo, uma vez que
surge como algo que escapa ao sujeito, que excede. A clínica dos
sintomas alimentares nos coloca frente a um vazio que demanda
articular as mudanças na pós-modernidade a esses impasses clíni-
cos, necessitando muitas vezes do psicanalista o manejo na elabo-
ração da construção da demanda.

290
Leituras Psicanalíticas

Os corpos também estão inseridos segundo o contexto social,


cultural, religioso, entre outros. É possível observar reiteradamente
durante todo o filme a cobrança social. Outro discurso que aparece é
o médico, um discurso assimilado socialmente que sugere normas de
saúde e alimentação que valha para todos.
É notório que, atualmente, há a predominância de intervenções
terapêuticas voltadas para a mudança comportamental, sem que haja
uma escuta mais atenta que possa acolher a complexidade dos sujeitos,
seus comportamentos e seus hábitos.

CIÊNCIA E CULTURA CONTEMPORÂNEAS

No filme, as mães levam suas crianças a um centro de tratamento


que é anunciado na mídia como oferecendo a solução permanente
para obesidade. A campanha publicitária da milagrosa “Betty Lang”
tem pegada caricata e oferece um emagrecimento efetivo, rápido e
sem esforço. Lê-se na tela: “Chega de batalha!”
A promessa é de que, aderindo ao programa, seria possível
facilmente emagrecer, assim como pessoas do mundo todo que con-
seguiram. Elena pede que a meta de emagrecimento semanal de sua
filha seja dobrada e ouve após um segundo de hesitação: “Ok. Vamos
tentar agradar a mamãe. Se você conseguir, vai ganhar um prêmio. O
sorvete com calda vermelha da Betty!”
Após o fracasso em suas infindáveis tentativas de fazer a filha
perder peso, Elena resolve em seu desespero apelar para a busca de uma
intervenção cirúrgica. A patologização da obesidade é construída dis-
farçada de discurso sobre saúde e cuidados médicos a partir da hipótese
de que um corpo não obeso é livre de doenças, excluindo a problema-
tização da moralidade sobre este corpo (SEIXAS; BIRMAN, 2012).
A sociedade atual reflete as incidências do discurso da ciência.
Este discurso foi sendo incorporado aos modos de vida, gerando uma
demanda de quantificação. A linguagem matemática traz paz, afirma
291
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Miller (2007-2008), propondo uma reflexão acerca do discurso da


ciência contemporânea. Supõe-se que esta ciência seja imaculável,
que uma vez comprovada não há mais nada a fazer a não ser aceitá-la.
Embora seja inquestionável a importância dos avanços científicos
para a nossa era, a dinâmica do inconsciente não se presta a essas leis,
escapando. Cabe ao psicanalista sustentar esse ponto frente a uma
suposta possibilidade de empresariamento dos seres, propagada pela
lógica neoliberal que deixa marcas na subjetividade de seu tempo.
Essa intenção da homogeneidade do discurso tende a quantificar
a qualidade, tendo implícita a ideia de um suposto medir de subje-
tividade, encontrando variáveis em sentimentos, pensamentos, entre
outros. Disto resulta uma popularização de conceitos e uma série de
distorções, bem como a criação de crenças e práticas a partir dessas.
O ser humano contemporâneo é levado a se imaginar como
uma máquina e, deste modo, a buscar um suposto conserto para seus
maus hábitos. Como se fórmulas assertivas propostas por esses ditames
e por discursos incisivos pudessem dar conta de controlar o sujeito,
seu inconsciente e seu desejo.
As ciências humanas e sociais tratam a alimentação como um
fenômeno de difícil abordagem justamente pela importância social
da comensalidade. Portanto, é preciso trilhar o caminho traçado pelo
desejo para desvincular da demanda de cura – o que pode ser ende-
reçado ao analista, e que constitui um aspecto importante na deter-
minação das práticas alimentares.
A psicanálise pressupõe um sujeito singular, que está agar-
rado ao significante sendo, deste modo, um sujeito não homo-
geneizável, não categorizável. O diagnóstico, por exemplo, como
pertencente ao método psicanalítico, é apenas um indicador como
possível direção de tratamento.
O corpo que não se deixa domar é também deduzido da lógica
capitalista, da biopolítica e do controle religioso – enquanto meio
para ascender à pureza e transcender a própria humanidade. O drama
292
Leituras Psicanalíticas

contemporâneo se manifesta em toda uma série de táticas e estra-


tégias de estilização corporal.
Tais práticas obsessivas buscam concretizar um sonho que
ainda continua parecendo impossível: o de dominar essa carnali-
dade inefável e incômoda, submetida à dinâmica abjeta das secreções
e da decomposição orgânica. A luta desigual contra a teimosia da
carne, visa atingir uma virtualização imagética tão descarnada como
desencarnante (SIBILIA, 2004).

OUTROS HÁBITOS

Gustavo (Marco Antonio Treviño), pai de Linda, aparece na


história não para barrar as intervenções de Helena em relação à filha,
mas sim como o marido insatisfeito que encontra em outra mulher
sua satisfação sexual. Gordinha (Milagros Vidal), como era chamada,
ao contrário de sua esposa, é uma jovem com formas curvilíneas.
Em uma das cenas de sexo do casal a comida contorna a relação,
ganhando ares de prazer e erotismo. Revelada esta outra face, essas
delícias espalhadas pelo corpo são devoradas, o que confere sensuali-
dade e uma nova nuance no comer junto.
O alimento, comumente, é tratado como utilitário e funcional,
representado como um combustível que alimenta a máquina-corpo.
Sua função seria a de melhorar o funcionamento da engrenagem e
turbinar a performance humana. A psicanálise tem nos mostrado que
a existência de tal unidade funcional chamada de corpo é uma ilusão
com a qual também nos identificamos.
Por sua implicação em uma estrutura de discurso responsável pelo
laço social, o corpo para este ser de fala e de sexo perde sua condição
natural, ficando submetido a uma estrutura discursiva. O corpo que
sofre a ação de uma trama simbólica é um corpo submetido ao desejo.
Nos desafios da clínica atual estão os sintomas alimentares, o
que evidencia uma posição do sujeito contemporâneo diante da pouca
293
Flavia Gaze Bonfim (org.)

unidade dos significantes-mestres, um gozo pulsional sem mediação


discursiva. No que diz respeito à constituição da imagem corporal,
algo desse excesso pulsional do corpo retorna para o sujeito como uma
estranheza, imagem vista como imperfeição.
Ainda que não se esgote a compreensão das questões relaciona-
das ao corpo, os sintomas alimentares denunciam um suposto ideal de
corpo que ocupa lugar central na nossa cultura e conduz a elaborações
importantes nesse cenário saturado de imagens.
Por trás do imperativo de um determinado modelo tido como
belo, há um grande mercado que sugere ao mesmo tempo que o sujeito
deve atingir essa transcendência impossível para um corpo sem suas
corporeidades, lidando com esse como a gestão de um corpo máquina
e se mantendo saudável dentro de uma “adaptação compulsiva à
norma” (SIBILIA, 2004, p. 73).
A continuidade da vida pode ser colocada em risco para os que
seguem obstinadamente essa imagem de corpo vendido como ideal,
sinônimo de uma aparição espetacularizada. Essa lógica da estetização
da saúde porta em si um aspecto cruel e perverso do modo de viver.
A psicanálise, no entanto, está interessada em algo que se apre-
senta de maneira muito singular na história de cada um, no que tange
ao corpo e na relação com o Outro. Assim, as consequências da pers-
pectiva do inconsciente permitem situar a relação do sujeito a uma
outra cena, de sua experiência singular com o desejo.

REFERÊNCIAS
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BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
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Completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1987. p. 13-85
FREUD, S. Conferência XXIII Os caminhos da formação dos sintomas (1917). In: S.
Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
294
Leituras Psicanalíticas

LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
MILLER, J.A. Curso de Orientação Lacaniana, lição VI e VII. 2007-08.
RECALCATI, M. Clinica del vacío: Anorexias, dependencias y psicosis. Madrid: Editorial
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RECALCATI, M. O “demasiado cheio” do corpo: por uma clínica psicanalítica da obesidade.
In: Revista Latusa, n. 7, 2002.
SEIXAS, C.M.; BIRMAN, J. O peso do patológico: biopolítica e vida nua. História, Ciências,
Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 13-26, 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/
S0104-59702012000100002. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
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SIBILIA, P. O pavor da carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo-imagem contem-
porâneo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 25, p. 68-84, 2004.

295
NOTAS SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA
DA OBESIDADE: O CORPO GORDO, O GOZO
E O FEMININO

Daiana Macharet Soares71


Maycon Rodrigo da Silveira Torres72
Júlia Reis da Silva Mendonça73

INTRODUÇÃO

O tema obesidade é discutido mundialmente devido ao aumento


de pessoas obesas, sendo definida como o acúmulo excessivo de gordura
no corpo: “uma pessoa obesa é definida, convencionalmente, como
aquela que pesa 20% a mais do que o peso padrão específico com
relação ao sexo, altura e estrutura corporal.” (FLAHERTY & JANI-
CAK, 1995). Ainda que haja diversos campos de estudo em relação a
obesidade, a psicanálise se interessa por investigar os fatores emocionais,
subjetivos, inconscientes, relacionados à obesidade, dentre eles a com-
pulsão alimentar, em que os sujeitos sentem a necessidade de comer
excessivamente mesmo quando não está com fome, sem vontade, sem
prazer: “nos casos dos pacientes ditos obesos a compulsão comporta
uma satisfação que ultrapassa o princípio de prazer” (SEIXAS, 2019).
O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o tema
a clínica da obesidade para a psicanálise a partir de um caso clínico
de uma mulher, que evidencia a relação do corpo gordo com a pre-
sença excessiva de sua mãe, com o gozo e com o feminino. Sobre a
sexualidade feminina, Freud (1931/1996) ressalta que a psicanálise
não tem como objetivo dizer o que é a mulher, e sim questionar
71
Psicóloga. Psicanalista. Pós-graduanda em Fundamentos da Clínica Psicanalítica (FAMATH).
CV: http://lattes.cnpq.br/3186486945875512
72
Doutor em Psicologia (UFF). Psicólogo. Psicanalista. Professor e Coordenador (FAMATH).
CV: http://lattes.cnpq.br/7552210600986070
73
Doutora em Psicologia (UFMG). Psicóloga. Psicanalista. Professora (UNESA e FAMATH).
CV: http://lattes.cnpq.br/3734634648624758
296
Leituras Psicanalíticas

como a mulher se desenvolve e como este se relaciona com a separa-


ção do sujeito do Outro materno.
Diante do fenômeno que marca a clínica da obesidade, o comer
compulsivo, a psicanálise formula conceitos importantes para o manejo
clínico com esses sujeitos tais como a compulsão à repetição, o prazer
e o desprazer, a posição do sujeito diante da demanda do Outro, o
sintoma e o corpo. Contudo, na clínica com mulheres obesas há um
ponto a mais a investigar, como a relação desses sujeitos com o Outro
materno se relaciona a compulsão por comer?

DESENVOLVIMENTO

A pergunta “o que quer uma mulher?” orienta os estudos de


Freud sobre o feminino e o direciona para o desenvolvimento das
particularidades do complexo de Édipo da menina. O complexo de
Édipo se coloca para ambos os sexos, mas o que os diferencia é a
dialética da castração, ou seja, como cada um se posiciona em relação
ao falo - falo enquanto um significante -, um representante do órgão,
mais-além do pênis. Freud (1923/1996), no texto “A organização
genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, introduz
um acréscimo à teoria do complexo de Édipo ao pontuar que a orga-
nização da sexualidade infantil ocorre em torno da fase fálica e não
do primado dos genitais: “para ambos os sexos, entra em consideração
apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente,
portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia
do falo” (FREUD, 1923/1996, p. 158).
Desse modo, a menina, ao se deparar com a falta do falo, visto
que os meninos o possuem e ela não, será tomada pela “inveja do pênis”
e assim irá em direção ao pai, abandonando, assim, seu primeiro objeto
de amor. A teoria freudiana dirá que a menina terá que fazer um duplo
esforço de transformação para tal, pois o desapontamento gerado pela
falta fálica não só gera o afastamento da mãe, como também cessa a
masturbação clitoriana dirigindo-se para a vagina. No entanto, essa
297
Flavia Gaze Bonfim (org.)

ruptura do laço afetivo com a mãe não é uma tarefa fácil, e sim atra-
vessada pela hostilidade. Marcada, assim, pela falta-a-ter, as mulheres
buscam diferentes saídas (CAMPISTA & CALDAS, 2013).
Contudo, faz-se importante destacar que as formulações sobre a
sexualidade feminina apresentam acréscimos e avanços na teoria psi-
canalítica, principalmente com as contribuições lacanianas (LACAN,
1972-73/1982) apresentadas em O seminário, livro 20: mais ainda.
Lacan apresenta nesse seminário as fórmulas da sexuação, em que
apresenta o lado do homem e da mulher para além dos aspectos anatô-
micos. Trata-se de posições subjetivas que os sujeitos podem ocupar em
face da sexualidade. A divisão do sujeito ante o sexual não é uma divisão
entre os dois sexos, mas entre dois modos gozos: enquanto do lado
do homem o gozo aparece limitado pelo significante fálico, um todo
fálico, do lado da mulher encontra-se um gozo que vai além do falo, um
gozo Outro, suplementar, o gozo não-todo (LACAN, 1972-73/1982).
Quando retomamos algumas referências na história da obesidade,
observa-se a existência de estátuas de mulheres obesas encontradas na
Babilônia e Egito. Então, na antiguidade havia uma admiração pelo
corpo feminino obeso, que estava ligado a um ideal de abundância
e fertilidade, tal como descrito por Varela (2006). Com o passar do
tempo esse ideal de um corpo obeso simbolizando abundancia será
visto pela medicina como um distúrbio emocional causado pelo estresse.
Segundo a autora, o aumento do número de pessoas obesas atingiu
vários países durante o século XXI e se tornou uma questão de saúde
pública. Soma-se a este problema, nos dias atuais, a pressão da cultura
à adequação do corpo a um ideal de beleza do corpo magro, de forma
que a obesidade passou a ser vista de forma negativa, gerando um
mal-estar diante das cobranças exigidas pela sociedade.
A obesidade na clínica psicanalítica não está somente ligada
ao excesso de peso adquirido pelo alto consumo de calorias através
de alimentos, especialmente os industrializados, mas considera-se
também a relação do sujeito com esse objeto privilegiado de satisfa-
298
Leituras Psicanalíticas

ção e de prazer (a comida). Relação esta que aponta para um comer


compulsivo, que os sujeitos definem como um descontrole. Em fun-
ção dessa característica de compulsão e impulsividade em relação ao
objeto-comida, podemos depreender uma fixação no objeto e uma
repetição em seu consumo que não se satisfaz, afinal, conforme afir-
mado por Freud e retomado posteriormente por Lacan ao desenvolver
o conceito de objeto da pulsão: não há nenhum objeto que satisfaça
completamente a pulsão, “nenhum objeto da necessidade pode satis-
fazer a pulsão. A boca que se abre no registro da pulsão não se satisfaz
com alimento” (LACAN, 1964/1985, p. 150).
O comer compulsivo e repetitivo evidencia, assim, uma posição
passiva do sujeito obeso, que se expressa em diversos aspectos de sua
vida expressa através de uma dificuldade de dizer não para o Outro;
e, em mulheres obesas, uma difícil relação com o Outro materno,
para qual o sujeito ocupa a posição de objeto de gozo. Desse modo,
considerando os estudos de Freud acerca da sexualidade feminina, o
presente capítulo tem como objetivo pensar uma direção de tratamento
em relação ao fragmento de caso clínico apresentado neste capítulo,
cujo “tornar-se mulher” parece depender dessa separação em relação à
mãe. Da mesma forma, pretende discutir como o difícil manejo clínico
passa pela construção de uma demanda de análise que possa articular
o mal-estar do corpo-gordo no contemporâneo, que não se adequa
aos ideais de beleza, com um sintoma analítico (RECALCATI, 2003).

RECORTE DE UM CASO CLÍNICO: “BUSCO NA


COMIDA UMA COMPENSAÇÃO”

Jéssica, nome fictício, é uma jovem de vinte e sete anos, que apre-
senta como queixa principal o ciúme que sente do seu namorado. Em
uma situação específica ela sente muita raiva e ciúmes quando o namo-
rado conversa com uma amiga sua que é “gorda”, e ela diz “não me con-
formo em ser trocada por uma pessoa pior do que eu”, “mais gorda do que eu”.

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Flavia Gaze Bonfim (org.)

A paciente mora com sua mãe e um irmão mais novo. A dife-


rença de idade entre ela e o irmão é superior a dez anos e a paciente
relata que sua relação com o irmão é permeada de conflitos, na medida
em que ela, por vezes, ocupa o lugar de educadora dele. Foi ela quem
ajudou sua mãe na criação do irmão, quando ela se separou de seu pai.
Jéssica levava seu irmão para a escola, para passeios etc.
Em alguns momentos da sessão, Jéssica reclama da mãe cobrar
dela os cuidados pelo irmão, a tal ponto que ela muitas vezes se sentia
mais responsável por ele do que a mãe. Contudo, apesar de se queixar
do excesso de cobrança, ela também assume o lugar de parceria com
ela, no que se refere aos cuidados com ele.
Muitas vezes, em discussão com a mãe, escutava “você é igual ao
seu pai”, o que a incomodava a ponto de chorar desesperadamente. Ao
ser questionada pela analista em que ela seria igual ao pai, a paciente
responde “no físico”, “no corpo”. Parece que sua mãe fala essa frase
toda vez que ela a contraria. A paciente dizia que não gostava de se
olhar no espelho por enxergar tamanha semelhança física com o pai,
que também era obeso. A paciente identifica que a semelhança física
com o pai se localiza principalmente na barriga. Além disso, lembra
de inúmeras brigas entre seus pais, em que muitas vezes ela própria
intervinha para defender a mãe.
Essa posição também se repete em outras relações, principal-
mente no trabalho, em que comenta que sua chefe vive pedindo para
que ela realize suas tarefas e quando não faz, fica insatisfeita. Ela diz
que percebe essa “insatisfação” do outro pela sua expressão facial, defi-
nida por ela como “cara de cu”, “um bico que se faz com a boca”, mesma
frase usada em relação à expressão facial que sua mãe faz quando é
contrariada pela filha. Essa expressão parece revelar à paciente que
ela não está agradando o outro.
Com o avançar da análise, a paciente reconhece que se preocupa
demasiado em agradar o outro, que tem dificuldades de dizer não e
que quando percebe que o outro está insatisfeito, ou seja, quando não
300
Leituras Psicanalíticas

consegue responder a demanda do outro, ela busca “na comida uma com-
pensação”, ainda que não saiba dizer o quê estaria buscando compensar.
A partir daí a paciente começa a falar da dificuldade de olhar-se
no espelho e das críticas que recebe do outro, principalmente da mãe
e de ex-namorados, em relação ao seu excesso de peso, alegando ter
vergonha de seu corpo. Como solução, começou a usar camisas mais
largas para esconder o seu corpo. Nesse sentido, Recalcati (2003)
afirma que a clínica da obesidade aponta para uma clínica do olhar e
nos surpreende por seu caráter obsceno, pois “o corpo obeso produz
vergonha e marginalização (...) a evidência horrorosa da obesidade
se configura mais como uma autêntica devastação da imagem, como
um triunfo do obsceno em relação ao ideal” (p. 274).
A paciente relata que desde a infância é “gorda” e que a mãe a
submetia a dietas rigorosas e a idas constantes a nutricionistas e aca-
demias. Ela se recorda que chorava por estar com fome, e que quando
conseguia ficar sozinha, comia compulsivamente, o que revela a marca
da compulsão à repetição e um empuxo a um gozo mortífero. Esse
corpo-gordo indica uma queda do domínio do eu e uma posição de
objeto de gozo do Outro materno, em que o sujeito ao se manter “sob
o imperativo massivo da demanda do Outro” (GUIMARÃES, 2007,
p. 5) se afasta do campo do desejo.
Diferente da anorexia onde o corpo-magro é um significante da
beleza feminina e que guarda uma relação estrutural com a castração,
mas pela via da recusa, do não, a obesidade, de modo contrário, está
orientada pela “lógica fálica do masculino” (RECALCATI, 2003, p.
289), pela incorporação/retenção dos objetos, de modo que “o cheio
do corpo-gordo é simplesmente o índice unilateral de uma negação
brutal da subjetividade” (p. 276).
Desse modo, Recalcati (2003) assinala que a obesidade está mais
próxima do masculino do que do feminino, pois se trata da apropriação
ou do gozo do objeto ao invés de buscar a falta do Outro.

301
Flavia Gaze Bonfim (org.)

OS PROCESSOS DE ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO NA


CLÍNICA DA OBESIDADE

No texto “Sexualidade Feminina”, de Freud (1931/1996), a


temática do feminino já era acompanhada de certo enigma. Sua des-
crição como “um continente negro” revela que há uma diferença no
complexo de castração para o menino e a menina. O menino, assim
como a menina, tem como primeiro objeto de amor a mãe. Contudo,
com o advento da castração, a menina substitui a mãe pelo pai como
seu novo objeto de amor e toma sua mãe como rival, sendo tomada
por um sentimento de raiva pela mãe.
Lacan (1957-58/1999), ao retomar Freud para analisar o com-
plexo de Édipo, apresenta o pai como uma função: a função paterna.
Esse pai, nomeado como pai simbólico, é aquele que, através de uma
operação simbólica, proíbe o incesto e interdita o desejo da mãe e,
dessa forma, possibilita a dissolução do complexo. Assim, ao ser bar-
rado pelo pai, que instaura tanto a Lei como o desejo para o sujeito,
o menino acaba se identificando com o pai, o que marca a dissolução
do complexo de Édipo, em que põe fim ao desejo erótico pela mãe.
Para Freud (1931/1996), a compreensão da sexualidade feminina
passa pelo complexo de Édipo, mas tem suas vicissitudes. O complexo
de Édipo exigirá da menina um duplo esforço para o seu processo de
tornar-se mulher, em que terá de abandonar a erotização clitoriana
para a erotização vaginal. Essa travessia também deverá ser feita pela
mudança de objeto amoroso, na medida em que a menina substitui seu
primeiro objeto de desejo, a mãe, pelo pai. Essa transição se coloca como
um movimento importante para seu desenvolvimento como mulher.
Zalcberg (2003) apresenta que para Freud a menina é um menino
antes de se transformar em mulher. A primeira formulação da sexua-
lidade da menina é inicialmente viril, expressa pela zona erógena do
clitóris, por meio da qual obtém satisfação erótica. Essa atividade sexual
está relacionada diretamente aos impulsos sexuais dirigidos à mãe. Con-
302
Leituras Psicanalíticas

tudo, ao abandonar a mãe como seu primeiro objeto de amor e dirigir


ao pai seus investimentos pulsionais, a menina terá que abrir mão de
sua sexualidade ativa, passando da satisfação do clitóris para a vagina.
Nessa relação com o pai, a menina renuncia a sexualidade ativa
(masculinidade) e também a satisfação em corresponder a mãe ati-
vamente. Ao retomar o caso clínico da paciente Jéssica, a analista
percebe, através de seu discurso, um retorno dessa sexualidade ativa
ao corresponder o Outro materno quando a mesma diz que: “não me
sinto valorizada, faço tudo que ela me pede, mas nunca está satisfeita...”.
Isso mostra o quanto a paciente está ainda voltada para as deman-
das da mãe. Parece que no momento edípico em que a paciente faz
um percurso em direção ao pai, há também um retorno em direção
a mãe, a qual permanece fixada.
Freud (1931/1996) assinala que na fase do complexo de Édipo
normal, a criança está ligada amorosamente ao genitor do sexo oposto
e mantém uma relação de hostilidade com o genitor do mesmo sexo.
No caso da paciente Jéssica, esta relata que sente “raiva” tanto do pai
como da mãe; do pai, pois o culpa por fazer a sua mãe sofrer quando
a traía com outras mulheres, e da mãe, que permanecia casada com
um homem que “não a valorizava”. A raiva em relação à mãe retorna
em diversos momentos, quando ela sente que não recebe o olhar de
valorização da mãe apesar de todo o esforço que ela faz para agradá-la.
Freud (1905/1996) faz algumas ponderações acerca da inveja
do pênis no texto “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, em
que alega que a menina ao ver que seu genital é diferente do menino,
reconhece imediatamente que ela não tem (o falo), porém mantém
um intenso desejo de tê-lo. Se no menino o complexo de castração é
regido pela angústia, na menina é a inveja do pênis, como podemos
observar no caso da paciente, que diz não entender o que sua mãe
enxerga nos homens que não a valorizam.
Em “A Dissolução do Complexo de Édipo”, Freud (1924/1996)
conclui que o término da fase edípica no menino se dará pela cas-
303
Flavia Gaze Bonfim (org.)

tração quando este for movido pelo medo de que o seu pai o castre
por desejar a mãe, pondo fim, assim, ao referido complexo. Porém, na
menina, este é o início do complexo, vivenciando assim um destino
diferente do menino diante da trama edipiana. A menina então, ao se
ver castrada, consola-se com a esperança de que mais tarde terá a posse
fálica de volta. Contudo, observamos que a saída edípica da paciente
revela um retorno à mãe, agarrando-se à posição de masculinidade,
e que, ao se fixar nessa posição, a menina pode se identificar à mãe
fálica ou ao pai (ANDRÉ, 1987).
A paciente Jéssica parece ter uma identificação ao pai, ao se ver
algumas vezes na posição de marido da mãe, em que traz para si o
peso da responsabilidade de ter que pagar as contas da casa e cuidar
do irmão. A mãe cobra dela que ensine os deveres de casa ao irmão.
Essa identificação é reforçada pelo discurso da mãe que sempre a com-
para com o pai, o que a incomoda. Contudo, ao mesmo tempo que se
identifica ao pai e assume uma posição fálica, ela sente raiva por ficar
neste lugar. Os sentimentos de raiva e frustração são “compensados”
por ela pelo comer em excesso.
Podemos associar esse comer sem limites com o conceito de afâ-
nise, de fading, de desaparecimento do sujeito, apresentado por Lacan
(1964/1985) em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise ao discorrer sobre a alienação e a separação. Essa referência
nos permite entender o excesso de peso como um sintoma que revela
uma escassez de recursos simbólicos para lidar com a castração, com a
falta (ZUCCHI, 2002). Assim, em função da tentativa de escapar da
castração, os sujeitos obesos se mantêm alienados ao Outro e através
do fading escapam da responsabilidade no ato compulsivo de comer.
A constituição subjetiva se inicia, em um primeiro momento,
a partir do processo de alienação, ou seja, da identificação do sujeito
com um ideal. Essa identificação precipita a possibilidade de um reco-
nhecimento primitivo de si como indivíduo e unidade psíquica. Lacan
(1964/1985) utiliza a teoria dos conjuntos a fim de elucidar a lógica
304
Leituras Psicanalíticas

presente na operação de alienação. A alienação se funda na reunião, em


que, não importa o que se escolha, há por consequência um nem um
nem outro. Parte-se, então, de dois conjuntos: o do ser (sujeito) e o do
Outro (sentido). O sujeito deve escolher entre o ser ou o sentido. Se
escolher o sentido, que remete ao Outro da linguagem, ele se constitui
como tal, como dividido, sujeito do inconsciente. Mas, se escolher ser,
ou seja, não se alienar ao campo do Outro, não se constitui como sujeito.
Barros & Ligeiro (2020), no artigo “O que é ser uma mulher?
Entre o enigma e o desamparo”, diz que o Outro é o lugar de signifi-
cantes, conjuntos de termos que não aparecem sozinhos, mas remetem
a outros termos. Assim, ao nascer o bebê já está inserido na lingua-
gem, marcado pela fantasia dos pais, da cultura ou da época. É então
no campo do Outro que o sujeito se constitui e em que o pequeno
outro se configura como semelhante a partir das relações imaginárias
e especulares. Segundo a autora, o desejo do sujeito está relacionado
diretamente ao desejo do Outro, o que gera o sentimento de angústia,
na medida em que não se sabe o que esse Outro quer dele, não sabe
que objeto ele quer para saciar o desejo.
A experiência de alienação caracteriza, então, uma “dependência
significante ao lugar do Outro” (LACAN, 1964/1985, p. 196); esta
petrificação do sujeito é correlata a seu desaparecimento, ou, a sua
afânise. Essa dependência pode ser observada no caso de Jéssica, que
fica fixada na demanda materna, na tentativa de completar a falta
desse Outro que lhe causa tanta angústia. Cunha (2017) aponta que
mulheres obesas tem uma relação a céu aberto com o Outro materno
e a presença paterna é uma figura apagada. São mulheres que se dei-
xam devorar por suas mães, por suas demandas e também a dos seus
familiares. Sustentam na relação com o Outro uma posição de que
sempre tem para dar, não conseguindo dizer não. Assim, encarnam a
fantasia de um Outro que tudo provê.
De modo contrário, a operação de separação se funda na inter-
seção, ou produto, em que a circularidade da relação entre o sujeito e o
305
Flavia Gaze Bonfim (org.)

Outro tem fim. O que possibilita a separação é o furo nessa relação de


interseção, que surge a partir do encontro com o desejo do Outro, com a
falta do Outro, que revela ao sujeito um Outro barrado, e que permite ao
sujeito sair do lugar de objeto e assumir a condição de sujeito desejante.
Assim, enquanto a anorexia é marcada por uma recusa, pelo
não, por uma tentativa de separação do Outro, a obesidade traz uma
impossibilidade de recusa, de dizer não ao Outro (materno), colocando
assim o sujeito no campo da alienação, em que fica preso a demanda do
Outro: “na obesidade o que se destaca principalmente é a devoração, a
incorporação infinita, a impossibilidade de recusar o objeto-alimento,
o ter que dizer sempre ‘Sim!’” (RECALCATI, 2003, p. 281).
No caso de Jéssica, ela se identifica a essa nomeação dada pelo
outro “sou gorda”, que traz uma marca identificatória com o pai, afas-
tando-se, assim, do campo do feminino, da falta e do desejo. Como uma
das saídas do Édipo apontadas por Freud (1924/1996) é que podemos
pensar que Jéssica se agarra a uma masculinidade. Então, ao assumir uma
posição fálica ela mascara sua feminilidade, o que a impede de migrar
para a feminilidade, dificultando assim seu processo de tornar-se mulher.
Essa separação/corte é tão difícil de ser feita em relação ao Outro
materno, que toda vez que Jéssica ameaça sair de casa, a mãe coloca
inúmeros obstáculos que acabam pondo em dúvida o seu desejo. A
paciente apresenta angústia diante da hipótese de separação, ao mesmo
tempo que diz querer sair de casa. Parece não conseguir sustentar seu
lugar de sujeito desejante, fazendo-a retornar à posição de objeto de
gozo. A aposta do trabalho analítico é tentar sustentar o desejo da
paciente e possibilitar um apaziguamento da angústia que aparece
toda vez que quer se separar da mãe, a fim de que se aproxime do
campo do feminino, do desejo e de uma construção singular de um
savoir-faire (saber-fazer) com o real.
Zalcberg (2003) fala que essas fixações podem impedir o desen-
volvimento da feminilidade, criando conflitos internos que impeçam a
mulher de seguir no seu processo de tornar-se mulher. Esta pode manter
306
Leituras Psicanalíticas

uma falsa segurança com sua masculinidade, o que a arrastaria para um


naufrágio, dificultando sua separação com a mãe. Essa dificuldade de
separação explicaria a expressão de uma ligação profunda para ambas,
gerando um ressentimento do qual a filha não consegue se desatar.

OUTRAS PERSPECTIVAS

Atualmente, Jéssica pensa em fazer a cirurgia bariátrica. Parece


que esse desejo comporta uma tentativa de se separar da mãe, ainda
que esta insista que ela não faça, pois tem medo que ela morra. A
paciente começa a falar do desejo de fazer a cirurgia após um diag-
nóstico médico que conclui que seu excesso de peso está afetando
algum de seus órgãos, principalmente o fígado, que se encontra com
aumento significativo de gordura com risco de desenvolver cirrose.
Segunda a opinião médica, fazer a bariátrica seria sua melhor opção,
devido ao estado crítico do fígado. Diante dessa avaliação, Jéssica fica
assustada, mas se reposiciona ao falar que deseja fazer a cirurgia não
só por uma questão estética, mas principalmente por causa de sua
saúde que se encontra debilitada.
Percebe-se que, quando algo esbarra na saúde faz com mova-
-se em direção ao desejo, saindo um pouco desse lugar de objeto de
gozo do Outro, pois mesmo diante da negativa da mãe com relação a
operação, a paciente não recua. Se antes a vontade de fazer bariátrica
aparecia na intenção de agradar o Outro materno, devido às cobranças
excessivas de emagrecer, agora, mesmo com a desaprovação materna,
a paciente não parece desistir do que quer.
A paciente ainda não fez a operação, devido aos processos buro-
cráticos do seu plano de saúde, porém é perceptível ver sua mudança
subjetiva indo em busca do que deseja. Em análise a paciente começa
a questionar sua posição tão passiva diante do Outro, e o quanto
é impossível agradá-lo. Isso parece abrir uma brecha para que a
paciente comece a bancar o que deseja independente se vai deixar
esse Outro materno satisfeito ou não.
307
Flavia Gaze Bonfim (org.)

REFERÊNCIAS
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Leituras Psicanalíticas

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ZALCBERG, M. A Relação Mãe-Filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

Nota: trabalho de conclusão de curso apresentado à coordenação de Pós-Graduação da


FAMATH em Fundamentos da Clínica Psicanalítica.

309
SOBRE A ORGANIZADORA

FLAVIA GAZE BONFIM

Psicanalista. Doutorado em Psicologia


(UFF). Mestrado em Pesquisa e Clínica
em Psicanálise (UERJ). Especialização
em “Psicanálise e Laço Social” (UFF).
Graduação em Psicologia (UFF). Autora
de artigos publicados em revistas cientí-
ficas na área de Psicologia e Psicanálise.
Fundadora e Responsável Técnica da
SINGULAR – Centro de Psicologia e
Psicanálise.
CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576
E-mail: flaviabonfimpsi@yahoo.com.br

310
ÍNDICE Corpo 10, 16, 20, 50, 56, 73, 74, 76,
77, 91, 112, 123, 124, 137, 138, 140,
Falta 8, 16, 19, 20, 23, 26, 31, 34, 44,
47, 48, 58, 61, 64, 68, 69, 71, 73-75,
REMISSIVO 146, 155, 156, 158, 163, 169, 171-
174, 177, 180, 183, 184, 200, 209,
108, 119-121, 129, 133, 135, 136,
141, 142, 145, 151, 168, 173, 185,
214, 218, 219, 221, 223, 224, 226, 214, 217, 221, 223, 226, 229, 237,
227, 234-243, 246, 248, 250, 251, 267, 283, 297, 301, 304-306
253-259, 262, 264-268, 277, 280,
283, 285-298, 300, 301 Família 8, 29, 32, 33, 53-55, 57, 59,
61, 68, 76-78, 81, 91, 93, 101, 172,
A Cultura 32, 51, 69, 82, 110, 114, 186, 234, 264, 274, 276, 286
124-128, 136, 138, 148, 165, 174,
Adolescência 9, 48, 64, 65, 233, 237, 179, 189, 199, 200, 213, 214, 226, Feminino 10, 227, 229, 230, 234,
238, 240-242, 262 241, 244, 246, 250, 252, 253, 255, 236, 238, 244, 245, 247-250, 257,
256, 258-260, 270, 272, 282, 284, 259, 270, 271, 281, 284, 285, 296-
Amor 9, 24, 29, 45, 60, 86, 87, 105, 291, 294, 298, 305 298, 301, 302, 306
127, 152-155, 180, 182, 189, 197,
199, 217, 218, 221, 225-231, 257- D Feminismo 10, 189, 243, 259, 270,
259, 280, 297, 302, 303 273, 277, 284, 285
DSM 7
Angústia 7, 12, 18, 23, 25, 28, 31, 34, Freud 7, 13-18, 24-29, 31, 33-36,
36, 37, 39, 41-47, 49, 50, 73-76, 80, Demanda 10, 23, 71, 72, 79, 91, 41-43, 45, 46, 48-50, 53, 56, 57, 60,
102, 110, 172, 210, 214, 226, 227, 118-121, 129, 134, 168, 176, 181- 62, 65, 66, 68, 70, 71, 73, 74, 77, 80,
229, 263, 303, 305, 306 183, 194, 198, 207, 213, 221, 229, 82-90, 93, 94, 102, 104-110, 112,
239, 240, 289-292, 297, 299, 301, 116, 117, 122, 124-127, 129, 132,
Anorexia 289, 290, 301, 306 305, 306 136-139, 148, 154, 155, 162-165,
174, 175, 177-180, 182, 184, 186,
Ansiedade 7, 12, 38-41, 44-46, Democracia 101, 139, 140, 199, 200, 188, 189, 191, 193, 194, 196-200,
48-50, 102, 128 212, 216, 271 205, 207, 208, 210-215, 217-224,
Análise 14, 16, 23-25, 34-36, 48-50, 226-232, 243, 245, 247-249, 260,
Denegação 9, 175, 182 269, 271, 273-275, 277-281, 283,
56, 62-65, 72, 74, 77, 86, 90, 91, 103,
104, 110, 137, 162, 174-176, 180- 285, 289, 290, 294, 296, 297, 299,
Desamparo 7, 12, 16, 23, 26, 43-51, 302, 303, 306, 308
189, 191-194, 196, 197, 199, 202, 58, 78, 79, 82, 92, 102-104, 200, 209,
205, 207-209, 211, 215, 216, 224,
225, 235, 249, 260, 274, 276, 278,
213, 219, 305, 308 G
281, 284, 290, 299, 300, 307 Desejo 7, 8, 10, 14, 19, 21-24, 26, Gozo 9, 10, 22-24, 32, 69, 72, 78,
28, 29, 34, 36, 37, 45, 62, 64, 67, 126, 130, 132, 133, 136, 137, 145,
Atualidade 47, 50, 126, 130, 139, 68, 70-75, 77-79, 95, 100, 114-116,
166, 170, 191, 194, 196, 240, 243, 147, 149, 152, 153, 155, 156, 159-
119-122, 133, 135, 136, 145, 152, 161, 163-174, 178, 202, 208-211,
275, 276 153, 166, 168, 170, 173, 181, 186, 213-218, 222-224, 226, 227, 230,
196, 202, 208, 209, 217, 221, 223, 242, 244, 247, 250-259, 267, 268,
B 224, 227-230, 255, 268, 271, 286, 290, 294, 296, 298, 299, 301, 306,
289, 292-294, 301-303, 305-307 307
Bulimia 289, 290
Desigualdade social 159, 160, 276 Gênero 9, 33, 37, 169, 178, 188, 195,
C 209, 234, 235, 237, 238, 242-247,
Diferença sexual 10, 77, 241, 242, 249-251, 253, 259, 260, 262, 271,
COVID-19 7, 8, 11, 12, 26, 32, 38, 244-247, 249, 253, 254, 272, 276
39, 41, 44, 46, 47, 49, 51, 52, 54, 272, 274, 275, 278, 279, 281, 283
65, 66, 73, 75, 96, 97, 109, 111, 146 Direção de tratamento 7, 11, 33,
34, 292, 299 I
Capitalismo 8, 53, 96, 102, 110, 114,
115, 119, 120, 134, 136, 144, 149, Discurso do analista 9, 114, 132, Infância 43, 45, 48, 49, 56-58, 60,
151-153, 156, 157, 159-161, 163, 149, 164-166, 170, 171, 173, 174 64, 66, 68, 70, 71, 79, 112, 172, 237,
169, 177, 191, 199, 200, 269, 274, 241, 242, 255, 261, 269, 286, 301
276, 278, 281 Discurso universitário 114, 165-168,
172-174 Intersexo 9, 233-237, 241-243, 245
Ciência 13, 17, 20, 55, 82, 93, 99,
103, 112, 114, 132, 133, 143, 145, Docilidade 8, 104, 106, 138 L
159, 163, 166, 168-170, 172-174,
191, 192, 200, 202, 203, 233-235, Dominação masculina 10, 270- Lacan 7, 12, 13, 15-21, 23, 25, 26,
240-243, 260, 270, 291, 292, 309 273, 276 28-31, 35-37, 50, 68, 69, 71, 73-75,
77, 80, 82, 83, 86, 90-92, 95, 107,
Clínica 7-14, 16, 18, 22-24, 26, 33, E 111, 114, 115, 120-122, 130-132,
37, 38, 41, 44, 46-48, 50, 52, 55-57, 137-139, 142-145, 148-153, 155-
62, 64, 65, 67, 74, 82-84, 86, 89, 94, Eficácia 8, 59, 109, 110, 138, 145, 157, 159, 160, 162-168, 170-172,
112, 123, 137, 138, 175, 181, 183, 146 174, 179-182, 187, 189, 191, 193,
184, 187, 190, 196, 199, 218, 222, 195-200, 210, 217, 222-224, 226,
225, 231, 233-237, 240, 241, 263, Empresa-de-si 8, 145-147 227, 229-236, 243, 245, 249, 250,
268, 277, 282, 284, 285, 290, 293, 254, 255, 260, 263, 267-269, 271,
295-298, 301, 302, 309 F 272, 276, 289, 295, 298, 299, 302,
304, 305, 308
Fake news 9, 26, 200, 201, 203, 209,
214-216

311
Laço social 7, 8, 76, 79, 83, 93, 101, P Separação 10, 26, 32, 34, 45, 58, 67,
103, 114, 115, 122, 128-130, 133, 68, 70, 73, 75, 78, 86, 87, 154, 201,
138, 140, 145, 149, 152-155, 160, Pandemia 7, 8, 11, 12, 21, 22, 24, 26, 265, 297, 299, 302, 304-307
162-166, 168, 180, 182, 183, 187, 30, 33, 38, 39, 41, 43, 44, 46-49, 52,
191, 196, 198, 200, 208, 252-254 54-57, 60, 62-66, 73, 75, 76, 91, 96, Servidão apaixonada 9, 191
109, 111, 146
Liberdade 8, 47, 48, 59, 62, 92, 96, Sexo 61, 209, 225, 226, 229, 233-
98, 101, 109, 110, 128, 144, 155, 169, Parcerias amorosas 9, 218, 224 238, 241, 242, 260, 261, 265, 284,
213, 214, 240, 277, 283 293, 296, 303
Perda 26-32, 34, 35, 45-48, 53,
Luto 7, 8, 12, 22, 26-37, 49, 52-55, 59-61, 63, 73, 84-86, 89-92, 94, Sexualidade 9, 13, 23, 57, 58, 186,
57, 58, 60, 62-65, 81, 83-95, 102, 95, 104, 108, 109, 127, 131, 138, 217-221, 223, 235, 243, 245, 246,
108, 110 150, 156, 164, 165, 169, 210, 215, 249-251, 253, 259, 260, 262, 265,
222, 227, 279 277-281, 285, 286, 296-299, 302,
M 303, 308
Política 9, 32, 33, 37, 82, 83, 90, 93,
Masculino 223, 227, 229, 234, 236, 98, 99, 101, 103, 107, 110, 112, 139, Sexuação 9, 10, 217, 233, 237, 241,
238, 239, 244, 247-250, 252, 271, 140, 142, 144, 145, 148, 149, 153, 242, 244, 245, 250-254, 256, 258-
297, 301 157-159, 163, 169, 177-179, 182, 260, 284, 298
184, 188, 191, 192, 194, 198, 199,
Melancolização 8, 96, 97, 99, 204, 205, 207, 214, 216, 244, 270, Singularidade 8, 14, 41, 49, 88, 115,
107-110 277, 284 142, 160, 185, 215, 234, 259, 284

Mercados comuns 8, 138, 139, 143, Pornografia 10, 261, 262, 268, 269 Sujeito 7-10, 12-20, 22-24, 27, 28,
147, 159 30-32, 35, 36, 39-43, 45-49, 52,
Psicanálise 7-15, 18, 20, 21, 23-25, 55-57, 59, 61, 62, 64, 67-75, 77,
Morte 8, 16, 26, 29, 35, 36, 44, 46, 29, 35-38, 41, 46, 48, 55-57, 61, 62, 83, 85-89, 92-94, 96, 99, 100, 107,
48, 52-66, 82, 85, 91-94, 108, 125, 65-68, 72, 80, 82, 83, 86, 87, 90, 94, 108, 114-116, 118-123, 127, 129-
126, 143, 146, 148, 155, 191, 197, 99, 112, 114, 122, 123, 135-137, 142, 131, 133, 136, 142-147, 149, 150,
222, 226, 246, 252, 289 161-164, 171, 173, 174, 176, 177, 152-156, 160, 163-172, 179, 181,
179, 180, 182-189, 194, 199, 200, 182, 184-187, 196, 197, 199, 202,
Mulher 29, 72, 183, 218, 224, 226- 202, 203, 208, 210, 212, 215-217, 203, 208-211, 214, 217, 219-223,
228, 232, 246-248, 250-254, 260, 222-224, 230-234, 237, 240-243, 228-230, 233-235, 237, 240-242,
265, 270, 272-275, 277-285, 293, 245, 247, 248, 253, 260, 263, 268, 244, 248, 249, 251, 253, 254, 256,
296-299, 302, 305, 306, 308 270-274, 276, 277, 282-285, 288, 271, 274, 277, 288, 290, 292-294,
290, 292-294, 296, 297, 304, 308, 297-299, 301, 302, 304-306
Mídias sociais 8, 9, 44 309
T
N Psicologia das massas 103, 104,
110, 162, 177, 194, 199, 205, 207, Tecnopopulismo 9, 191, 192
Neoliberalismo 8, 96-101, 108-110, 211, 215
139, 144, 158 Transferência 9, 14, 34, 62, 142, 175,
Pânico 7, 38-41, 44, 46, 49, 50 176, 179-182, 184, 187, 189, 208,
O 217, 222, 277
Pós-verdade 9, 201-205, 207-209,
Obesidade 10, 288, 291, 295-298, 215, 216 U
301, 302, 306, 308, 309
R Universalização 143, 147, 159-161,
Objeto a 18, 19, 28, 29, 36, 73, 75, 170
115, 133, 142, 147, 150, 153, 165- Racismo 8, 9, 149, 151, 155-158,
167, 169, 171, 197, 224, 226, 255- 160-163, 174-177, 179-184, 188,
257, 259 189, 211, 214, 246, 252, 260
Objetos de consumo 8, 32, 118, 128, Real 7, 11, 12, 16, 18-21, 23-25, 28,
132, 135, 152, 168 30, 34-36, 39, 42, 62, 73, 75, 77, 92,
97, 130, 134, 143, 164, 165, 171, 173,
Outro 7, 10, 18, 22, 26, 28, 32-36, 174, 179, 195, 208-210, 212, 214,
41, 42, 47, 54, 57, 58, 60, 62, 67-71, 217, 224, 229, 233-235, 237, 240,
73-75, 77-79, 93, 94, 105-107, 109, 241, 263, 268, 272, 289, 290, 306
113, 115, 116, 119-121, 124, 126,
127, 129-133, 138, 140, 148, 150, Relações raciais 9, 175, 176, 189
151, 154-156, 160, 161, 164, 165,
167, 168, 170-172, 176, 179, 180, Resistência 9, 17, 175, 176, 178,
183, 187, 188, 192, 193, 196, 197, 182-184, 187
202, 205, 206, 208-211, 214, 218-
221, 223-230, 234, 237, 242, 249- Rito 10, 261
252, 254-257, 259, 261-264, 267,
271-273, 277-279, 282, 289, 291, S
294, 297-301, 303-307
Segregação 8, 9, 107, 134, 138, 139,
142, 143, 147, 149, 153-156, 159-
161, 163, 164, 169-171, 173, 174,
176, 177, 195, 205, 214, 236, 246,
249, 252, 254

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