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MESTICAGEM E TROPIC A PENSAMENTO AMAZONICO. ~ ae GILBERTO FREYRE, LEANDRO TOCANTINS FERREIRA REIS E YPIRANGA MONTEIRO Almir Diniz de Carvatho Junior’ Representagées e contextos - mesticagem e tropicalidade Este texto nasceu de uma comunicagao realizada em um encontro de Antropologia, em Lisboa, no ano de 2009. Naquele tempo, nao era mais que um esboco, um desvio de rota. Aque- Jas trilhas que nos atraem enquanto caminhamos na estrada central. Naquela época, ainda mergulhava numa tese defendi- da quatro anos antes. O tema, bem distinto do que trabalhei na tese, era muito sedutor, mas foi esquecido até agora, quan- do recebi um convite para participar desta obra. 0 convite me despertou grande interesse e poderia ater-me a aspectos mais préximos do meu caminho central, ciente do conforto de ja 0 ter trilhado. Mas resolvi ousar, € toda ousadia tem um pouco as, do departa- Federal do Amazoni fa Ufam. Universidade a ea ot 6s-Graduago em Historia di * Professor associad! grama de P mento de Histéria e do Prof 29 o suporte desse pequeno desatino sé po- de loucura. Portanto, : deria se dar na forma de um ensaio : Embora fosse uma trilha paralela aos temas de minhas pesquisas, com o tempo percebi uma proximidade desafiado- ra. Era um mergulho no mundo das representacdes sobre a ‘Amazénia, as quais me levavam a indagar como criaram raizes no imaginério social sobre a regiao, partilhado por leigos e por intelectuais. Por outro lado, me levava também a pensar sobre 0s eixos discursivos e construtores das estruturas que inven- taram o proprio objeto de minhas indagagées - a Amazénia Colonial. Que a Amazénia é dade. A novidade é sab realidade, estruturou politicas, crengas, Aquestao mais importante e motivadora deste ensaio é saber o que do pensamento social sobre a Amazénia, produzido por alguns dos principais intelectuais da regido, nos anos de 1930 até os anos de 1980, ainda ecoa nas paginas da historiografia uma invengao do Ocidente, nao é novi- er como essa inven¢ao tomou forma de verdades e historias. 2. Minha pesquisa de doutorado foi sobre a Amazénia Colonial, defendida em 2005 — Unicamp, e gerou um livro, /ndios Cristdos - Poder, Magia e Religido na Amazénia Colonial. Curitiba: Editora CRV, 2017. Basicamente, se insere um recorte cronoldgico que vai da segunda metade do sécu- lo XVII até meados do século XVIII. 0 tema das representac6es sobre a ‘Amaz6nia e especificamente sobre os indios sempre atraiu o meu inte- resse. Minha dissertacaio de mestrado, que em breve virara também um livro, abordou essa questo. Em particular, a forma que os indios foram representados na “Viagem Filosdfica de Alexandre Rodrigues Ferreira ~ Do Indio Imaginado ao Indio Inexistente - A construco da Imagem do indio na Viagem Filoséfica de Alexandre Rodrigues Ferreira” (Disserta¢0 de Mestrado - Unicamp, 2000). Sobre essa pesquisa, hé um capitulo de livro que dé uma dimenséo reduzida do tema: “Tapuia ~ A invensa0 4° indio na Amaz6nia nos relatos da Viagem Filoséfica (1783-1792)’, In: Car- valho Jtinior, Almir Diniz de; Noronha, Nelson Matos de. Org., A Amaz6- nia dos viajantes. Manaus: EDUA, 2011. 30 amazénica e ainda da suporte a algumas politicas e crengas de certos setores da elite politica dessa regiao. A questo acima é atual, nao estava na comunicagéo que foi a origem deste texto. Mas estabelece com ela uma ponte. Essa ponte da margem a outros caminhos que considero cada vez mais necessarios quando nos debrugamos sobre uma nova historiografia Amazénica, produzida nesse inicio do século XXI, a partir dos dois centros mais importantes da produgao intelectual da regiao Norte do pais - a Universidade Federal do Amazonas e a Universidade Federal do Para. Com seus, relati- vamente recentes, cursos de pés-graduacao (hoje, dois mes- trados e doutorados), os cursos de Historia das duas universi- dades tém demandado, de nossa parte, a necessidade, urgente, de uma avaliacao mais profunda no estado da arte dessa “nova histéria”. Mas nao é esse o objetivo do texto, que fica como um horizonte a ser trilhado. O objetivo aqui é mais modesto. E desvendar os eixos discursivos que podem alimentar as redes de ideias que ainda circulam e que foram emanadas daqueles anos do século XX. Afinal, quanto dela ainda alimenta a nossa imaginagao? N&o me refiro aqui a uma historia das ideias apenas. Ideias alicergadas em seus contextos e que ganham inteligibilidade emanadas deles. Para além dos contextos, que constituem na- turalmente as forgas sociais, politicas, econémicas e culturais, e que sao presentes e influentes, agem sobre elas outras forgas submersas. Esse campo de forsas, a partir dos quais as ideias emergem, envolvem as dimensGes simbélicas e profundas das quais nascem as representagées. Essa profundidade é cons- trufda por camadas e camadas de temporalidades diversas, atravessadas por forgas de dispersdo e convergéncia que tor- nam os discursos complexos e a rede de ideias merecedora de andlise mais cuidadosa. Para além dos autores que cito, e que produziram trabalhos robustos e importantes sobre o tema, tento, de forma ainda inicial, langar um olhar do campo da His- 31 Me t6ria, mas nao da hist6ria tradicional das ideias. Busco as tem, poralidades miultiplas como 0 alicerce a partir do qual eSsag forgas visiveis e invisiveis engendraram os eixos discursivog que tornaram possiveis essa rede.* Como todo ensaio, apresento 0 esbo¢o de um Pensamento, Busco analisar a constitui¢ao de algumas representagées go. bre a Amaz6nia que se tornaram eixos de “verdade” em torng dos quais se construfram as imagens daquele mundo. Gilberto Freyre, Arthur Cézar Ferreira Reis, Leandro Tocantins e Mario Ypiranga Monteiro sao os pensadores escolhidos. Qual a raza para a escolha desses autores e 0 que‘os unem na construcig 3 Essa andlise usa diversos aportes tedricos, mas retira deles apenas o que me pode servir, Nesse sentido, utilizo o sempre promissor caminho inaugurado, ou melhor, revigorado por Pierre Bourdieu, ao se utilizar da teoria dos campos para abordar a dimenso do poder simbilico e a ins- tigante articulacao entre a dimensao econémica dos mercados e a dos bens simbélicos ~ BOURDIEU, Pierre. O poder simbdlico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003; BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbé- licas. Séo Paulo: Perspectiva, 2007. Em particular, me utilizo do Campo Intelectual e sua articulaco com 0 Campo do Poder para visualizar as relagdes entre esses atores e os poderes politicos e institucionais. De outra forma, utilizo-me também da obra de Reinhart Koselleck, Estratos do tempo - estudos sobre historia. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014, que nos mostra a complexidade do horizonte temporal composto Por camadas de tempo distintas, com permanéncias também diversas, uma releitura da obra seminal de Braudel, mas ampliando a sua pers- Pectiva. Também uso a perspectiva de Michel Foucault, em suas andlises sobre as relacdes entre os saberes e os poderes, em particular, a con- formasao dos aprisionamentos discursivos como forma de construcso dos discursos verdadeiros no campo do conhecimento cientifico - FOU- CAULT, Michel. As palavras e as coisas. $30 Paulo: Martins Fontes, 1992; FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Florense Universitaria, 1997. Esses suportes tedricos séo antes ferramentas que compromissos, Eu faco, aqui ali, uma releitura dessas ferramentas pare adequé-las ao objeto em anilise, é 0 caso da apresentacao das metéfo- fas dos eixos discursivos que percorrem, como ferramentas analiticas, boa parte desse texto, 32 dessas Tepresentagoes sobre a Amaz6nia? Essa questao sera respondida mais adiante. Antes disso, cabe enveredar pelos caminhos da longa invengdo do imagindrio sobre a‘Amazénia. A Amazénia, ao longo dos séculos, foi ganhando forma e estatuto que a sedimentaram no campo do imaginario so- cial. Esse imagindrio atravessou as fronteiras nacionais e se espraiou para boa parte do mundo ocidental. Desde o século XVII, mas, principalmente, ao final do século XVIII, e durante os séculos XIX e XX, essas imagens sobre'a Amazénia foram ampliando seus matizes e ganhando caracteristicas cada vez mais dispares e complexas. Afirmar que a Amazonia é uma invengao ocidental nao é faltar com a verdade. A enorme regido que engloba boa par- te do territério norte da América do Sul, constitufda por uma imensa floresta imida equatorial, recortada por enormes rios, passou efetivamente a existir para o conhecimento ocidental quando foi explorada pelas nagées europeias, ao longo de mais de 300 anos. Lembrar que a imagem que carrega 0 seu nome tem sua origem na mitologia grega sé torna mais evidente 0 estatuto dessa invencdo. Mas a categoria “invengao’, aqui uti- lizada, nao significa um falseamento do real ou o seu sentido de fantasia e encobrimento. Ao contrario disso, a “invengao" éa criagao de uma realidade que se foi estruturando ao lon- go do tempo como uma rede de padrées que alimentaram, e ainda alimentam, o imagindrio social. Portanto, a Amazonia é um produto ocidental - uma colonizacao do imaginario.* Mas, 4 Gruzinski, Serge. A colonizacdo do imagindrio — sociedades indigenas e ocidentalizagao no México espanhol — séculos XVI ia xvill. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2003. Essa obra nos remete @ possibilidade de se pensar, para a Amazénia, 0 que 0 historiador francés realizou para 0 México, qual seja: como o proceso de ocidentalizacdo foi aos poucos sendo interiorizado pelos indigenas a partir das representagées por eles produzidas, seja do ponto de vista pictérico, seja nas formas de classifi- 33 é também resultado das contradic¢ées que forma, € uma invengao em processo de possibilidades e de diferentes para além disso, essa criagao gerou. Dessa multifacetada, um mosaico representa¢oes. i Os padrées imagéticos que constituem esse mosaico fo. ram se estruturando ao longo dos séculos e se expandindo do mosaico e da rede induz a em forma de rede. A metafora do m¢ L pensar a multiplicidade, ajustaposigao ea combinagao de ele. mentos que ganhavam inteligibilidade em razao das condigées de possibilidade. Essas condigées de possibilidades, muito es- pecificas em cada contexto, elegem alguns desses elementos justapostos como condutores principais de todo o processo, verdadeiros eixos estruturantes. Nao nos perderemos nesse mosaico. Como ja menciona- do, focaremos nossa andlise num pequeno grupo de intelec- tuais. Trés deles, oriundos da regido amaz6nica, e um deles de espectro nacional e internacional. Esses quatro autores repre- sentam um pouco das pegas desse mosaico, mas nao todo ele. De qualquer modo, acreditamos que suas ideias estruturaram alguns dos padrées desse imaginario social sobre a Amazonia. O'contexto no qual produziram suas ideias caracterizou-se por um perfodo de profundas mudangas nas estruturas politicas, econémicas, sociais e culturais. Um momento pleno de ruptu- ras, dentre elas a Revolugdo de 1930, a criagdo do Estado Novo, os processos de urbanizagao e constituigao da modernizagao das relacées capitalistas no Brasil e o golpe civil e militar de 1964. Para além dessas mudangas politicas, econdmicas e So- ciais, houve outra profunda no campo da estética e, por conse quéncia, no campo simbélico da cultura, que também impac- See cago novas que tiveram que lancar mao para lerem o mundo. Aqui fica como um desafio para pensarmos até que ponto o imaginario ocidental Penetrou em nossa forma de ver o mundo e construir a Amaz6nia. aa tou suas ideias. Esse movimento estético, que rompeu padrées estabelecidos, foi a Semana de Arte Moderna, de 1922. Num panorama de grandes rupturas, o imaginario cons- trufdo sobre a Amazénia, por meio das representagées pro- duzidas por esse grupo de intelectuais, caracterizou-se por seu vinculo com diretrizes emanadas de duas forcas opostas, mas que muitas vezes se fundiram numa composig¢ao hibrida: as forgas modernizadoras e as forcas conservadoras. Antes de analisa-las com suas consequéncias no pensamento dos auto- res escolhidos, cabe seguirmos em busca de um eixo mais anti- go e que instituiu, para além delas, a estrutura a partir da qual os quatro intelectuais articularam seu pensamento. Ele funcionou como padrao, ao menos desde meados do século XIX. Tema comum em varios trabalhos que discutiram o nascimento da historiografia brasileira, a ideia que virou pa- drao foi produzida no contexto de um concurso empreendido pelo Instituto Histérico e Geografico Brasileiro - IHGB, sob 0 titulo: “Plano para se éscrever a Historia Antiga e Moderna do Brasil, abrangendo as suas partes politica, civil, eclesiastica e literaria”. O concurso foi vencido, em 1847, pelo naturalista bavaro Carl Fredrich Philippe von Martius, com a monogra- fia publicada na Revista Trimensal de Hist6ria e Geografia do IHGB, em 1845, sob 0 titulo: Como se deve escrever a Historia do Brasil. A partir de entao, a constitui¢ao da ideia de nagao brasileira nao fugiu mais desse eixo central. A diversidade do territorio brasileiro e da composi¢ao da sua populacao indica- riam a necessidade profunda de sua integracdo. Essa integra- go foi pensada por Martius, em meados do século XIX, como oriunda de um necessario processo de miscigenagao das trés racas que compunham essa populagao ~ negros, beara dios, Essa ideia atravessou 0 século XIX sem sofrer a i ne ¢4o profunda. Seu eixo estruturante para a formagao da nage! 35 deia de miscigenasao. E ela esta presente = pensamento dos quatro autores citados.* a Mesmo sem uma modificagao em sua ess€ncia, os signifi. cados que definiam os sentidos da miscigenagao foram sendg atualizados, considerando o que acima indiquei. Cada contey. to faz emanar da fonte (do eixo discursivo) elementos que q tornam inteligivel nas condiges de possibilidade dadas por uma temporalidade especifica. Mas é importante frisar que nado existe uma homogeneidade em qualquer temporalidade, existem sim tendéncias dominantes, mas sempre em embate com outras tendéncias multiplas que a comp6em. Para’além do espirito de época, da mentalidade do periodo ou da epis- teme, havia sim um imaginario coletivo constituido por varia- dos matizes conforme as distintas fontes culturais das quais brasileira era a i emanava.° 5. Ver: Martius, Carlos Frederico von. “Como se deve escrever a Histéria do Brasil”, Revista Trimensal de Histéria e Geografia, n° 24, Rio de Janeiro: IHGB, 1845, In: Martius, F. P. von. O Estado do direito entre os autécto- nes do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1982. Uma interessante andlise sobre o papel de Spix e Martius na construgao da representaco sobre o Brasil pode ser vista em Lisboa, Karen Macknow. A\Nova Atléntida de Spix e Martius: natureza e civilizaco (1817 - 1820). So Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1997. 6 — Osentido de um grande plano estrutural, invisivel e coordenador de to- das as acdes e pensamentos, talvez metafisico, jd foi pensado por d- versos intelectuais ocidentais. Com diferencas de modos e de forsa, ele parece ainda dominar alguns pensamentos. Mas hé sempre a relacao de conflito entre a estrutura e o contexto. No vou me alongar aqui nessa discussao teérica, mas o peso do paradigma estrutural ainda perdura en tre muitos desses intelectuais. Sem negar a forca aglutinadora do pense mento hegeménico, ou da episteme comum, creio que a situacao é mals complexa, Atenho-me aqui ao sentido da categoria de Imaginario Social. Creio que a disseminacao de imagens mentais e nao de ideias conscien” tes podem ser os blocos arquetipicos das formas de pensamento. Esse eeagesrio Pode ser encontrado na literatura, nas artes, na formacao dos , NOS Bostos, nos desejos, nos anseios e nas crencas. Mas sempre A homogenia é sempre relativa. Mas. nao se pode negar que exista 0 que se chama de caracteristicas dominantes do tempo, composto por camadas justapostas, mas que vibram na mesma frequéncia. Em dadas circunstancias, os atores e acontecimentos ganham uma dimensio pouco mais inteligfvel construindo um contexto em que textos, pensamentos e acées se articulam e se estruturam possibilitando a reaparicao de ideias ainda que com novos matizes e outro vigor. A ideia rea- parecida é a da mesticagem, mas atrelada agora a outro eixo, numa temporalidade especifica, que surge e ressignifica a ideia da mistura. Refiro-me a ideia de tropicalidade. Portanto, a tradi¢ao e a mudanga se irmanam numa nova configuracao, caracteristica de um tempo que comeca a aparecer nos anos de 1930 e persiste durante boa parte do século XX. Adiante, fa- laremos mais sobre essa configuragio especffica. Agora, cabe uma pequena sintese das mudangas estruturais no campo de forgas que instituiu a modernidade no Brasil.” 6 um campo de disputa com o poder hegeménico, ele préprio produto do imaginario. 7 Osanos de 1930, no campo do pensamento social e histérico, foram sa- cudidos por obras seminais. Dentre elas, Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre e Raizes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holan- da. Coincidentemente, a obra mais conhecida de Arthur Cézar Ferreira Reis — Histéria do Amazonas (1931) também surgiu no inicio dessa déca- da fecunda. A obra de Freyre rompe com a hegemonia no pensamento brasileiro de uma visto negativa da degenerescéncia das racas mesticas e da populacdo negra, embora tenha sido acusado de promover a demo- cracia racial, deve-se analisar a obra no contexto em que foi criada, Ela revolucionou a visio sobre a formagao racial brasileira, muito a reboque das novas ideias que o autor trouxe dos Estados Unidos, quando la foi aluno do antropélogo alemao Franz Boas, que defendia o culturalismo € 0 valor intrinseco das herancas culturais dos povos. Sérgio Buarque de Holanda também revolucionou a viséo sobre a identidade brasileira pondo em evidéncia nossas rafzes culturais, nossos padrées & for 80, muito préximo da perspectiva de outro alemao, Max Weber, obra 37 © As rupturas na ordem dos pensamentos se vinculam q uma mudanga no modelo agroexportador que constituiu uma sociedade tradicional, na qual a elite dominante e os setores médios, somados a grande massa de trabalhadores era de rela. tiva pouca complexidade. As mudangas nas condigées de pos. sibilidade geraram uma sociedade estabelecida num campo de mUltiplas redes. Houve uma ampliagao cada vez maior dos setores médios urbanos, gerando uma complexidade social ampla e que diversificou os focos da aco politica. Das bases erodidas do modelo tradicional agroexportador, que sobrevi- veu ao fim do Império, parece nascer, no campo intelectual, um pensamento conservador, nostalgico e “roméantico” como forga motriz para disputar espa¢os de poder na produgao dos discursos de na¢ao. Nesse contexto, podemos compreender as caractertsticas de alguns intelectuais amazé6nicos e suas fi ges matriciais. No entanto, dentre os diversos eixos discursi- vos em disputa, alguns deles vao ecoar e influenciar, tanto as forgas progressistas quanto as for¢as tradicionais do imagina- rio social do periodo, criando um patamar comum de referén- cias. Como ja mencionado acima, a mesti¢agem e a tropicalida- de tornam-se, para esses intelectuais, os vetores profundos da produgo do que consideravam a identidade nacional. A ideia de nagao era uma t6pica comum a todos os setores envolvidos, fossem de origem conservadora ou moderna. 0 civismo e 0 pa- triotismo funcionavam como vetores de identidades sociais pessoais no 4mbito do imaginario social daquele periodo. Se podemos chamar de pensamento conservador o que alimentava esses quatro intelectuais e boa parte de outros que circundavam em seu meio, nado podemos negar também que sofreram uma intensa influéncia de uma das forgas motrizes si taht alii free fe oe ne kere den ead oo que havia conhecido quando de sua estada em Berlim, alguns anos antes como jornalista correspondente internacional. 38 daquela temporalidade, qual seja, a modernidade, que teve como simbolo de nascimento a Semana de Arte Moderna de 1922. O desejo de mudanga era uma ténica comum aos qua- tro intelectuais. Essa mudanga repercutiu na modificagao do significado da mesticagem, antes ligado 4 eugenia e de viés profundamente negativo, passou entao a adquirir um carater positivo e a ser um dos componentes fundantes do que se ins- tituiu ser a civilizagao dos trépicos - constru¢do conjunta dos modernistas e dos grupos de intelectuais do Norte e do Nor- deste capitaneados por Gilberto Freyre. Neste sentido, 0 casa- mento entre mesti¢agem e tropicalidade parecia ser a saida do significado de inferioridade que estava atrelado ao primeiro termo, tornando-o caracterfstica da singularidade de uma ci- vilizagao colorida e vigorosa. Os intelectuais das décadas de 1930 passaram a colocar em evidéncia essa positividade, qua- se em sua totalidade. Os anos de 1930 foram divisores de 4guas em muitos aspectos. No discurso dos intelectuais até essa data, a visdo que se tinha da mesti¢agem era francamente negativa, como ja assinalado. Toda uma tradi¢ao que envolvia o paradigma evolucionista tomava corpo e constituia um imaginario social comum que hierarquizava as diferengas. Essas ideias surgiram e se expandiram durante a segunda metade do século XIX. Em meados do século XIX, muitos estudiosos europeus defendiam ainterpretagio poligenista, ou seja, defendiam que os homens teriam diferentes origens, com diferentes centros de cria¢ao. Somente com a Origem das espécies de C. Darwin (1859) esse debate teve um fim, mas nfo as teorias racistas. Spencer, no seu Principios da Sociologia (1876), estendia para as socieda- des a nogdo de sobrevivéncia dos mais aptos defendida por Darwin. Ele estendeu a capacidade de adaptacao as ordens sociais, econdmicas e politicas. Darwin sempre negou 0 uso de sua teoria para compreender a humanidade. Mas 0 evolu- cionismo tornou-se um paradigma a revelia do seu autor e ao 39 objeto para ‘o qual a teoria havia sido criada; qual seja, para pensar a evolugdo da vida animal no planeta Terra. Naquele momento, essa teoria se espraiava para os campos do: mundo social. Alguns exemplos dessa influéncia se podem destacar, Dentre eles; sobre a propria Antropologia, que entdo:acabava de nascer sob a égide do evolucionismo social. Com as ideias de Morgan (1877) sobre as etapas da classificagéo da huma- nidade, entre: selvageria, barbarie e civilizagao, cada povo se enquadrou numa etapa distinta de uma tinica evolugao.* Segundo Lilia Schwarcz, ao lado do-evolucionismo social e do positivismo, outras teorias se utilizaram das maximas evolucionistas. Dentre elas, 0 determinismo geografico que acreditava que o que estabeleciaa potencialidade de uma civi- lizagdo seria o meio geografico - a natureza condicionaria os destinos de uma civilizacao. Buckle escreveu, em 1845, uma obra em varios volumes com 0 titulo History of the english civi- lization na qual dedicou algumas paginas ao Brasil, que foram devoradas :pelos intelectuais brasileiros. Sua conclusao era que, no Brasil, a natureza era tao monumental que nao sobra- ria espaco para o homem; que seria por ela expulso.? Estdvamos na era dos determinismos. Nesse contexto, surgem e se solidificam os determinismos raciais e 0 principio do racismo se estabelece. Dentre os tedricos do determinismo racial, destacam-se P. Broca e Morton, os criadores da antro- pometria e da frenologia. A antropometria era a ciéncia que acreditava que era possivel medir a potencialidade de uma 8 Paraaanilise sobre essas ideias, ver Schwarcz, Lilia Moritz, “As teorias ‘= ciais, uma construgo histérica de finais do século XIX. O contexto brasilei- ’ In: Schwarcz, Lilia; Silva Queiroz, Renato da (orgs.) Raga e diversidade. $40 Paulo: EDUSP, 1996, p. 147-186. Para uma anélise mais abrangente sobre as teorias racistas, da mesma autora, ver: Schwarcz, Lilia Moritz. 0 espetéculo das racas. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1987. 9 Schwarcz, op. cit, p. 168, 1996. 40 raga pelo volume i * sssvaneotereaagetseaa cine we : A cabe de Anténio Conselheiro foi levada Bor NinatRodeig Ea Rio de Janeiro para ser submetida a essas sind aie ae portanto, a extensdo de uma “verdade” com ase ahaa digma que vi ‘cusp erie igma que vigorava com todo 0 seu potencial naqueles tiltimos anos de século XIX e que ainda iria adentrar ao século XX como mesmo vigor. Mas as teorias continuavam a'se multiplicar. Em Sica ie escreveu um texto ‘sobre a Teoria iquente. Lombroso visitava escolas para observar- criangas pequenas e analisa-las com 0 intuito de descobrir os futuros delinquentes. 0 atavismos fisicos eram: mandibulas grandes, altos ossos da face, pele escura, grandes érbitas ete.; 0 atavismo mental seriam: a insensibilidade a dor, irresponsabilidade, maldade, desejo de mutilar e extinguir a vida etc.; 0 atavismo social se dividia em: epilepsia, pederastia ea pratica da tatuagem.”° O carter miscigenado da populacao brasileira tornou-se um verdadeiro laboratério racial. Muitos tedricos aqui vinham para conhecer essas novas pessoas. Em 1865, Agassiz, um via- jante suico, esteve no Brasil e escreveu seu livro Viagem ao Brasil (1868). Ele defendia que havia no Brasil uma degene- ragdo causada pela mistura de ragas. 0 pais, para ele, seriaum exemplo de uma degenerescéncia local. : Boa parte da intelectualidade nacional assumiu a inter- pretacao de que a miscigena¢ao levava a degenerescéncia, acreditando que ela nos Jevaria ao fracasso como acon futuro. A questao racial gerava teorias € debates acalora los. Esses debates aconteciam entre os homens das ciéncias, re- : irei de Medicina, nos museus unidos nas faculdades de Direito e To pais. 0 problema etnograficos e nos institutos historicos pe’ oan aeayegins 10. Idem, p. 170, 1996. 4i da mesticagem tornava-se fundamental. A visao negativa da mistura e a teoria do branqueamento se sucediam. No Recife, Silvio Romero e Tobias Barreto eram defensores do evolucio.. nismo social. Para Silvio Romero, a mesticagem tinha tons me. nos drasticos. Para ele, havia um fato que precisava ser encara- doe solucionado e dele nao escapariamos - 0 pais era Mestico, Nina Rodrigues, na Bahia, era adepto das teorias de Lombroso e do modelo de degenerescéncia. Projetos de higienizagaio se estabeleciam no Rio de Janeiro, e consideravam que os des. cendentes de africanos haviam trazido as doencas epidémicas para o Brasil. Na faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Re- nato Kell, em 1921, propunha projetos de esterilizagao para os mesti¢os. Como é possivel observar, o contexto anterior a 1930 era francamente negativo para a mesti¢agem." Tudo mudou a partir dos anos de 1930. Entre as modifi- cagoes, podemos destacar uma profunda transformagao na fé no futuro causada por acontecimentos simultaneos, que po- dem ter funcionado como uma Tuptura, tal qual a perspecti- va da descontinuidade defendida por Foucault. As epidemias, em particular, a Gripe Espanhola, de 1917; a Primeira Guerra Mundial e o fracasso do liberalismo, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Torque, em 1929. Os movimentos politicos no Brasil, que culminaram coma Revolugao de 1930, também deixaram suas marcas em uma geracao que pretendia mudar 0 pais.!? 11 Schwarcz, op. cit., 1996, 12 Numa interessante andlise, Marco Aurélio C. de Paiva destaca 0 papel da evolucdo Ginasiana que aconteceu em Manaus, em 12 de outubro de 1930, e que teve como um dos Protagonistas o entdo estudante Mario Ypiranga Monteiro. Marco Aurélio busca identificar as estratégias de di- ferentes atores sociais concorrentes, os intelectuais do campo da cultura € sua relacdo com o campo politico. Para o autor, aquela revolu¢ao, acon- tecida no Colégio Pedro Il, teve um papel definidor para toda uma gera- 42 O Império havia rufdo no Brasil. A Republica, tutelada pe- los militares; se estabelecia ainda muito débil. Era necessdrio constituir uma nacao e a miscigenacao nao poderia ser negada ou tornada negativa. Ao mesmo tempo, comeg¢ava a surgir,em terras da América do Norte, um novo paradigma, era o cultu- ralismo que, se contrapondo'ao evolucionismo, buscava nas culturas miltiplas a origem das diferencas entre as nagées. Nao mais 0 modelo de Morgan, mas a produsao de culturas distintas com respostas diferentes aos anseios humanos. Um dos criadores dessa teoria foi o alemao Franz Boas, que, exila- do nos Estados Unidos da América, foi professor de um jovem socidlogo brasileiro chamado Gilberto Freyre. Regionalismo e modernidade Para falar sobre’a repercussdo dessas ideias para o con- junto'de intelectuais amazénicos, e, particularmente, para um dos quatro atores aqui’elencados, lanco mao do importante trabalho de Odenei de Souza Ribeiro, Tradi¢ao e modernida- de no pensamento de Leandro Tocantins (2015). O autor traca uma andlise sobre o papel de Leandro Tocantins e de um gru- po de intelectuais. Tocantins, assim como alguns do seu grupo, criticava a’ visio depreciativa e eugénica, como a de Oliveira Viana, sobre a Amazonia e seus habitantes. Tais intelectuais, dentre os quais Tocantins, colocavam em evidéncia outros elementos, que nao a inferioridade advinda da mesti¢agem, Gao de intelectuais que nutria entao uma aversdo aos politicos locais. Chama a atengio para a relagdo que se estabelecia entre 0 eeonete e a definicgdo de uma identidade nacional no contexto da Se la- queles novos intelectuais ~ Paiva, Marco Aurélio C. de. ect ° reno. o Negro: politica e cultura no inicio da trajetdria de Mario De lon- teiro”. Manaus: EDUA; Revista Somalu (Ufam), v. 2, 2006, p- 119-136. 43 da composigao racial ou do clima, para a explicagao do desnj. vel do desenvolvimento da regido em comparagao como Sul e Sudeste do pafs, Leandro Tocantins teria buscado destacar as especificidades e as possibilidades de uma modernizaca da Amazénia considerando as suas idiossincrasias. Portanto uma composi¢ao entre a tradi¢do.e amudanga parecia alimen. tar as ideias de Tocantins. 0 desejado processo de moderni- zacio da Amazénia deveria acontecer unindo o vigor de uma tradi¢4o cultural auténtica com a modernidade. Leandro To- cantins fazia parte de um grupo de intelectuais liderados por Arthur Reis, dentre os quais estavam: Djalma Batista e, ante- riormente, Aratijo Lima. No entanto, 0 destaque recafa sobre Arthur Reis, Djalma Batista e o proprio Leandro, Para 0 autor, tais intelectuais estariam unidos em torno do projeto de Mo- dernizacao conservadora, defendido pelo regime autoritario p6s-1964."3 Como entender a op¢ao conservadora com viés moder- no desses intelectuais amazénicos? Para Odenei, Tocantins buscou construir uma sintese entre as condigées regionais de vida, da arte, da cultura, enfim, das experiéncias tradicionais, com a racionalizagao burocratica e legalista daquele governo autoritario. Teria que haver um equilfbrio entre os valores modernos e os valores tradicionais. Isso se daria por meio da valorizacao da cultura regional e da experiéncia da vida local, consideradas como as rafzes mais profundas da identidade amazénica. A modernizagao viria pela mudanga do modelo extrativista para o modelo industrial, mas considerando as es- pecificidades da cultura e do conhecimento locais. Para tanto, ao contrario do federalismo que colocava do sul e 0 sudeste no lugar de destaque na direcdo da politica do pais, seria necessa- 13. Souza Ribeiro, Odenei de. Tradi¢ao e modernidade no pensamento de Leandro Tocantins. Manaus: Editora Valer/Fapeam, 2015. rioa interven¢ao do Estado brasileiro mais centralizador para construir‘um planejamento estratégico que elegesse a valori- zacao da Amaz6nia como uma politica de Estado. Em outras palavras, para esses intelectuais era necessario que se estabe- lecesse um novo pacto federativo. A pressdo para mudangas nas relagées capitalistas que se tornava evidente no eixo Rio/S4o Paulo, principalmente depois da acumulagao do capital advinda do comércio inter- nacional do café, trouxe consigo transformagées estruturais nessas grandes metrépoles do Sudeste. Um pensamento libe- ral crescente estava aos poucos sendo construido. No contexto daquelas mudangas, por outro lado, uma complexidade de for- cas se estabeleceu. Nesse emaranhando complexo de relagées, o desenvolvimentismo de feigao getulista e trabalhista, jano inicio: dos‘anos de 1950, foi o palco que, para Odenei, apro- ximou os dois principais intelectuais daquele pequeno grupo. EntZo:recentemente lan¢ado, 0 livro de Leandro Tocantins - 0 rio:comanda a vida (1952), chegou as mos de Arthur Cézar Ferreira Reis. O que aproximou os dois intelectuais foi o incé- modo'coma auséncia de uma politica de integragdo e desen- volvimento voltadas para'a Amazénia. A amizade e parceria perduraria:até’o fim dos anos de 1980 e mais além. Como res- salta Odenei, a.amizade foio resultado de afinidades politicas e culturais de propensao conservadora que ambos nutriam socialmente.* Voltando’um pouco no tempo, r ; nessa cadeia de relagées. Leandro Tocantins buscou, assim como outros intelectuais, estabelecer um vinculo entre dois movimentos aparentemente antagénicos. Um deles, ja foi des- crito‘acima = a Semana deArte Moderna de 1922. Mas um ou- tro acontecimento veio se juntar a esse processo de mudanga, encontraremos outro elo Se ies ees 14 Odenei, op. cit., p. 82. 45 © Movimento Regionalista do Recife, liderado por qual seja, ins teria chegado a con. Gilberto Freyre. Para Odenei, Tocanti clusdo, por meio desses dois movimentos, de que o elo entre a tradigao ea modernidade eraa cultura. Atradi¢ao era entendi- da por ele como valores que personalizavam a regiao e 0 pais em suas manifestagoes de vida. Por outro lado, amodernidade era entendida como um conjunto de mudangas sociais, polfti- cas e econdmicas desencadeadas a partir do desenvolvimen- to técnico e cientffico. Para Leandro Tocantins, era necessario cultivar o passado com o espirito moderno e dele extrair a substancia que geraria os impetos criativos de uma civiliza- ¢do tropical e mesti¢a. Mais adiante, falaremos sobre a pro- posta de Tocantins, com base no lusotropicalismo de Gilberto Freyre, de produzir uma ciéncia para estudar a Amazénia em eus aspectos sociais, antropoldgicos e fisicos naturais, a sua Amazonotropicologia. Houve uma proximidade natural entre esses intelectuais amazonicos e Gilberto Freyre, mais especificamente, depois de 1926 - com 0 Manifesto Regionalista, e depois também do lan- gamento do seu livro Casa grande & senzala. Freyre tornou-se uma espécie de porta-voz de um grupo de intelectuais descon- tentes do Norte e do Nordeste do pais. O que estava por tras dessa atracao mutua era a proximidade com as posi¢des po- Iiticas do setor agrario do Nordeste que sofria, assim como 0 Norte, o abandono da Unido. A Unido apoiava 0 eixo Sul-Sudes- te em detrimento dessas duas regides. O discurso antiliberal também agradava esses intelectuais que defendiam uma agao mais incisiva do governo federal para coordenar agéncias esta- tais que poderiam colocar em movimento um plano de desen- volvimento para a regido. Parece que havia, por parte desses intelectuais, uma nostalgia do passado perdido e uma angustia Provocada pela decadéncia que atingiu as elites das duas re- gides. 0 declinio econémico criou um sentimento comum de rea¢do ao modelo federativo que privilegiava os estados do Su- 46 deste e'do Sul do pais. Esse modelo acentuavaias diferengas re- 10 de:decadéncia econémica. Na uma estratégia intelectual e politicapara et fennee eo Norte na agenda ‘da Politica nacional. Ideias entrelagadas ‘Acima, chamam i ligagdo muito ‘forte battesieadounaede anes ee No entanto, foi Gilberto Fre ins e Arthur Reis. . yre, pela sua estatura intelectual, que capitaneou a condugao da rede de ideias que animeiram os dois autores. Ainda que trilhas paralelas tenham'sido pro- duzidas pelos dois intelectuais da Amazonia, haviacuma liga- Gao profunda com as ideias de Freyre, como veremosia seguir. O quarto intelectual escolhido para'andlise é um coringa: Ele oferece outro caminho sem fugir totalmente do campovaberto pelos outros trés. Dele trataremos mais adiante. Para além das questdes antes assinaladas, uma das tam- bém principais que conduzem este ensaio é saber qual 0 fio condutor que entrelaga esses discursos e as caracteristicas que os transformaram em padrées de pensamento por meio dos quais‘o mundo amaz6nico foi sendo concebidoiaté as dé- cadas finais do'século XX, ou mais além. De outra forma, como também jamencionado, a sua importancia esta no fato de que alimentaram politicas publicas, planejamentos estratégicos € construgdes identitarias regionais ¢ nacionais eat Sak e, creio, ainda alimentam algumas verdades cristalizaaas novas combinagées de sentido. pensamento de Leandro Tocantins, ‘9 e modernidade no 45 Odenei, Tra’ op. cit.,.p. 235- 47 meiros trés discursos, 0 conceito de Freyre é 0 ponto de apoio. Ele ‘brio e consenso na tentatiyg fpio destas oposigées é 0 bing. dendo-se aqui natureza como Navtessitura dos pri lusotropicalizagao de Gilberto engendra uma nogao de equi de unificar os opostos. 0 princ! mio: natureza e cultura. Enten : nao somente o meio, mas o homem fruto do meio. Ao mesmo tempo, no universo dos contrastes que esses discursos tentam harmonizar, destaca-se, a partir deste bindrio de opostos; adi- versidade das “ragas” e a mesticagem como solusao de uma “engenharia social’. Aliado a isso, a Amaz6nia ~ construgao europeia por exceléncia ~ 6 apresentada como um problema a-ser resolvido. Problema que se vincula fundamentalmente ao abismo intransponivel entre natureza e cultura, ou melhor, transpontvel quando o primeiro termo é domesticado, domi- nado, transformado no segundo e apagado em sua singularida- de, A igualdade significa, neste caso, a submissdo da natureza edo homem ao dominio da cultura civilizada. Ainda que numa roupagem diferente e sendo relida e revisitada, como revelam alguns trabalhos recentes em Portugal e no Brasil, esse con- ceito é complexo e de dificil definic¢ao. Creio, no entanto, que nao escape do que parece procurar fugir - a classificacao da alteridade a partir de uma hierarquizagao de valores. Na rede de ideias que procuro observar, 0, conceito é transplantado A AmazOnia. Na confluéncia de ideias dos trés primeiros autores, revela-se nado somente uma concep¢ao in- telectual e ideolégica, mas também uma representacao que cria realidade na medida em que se torna parametro para constitui¢do de verdades e padrées que vao definir politicas de Estado na segunda metade do século XX. Em 1958, Gilberto Freyre faz uma viagem a Belém e a Ma- haus e, na dtica de Leandro Tocantins, inaugurou-se, entao, 0 seu interesse sobre a Amazénia. Ha alguns anos que Gilberto Freyre ja vinha desenhando sua mais famosa teoria - a luso- tropicalizacdo, 0 texto que revela os meandros desta relasa0 48 entre ateoria maior e a especificidade amazénica é: Amazénia brasileira e uma possivel Lusotropicologia. No prefacio desta publicagao, Leandro Tocantins apresenta uma introdugio as principais ideias de Gilberto Freyre e a algumas ideias suas. Tocantins apresenta Freyre como um renovador. Segundo ele, Freyre alia o objetivismo cientffico aos valores humanos. Ao. mesmo tempo, destaca a importancia do meio ambiente na construgao das ideias de Freyre. Ele também entado comegavaa construir um esbogo teérico de uma histéria ecolégica. 0 con- ceito de raga é trazido a tona’na sua relagdo com o ambiente. Destaca a inadequagao da pele branca ao regime dos trépicos. Esta concep¢do tradicional que remonta ao século XVIII era entao ressignificada como positividade, mas sem desvincular- -se do seu principio fundador: destacar a diversidade humana no mundo em razao da disposi¢ao geografica que ocupa, con- siderando: 0 clima, a topografia e a localizacao no planeta. Po- de-se também relacionar essa concepcao as ideias de Aratijo Lima sobre a Amazonia em: Amazénia a terra eo homem - com uma “introdugao a Antropogeografia” (1937).16 Nao vou me deter nos vinculos entre as ideias de Lean- dro Tocantins:e de Aratijo Lima - que aqui entra como intruso na tessitura dos discursos, - mas:sim penetrar um pouco mais nos meandros do pensamento de Gilberto Freyre sobre a luso- tropicalizagao. Este conceito foi por ele muitas vezes tratado e por diversos outros autores também analisado. Quero indicar aqui o tratamento que dA ao-conceito num momento de en- saio emotivo emum discurso cerimonial: uma conferéncia,em 1952, que fez na ritualistica sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, onde anos depois, também 14, receberia o titulo de doutor Honoris Causa. Neste discurso, © lusotropicalismo apa- co homem—com uma “introdugao a An- rae liana, 1945. aE ae eerie eres 16 Aratijo Lima. Amazénia a tert tropogeografia” (1937). Sao Paulo: Colecso Bras 49 rece como missao. Com seu estilo peculiar, observa as Cores emitidas pelo sol e as consequéncias no carater humano, ay mesmo tempo em que busca descolar 0 termo tropicalizaci, do sentido pejorativo europeu. Observa que os europeus as. sociavam os trépicos a inadequa¢ao, a aclimagao e a sobreyj. véncia de valores ditos civilizados que opunha aos primitivos e barbaros, principalmente tropicais.’” Continuando, afirma: Ao ‘pas la couleur, rien que la nuance’ dos pe- numbristas mais violentamente anti-tropicais correspondeu toda uma voluptuosa e as vezes exagerada afirmagao de gosto pelo sol, pela core pela luz'tropical'da parte de pintores ainda mais violentamente corajosos no seu tropicalismo que os devotos da penumbra no seu antitropicalismo ou no'seu penumbrismo. Estava iniciada do modo mais vis{vel a reabilitacao de valores tropicais.” Destaca as mulheres e homens de Gauguin que exalavam ternura humana‘e beleza no corpo e na alma: Muitas vezes com brilhos e docura no sorriso que dificilmente encontrar- -se-iam entre brancos e europeus. Por outro lado, muda a or- dem da narrativa, deixando de lado os pintores e direcionando seu olhar para os portugueses que exemplifica, entre outros, com 0s escritos de Caminha‘e de Vieira. Lembra em Caminha a descric4o das “.. primeiras amerindias, doces e nuas, vistas ¢ admiradas e talvez amadas e fecundadas pelos Lusos’.!? ett ites AEH ctsitteseit | y 17 Freyre, Gilberto. Em torno de um novo conceito de tropicalismo - confe- réncia pronunciada na sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, ¢™ 24 de janeiro de 1952, Coimbra: Coimbra Editora, 1952. 18 Idem, p. 16, i a , ‘9 Freyre, Em torno do conceito de tropicalismo, op. cit., 1952, p. 18. Dos famosos portugueses chega aos mais comuns que, em suas palavras: (..) abrasados pelo gosto de todas as aventuras: as de amor e fazer filhos semiportugueses e se- micristaos tanto quanto as de encontrar ouro, marfim, pimenta. Encontram-se ouro e marfim, pimenta e drogas. Fecundam-se mulheres. Con- fraternizaram‘com os homens tropicais. Adota- ram muitos dos seus usos'e alimentos.” Para Freyre, o tropical era fraternalmente inseparavel do luso. Segundo ele, este modo singular que considera a maneira portuguesa de se relacionar com os trépicos é 0 que se poderia nomear como.a civilizagao luso-tropical. Escreve: “.. complexo que, sociale culturalmente, inclui 0 Brasil, todo ele nascido do amor portugués pelo trépico: os valores tropicais de vida e de cultura na’sua plenitude (...)'.* Um tom:de determinismo geografico e climatico parece instalar-se quando afirma que o portugués em outras terras, ou seja, em terras nao tropicais, dissolve-se e desaparece. Afir- ma'ter presenciado, como professor na Universidade de Stan- ford,a’mudan¢a dos velhos nomes portugueses. Que conser- vados em terras tropicais, mudavam nas nao tropicais: “mais tristonhos ex-Portugueses. Nao'se chamavam de Joao ou Fran- cisco, porém John e Francis’.” O seu discurso, que se reveste de uma superficie ecolégi- ca, nesse caso revela mais em sua profundidade. O portugués é quem fecunda. Repetindo suas palavras: o Brasil é nascido 20 Idem, p. 19. 21 Ibidem, p. 19. 22 Idem, p. 21. 51 do amor portugués pelos trépicos. 0 Brasil é associado aqui, do sangue portugués. Os homens figura feminina, receptaculo brasileiros sao antes filhos que pais. Sao semiportugueses ¢ semicristaos. No final de sua conferéncia, chama os estudantes porty. gueses para a missdo de enveredar pelo Ultramar Portugués como antropélogos, gedgrafos, etndgrafos, socidlogos, botani- cos, economistas, gedlogos etc. Assim realizariam os estudos luso-tropicais. Exorta-os a enfrentar o que considera repug- nante, a perda da a¢éo missionéria na Africa para os missiona- rios islamicos. Em suas palavras: Como nao se compreende que 0 ardor missio- nario, o fervor pela conquista de povos tropicais para o Cristianismo, tenha declinado tanto entre os Portugueses que, no conflito verdadeiramente dramatico que hoje desenrolaem terras africanas em torno das almas dos povos animistas, em fase de rapida desintegracao das culturas ancestrais, a eneérgia mais viva seja a islamica.* Desenhando em’ contornos vivos 0 seu pensamento, Freyre chama os alunos da Universidade de Coimbra dea me- lhor “mocidade universitaria de Portugal’. Tal qual um pre- gador, chama estes “novos homens de estudo portugueses” 4 ouvirem o seu clamor e, profeticamente, complementa: “O ho- mem da Macedénia serd ouvido pelo da Lusitania’. Esse discurso é significativo. Revela mais do.que pos mente seu autor quis. Torna-se canonico: O fervor quase re- ligioso transpassa as palavras em tom de emogao. Seis anos depois, o mesmo pregador estava na Amazonia. Logo apés, em sivel- 23 Freyre, op. cit., 1952, p. 22. outra conferéncia no Instituto de Antropologia Tropical da Fa- culdade de Medicina na Universidade do Recife, fala sobre a Amazé6nia brasileira e uma possfvel lusotropicologia - publi- cada pelo setor de documentagao da Agéncia da S.P.V.E.A. - Su- perintendéncia do Plano de Valorizagao Econémica da Amaz6- nia, institui¢aéo administrada por Arthur Cézar Ferreira Reis. Neste texto, Gilberto Freyre deixa claro qual 0 seu objetivo: (..) a lusotropicologia teria de preocupar-se com valores, ao tornar-se, senado uma filosofia de acao s6cio-cultural para brasileiros e portugueses, em particular, e paraios hispanotropicais, em geral, a base de uma engenharia social a ser desenvolvida por esses povos em areas como a amazénica oua angolana. Alias; nao sé a esses povos interessa de- senvolver obras planificadas de engenharia social em Areas de clima quente; também a outros povos situados nessas dreas ou responsaveis por elas. Donde a necessidade de uma Tropicologia que, sob critério mais amplo, sistematize estudos de ecologia e antropologia tropicais, que possam ser colocadas a servi¢o de governos e particulares.* Estamos diante de uma associagao do discurso a uma ideologia de Estado. Ainda que com carater intelectual, tem um fim pragmatico. Enecessario penetrar mais profundamen- te no pensamento de Freyre para descobrir os elementos nor- teadores que vao desencadear uma rede de percepsoes que articula, entre outros, 0S de Tocantins, Ferreira Reis eYpir ane? Monteiro. Antes, é importante compreender as ideias de To- Ja Freyre, Gilberto. A Am it iv icologia, 24 Freyre, Gilberto. A Amaz6nio brasileira e uma eee Leror gi Manaus: Centro de documentaga0~ S,PN.E.A, 1958, P- 53 cantins e sua relacado com as de Freyre, 0 que ja foi inicialmen. te assinalado. 0 prefacio que Tocantins escreve para 0 texto citado ac. ma merece uma analise maior. Tocantins reforca a ideia de Freyre acerca da engenharia social. Como se tocasse 0 mesing instrumento, mergulha na mesma harmonia de ideias. Des. taca ainda o valor da miscigena¢ao que, como veremos, serg uma posi¢ao afirmativa de Freyre para a Amaz6nia, 0 que nao énenhuma novidade. Cabe, em relagao a ela, perguntar: para esses autores, o carater hibrido da mistura entre as ra¢as seria a possibilidade unica de adaptagao ao meio hostil? Leandro Tocantins destaca que a iniciativa de publicar aquela conferéncia, tornava a S.PV.E.A. divulgadora cultural, levando as ideias do socidlogo e lusotropicalista ao maior ni- mero de estudiosos. Segundo Tocantins, a importancia da pu- blicagdo das ideias de Freyre devia-se a: Tratando-se de um assunto que toca diretamente a sensibilidade regional, a iniciativa esta fadada a receber os aplausos de quantos esperam reu- nir em torno da Amazénia as inteligéncias mais licidas, como a de Gilberto Freyre, no propésito civico de, através do estudo, da andlise, da inter- pretacao da regido, trazé-la para mais perto do Brasil que ainda nao chegou a descobri-la, a as- segurar-lhe os meios seguros e habeis para uma verdadeira integracdo regional no processo dina mico da civilizacao brasileira. Freyre nao parecia se furtar a essa responsabilidade. Ob- serva-se também um tom de missao nas primeiras linhas de seu discurso. Ele destaca a importancia de se levar em cont@ que o Brasil era formado por uma articulacao inter-region@ de culturas. Observa ainda que era perigoso nao levar em con- 54 ta al existéncia dessa diversidade no momento de tomada de decisées ou de interpretar sociologicamente a cultura brasilei- ra, Nesse caso, Freyre exorta a figura de Arthur Cézar Ferreira Reis como um especialista em matéria regional, nao esquecen- doa cultura nacional e a binacional.?5 Para Ferreira Reis, a Amazénia é uma revelacao portugue- sa. Um mistério que o espfrito luso tornou visivel. Uma rique- za domada pelo portugués. Basta observarmos os titulos de diversas obras publicadas pelo historiador amazonense e que, nao por acaso, encontram-se na Biblioteca Nacional de Lisboa. Sucedem-se os titulos: A revelagdo da Amazénia continuou a empresa do Infante - (1960); O realismo portugués no desco- brimento e na exploragdo da Amazonia; A lingua portuguesa e sua imposigdo na Amazénia — (1959); A empresa colonial por- tuguesa na revela¢do da Amazénia - (1961); A aventura Luso- -brasileira nos quadros da civilizagdo moderna — (1969), entre outras. Ao todo, nos registros da Biblioteca Nacional de Lisboa, encontram-se cinquenta e duas obras de Ferreira Reis. Des- tas, vinte e cinco foram publicadas por editoras portuguesas, em Lisboa ou em Coimbra. Comparado a Gilberto Freyre, esse numero é pequeno. Sao cento e quinze os registros de obras de Gilberto Freyre na mesma biblioteca. Dessas obras, trinta e oito foram publicadas em Portugal. Freyre também publicou tanto em Lisboa, como em Coimbra.”* balho sobre a estratégia inte- Iha na enorme obra do histo- re o intelectual, 0 escritor DANTAS, Hélio. ita da Histdria, Bi 25 Aqui, chamo atengdo para um recente tral lectual de Arthur Reis. Hélio Dantas mergu! riador amazonense e busca captar a relagao entre o e o historiador, sem descuidar de sua atuagao politica. Arthur Cézar Ferreira Reis ~ Trajetoria intelectual e escrit Jundial: Paco Editorial, 2014. 7 : 26 No Sho de 2009, em raz3o do Encontro de Antrovologia organiza ee ‘APA — Associacao Portuguesa em : be ale a ticipel com a apresentacao de pal SE Asbo8 fazer uma investigacao rapida no ace! de Antropologia, rte deste texto, tive rvo da Biblioteca 55 ee SE A Seguindo de longe os outros dois, Leandro Tocantins tam. bém deixou a sua marca em Portugal. Foram sete 05 registros encontrados. Destes, trés foram publicados em Lisboa. Dois tj. tulos merecem atengao: 0 capitdo-mor Pedro Teixeira, precur. sor da transamazénica ~ publicado em Lisboa, (1973) e Acre, Rio Branco e espirito luso, publicado no Brasil. Seu livro mais conhecido é 0 rio comanda a vida, foi também publicado em Lisboa (1972). Ferreira Reis imprime em seu discurso uma visao lusé- fila extremada que deixa as populacées nativas como apenas receptéculos da cultura ci lizada. No entanto, esta visdo nao chega a criar diferenga com a de Freyre. Como destaquei antes, ainda que Freyre, a principio, valorize os homens e mulheres decor - principalmente as mulheres -, ele o faz como um valor dado pelo portugués colonizador e nao algo intrinseco destas populagées. O valor esta na mistura, nao na singularidade. Voltando ao texto de Freyre, o autor recupera tanto Fer- reira Reis quanto Leandro Tocantins. Destaca as suas interpre- tagdes sobre a Amazénia e convida-os para cerrar fronteiras no processo de implementa¢ao de uma aco norteada por esta “nova ciéncia” - a lusotropicologia. Freyre considera Ferreira Reis antigo pesquisador das po- pulagdes amazonicas e, ao mesmo tempo, homem de ago que, em suas fungées administrativas, pés em evidéncia a objetiva- ¢40 de suas ideias, conduzindo a Superintendéncia do Plano de Valorizacao da Amaz6nia - que publicou a conferéncia de Freyre -, ea diregao do Inpa - Instituto Nacional de Pesquisas Amazo6nicas. A Ultima instituigdo ainda hoje existente e que produz boa parte do conhecimento cientffico sobre a regiao. 0 para buscar os titulos publicados no Brasil e em Portugal dos autores aqui analisados, dentre os quais, Arthur Cézar Ferreira Reis. O resultado dessa pequena pesquisa apresento aqui. seu contato constante com a Amazénia, tornava-o, para Freyre, de importancia fundamental para a interpretagao lusotropical do que, em suas palavras: “vem sendo a ocupagao ou domesti- cagao da Amazénia brasileira’?” Freyre destaca; ainda, o historiador Leandro Tocantins, que nao por acaso, escreve o prefacio da publicagéo de sua conferéncia. Considera Tocantins como um intelectual que do- mina 0 moderno conhecimento cientifico sobre a Amazénia a partir do ponto de vista luso americano e brasileiro, e que le- varia em conta a sua populac¢ao como objeto de estudo, tanto do ponto de vista antropolégico como do histérico-ecolégico. Neste momento de sua anilise, volta com toda a forca o tema da miscigenagio. Seja ela cultural ou bioldgica. Decerto, para Freyre, o limite entre as duas é:ténue, senao inexistente. Uma parece ser somente concebida pela outra. Essa questao, no discurso de Freyre, esta intimamente ligada a uma concep- cao de unidade nacional. Destacaa ideia de Ferreira Reis sobre o conceito de Amazénia num sentido multinacional. Ferreira Reis observa‘a importancia do homem no apenas como ele- mento decorativo da paisagem. Em sua concep¢ao, para definir aregiao era imprescindivel atentar para a presen¢a dohomem e suas fungoes de ser politico, econdmico e cultural. Freyre re- mete o leitor e ouvinte as ideias que Arthur Reis apresentou em uma conferéncia proferida no Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais, muito provavelmente a pedido do mes- tre pernambucano. Freyre foi criador e presidente do referido instituto, hoje fundagao. Freyre observa a import conferéncia. Escreve: 4ncia das ideias de Reis naquela rasileira e uma possivel Lusotropicologia, eee Seeee ee See 27 Freyre, Gilberto. A Amaz6nia b op. cit., p. 21. 57 Acrescentou o professor Arthur Reis, naquele sey trabalho (...) nao ser a Amaz6nia apenas uma freq definida pela bacia hidrografica do Amazonas o, pela floresta equatorial imensamente gran, de mas, também, pela presenga de uma Sociedade que se distinguiria pela unidade de cultura, re, presentada, ponderadamente, nas atividades go, ciais e econémicas que realiza. Aqui vém as claras tanto a perspectiva politica de Freyre quanto a de Reis que, definitivamente, os ‘unem numa irman- dade de ideias. Usando o pensamento de Ferreira Reis, Freyre chama a atengao para a ideia do historiador amazonense so. bre a importancia da observagao do legislador constituinte de 1946, quando elucida que o Brasil“se afundava pela diversida- de de condigées de vida cultural, material e espiritual”. Com- plementando, afirma que, em face disso, nado houve hesitagao em promover uma politica que pusesse fim a estas distancias, em suas palavras: “Distancias que promoviam, com efeito, de- sajustamentos perigosos a propria estabilidade nacional”® Amiscigenagao é aqui a resolucao do problema da Amazé- nia que se tornava um problema de soberania nacional. Se por um lado a politica de desenvolvimento da Amazonia aproxima- va-a do Brasil evitando os perigos da diversidade, por outro, a justificativa da necessidade de tratar a Amazénia por meio da lusotropicologia justificava-se na medida em que eram desco- nhecidos estes homens. Ferreira Reis 6 lembrado como um dos que pode conhecé-los, Freyre cita Ferreira quando este obser- Va que 0s povos primitivos nao disciplinarizaram ou alteraram 0 meio fisico 4 sua vontade. Teriam sido profundamente telil- ricos. Mas, pondera Freyre, que o acervo cultural que legaram, 28 Idem, p. 27-28, 58 “simbioticamente luso-tropical’, nao teria ainda sido estudado em sua pureza de contribuigao amerindia. E retomando Fer- reira Reis, observa que ele préprio admite que, a seu modo, os primitivos teriam triunfado ao meio. Esse tema, na opiniao de Freyre, deveria ser estudado pela sua lusotropicologia, no sentido em que possibilitaria verificar o modo de ser social do ponto de vista tanto ecolégico quanto antropolégico. Continuando seu raciocinio, o valor dos primitivos cede espago, como nao poderia deixar de ser, ao do mesti¢o. Este sim seria adequado, uma vez que era o processo hibrido e sim- bidtico da intera¢o entre racas e culturas distintas. A constru- 40 do “Caboclo” foi, ao longo do tempo, o substituto do nati- vo devidamente miscigenado e integrado ao meio amazénico. Ele, nas palavras de Freyre, “seria décil, sem ser covarde”. Por meio dele, teria se estabelecido 0 inicio da investida sobre a floresta. Investida esta complementada, posteriormente, pelos nordestinos que, na concepgao de Freyre, seriam superiores aos europeus nAo ibéricos: Com eles houve a modificagao efe- tiva da paisagem e o dominio sobre. meio geografico. Dominio, domesticagao, humaniza¢ao: essas palavras re- petem-se nos trés discursos. Todos migram em diregao a solu- go do problema que, como ja mencionei, trata-se de eliminar o abismo entre natureza, homens naturais e a cultura. Nao é casualmente que o hibridismo é valorizado. Afinal, ele elimi- naa diferenga e faz da Amazénia um lugar possivel e aberto a atividade humana. A floresta e o sol eliminam a permanéncia dos brancos;a necessidade de dominio e desenvolvimento do meio natural afastam os nativos primitivos. Ainda que Freyre ia, nao deixa de afirma-la, critique a visao civilizat6ria europei d A na medida‘em que remete a mistura a solugao do problema da adaptacao. Essa mistura, no ental fecunda é 0 portugués europeu- nei antes, a ideia da troca de nomes de nto, é hierarquicamente dada, quem Retomando o que ja mencio- los portugueses de re- 59 gides nao tropicais, vista por Freyre como 0 abandono da seiya lusa, nada mais é do que 0 processo de adaptacdo em que 9 adaptado nao é 0 indio, mas 0 portugués. Isso faz lembrar que existe uma distingao hierarquizada no discurso de Freyre en- tre aquele que fecunda e o que é fecundado; entre 0 que adap- ta eo que é adaptado. O portugués, para Freyre, € 0 capitao da nau da mudanga. Daa diregao. Imprime um sentido. No entan- to, o mesmo “capitao’, quando nao est4 nos tropicos, se deixa levar pela nau do outro e se torna, portanto, também hibrido - positiva ou negativamente aberto as inovagoes. Na diregdo oposta a elimina¢ao do especffico e da consti- tuigaéo de um homogéneo dominante, destaco’o pensamento de Ypiranga Monteiro, num texto de 1986, sob 0 titulo: Aspec- tos da cultura amazé6nica. Essa é a publicagao de uma palestra que proferiu na Associagao Brasileira de Imprensa, em 1985, no Rio de Janeiro. Nesse texto, é facil observar a mudanga de perspectiva impressa pelo historiador amazonense que, du- rante boa parte de sua vida, dedicou-se a historia cultural da Amaz6nia. Muito menos conhecido que seus dois outros con- terraneos fora do Estado do Amazonas e, possivelmente, um ilustre desconhecido em terras portuguesas.”” Ypiranga parte da premissa que a Amazé6nia continua ig- norada em que pesem algumas tantas investidas ocidentais no sentido de compreendé-la em profundidade. Comega sua pa- lestra com um mito que lhe fora contado por certa pessoa de sangue da etnia Arara, do rio Madeira. Mas usa‘o mito como um recurso retérico, apenas para chamar atengao ao mistério que continua a teimar em existir. Em sua opiniao, existe a pos- sibilidade de 0 mito ser compreendido pelo lado da verdade. Mas, normalmente ndo o é devido ao desconhecimento dos 29 Monteiro, Mario Ypiranga. Aspectos da cultura amazénica. Rio de Janei- ro: Associagao Brasileira de Imprensa, 1986. instrumentos capazes de 1é-lo, Portanto, o mistério permane- ce em razao.do preconceito que nao desapareceu. Coloca-se contrario aqueles que reificam o lado selvagem eindspito da Amazé6nia. Em relagao a isto, escreve: Acculpa disso cabe de alguma sorte aos emitentes, que perseveram em manter o foco do equipamen- to sensorial para a selva bruta e nao para o ho- mem que vem construindo uma civilizagéo e uma cultura de vanguarda.?” Continuando seu pensamento, dé nome a alguns deles: Euclides da Cunha, tanto quanto Alberto Rangel, ambos da mesma extragao realista e ambos servi- dos pelo mesmo estilo literario, legaram-nos duas legendas impressionistas, absurdas pelo conteti- do sociolégico e agradaveis para uma congérie de sensitivistas. Para aquele, a Amazénia seria a ultima pagina do Génesis que o homem ocupou sem ser chamado, um intruso. Para o outro, 60 Inferno Verde.** Para Ypiranga, a inteligéncia do indio é visivel e fora des- tacada em inumeros relatos ao longo da histéria da Amazonia composta por diversos europeus e aventureiros de variada origem: Destacaa tecnologia indigena apropriada a seu meio ambiente como uma resposta satisfatoria a sua necessidade. Observa quanto o colonizador aprendeu com os indios, por exemplo: na arte da guerra, 0 cultivo da terra pela roga-do-co- 30. Idem, p. 45. 31. Ibidem, p. 46. 61 mum, a arte de curar, de navegar as aguas interiores, de fazere beber os vinhos da terra, comer as carnes assadas diretamep. te da brasa e usar a pimenta a gosto. Para Ypiranga Monteiro, o indio e seu “irmao” caboco de. teriam o primado do enciclopedismo natural. Mudando a tica de seus conterraneos e contemporaneos, escreve: Foi o indio quem fez a‘expansao polftico-cultural brasileira pois que, sem ele, sem a sua presenca constante e heroica este imenso pais resultaria hoje talvez um mosaico de linguas, de religiées, de habitos e costumes diferentes. £ na sua inteli- géncia primitivista que assenta de alguma forma a nossa realidade cultural.*? Em sua opiniao, a cultura amazénica é:composta por trés aspectos expressivos: a cultura primitivista- associada as ma- nifestagdes naturais que o indio portaria;-a cultura euro-asia- tica - que se resumiria a influéncia ibérica e'a cultura mestica ~ 0 produto “raciado” da interferéncia do branco na epiderme da cultura indigena. Para Ypiranga, a cultura negra, no caso da Amazénia, seria principalmente urbana. Sua interpretagdo é bem interessante quando avalia a predominancia das trés culturas naquele momento na Ama- z6nia. Comecando com a cultura indigena, lembra‘a perma néncia ainda da linguagem indigena, no caso o Nheengatu, e™ varias regides da Amazénia, em particular no Rio Negro, Alto Madeira e Alto Solimées. Ao mesmo tempo, a lingua portugue- sa trouxe em seu bojo, além de palavras, os comportamentos dessas populagées. No entanto, observa que as influéncias da eiro, Mario Ypiranga. Aspectos da cultura amazénica. Op. cit. P-47- cultura de assimila¢ao portuguesa vao desaparecendo a pro- por¢ao que o mesti¢o de fndio ascende, Em sua opiniao e em suas palavras: Essa terceira posigéo da cultura amazénica, a cultura mestica, é; naturalmente, a que tende a vencer, porque inevitavelmente nos distanciamos cada vez mais do indio, tanto quanto nos afasta- mos do rigorismo da linguagem portuguesa ao aceitarmos, dia a dia, contribuigdes foraneas di- versas e mesmo locais.** E£ possfvel perceber que a otica da mesticagem é ou- tra. Parte de um ponto contrdrio do qual partem as ideias de Freyre, Ferreira Reis e Tocantins. O ponto de unificacao e mo- dificagdio nao é dado pelo portugués, mas antes pelo indigena. Ypiranga continua seu discurso destacando uma série de as- pectos positivos que nao tém lugar no pensamento dos outros autores. Por exemplo, destaca a persisténcia do Nheengatu no dia a dia das populagées urbanas e rurais da Amazénia. As- sim como destaca também as persisténcias de danga e misi- inclusive veiculadas por alguns europeus, como cas indigenas, no inicio do século XIX esteve na von Martius que, como visto, Amazé6nia. Contrapée a Euclides da Ferreira de Castro. Destacand: da saudade da terra. Em suas palavras: Cunha e Alberto Rangel o autor 10 a visdo do deslumbramento e i de Ferreira de Castro Certa feita, em Lisboa, ouv! ele xeram lagrimas aos olhos: alusdes que me trou: : de nostalgia palatina, ao aludia, com uma espécie he yt epee 33 Idem, p. 47- 63 sorvete de bacuri que havia comido uma s6 vex no bar anexo a Bolsa Universal de Manaus.** Ypiranga destaca o humanismo césmico, a hospitalidadg do povo que independentemente dos caldeamentos raciais sy sucedem de gerasdes em geracées. Em sua opiniao, a ignoran. cia que prevalece sobre a Amazonia esta relacionada aqueles que a trazem emoldurada num painel vazio de conhecimen. tos reais, Ele se contrapde com veeméncia aos que continuam concebendo a Amazénia como um reservatério sentimental e légico de uma presumivel infancia cultural brasileira. Reclama da falta de um curso de Antropologia na Universidade Fede- ral do Amazonas que, felizmente hoje, ja foi criado. Dignifica o conhecimento daqueles que enveredaram pela floresta em busca do homem, ao contrario daqueles que fogem de tudo que cheira a {ndio. Destaca Nimuendaju, Nunes Pereira, Kéck- -Grumberg. Considera vulgar atribuir ao homem a ferocidade da selva e 4 selva os males de seus maus génios. Nos dois trechos seguintes, é possivel fazer um paralelo entre as distin¢des do pensamento de Ypiranga com os pensa- mentos anteriormente descritos aqui. No primeiro, escreve 0 autor: A vulgarizacado desses eventos nao se faz comu- mente no Brasil [refere-se participagao dos in- dios no processo de colonizagao] por dois moti- Vos, ou'razdes de peso: respeito a uma heransa lusa que se desejou chamar lusotropicalismo ¢ respeito a uma religidio que se diz humanista mas converte a cultura indigena em mercado de pr go Sale ee 34 Monteiro, Mario Ypiranga. Aspectos da cultura amazénica. Op. city P- 50-52. duso dirigida onde o que menos importa é justa- mente o sabor da originalidade.* No segundo, observa: Quando realizei uma pesquisa de campo sobre ‘o artesanato do guaran4, deparei-me com a preo- cupac¢ao de uma artesa em nao mais fabricar figu- ras de macaquinhos nus com os érgios genitais a mostra porque a igreja achava ser aquilo imoral, uma forma de perversao desagradavel aos olhos do bom Deus. Ataca de uma sé feita os dois pontos fundamentais que norteiam o pensamento dos autores anteriores, em particular de Gilberto Freyre. O que incomodava Ypiranga naqueles anos oitenta do século XX, foi uma expedicao de Jacques Cousteau que se arvorava o direito de dizer a ultima palavra sobre a Amazénia. Como jé mencionado, segundo ele, uma ignorancia emoldurada num vazio de conhecimentos. No entanto, quando toca especialmente no lusotropicalismo e na religiao parece ter direcionado suas criticas especificamente a Freyre e Aque- les que compartilhavam das mesmas ideias. A visdo depreciativa na natureza amazénica era por ele condenada de forma veemente e pouco condescendente: Pois bem: Inferno verde ainda nao foi compreen- dido. Ele nao é a maldigao da terra; nao é 0 vene- no dos charcos; nao é a ferocidade do indio; nao é a hostilidade da selva; nem as garras das feras. 35. Idem, p. 59. 36 Ibidem, p. 56. 65 a Inferno verde 6 0 simbolo da maldade do home transportado para 14."” Gilberto Freyre, Leandro Tocantins e Arthur Reis parti}, vam de um mesmo fundamento de concepgoes. Para eles, to, dos vinculados ao Estado brasileiro de uma forma ou de OUtra, © discurso tornou-se ideolégico na medida em que estabele. ceu uma relagaéo como poder. Ainda que fosse integrativo, no sentido de construir identidades nacionais e extra-nacionais referente A cultura luso tropical, serviu aos interesses de um planejamento de Estado voltado para a integra¢ao cultural e nacional contra os perigos da fragmentag¢ao. Freyre ja chama- va a atengiio para esta fragmentagdo quando da sua conferén- cia em Coimbra, clamando aos estudiosos ;portugueses para irem a luta contra o dominio cultural:islamico na Africa: Ao mesmo tempo, observa-se com:atengao no discurso de Ferrei- ra Reis e Tocantins a necessidade de articular'com o mestre pernambucano umailinha de conduta politica e intelectual que defendesseia Amaz6nia dos perigos de outras diversidades. Em 1982, Leandro Tocantins publicava um livro:sob 0 ti- tulo: Amazénia, natureza, homem e:tempo - uma planificacéo ecolégica, prefaciado por Ferreira Reis. Foi.publicada pela Bi- blioteca do Exército Editora; no Brasil. Em suas paginas, é pos: sivel notar varias dimensées que se-articulam num discurs0 complexo e que deixou os parametros de outra verdade que hoje ganha contornos fortes de um discurso dominante. SU@ primeira edigao data de 1960, Tocantins exorta Gilberto Freyre do livro Nordeste em s¢" espirito ecolégico. Defende, na linha da compreensao ecold- gica do mundo, o que chamou de amazontropicologia, cel* ER er sailed re 37 Monteiro, Mario Ypiranga. Aspectos da cultura amaz6nica. Op. cits P- 62. mente uma refer€ncia ao chamado de Fre énci : : ena da Universidade de Recife, em 1958, 4 uses ‘A Amazénia, apesar dos desmatamentos com- provados a olho de satélite e do paroxismo de uma explora¢ao econémica sem peias e sem en- tranhas, continua, de certa forma, a ser aquela pagina ainda molhada pelo orvalho do Génesis, como a imaginou Euclides da Cunha. Sua gran- deza territorial talvez nos diminua o enfoque de uma degradacao que ja comecou e nao vai parar.. O Homem - esta cientifica e socialmente provado ~ nao tera destino inverso ao da natureza.* Propée uma eucaristica ecolégica na qual a visdo espiri- tual da natureza deveria ser incorporada e revivida no seio do cristianismo. Para ele, o confronto entre homem e natureza seria um completo desastre. Desta forma, defende uma critica do homem a sociedade técnica e 4 sua ideologia e a limitacao da esfera econémica. 0 discurso ecolégico de Tocantins parece destoar do que até agora tentei conectar. No entanto, textualmente ele in- dica sua filiago a Gilberto Freyre. O que talvez imprima um contetido singular no seu discurso é 0 peso do determinismo geografico que, partindo de Freyre e Aratijo Lima, ganha outra dimensdo no processo mesmo de ser repensado. Um aspecto fundamental do discurso sao as possibilidades de suas leitu- ras e o de serem historicamente construfdos. Nao podemos desvinculé-los de seus referenciais. Tenens neg ‘ 38 Leandro Tocantins, Leandro. Amazénia, natureza, homem e tempo. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1982, P- XXXIV. 67 nto ele como Arthur Reis, ¢ ii i jtua¢do no m i jntelectuais da si 7 mo Gilberto Freyre, eram : #3 cbs do golpe militar de 1964, Por muitos, copetcerady de i istocratica, Gilberto Freyre sempre se P' r Ut Doe sieanisite 3 dos governos de direita, 4 iti aa favor liticamente de forma cla Spates presiage i i te quando apo) 1 mudanga veio tardiamen' i én cia, Tanreds Neves. Ao mesmo tempo, Ferreira Reis partici. ou ativamente do governo militar, tendo sido governador do tienen por indicag4o do mesmo governo e sem voto popu. lar. Além disso, assim como Freyre, estava sempre em contato com 0 governo ditatorial de Salazar. Nao podemos esquecer que ta Possibilidades levantar algumas possibilidades para o Podemos, entao, r qual seja, desvendar os eixos objetivo tragado por esse texto, d : discursivos que alimentaram a rede de ideias e que ainda po- dem alimentar a imaginagao social sobre a Amaz6nia. Ao mes- mo tempo, podemos também colocar em evidéncia que, para além de uma historia das ideias, cabe aos que buscam com- preender esses eixos discursivos verificar a dimensao de-suas forcas submersas. Para além dos contextos, mas consciente de seu papel, e em razao da profundidade de camadas de tempo- ralidade, com suas forcas de dispersado e convergéncia, essas forgas submersas nos impactam com a complexidade no mo- mento de tornar inteligiveis os seus significados. Nesse senti- do, a multiplicidade de propostas, sua aparente homogenia ¢ sua heterogenia intrinsecas, nos apresentam um mosaico de possibilidades que foram conduzidos, no Ambito dos conte tos especificos, por alguns eixos estruturantes. Portanto, pal@ Tesponder a questao do que une esses quatro autores na cons: igo, produzido ainda do final da primeil 68 ‘omo base para processos adaptati i iptativos que culminam na Produgao de uma cultura mate- rial especffica. On < adaptacio foi 0 eixo mais profundo que dno perme chs tas Slr tz ‘a. A adaptacao dos portugueses aos trépicos; a adaptaciio dos trépicos aos portu- gueses; a adaptacao da natureza a cultura e, por fim, a adap- tacado da cultura a natureza. Nesta dimensio adaptativa ganha corpo a figura mestica, fruto de mistura cultural e biol6gica. Hoje, em pleno século XXI, as ideias de Tocantins, Freyre e Ypi- ranga ainda tém forca e, com as de Ferreira Reis, alimentam ainda um conjunto de agoes e de imaginarios. A polaridade negativa entre natureza e cultura, entre ho- mem e meio ambiente nao cessa de alimentar a ideologia do poder, seja nos seus aspectos conscientes ou inconscientes. Esta polaridade é 0 que caracteriza os discursos analisados como padrées de produgao de novos discursos sobre a Ama- z6nia. A nocio de desenvolvimento é uma palavra magica que ainda hoje se faz ecoar em politicas publicas para a Amazé- nia. Por outro lado, o pensamento ecoldgico com seu discur- so ambiental é de dominancia mundial e se constitui hoje a partir de outros significados, muitas vezes divorciado do ideal desenvolvimentista. = A Amazénia funciona hoje, para 0 imagindrio politico na- cional, como o grande celeiro de recursos minerais, como ne tencialidade agricola, como floresta intocada, Sa seus significados em novos cone < piodiversidade. Muito tante a manutencdo da floresta ee Ivimento de pesqui- desse conhecimento deveu-se a0 desenvo 69 sas financiadas por érgiios do proprio Estado, em razao da mo. dificagdo do jogo das forgas politicas na tentativa de implanta, ao de um novo federalismo, 0 Inpa ~ Instituto. Nacional de Pesquisas da AmazOnia, umas das instituigdes que 8anharan, peso naquele novo contexto, engendrou possibilidades para q mudanga dessa percepcao. A amazonotropicologia e 0 lusotropicologia eram: duas ciéncias propostas por Leandro Tocantins e Gilberto Freyre para enfrentar 0 desafio de um novo projeto de desenvolyj. mento para o Brasil e para a Amaz6nia, Portanto, com 0 luso- tropicalismo, Freyre ambicionava uma adaptagao da moder- nidade aos trépicos. No caso:da amazonotropicologia, temos uma ciéncia que se propunha a entender as potencialidades da regiao para adapta-la ao desenvolvimento trazido pela moder- nidade tecnolégica e industrial. Mesticagem, tropicalismo, cultura local, adaptagao sur- gem como mantras, um diapasao que cria uma frequéncia si- milar nos quatro discursos, mas, tal qual ao som do jazz, cada instrumento cria um fraseado disperso, mas foge e retorna ao eixo primeiro. A defesa da cultura indigena Por Ypiranga fu- giu um pouco mais desse eixo, mas ainda comunga do mesmo sentimento local, romantico e nostalgico. 0 {ndio com sua in- teligéncia e sua civilizagao distinta, ainda é uma etapa que sera suplantada pelo caboclo, esse sim representaria o futuro. Fer- reira Reis e Gilberto Freyre so francamente luséfilos partidé- rios de uma visao positiva da mesti¢agem, mas fundamental- mente partidarios das fontes europeias. Tocantins, da mesma forma, defende a cultura local como as respostas posstveis da experiéncia humana para sintonizar as agdes de intervensi0 na regiao, tornando-as mais eficazes e valorizando as rafzes amazénicas, ainda que tenha sido sensivel, em certa medida, 4 preserva¢ao da floresta. As respostas para as questdes que nortearam este ensai0 sao muitas e nao se encerram nas possibilidades de respos" 70 tas aqui assinaladas. E necessario explorar melhor essas refe- réncias para descobrir 0 que nelas ainda pode existir de forca de verdade e de base para as agées politicas que impactam nossas vidas. Vivemos hoje uma retomada do desenvolvimen- tismo e uma mudanga no modelo econémico para a regio. O desmatamento se alastra de forma incontrolavel. A forga da ideia do Inferno verde que precisa ser dominado ou da primei- ra pagina da génese que precisa ser explorada esté af e persis- te - ideias de Alberto Rangel e Euclides da Cunha. Por outro lado, uma ala da politica conservadora defende abertamente a integraco dos indios a sociedade nacional o que culminaria, em Ultima instancia, com o apagamento de sua identidade ét- nica e sua consequente mesticagem. Portanto, a proposta de mudang¢a no modelo se baseia em eixos estruturantes antigos e que ainda vigoram, porque a forca do passado nao pode ser menosprezada. A Amazé6nia ainda persiste em suas misérias e em seus mistérios, mas até quando? aK 2

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