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2 Criminalização, racismo e preconceito

Rogério Haesbaert235*

Apresentação

A dinâmica das migrações (ou seus “caminhos”, para nos reportarmos ao título deste
livro) envolve sempre, em distintos níveis, dependendo do contexto geo-histórico, a
(re)construção de um Outro advinda do encontro de vivências e trajetórias. Os quatro
artigos que integram esta seção, sob diferentes enfoques e em diferentes contextos,
abordam facetas desse encontro, em que o Outro, em diversos momentos, passa a ser
discriminado e (re)classificado. Surgem daí tanto posições claras de racismo, inclusive
em termos de legislação, como evidencia Giralda Seyferth em seu percurso pelas polí-
ticas migratórias brasileiras e seus discursos discriminatórios, quanto iniciativas de res-
guardo e proteção, que envolvem a manutenção de elementos culturais, como aponta
Sofia Zanforlin em sua análise das “etnopaisagens” de bolivianos em São Paulo e de
africanos no Rio de Janeiro.
Giralda Seyferth abre esta seção com “O Estado brasileiro e a migração”, um balanço
cuidadoso que refaz o percurso da questão racial e do preconceito ao longo de toda
a história da política migratória brasileira, desde uma situação inicial, em 1808, até o
contexto pós-Segunda Guerra Mundial, passando pelas políticas do período escravista e
daquele denominado como o da “grande migração”, de 1888 a 1914. O artigo destaca
momentos em que o caráter racista e/ou “etnicista” da política migratória é reiterado
e explicitamente reafirmado. Começa com o ideal civilizador do início do século XIX,
quando a colonização suíça, por exemplo, visa “promover e dilatar a civilização do vas-
to Reino do Brasil”, como consta num decreto de Dom João VI datado de 6 de maio de
1818. Conforme a autora, “a ideia de raça passou a fazer parte do discurso sobre a imi-
gração somente na segunda metade do século XIX, mas a alusão a um possível processo
civilizador introduziu um princípio de desigualdade associado a uma nova forma de
ocupação territorial que priorizou a colonização europeia”.
Em 1850, com a possibilidade das primeiras colonizações privadas, o governo impe-
rial começa a definir o perfil do imigrante ideal, caracterizado como agricultor, mora-
lizado e em plena capacidade produtiva, excluindo maiores de 45 anos, emigrados por
motivos políticos (incluindo os de passado revolucionário) e doentes. Nos termos do
próprio Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1861, em relação aos
chineses, tratava-se de não permitir a inclusão de uma “raça bastarda”, de civilização
“decadente e corrompida pelo ópio”, excluindo assim essa migração oriental.

235 * Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São
Paulo (USP).
Mesmo no período de maior imigração para o Brasil (1884-1914), aponta Seyferth,
restrições de natureza racial ficam evidentes, como num decreto de 1890 que enal-
tecia os “indivíduos válidos e aptos para o trabalho”, “excetuados os indígenas [ =
nativos] da Ásia ou da África”. O “branqueamento” da população brasileira e a crença
na superioridade da “raça branca” são francamente defendidos na primeira metade
do século XX, incluindo, de alguma forma, pensadores como Silvio Romero, Oliveira
Viana, Euclides da Cunha e Afrânio Peixoto – este último chegando a afirmar que “a
albumina branca depura o mascavo nacional”. Discutia-se mesmo sobre os “graus de
fusibilidade” das raças.
A esse discurso etnicista-branco somou-se outro, ao longo do período Vargas, que
incluiu o “abrasileiramento” forçado por meio da condenação de pretensos “quistos
étnicos” em território nacional, especialmente em relação às zonas de colonização ale-
mã do sul do país. Foi quando se proibiu o ensino em língua estrangeira nas escolas e
mesmo o uso cotidiano de outros idiomas que não o português. Ao longo da história
da política brasileira para as migrações não faltaram, portanto, manifestações de pre-
conceito, algumas mais explícitas, outras mais veladas, restando assim a lição para que,
neste futuro de aumento de fluxos migratórios para o Brasil que parece se desenhar,
não voltem a ser adotadas políticas de caráter segregador.
Também numa ótica de certo modo histórica, Marina Cavalcante Vieira traz uma
interessante análise da leitura discriminatória do migrante a partir das histórias em
quadrinhos, mais especificamente as de Batman e do Super-Homem. A autora trabalha
os temas da migração e da assimilação à luz do tratamento proposto pela Escola de
Sociologia de Chicago, “focada sobre os temas da migração, delinquência e criminali-
dade no contexto urbano”. O período de maior influência dessa escola, entre 1915 e
1940, coincide com o recorte proposto pela autora para a análise das cidades fictícias
de Gotham e Metrópolis. Ela considera que essa coincidência temática entre quadrinhos
e teoria sociológica está relacionada a algumas das questões mais importantes pelas
quais passava a sociedade norte-americana da época, marcada pela grande mobilidade
humana e intensificação da urbanização.
A visão estereotipada dos orientais veiculada nesses quadrinhos é um bom revela-
dor da ideia genérica de Oriente criada pelo Ocidente, nos moldes do “orientalismo”
de Edward Said. Alguns personagens também fazem alusão à necessária “assimilação”
propagada pelo pensamento e pelas políticas da época. Para Park e Burgess, defensores
de uma “fusão de culturas”, uma concepção popular de assimilação compreendia “a
cultura nacional como uma entidade homogênea à qual o migrante deveria integrar-
se”. A participação gradativa do migrante na vida social e suas sucessivas gerações leva-
riam a um processo assimilacionista em que a memória migrante seria gradativamente
dissolvida pela fusão cultural.
Para a autora, a cidade de Gotham em Batman revela o melting pot norte-americano
e a diversidade de culturas que aí se encontram. Já o Super-Homem, ele próprio um imi-
grante (“intergaláctico”), seria “um mito moderno que representa a moralidade bem
como os ideais norte-americanos de liberdade e assimilação”, “símbolo da cidadania e
do sucesso dos não nascidos nos Estados Unidos que foram assimilados e integrados à
sociedade”. Mesmo como imigrante, ele “é patriótico e superamericano em suas ações
e ideais”. Enquanto em Batman o imigrante “assume o papel ambíguo de ser ou crimi-
noso ou sujeito em vias de assimilação”, nos quadrinhos do Super-Homem “o imigrante

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intergaláctico é o próprio super-herói” e pode ser interpretado como símbolo do suces-
so imigrante em solo americano.
Sofia Zanforlin, em “As etnopaisagens e a negociação do pertencimento na cida-
de contemporânea: da praça Kantuta ao corredor da Central”, contrasta a negociação
“assimilacionista” do pertencimento, defendida no passado (como aponta o artigo de
Marina Vieira), com a reiteração da cultura e seus traços originais, numa constante in-
terlocução com a cultura local. Para isso ela aborda exemplos de grupos que podem ser
considerados paradigmáticos no atual contexto brasileiro, o dos bolivianos na praça Ka-
tunta, em São Paulo, e os migrantes africanos no corredor da Central, no Rio de Janeiro.
Esses espaços são entendidos como “etnopaisagens” que atuam de forma decisiva na
sua constituição enquanto grupo em busca de reconhecimento.
A diversidade da metrópole é incorporada e reforçada nesse processo, e os recursos
midiáticos impregnam intensamente esses movimentos. Como afirma a autora, “a influ-
ência das comunicações de massa na constituição do imaginário dos novos migrantes,
como mediadora de trocas informacionais e atuando da construção do projeto migra-
tório à negociação do pertencimento local, é o pano de fundo marcador do contexto
atual”. Esses novos grupos migrantes são assim conduzidos pelo princípio norteador da
interculturalidade (poderíamos dizer também transculturalidade), “ampliando o uso do
termo, que ultrapassa os aspectos culturais e identitários, abrangendo também os polí-
ticos e relacionados à cidadania”.
O encontro a que aludimos inicialmente, e que se desdobra entre os novos migrantes
e os “estabelecidos” (para utilizar um termo popularizado por Norbert Elias),236 é en-
fatizado nas próprias relações intragrupo, refundando sua identidade por meio dessas
“etnopaisagens” que unem e, ao mesmo tempo, visibilizam o grupo frente aos outros
da cidade em que estão situados. Assim, “a relação de negociação do pertencimento
nessas comunidades está definitivamente atrelada a uma sociabilidade desenvolvida
no encontro, no contato, na conversa, em que as etnopaisagens se confirmam como o
lugar de troca e construção de redes e contatos entre conterrâneos e a sociedade em
que procuram se inserir”.
A autora conclui seu trabalho questionando a própria ideia de multiculturalidade,
pautada no universo norte-americano que traduz a diferença pela tolerância, “pela
mera ‘paciência’ com o outro”. Abrigar diversidades não basta, é preciso a intensifica-
ção dos contatos, “a abertura generosa e curiosa para o Outro”. O intercultural, hoje,
distintamente, viria “embebido em atritos proporcionados pelo encontro, pela visão,
pela troca”. É essa metrópole múltipla das etnopaisagens, portanto, que está em jogo,
sempre em movimento, sempre em conflito. Processos de exclusão e fechamento cami-
nham paralelos, e é preciso aprender a superá-los.
José Gabriel Bastos traz-nos o texto “Da etnografia colonial à análise estrutural-di-
nâmica de um campo de relações interétnicas”. Trata-se de um detalhado estudo quali-
quantitativo que propõe “uma nova focalização nas relações identitárias e sócio-his-
tóricas que grupos imigrantes estabelecem entre si e com o povo receptor (em muitos
casos o seu ex-colonizador), num dado campo interétnico em vias de complexificação e
dinamização”. Assim, com base na análise fatorial, ele propõe uma série de indicadores
que revelam a relação entre “gêneros, gerações e segmentações subétnicas (religiosas,
regionais ou faccionais), a partir das quais e em articulação com as quais são configu-

236 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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radas estratégias divergentes de relação interétnica que visam manter, aumentar ou
esbater a distância cultural ao país receptor e às restantes minorias presentes no mesmo
campo interétnico, mobilizando processos de inserção social diferenciada”.
A pesquisa incidiu sobre seis minorias étnicas presentes na região metropolitana de
Lisboa, desde grupos recém-chegados, como os sikhs, até minorias de antigas colônias
africanas (cabo-verdianos, hindus, sunis e ismailis provenientes de Moçambique), com
ampla inserção na sociedade portuguesa, e portugueses ciganos, vivendo há muitos sé-
culos em Portugal. Elas são abordadas a partir de sua dinâmica microfamiliar entre sexos
e gerações, sua relação com o mundo religioso e a dinâmica específica das relações in-
terétnicas. Uma série de conclusões é comentada e, ao final, relacionada com pesquisas
anteriores, quando fica evidente a transformação de alguns atributos identitários a par-
tir da vivência – ainda que temporária – no universo cultural português, como no caso
dos hindus de Moçambique que, ao migrarem depois para a Inglaterra, passam a con-
frontar sua autoatribuída maior “flexibilidade” e tolerância com a “frieza e racismo”
dos ingleses que, na visão desses migrantes, teria sido incorporada pelos indobritânicos.
Vários são os exemplos, nesses textos, concomitantemente, da afirmação de posições
segregadoras e mesmo racistas e de outras que, na multiplicidade de contatos ao longo
do caminho migratório, relativizam posições e atributos. Se o espaço, como defende
Doreen Massey,237 resulta de um encontro de múltiplas trajetórias, ainda que elas se-
jam marcadas pelo racismo e/ou preconceito segmentadores, também trazem consigo,
sempre, alguma possibilidade para a realização de outros encontros e a abertura para
o desenho de novas trajetórias. Talvez fosse o momento de estimularmos as iniciativas
“transculturais” (como diria o cubano Fernando Ortiz)238 que, para além das divisões
e/ou da “aculturação” de um grupo em relação ao outro, promova o diálogo efetivo
que, ao invés de simplesmente subtrair de uns para que outros ganhem, signifique o
enriquecimento cultural mútuo na conformação de um “terceiro” espaço que, como já
ocorreu tantas vezes ao longo da história, represente mais a soma do que a subtração,
mais a integração do que a divisão.

Referências

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.


MASSEY, Doreen. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
ORTIZ, Fernando. 1999 (1940). Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. 1. ed., 1940. Madri:
Editorial Cuba-España, 1999.

237 MASSEY, Doreen. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
238 ORTIZ, Fernando. 1999 (1940). Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. 1. ed., 1940. Madri:Editorial Cuba-España, 1999.

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