SALA ESPECIAL
” FELICIA LEINER
Felicia Leiner apresenta ao pablico, como tarefa cumprida,
9 resultado de seu trabalho dos dltimos anos. Ela o faz humil-
demente, como quem presta contas, Contas de qué? De seu
prémio da Bienal passada de “melhor escultor”? Nao, positiva-
mente nao. Felicia nao é fatil para empayonar-se com o prémio;
nio é tao pouco orgulhosa para rejeita-lo; sua sala atual, de
coseqiiéncia regular daquele prémio,“é sobretudo, um ato de
humildade diante do publico. Ela lhe quer mostrar que nfo
se abriga 4 sombra daquele galardio nem descansa “sdbre os
Jouros”,
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Sua obra nio parou. Hoje, em que se sente desobrigada
de tédas as exigéncias da vida doméstica, da vida familiar, ela
dialoga com a prépria obra. Mais do que dialoga, a obra a
puxa para aqui, para acoli. As antigas influéncias, ora de
Lehmbruck, no alongamento linear das massas, ora por um
momento de Marino Marini, na sensualidade dos volumes, ora,
sobretudo, de Moore, no jégo alternado dos vazados e cheios, das
formas abertas pontuando as formas fechadas — desapareceram.
Agora, diz ela, a obra sai “de mim para mim”. A obra lhe nasce,
a obra cresce, caminha e ela, Felicia, a segue passo a passo.
Segue-a as apalpadelas, as mios para a frente como uma ceca,
de pouca visio externa, mas de uma outra visio — que esté na
ponta dos dedos titeis ¢ se desdobra interiormente, Nessa visio,
porém, a artista confia, a ela se entrega ¢ através da qual
litubeia. Sua imaginagio plistica nfio é visual, mas hdiptica.
Por isso mesmo seu espago é feito de acurmulagdes que se adi-
cionam, e no parte de uma concepcao, de uma forma total, como
na visio classica, latina.
A sala atual de 1965 6 a chegada de uma viagem de vinte
anos, Felicia iniciou-se como escultora em 1945, quando sua
direta tarefa materna estava por assim dizer cumprida, e as
eriangas cresciam. A ansiedade por si mesma, enfim extravasa
4 procura de expressao: a artista nascia dentro dela. No de-
curso désses vinte anos, cla foi descobrindo os scus temas ¢
seus macleos formais. A figura humana foi seu primeiro tema.
A escultora encontrou nela um esquema estrutural de forte
concisio plastica, num ritmo vertical-horizontal que do corpo
material traduz a esséncia vital.
A matéria descarna-se, perde as exuberancias curvilineas
mas acentuando a organicidade fundamental do que se localiza
no térax, na bacia, na orografia facial, articulados por uma
sucessiio de planos, de céncavos e convexos, de linhas e tragos,
com real poder expressive. As figuras de mulher, da mae, sobre-
tudo — a maternidade no fundo é nela tema tio importanteBRASIL
quanto o era na obra patética de Kathe Kollwits. Tém o sabor
do que na passagem do tempo natural é perene. Nao interessa
a Felicia a sensualidade das formas abundantes e curvas, das
superficies trabalhadas, das epidermes alisadas, pois o que a
toca é outro calor, o dos instintos fundamentais que se aninham
14 dentro, no 4mago das engrenagens organicas.
Veio depois a passagem para a elaboragio abstrata que, em
Felicia, nos momentos felizes, nao perde aquéle calor, Suas
antigas figuras isoladas se juntam em grupos, justapdem-se, as
formas despedagam-se, os espagos abrem-se por dentro, os vazios
participam das estruturas, rasgam-se em iluminagdes. Um es-
quema humano como que se arrima a um esquema vegetal, o da
Arvore, e fundidos apresentam uma forma escultérica que se
mantém em si mesma, O seu dom principal de escultora talvez
seja éste de poder essencializar a matéria, reduzindo-a quase A
infra-estrutura, sem no entanto perder a organicidade.
Désse processo formativo abstrato surgiu outra tendéncia,
a das construgdes que se erguem por adigdes, parte a parte,
célula a célula, independentemente da subjetividade irremedié-
vel da artista. Felicia as considera como arquiteténicas, ou
construgdes que se formam fora dela. HA4 aqui uma vocagio
espacial estranha, cuja funcSo dir-se-ia ser tentar contornar 0
tempo vivencial.
‘Quando Felicia péde descobrir a célula formal de suas
figuras humanas, teve nela o médulo dessas construgdes. Essas
células germinais, feitas de um modélo extremamente reduzido
e abstrato do corpo, entram a articular-se umas ds outras, nas
mais diversas posicSes no espaco, ora emborcadas ora em salién-
cias, de que resultam alguns de seus grupos nfo shmente din4-
micos mas ricos de prama pldstico. (Felicia encontrou nesses
germens formais como que as particulas fisicas de que se
compée sua afetividade.
‘Quando Isai Leimer morreu, ao sair Felicia da experiéncia
dolorosa descobriu outra redugio formal radical que passou a
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utilizar, como um “teit-motif”, em construgdes antes de planos
bidimensionais que de volume. Essa reducio era feita de partes
cruzadas, verdadeiras cruzes. Nao foi ela que a inventou —
apareceu numa série de obras como pregadas a paredes de
monumentos memorativos. Dai surgiram estruturas verticais
encimadas por pontas, flechas de capelas, de igrejas, de castelos
goticizantes.
A linguagem plastica de Felicia é filha de uma sensibi-
lidade nérdica, de surdas ressonincias nostdlgicas e misticas e
fatais sujeigdes terrestres.- A natureza tende a envolver cada
ver mais essa obra com o seu manto de heras e tempo. Como
a natureza tende a reunir e nfo a separar, a fundir e nfo a
distinguir, a fazer com que seu ultimo fruto seja o resultado de
nenhuma exclusiva anterior, mas de tédas as experiéncias e ten-
tativas pécas precedentes, a obra escultérica de Felicia Leirner
tem essa continuidade natural, que nada exclui existencialmente,
é é sempre por isso mesmo fundo e quase nunca figural. Exala-
-se dela niio um espirito aristocritico, especulativo, dominador,
mas uma simples, modesta, surda vivéncia existencial, que flui
14 em baixo nas profundezas do ser, como um rio silencioso entre
as vertentes origindrias, Um pendor ao siléncio e a solidao
perpassa pela escultura, nao por egoismo, mas por necessidade
de recolhimento como para compassar definitivamente o seu
ritmo da natureza. Désse compasso espera a artista que sua
obra prossiga, como o seu préprio viver, quer dizer, fazendo-se
asimesma. Naturalmente. F criacio.
Madrio Pedrosa
ESCULTURA
1, Escultura 1, Bronze, 1968/04. 80 x 70 x 135,
2. Escultura 2, Bronze. 1968/64, 75 x 90 x 120.
3. Escultura 8, Bronze, 1968/é4, 70 x 70 x 10.
4. Escultura 4, Bronze, 1963/64, 65 x 10 x 66.
5. Escultura 5, Bronze, 1968/64. 160 x 10 x 110.
6. Eseultura 6, Bronze, 1968/64, 160 x 85 x 100.BRASIL
T. Escultura 7, Gésso, 1964/65. 200 x 240 x 800.
& Ezscultura & Gésso, 1964/65. 110 x 230 x 220.
9. Escultura $9, Gésso, 1964/65. 280 x 220 x 240.