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O corpo na psicossomatica psicanalitica Admar Horn ofa da rade Pieanalise Revista Brasileira de Psicondlise volume 50, n.2, p. 2096 - 2016 Resume ‘Neste texto, o autor descreve o corpo na perspectiva de wma ‘aiagdo pricossomstica pricanaltica, mostrando os avangos tebrico-préticos obtides nesses ttimes anos com base nos cconecitos da Escola Psicossomtica de Pats Palavraschove corpo somitico e libidinal; afto; vida operatéria; epressio cessencial; trabalho de somatizagio, O presente estudo trata do corpo na sua dimensio psicanalitica, evidenciando ‘a manifestagdo do inconsciente nas situa- g6es psicossométicas. Em que consiste 6 trabalho de andlise com os pacientes denominados psicossomaticos? Existi- ria uma psicandlise propria das doengas psicossométicas? O corpo € 0 lugar primeiro de encontros construtivos e € por vezes esquecido, pois, frequentemente, tratamos apenas do men- tal (Jomnadas de Abril, 2016). Entretanto, 0 estudo da psicossomatica psicanalitica ndo nplica necessariamente um controle sobre © corpo, visto que toda ¢ qualquer pessoa pode adoecer e, paradoxalmente, nem todos 6s pacientes psicossomiticos adoecem. A construgao do corpo € um (co) movente processo grupal, uma vez que 0 corpo psfquico contém outros, isto €, sig nifica as representagdes dos objetos com 9s quais 0 sujeito se ligou (Eiguer, 1997) Um dos recursos terapéuticos que vér sendo utilizados com esses pacientes psi- cossomiticos é 0 psicodrama psicanalitico individual. Dito de um modo psicodrams- tico, tratase de presenciar e repensar a dra- maturgia do corpo na psicanilise. Appsicandlise aplicada aos pacientes pst cossomatices, apesar dos confitos ideol6gi- cos existentes, encontra ancoragem teérica na Escola Psicossomética de Paris, eriada por Pierre Marty, Michel de M’Uzan € Christian David (1963). Isto seré demons- trado ao longo deste texto, Desta forma, o modelo da converso his- térica, proposto por Freud, é substituido por esse outro modelo tedrico, proposto pela Escola de Pais, o qual 20 longo do tempo encontrou fortes resistencias no se10 da comunidade psicanalitica - como a grande iso, nos anos go, com um desacordo radi- cal entre P, Marty e J. McDougall: Joyce McDougall (1973, 1989) sustenta a tese de que a eclosto somitica é0 resultado do deficit de mentalizacao devido a falhas na paraexcitagto, 0 que justficaria a falta de capacidade fantasmitica constituida no ‘momento da construgdo do pré-consciente. As manifestagbes somiticas sdo uma forma- fo de compromisso utilizada pelo sujeito para manter a sua sobrevivencia pstquica Assim, diferenciando-se do modelo freu- diano da conversio histérica, McDougall diz que essas solugdes psiquicas ndo se refe- rem apenas’ dimensto edipica, como pro- poe Freud, masa conflitos relacionados ao direito de existit mais primitivo do sujeito. Esse problema histérico arcaico somente seria resolvido através do recurso da ins- tauragdo de um longo dispositivo analitico. Esse trabalho com os pacientes psicos- somiticos nos confronta com situagdes algumas vezes extremamente adversas pratica habitual da psicandlise, uma vez que, em geral, sao pacientes portadores de sma baixa capacidade tanto de mentaliza- do quanto de associat livremente A nogdo de mentalizagao se refere 2 duas dimensdes do aparelho psiquico: 4 quantidade ¢ & qualidade das represen- tagdes psiquicas em um determinado suieito. A partir de observagdes realizadas em entrevistas ditas de investigaedo, con- duzidas com pacientes apresentando doen- gas somaticas, Marty estabelece diferentes delimitagées a respeito da quantidade e da qualidade das representagdes segundo os andividuos. Fssas delimitagdes deram on gem atm sistent de classifieagio hier feviea de ndividuos ¢ de doengas. Assit, 08 spn tos €as doengas a que esto stjci#Os a diferenciam quantitativa € qualitative: mente (Matty. 1990 Segundo. Marty, oy conceitos de pensa- mento operatério ¢ depressao esencial SiO Freeads nea ee insine no fato de que crane depress essencial,nnnca mais NOS ceaqrecemos,certamentedevido 20 fate de que o quadro 6 partewtarmnente gave Tan fangao dos achadlos orinmdos de seus trabalhos clmicos, Marty ¢ M'Uzan so nos depararmas eon um paciente rofsit962|) apontan que, salen pacientes somatices apresentam, Pens ietos superficais. desproxidas de v2l0r libidinal a realidade ext ialados & materialidade dos fatos, Desse vnodo, suigerem «ue os sujetos em ges tuo se caracterizam por wm compron timento da capacidade de simbolizagio daeessivamente orientados pas na ¢ estreitamente vi"- Awlemais, propoem quie esse comprome- timento tende a se desdobrar em uma vramsidcrivel restrigio da atividade fantas” ritiea, com importante apagamento de toda expressvidade de ordem mental que denota a exstniia de tm earenela funcional do psiquismo. ‘Lima veemente propensio 2 agio em detrimento da simbolizagto se destaca fomo anita caracteristica, dos pacien tes somaticos. Condutas pouco clabora- das do ponto de vista psiqnigo sio ento iotadas para minimizar © impacto cat vido pelas excitagdes. Iso stgere te vnconseiente nao consege se conicar Reviste Bresiave de Paleensite volume 50, 7.2: 2016 entagdes ¢ mediante o emprego de repre vende a encontrar no conportamento st tinica possibilidade de expresso, Poles sapor diante do espost que a Testis Fantasmatica que os caracteria faz co apa Math senséro-motor wna via prsilegiala te exteriorizagao das demandas pulsionais ‘Marty, MUzan & David. 1963) {al hipstese adquire aimda mais con” sistencia partindose co principio de que. onformie Marty, M'tizan David (1963). € possivel natar no diveuso dos stieios fo questo que suas playa Frequent ere se encontrar desvincuadas de cle Mentos simbelicas ¢ to emapregadss como vv amero instramiento de descargas te pes, Ox seja. sts verbalizaghes nto sho etapa e tampouco determinadas Vale aentar,entretato, qe psiqaismo de pacientes somtics nfo se encom plens rent destigado do inconseiente, Contatos arcaicos S40 mantidos com Os contetidos sitados para al ao subsidia 0 desenvolvimento de clabort- Goes integradoras ca vida pulsonal No inicio da década de 60, esses autores ceunivaram 0 terino pensamento operat. mda consciéncia, mas isto como referéncia no apenas a ums moda Tetade de pensamiento, mas também & 80 tipo de organizagio prices ‘Amalmente, pe expresses funcionamento operatério ¢ ida operatoria sto cnvpregadas 1 Titerae tana eientifica especializada camo ststi- tutas do conecito original Prcientes ditos somdticos conmimente presenta a fetonanentpsiaen ee corpo ne pricossométce psicarclitice or Horn que se situa entre ay neuroses € as psico- ses. Modemamente, as pesquiss cientifi- cas consideram que a proximidade maiot & com as psicoves Neste contexto, me parece fundamen- tal, no manejo psicanalitico destes pacien- tes. que tentemos obter. no decorrer do processo analitico, uma maior espessura do pré-consciente. A partir daf podem sur gir posibilidades de ligagdes, por exemplo. entre o corpo € o psiqismo, Ksses pacien- tes que se mostram limitados ma sua eapa> cidade de pensar/representar ndo teriam alternativa sendo recorrer & agdo para ‘enfrentar 0s eventos traumiticos que s€ Thes apresentam, Segundo Marty, a causa disso é um modo de desenvolvimento da paraexcitagdo na experi snijeito que tem como consequéncia a inst Feiénicia do desenvolvimento do pi ciente, 0 que diferencia esse sujeito dos pacientes neuréticos, que estariam muito ais sob 0 efeito do recaleamento, A paciéneia é uma ferramenta de traba- Tho essencial no decorrer do processo anal tico com esses pacientes ¢ é extremamente itil, pois as alteragoes psfquticas, quando acontecem, slo sempre resultado de win Jongo trabalho de analise. Exemplificando, nna maior parte dos casos, 0 surgimento de material onirico aparece somente apés um grande avango do percurso psicanalitico. As ligagdes entre 0 corpo ¢ oafeto esto presentes na origem da medieina, desde 0 corpus de Hipdcrates ¢ a teoria dos humo- res na formagao do cariter e das doengas. ncia precoce do cons: 33 até a medicina modema ¢ a psicandlise Os afetos esto no centro das causalidades diferentes tanto dos problemas psiquicos quanto das afecgdes somiiticas. Freud inicialmente concebeu 0 afeto ‘numa dimensio econdmica, o quantum de afeto sendo algo que pode ser atumentado. deslocado, descarregado. ¢ que s¢ expallia sobre os tragos mnésicos das representa {goes um pouico como se fosse wma eargE ha superficie dos corpos. A medida que a primeira ¢ sobretudo a segunda tépica foram sendo elaboradas, desenvolveurse uma considerivel complexidade, tanto no plano dinamico quanto no quantitative, pois 0 afeto tornou-se representante da pulsdo assim como a representagdo, mas de maneira diferente Surgem, entdo, as quest6es da incons- ciéncia do afeto, do estatuto do sentimento inconsciente de culpabilidade, dos estados de dessimbolizagio ¢ da desqualificagdo nas patologias no neurdticas. 4 clinica psicossomuitica nos faz repen- sar os destinos do afeto descritos por Freud: repressdo, deslocamento, transformagao ‘em angiistia — esses destinos estando na dependéncia da eficitneia da agao do recalcamento sobre as representagdes, ago eujo verdadeiro alvo € comuar. reprimir a carga energética do afeto. A Escola Psicossomittica de Paris des- taca a dimensio econdmica do afeto, entre processos psfquicas © somaticos. O tratamento do afeto é bem particular no paciente somatizante ou operatorio. no qual “o drama no 6 legivel” tanto na sua valéncia positiva quanto na negativa, scia por falta, scia por excesso. Contrariamente & melancolia, em que osafetos sdo contextwslizados num conflito natefsico ambivalente com 0 objeto perdido. nna depressio essencial aparece uma supres- sfo/climinagao dristica dos afetos, uma extingdo da vida pulsional, baixa do tonus \ital, sem contrapartida econémica, precut- sora da eclosio das doengas somiticas. Marty também descreveu a importancia da qualidade da angistia na mentalizagdo. As angistias objetais, favorecendo as capa cidades regressivas, numa visio defensiva, permanecem operantes nas somatizagdes hbenignas. Os afetos guardam, neste caso, uma tonalidade barulhenta subjacente & expressio dos confitos psiqiicas. Ao con- tririo, nas desorganizagdes progressivas, temos 0 selo da calma, 0s afetos estdo apa- gados ¢surdos, dando lite curso as angus tias difusas, auitomticas. A angtstia ndo € mais um sinal de alarme, ela € 0 alarme permanente. A fonglo matemna do analista enquanto guardido da coesilo narcisica ¢ fimcional do ego, toma-se entio vital Nos tiltimos anos, 0 conceito de pro- cesso de somatizagdo, originalmente desen- solvido por M. Aiscnstein (1986/2013) € denominado elaboragao de uma solugdo somiitica, foi retomado por C. Smadia. Assiste-se, assim, a uma ampliagao da base apsicolégica da psicossomitica, ctjos me yisto Brosieta de Psicondlise volume 50, %.2 2016 estudos haviam se baseado, nos primeiros tempos, na neurose atual Smagja (2014) propse um modelo tes- rico para a compreensio dos processos psicossomiticos calcado na segunda teo- tia freudiana das pulsdes ¢ que culmina com ima nova propesigao de trabalho de somatizagao. ‘Acredito que ndo se trata de refazermos 4 pergunta do sentido simbsllico da doenga somatica, mas sim do seu significado no seio da vida. surgimento de uma doenga somatica é despido de um sentido proprio, mas se jnscreve num contexto particular deserito por Rosine Debray (2001) como sendo wma conjungao explosiva.'Urata-se do reencon- tro de um terreno frdgil com uma situa cdo extremamente traumitica, reenviando J nogio de perda objetal. que se constitu nna idade do conflito edipico ow na adoles- céncia enquanto teativacdo desse conffito Anogio de perda de objeto, real ou suposta, vivida como um verdadeiro traumatismo precoce € muitas veres duradouro, € uma constante nas desorganizagoes psicossonid= ticas. Podemos observar qxte, na clinica dos pacientes com doengas que se manifesta fob a forma de crises, 0 sofrimento nos seuss corpos algumnas veres tem valor de prote- ¢go contra uma dor psfquica intolerdvel ee no (© corpo ne psicossomética psiconclities ‘Admar Horm Vale lembrar que, num de seus célebres artigos, Marty (1952) singulariza o estudo da psicossomatica na Escola de Paris como sendo um pensamento psicanalf- fico baseado na economia, cujo objeto ¢ ferramenta é unicamente o funcionamento ‘mental, ‘Atualmente, as publicagées da chamada segunda geragao dos psicanalistas psicos- sométicos da Escola de Paris - entre eles, ex citaria os colegas Gérard Szwec, Rosine Debray, Marilia Aisenstein ¢ Claude Smadja -, embora conservem uma fideli- dade ao pensamento de Pierre Marty, pate- cem ter renuinciado ao monismo pulsional 4 primeira tépica. Os conceitos de pulsdo de morte, de intricagao e de desintricacao pulsional aparecem como centais nos seus trabalhos tedricos. ‘As concepgées atuais discutidas no texto esto aptas a dar uma outra significacéo & doenga. Ela nao tem um sentido simbé- lico, mas pode-se construf-lo gragas ao tra- balho do processo psicanalitico. A nogdo de solugado Ihe dé um significado no seio * dos acontecimentos psiquicos que partici- pam no prosseguimento da vida Exemplificando: recebi em anélise dois pacientes que tinham um sofrimento psiquico importante, com manifesta- ‘ces somaticas bastante distintas em seus 35 corpos € mais especificamente no drgio- -alvo, o coragdo. Ambos apresentavam uma doenga cardiaca em contextos psiquicos totalmente diferentes. A longa evolugéo de seu percurso analitico me fez acreditar que 2 doenga cardiaca neles, respeitando obviamente as diferengas dos funciona- mentos mentais de cada um, foi a solugdo encontrada diante da impossibilidade de se fazer um trabalho de luto relativo a morte do pai (Horn, 2015). A motte do pai étalvez o acontecimento mais importante e mais emocionante na vida de um homem, afi- mou Freud (1967) no vero de 1908, no seu segundo preficio a A interpretacao dos sonhos. Particularmente, com um desses dois pacientes, a psicoterapia me pareceu itil, tenho o sentimento de ter iniciado com cle um “trabalho analitico de sobrevida”, cujos resultados a longo termo sto na maior parte das vezes satisfat6rios, embora muito enigmiticos Coneluindo, creio que todas essas diver- sas manifestacdes somiticas nos engajam em um percuso epistemolégico de relei- tura do sintoma somatico e do estatuto do corpo na psicandlise - 0 corpo somitico € 0 libidinal, assim como 0 corpo doente e que somatiza, A posigdo freudiana € clara: 0 corpo nio se reduz a0 puramente organico. 36 cuerpo en la pricosomaticepsicoanalica nese text el autor describe el everpo en la peectva de una eaacion piewsomaen Pieanaic, mastando los aances tects Frdecos ques han obtnido en tes sins ros con base en 1s concepos dela Escuela Psicosomatica de Pais espe somitico y libidinal: feet: via: depresion esenca;trabalo de PALABRAS CLIVE Releréncias sensten, M. (203). Solution pyehosomatique: Su seamanqae. Notes cinigues "Ramme de Biman. Renae Prongaite de Prychovoratique 4, 9530 (Te pualho orignal publicado em i986 ‘Debay R300) ited crux qu somatiset. Pique A gp) Legntrationel: approche en tee Famille pychanaltigue Pai: Durod uta § gh), Desde péfce In 8, Freud, Um tepitaton des res (1. Meyerson, Tia), Pars: Po (Trabalho original publicado er 1908) How ars Le coeur vest pas que métaphore, Reve Frongane de Prchosomatque 48,93 torn de Abel 2016) Det aad cep oo code "nto, Porto: Universidade Portucalense soi6 ecebido em i8.04216. aeito en Admar Horn Rua Catlos Gos 37 raagoogo Rio de Jane, TeliPax 2 2359578 horn @ostecom br CO corpo ne pscossométes pricanaliiea ‘Admar Horn ‘The body [rome] in he prychoanehie payors tn this paper the author describes the body soma) from the perspective ofa paychounatic Fpachovmatic evaluation. The ator demons pa peveca practical avances inthe concepts of the Pais Peyhosomatic Schoo! over the past few yas snwonos: somatic and libidinal body: fection: operative if; essential pression: somatization work Many, P (gg) Les dificult naresiques Fobsens A tle probleme paychosomatiqu, Reve Fren- fate de Pychanalse, 60). 3938, tag Pope Le pyehotomatque de Tadull Pos Tt Nn Pea Uzan, de, 63) La pense pein ry ArvangiedePochanalys.27(Spéil), 345356 Man. MUran, Md & David, C. (963) Live tion pychosomatigue. Pais: POF MeDoug gy Plaidye pour une crane enorme tg Pais: Gallimard ete (98) Tht du coe Psi Gali Mee. (ang, Le mode pulionnel del pach adi gue, Revue Frangaite de Pychovomatiue, 45 a9

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