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nhuma conectividade psicológica. Ele poderá ver esses estágios como envolvendo
“eus descendentes” inteiramente distintos – e poderá inclusive estender esse
modo de pensar a “eus futuros” intermediários, que têm apenas graus relativa-
mente fracos de conectividade psicológica com o eu presente. E, embora ele
possa se preocupar mais com esses eus futuros do que com aqueles descendentes,
essa preocupação ainda poderá não ser tão grande como esta que ele tem com o
seu eu presente ou do futuro próximo.
Tudo isso é um pouco difícil de imaginar, ao menos para mim. Porém, o ponto
principal, penso eu, é que nós não somos assim de forma alguma. Embora possa
variar de caso para caso, as pessoas normais têm um grau razoavelmente alto de
conectividade psicológica, não somente continuidade, através de todas as suas
vidas. Elas não são como esses seres imaginários e, ao menos quando introduzi-
mos outras propriedades psicológicas, elas não são nem como no caso do meni-
no-oficial-general. Quando isso é assim, e quando o corpo ou ao menos o cérebro
é o mesmo, temos o tipo de sobrevivência e de identidade contínua que a maioria
das pessoas quer – certamente é o que eu quero. Qualquer coisa menos do que
isso não é bom o suficiente.
Mas eu não penso que você está dizendo – você está? – que nada menos do que
isso seria suficiente para a identidade pessoal? O que você está realmente dizen-
do é que é a sobrevivência nesse sentido robusto e não a mera identidade que
interessa a você. Você ainda poderia concordar com Parfit que poderiam existir
casos de sobrevivência sem identidade – e talvez também identidade sem sobre-
vivência, pois não há nada que evite que digamos que os seres eternos com co-
nectividade psicológica menor são, não obstante, idênticos como pessoas no de-
correr de sua história.
Eu presumo que sim. Uma maneira de colocar o objetivo de Parfit, penso eu, é
dizer que, se nós não vemos os seres eternos com conectividade psicológica me-
nor como sendo as mesmas pessoas através de sua história, então será ao menos
algo arbitrário o ponto em que traçamos a linha entre diferentes pessoas na his-
tória de um desses seres. Assim, a visão mais razoável seria a de que cada um
desses seres é, no final das contas, a mesma pessoa ao longo de toda a sua histó-
ria. Nesse caso, a identidade como tal pode não ser muito importante em relação
à espécie de sobrevivência com a qual nos preocupamos. Todavia, contrariamen-
te ao que ele parece sugerir, nada a respeito desse resultado mostra que existe
algo de irracional quanto a querer sobreviver no sentido mais forte ou de eu me
preocupar muito intensamente com as pessoas futuras cujas existências consti-
tuiriam tal sobrevivência forte no meu próprio caso. O que eu realmente quero,
penso eu, é ser um dos seres eternos de Parfit, mas com a continuidade psicoló-
gica adequada (incluindo um grau razoavelmente alto de conectividade) todo o
tempo!

As ações humanas são


genuinamente livres?
O determinismo rígido

Robert Blatchford
Robert Blatchford (1851-1943) foi um jornalista e político inglês que ajudou a fundar
o Partido Trabalhista Inglês, tendo sido um forte defensor do socialismo. Nesta seleção,
ele defende o determinismo rígido com base no que considera como sendo essencial-
mente fundamentos de senso comum, argumentando que tudo o que uma pessoa faz
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está determinado pela combinação de hereditariedade e ambiente; portanto ninguém


é livre para agir de modo diferente de como agiu, ou moralmente responsável, ou mere-
cedor quer de censura quer de apreço. Seu argumento não é dependente de nenhuma
maneira importante da tese geral do determinismo causal.
O motivo de Blatchford advogar essa conclusão é fortemente prático: ele quer con-
vencer-nos de que mesmo “pessoas da ralé”* na sociedade, pessoas que parecem com-
pletamente sem salvação e inteiramente desmerecedoras de simpatia ou preocupação,
não são responsáveis pela sua maneira de ser e não merecem punições ou outros tra-
tamentos negativos que recebem. Seu argumento talvez seja mais bem-compreendido
como desafios para outras visões: que alternativa há para uma ação que é rigidamente
determinada pela hereditariedade e pelo ambiente, e como pode uma ação que é assim
determinada ser livre (no sentido exigido pela responsabilidade moral)?

Uma Defesa do Determinismo Rígido,14


Extraído de Pessoas Inocentes: uma Defesa da Ralé

A Apologia do Autor De Onde Vem a Nossa Natureza?

(...) Eu afirmo que os homens não (...) Vou abordar a hereditariedade


deveriam ser classificados como bons ou antes do ambiente, porque é necessário
maus, mas como afortunados e desafor- considera-los um por vez, e a hereditarie-
tunados; que deles deveríamos ter dó dade vem antes, assim como o nascimen-
e não censurá-los; ajudá-los em vez de to vem antes da escola.
puni-los. Mas não devemos cair no mau há-
Eu afirmo que assim como não con- bito de pensar na hereditariedade e no
sideramos um homem digno de louvor ambiente separados um do outro, pois
por ter nascido bonito, nem o censuramos são ambos, e não somente um deles, que
por ter nascido feio, assim também não fazem o caráter do homem.
deveríamos considerá-lo digno de louvor Muitas vezes se diz que nem a here-
por ter nascido virtuoso, nem censurá-lo ditariedade nem o ambiente dão conta da
por ter nascido vicioso. conduta de um homem. E isso é verdade.
Eu baseio minha afirmação no fato Mas é verdade também que a heredita-
autoevidente e inegável de que os ho- riedade e o ambiente dão conta de cada
mens não têm parte na criação de sua qualidade na “composição” humana. (...)
própria natureza. Bem, o que queremos dizer com
Alguns dirão que isso significa que “hereditariedade”?
nenhum homem é responsável por seus Hereditariedade é “descendência”
próprios atos. ou “linhagem”. Hereditariedade, como
É exatamente o que isso significa. a palavra é aqui usada, significa aque-
Contudo, argumentarão, todo ho- las qualidades que são passadas de uma
mem tem uma vontade livre para agir geração a outra. Significa aquelas quali-
como ele escolhe; e negar isso é colocar dades que uma nova geração herda da
em risco a lei e a ordem, toda a moralida- geração da qual ela descende. Significa
de e a disciplina. tudo o que está “nos seus genes”. Se um
Eu nego essas duas inferências e homem herda um nariz grego, um tem-
peço ao leitor para ouvir minha defesa peramento violento, músculos firmes, um
pacientemente e para julgá-la em seus bom ouvido para música, do seu pai ou
méritos. da sua mãe, essa qualidade ou caracterís-
tica é parte de sua hereditariedade. Ele a
... “herdou”.

* N.de R.T. No original bottom dogs. A expressão idiomática presta-se para a especificação de tipos de
membros da sociedade que pertencem às mais baixas camadas da sociedade: ralé, escória, pária.
14 Extraído de Not Guilty: A Defense of the Bottom Dog (New York: Boni and Liveright, 1918).
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Toda qualidade que uma criança o ajudam e aos inimigos que o ferem. Nós
possui no momento do nascimento, toda nos referimos a todas as suas esperanças e
qualidade de corpo ou mente é herdada medos, suas vitórias e derrotas, suas cren-
de seus pais ou ancestrais. E o todo des- ças e desilusões. Nós nos referimos a todo
sas qualidades – que são a criança – é o o mal que faz e a toda a ajuda que oferece;
que nós chamamos “hereditariedade”. todos os ideais que o tomam e as tenta-
Nenhuma criança traz ao mundo ções que o cativam; todos os seus choros e
uma única qualidade de corpo ou mente seus risos, seus beijos e xingamentos, seus
que não tenha sido passada a ela por seus lances de sorte e seus erros azarados: tudo
ancestrais. o que faz e sofre sob o sol.
Eu apresentei todos esses detalhes
... porque nós precisamos lembrar que tudo
o que acontece a um homem, tudo o que
Ora, visto que uma criança herda o influencia, é parte do seu ambiente.
algumas qualidades de seu pai e outras É um erro comum pensar no am-
de sua mãe, decorre disso que, se o pai biente num sentido limitado, como se o
e a mãe são diferentes um do outro, a ambiente não implicasse nada mais do
criança precisa diferir de ambos e, con- que pobreza ou riqueza. Tudo para fora da
tudo, assemelhar-se a ambos. Ela herda- nossa pele pertence ao nosso ambiente.
rá do pai as qualidades que a mãe não Pensemos nele de novo. Educação é
herdou dos seus ancestrais, e ela vai her- ambiente; religião é ambiente; negócios
dar da mãe as qualidades que o pai não e política são ambiente; todos os ideais,
herdou dos seus ancestrais. Desse modo, convenções e preconceitos de raça e clas-
a criança se parecerá com seus pais, sem se são ambiente; literatura, ciência e jor-
ser uma cópia exata de nenhum deles. nais são ambiente; música, história e es-
Ela “varia” em relação aos pais por her- portes são ambiente; beleza e feiúra são
dar [qualidades] de ambos. ambiente; guerra, viagem e comércio são
ambiente; raios de sol e ozônio, honra e
... desonra, derrota e sucesso, são ambiente;
amor é ambiente.
Eu enfatizo e multiplico os exem-
Ambiente plos porque o poder do ambiente é tão
imenso que dificilmente podemos supe-
O que é o ambiente? restimar a sua importância.
Quando falamos do ambiente de Uma criança não nasce com uma
um homem, nós nos referimos àquilo que consciência, mas com os rudimentos de
o cerca, às suas experiências; tudo o que uma consciência: os materiais a partir
ele vê, ouve, sente e aprende, a partir do dos quais uma consciência pode ou não
instante em que a vela da sua vida é acesa ser desenvolvida – pelo ambiente.
até o instante em que a sua luz se apaga. Uma criança não nasce com capaci-
Por ambiente nós queremos dar a dades, mas somente com potencialidades
entender tudo o que desenvolve e modi- ou possibilidades para o bem ou para o
fica a criança ou o homem para o bem ou mal, que podem ou não ser desenvolvidas
para o mal. – pelo ambiente.
Com isso queremos dizer o leite da Uma criança nasce absolutamente
mãe, a casa, o estado de vida no qual a sem conhecimento. Todo átomo de co-
criança passa a viver. Nós nos referimos nhecimento que recebe precisa ser obtido
à babá que a amamenta, às crianças com do ambiente.
quem brinca, à escola na qual aprende, à
água que bebe, à comida que come. Nós ...
nos referimos aos jogos que joga, ao tra-
balho que faz, aos sinais que vê, aos sons
que ouve. Nós nos referimos às meninas Como a Hereditariedade
que ama, à mulher com quem casa, aos e o Ambiente Funcionam
filhos que cria, ao salário que recebe. Nós
nos referimos às doenças que o testam, às Há muitos indivíduos que têm algu-
tristezas que o machucam, aos amigos que ma compreensão da hereditariedade e do
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ambiente quando tomados separadamen- ...
te, mas que falham em reconhecer seus
efeitos um sobre o outro. Duas crianças podem nascer dos
A causa comum desse tropeço é fá- mesmos pais, ser criadas no mesmo bar-
cil de remover. raco, na mesma favela, aprender as mes-
Muitas vezes se diz que dois homens mas más lições. No entanto, elas encon-
são afetados diferentemente pelo mesmo trarão companheiros diferentes e terão
ambiente, ou o que parece ser o mesmo experiências diferentes.
ambiente, e que, portanto, precisa haver
algum poder no homem para “superar” o ...
seu ambiente.
(...) a disputa entre um homem e E nós sempre descobriremos que
seu ambiente é realmente uma disputa homens que superaram o seu ambiente
entre hereditariedade e ambiente. (...) foram realmente ajudados por um bom
Determinado ambiente afetará dois ambiente a superar o ambiente mau. Ele
homens diferentemente, porque a sua he- aprendeu algo de bom. E esse aprendiza-
reditariedade é diferente. do é parte do seu ambiente. E ele precisa
ter aprendido algo de bom, se ele sabe
... algo de bom, já que nasceu destituído de
conhecimento.
Tomemos o caso de duas crianças.
Uma tem uma boa e a outra uma má he- ...
reditariedade. Uma é um bebê saudável,
nascido de quem tem base moral. O outro É um erro pensar na hereditarieda-
é um degenerado, nascido de quem tem de como sendo totalmente boa ou total-
uma base imoral. Chamaremos o bebê mente má. Ela é mista. Nós herdamos,
saudável de Dick, e o bebê degenerado todos nós, qualidades boas e más.
de Harry. 1 É um erro pensar no ambiente
Ao nascerem, eles são postos num como sendo totalmente bom totalmente
ambiente de roubos, bebedeiras e vício. mau. Ele é misto. Sempre há boas e más
A eles se ensina a mentir, roubar e beber. influên­cias à volta de todos nós. 1
Eles nunca ouvem nem veem um bom É um erro pensar que dois homens Que haja inclinações
exemplo. alguma vez já viveram exatamente no hereditárias à imoralidade
Harry, o degenerado, se entregará mesmo ambiente. da maneira como sugerida aqui é
ao mal como um pato à água. Disso, pen- É tão impossível para o ambiente algo que muita gente rejeita hoje
em dia. Porém, é suficiente para
so eu, não há dúvida. E, quanto a Dick, o de quaisquer dois homens ser idêntico, os propósitos de Blatchford que
bebê saudável? quanto a sua hereditariedade ser idênti- algumas pessoas sejam heredita-
Dick nasceu sem conhecimento. Ele ca. Como não há dois homens exatamen- riamente mais suscetíveis às in-
também nasceu com propensões subde- te iguais, também não há dois homens fluências do ambiente na direção
da imoralidade. E mesmo que isso
senvolvidas. Ele aprenderá o mal. Suas cujas experiências sejam exatamente não seja verdadeiro, então o papel
propensões serão treinadas para o mal. iguais. 2 do ambiente torna-se ainda maior,
Como ele “superará o seu ambiente e se o que não afetaria as principais
tornará bom”? Ele não pode. O que acon- ... conclusões de Blatchford.
tecerá no caso de Dick é que ele se tor-
nará uma espécie diferente de criminoso 2
– um criminoso mais forte e mais esperto Vontade Livre
do que Harry. Como pode Blatchford
(ou quem quer que seja)
Contudo, ouço alguns dizerem, “nós A ilusão da vontade livre tem sido justificar a afirmação de que duas
sabemos de crianças, nascidas de ladrões uma pedra de tropeço no caminho do pen- pessoas que têm exatamente a
e bêbados, e criadas em ambientes ruins, samento humano por milhares de anos. mesma hereditariedade e vivem
que se tornaram homens honestos e só- Vejamos se o senso comum e o conheci- no mesmo ambiente se com-
portarão exatamente da mesma
brios”. E a inferência é que elas se torna- mento comum não podem removê-la. maneira nas mesmas circunstân-
ram maiores do que o seu ambiente. cias? Mesmo gêmeos idênticos
Mas essa inferência é equivocada. ... criados na mesma casa não têm
O fato é que essas crianças foram salvas exatamente o mesmo ambiente.
Como pode essa afirmação ser
por algum ambiente bom, agindo contra Quando um homem diz que sua estabelecida se tais casos nunca
o mau. vontade é livre, ele quer dizer que ela é li- ocorrem?
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vre de todo controle ou interferência: que ruas fedorentas e a casa suja, além de se
ela pode se sobrepor-se à hereditariedade apavorar com o risco de sarampo e de fe-
3 e ao ambiente. 3 bre. Mas ela vai encontrar com a criança
Nós respondemos que a vontade é doen­te e abre mão do concerto. Por quê?
Essa afirmação é exagerada.
“Sobrepor-se” à hereditarie- comandada pela hereditariedade e pelo Por que o seu senso de dever é mais
dade e ao ambiente sugeriria que ambiente. forte do que o seu amor-próprio.
eles não têm qualquer influência. Ora, o seu sendo de dever é parcial-
Mas seria suficiente, ao menos ... mente devido à sua natureza – isto é, à
para algum grau de liberdade, se
essas coisas influenciassem, mas sua hereditariedade –, mas é principal-
não determinassem completamen- Para começo de conversa, o homem mente devido ao seu ambiente. Como
te as ações de uma pessoa – isto comum vai estar contra mim. Ele sabe que todos nós, essa garota nasceu sem qual-
é, se houvesse ao menos duas escolhe entre dois cursos a toda hora, e mui- quer tipo de conhecimento e apenas com
alternativas significativamente
diferentes abertas a ela. tas vezes a todo minuto, e pensa que a sua os rudimentos de uma consciência. Mas
escolha é livre. Mas isso é uma ilusão: sua ela foi bem-ensinada, e o ensinamento é
escolha não é livre. Ele pode escolher, e ele parte do seu ambiente.
escolhe. Contudo, só pode escolher confor- Podemos dizer que a garota é li-
me a sua hereditariedade e o seu ambiente vre para agir como escolhe, mas ela age
façam com que ele escolha. Ele nunca es- como foi ensinada que deve agir. Esse en-
colheu e nem escolherá exceto conforme a sinamento, que é parte do seu ambiente,
sua hereditariedade e o seu ambiente – o controla a sua vontade.
seu temperamento e o seu treinamento – Podemos dizer que um homem é
façam com que ele escolha. E a sua here- livre para agir como ele escolhe. Ele é li-
ditariedade e o seu ambiente fixaram a sua vre para agir como ele escolhe, mas ele
escolha antes que ele a fizesse. escolherá conforme a hereditariedade e
O homem comum diz “eu sei que eu o ambiente fazem com que ele escolha.
posso agir como eu desejo agir”. Mas o A hereditariedade e o ambiente fizeram
que faz com que ele assim deseje? dele o que ele é.
O partido da vontade livre diz “nós
sabemos que um homem pode e, de fato, ...
escolhe entre dois atos”. O que determina
a escolha? Macbeth era ambicioso, mas tinha
Há uma causa para cada desejo, uma consciência. Ele queria a coroa de
uma causa para cada escolha; e toda cau- Duncan, mas fugia da traição e da ingra-
sa para cada desejo e escolha surge da tidão. A ambição o puxava numa direção,
hereditariedade ou do ambiente. enquanto a honra o puxava para outra.
Ora, um homem sempre age a par- As forças opostas eram tão equilibradas
tir do temperamento, que é hereditário, que ele parecia incapaz de se decidir.
ou do treinamento, que é o ambiente. Macbeth era livre para escolher? Em que
E nos casos em que um homem he- medida ele era livre? Ele era tão livre que
sita na sua escolha entre dois atos, a he- podia não chegar a nenhuma decisão, e
sitação é devida a um conflito entre o seu foi a influência de sua mulher que fez a
temperamento e o seu treinamento ou, balança pender para o crime.
como alguns o expressariam, “entre o seu Madame Macbeth era livre para es-
desejo e a sua consciência”. colher? Ela não hesitou. Porque sua ambi-
ção era tão mais forte que a sua consciên-
... cia ela nunca teve dúvidas. Ela escolheu
conforme a sua ambição irresistível fez
Suponhamos um caso. Uma jovem com que escolhesse.
mulher recebe duas cartas pelo mesmo E a maioria de nós, em nossas deci-
correio; uma é um convite para ir com sões, assemelha-se ou a Macbeth ou à sua
seu namorado a um concerto, a outra é esposa. Ou nossa natureza é muito mais
um pedido para que ela vá visitar uma forte do que o nosso treinamento, ou o
criança doente na favela. A garota gosta nosso treinamento é muito mais forte do
muito de música e tem até mesmo medo que a nossa natureza, de maneira que
das favelas. Ela deseja ir ao concerto decidimos tão prontamente pelo bem ou
e estar com o seu amante; ela teme as pelo mal como um córrego decide correr
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morro abaixo; ou a nossa natureza e o ... 4
nosso treinamento estão tão equilibrados Que é mais difícil para uma
que nós dificilmente decidimos. Os apóstolos da vontade livre acre- pessoa ser sóbria do que é
No caso de Macbeth, a briga é bas- ditam que as vontades de todos os ho- para outra (o que parece óbvio)
tante clara e fácil de acompanhar. Ele era mens são livres. Mas um homem só pode ainda não prova que aquilo que
querer aquilo que ele é capaz de querer. E cada pessoa faz está inteiramente
ambicioso, e o seu ambiente ensinou-o a determinado pela hereditariedade
considerar a coroa como uma posse glo- um homem é capaz de querer aquilo que e pelo ambiente.
riosa e desejável. Contudo, o seu ambien- um outro homem é incapaz de querer.
te também o ensinou que o assassinato, Negar isso é negar os fatos mais comuns
5
a traição, a ingratidão eram maus e de- de óbvios da vida. 5
sonrosos. Contudo, fato de uma pes-
... soa possa querer coisas que
Caso ele nunca tivesse aprendido uma segunda pessoa não pode
essas lições, ou tivesse aprendido que querer não mostra que tudo o que
a gratidão era loucura, que a honra era Todos sabemos que é possível pre- elas querem está determinado –
fraqueza e que o assassinato desculpável ver a ação de certos homens em certos que não há nenhuma alternativa
casos porque nós conhecemos o homem. significativa aberta a elas.
quando levasse ao poder, ele não teria he-
sitado de modo algum. Foi o seu ambien- Sabemos que, nas mesmas condi-
te que estorvou a sua vontade. ções, Jack Sheppard roubaria e o Cardeal 6
Manning não. Sabemos que, nas mes-
... mas condições, o marujo flertaria com a pare O fato de que o comporta-
mento das pessoas ser na
garçonete e o padre não; que o bêbado maior parte previsível mostra que
Dizemos que um bêbado e um abs- ficaria bêbado e o abstêmio continuaria este é inteiramente determinado?
têmio são livres por toda a vida para be- sóbrio. Sabemos que Wellington recu- Se ele fosse completamente pre-
visível, de modo que pudéssemos
ber ou para recusar um copo de whisky. saria um suborno, que Nelson não fugi-
estar “certos” a respeito do que
Mas sabemos em ambos os casos que a ria, que Bonaparte tomaria o poder, que cada pessoa fosse fazer em cada
ação da vontade livre é previsível. Abraham Lincoln seria fiel à sua pátria, situação, isso estabeleceria o
Em todos os casos, a ação da vontade que Torquemada não pouparia o herege.* determinismo? (É plausível que o
comportamento das pessoas seja
depende da força relativa de dois ou mais Por quê? Se a vontade é livre, como po-
de fato completamente previsível?
motivos. O motivo mais forte decide a von- deremos estar certos, antes de o teste sur- Pense em alguns exemplos aqui.
tade, assim como o peso mais pesado deci- gir, a respeito de como a vontade deverá
de como pendem os pratos da balança. agir? 6
No caso de Macbeth, a balança pa-
recia quase equilibrada: a persuasão da
Lady Macbeth fez pender o prato do lado Culpado ou não culpado?
errado.
Se a vontade fosse livre, ela seria Perguntemos se é verdade que tudo
independente do temperamento e do o que um homem faz é a única coisa que
treino, e assim agiria livremente tanto ele poderia fazer no momento em que o
num caso quanto no outro. De modo que faz.
seria tão fácil para o bêbado quanto para Essa é uma questão muito importan-
o abstêmio recusar-se a beber por toda te, porque, se a resposta for sim, todo mé-
a vida: tão fácil para o ladrão quanto rito e toda a censura serão imerecidos.
para o cardeal ser honesto; tão fácil para Todo mérito e toda censura.
­Macbeth quanto para Lady Macbeth selar Tomemos alguma ação repugnante
o destino de Duncan. como teste.
No entanto, todos nós sabemos que Um vagabundo assassinou uma
é bem mais difícil para um homem do criança na estrada, roubou dela algum
que para outro ficar sóbrio, ou ser hones- dinheiro e jogou seu corpo num valo.
to, ou virtuoso; e todos nós sabemos que “Você quer dizer que o vagabundo
a sobriedade, ou a honestidade, ou a vir- não pôde evitar fazer isso? Você quer di-
tude de qualquer homem depende de seu
temperamento e treinos, ou seja, da sua
hereditariedade e do seu ambiente. 4 *N. de R.T: Jack Sheppard é um protagonista do
Como, então, podemos acreditar seriado americano “Lost”. As demais figuras são
que a vontade livre está fora e é superior militares e políticos importantes na história da
à hereditariedade a ao ambiente? Grã-Bretanha, França e Espanha.
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...
zer que ele não deve ser culpado? Você
quer dizer que ele não deve ser punido?”
O vagabundo cometeu um assassi-
Sim. Eu digo todas essas coisas; e,
nato. Foi um assassinato covarde e cruel,
se todas essas coisas não são verdadeiras,
e o motivo foi o roubo.
este livro não vale o papel no qual está
Mas eu provei que todos os motivos
impresso.
e todos os poderes, todo o conhecimento
Devo provar isso? Eu já o provei. Po-
e todas as capacidades, todos os atos e
rém, eu só instanciei atos venais, e agora
todas as palavras são causados pela here-
nós estamos frente a um assassinato. E o
ditariedade e pelo ambiente.
horror de um assassinato leva os homens
Eu provei que um homem só pode
quase à loucura, de modo que eles param
ser bom ou mau na medida em que a he-
de pensar: eles só conseguem sentir.
reditariedade e o ambiente fazem com
Assassinato. Sim, um assassinato
que ele seja bom ou mau: eu provei essas
brutal. Ele nos afeta como um choque
coisas porque afirmei que todas as puni-
que nos faz passar mal. (...) Eu tenho de
ções e recompensas, todo mérito e toda
clamar pelo pobre coitado, o mais baixo,
culpa são imerecidos.
o mais detestável, o pior.
...

Questões para Discussão

1. Blachtford oferece razões para pensar do que uma escolha possível para uma
que a hereditariedade e especialmente pessoa com uma hereditariedade e um
o ambiente influenciam as escolhas das ambiente específicos numa situação par-
pessoas, tornam mais difícil para elas fazer ticular e que seja uma questão de acaso
certas coisas mais do que outras e talvez qual das escolhas possíveis essa pessoa
excluam inteiramente algumas escolhas. fará. O que Blatchford provavelmente di-
Essas razões, ou alguma outra que ele ofe- ria sobre uma escolha que nessa medida
rece, são convincentes em prol da afirma- é aleatória? Você pensa que ele estaria
ção de que o que uma pessoa faz é inteira- certo? Há alguma outra alternativa além
mente determinado pela hereditariedade da completa determinação pela heredi-
e pelo ambiente, de modo que nenhuma tariedade e pelo ambiente ou a determi-
outra alternativa referente àquilo que ela nação parcial mais um grau de aleatorie-
fez era-lhe genuinamente possível? dade?
2. Suponha que Blatchford esteja errado ao 3. Se a visão determinista de Blatchford está
afirmar que as ações de uma pessoa são correta, segue-se disso que não há propó-
inteiramente determinadas pela heredi- sito em punir (ou elogiar) as pessoas pelo
tariedade e pelo ambiente. Uma possi- que fazem? Você pode pensar em alguma
bilidade é de que há um grau de aleato- justificação para a punição que seja com-
riedade na ação humana: que exista mais patível com o determinismo rígido?

Compatibilismo

David Hume
David Hume (1711-1776), filósofo e historiador escocês, é comumente considerado
como um dos mais importantes e influentes filósofos de todos os tempos. Ele realizou
trabalhos muito importantes em epistemologia, metafísica, ética e filosofia da religião,
produzindo uma posição filosófica abrangente que chama a atenção por suas tendên-
cias céticas.

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