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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 177-192 JUN.

2005

O TERCEIRO SETOR COMO EXECUTOR DE


POLÍTICAS PÚBLICAS:
1
ONG'S AMBIENTALISTAS NA BAÍA DE GUANABARA (1990-2001)

Solange Maria da Silva Nunes Mattos José Augusto Drummond

RESUMO
Nos últimos dez anos a sociedade civil organizada brasileira vem ocupando espaços cada vez maiores na
discussão, formulação e execução de políticas públicas. Representando um mosaico de instituições
multifacetárias dotadas de singular capacidade de execução de ações locais com visão global, focalizamos
especialmente as organizações não-governamentais ambientalistas que atuam em um estuário de grande
importância para o estado do Rio de Janeiro e que sofre agressões diárias: a baía de Guanabara. Os nossos
achados indicam que vários projetos de recuperação e/ou preservação ambiental desenvolvidos com a
participação dessas entidades mobilizam voluntários e os meios de comunicação, sensibilizam a população
para as questões ecológicas e contribuem para a educação de comunidades urbanas de baixa renda,
delineando um relacionamento de homem e meio ambiente de maneira holística e configurando novos
atores sociais. Assim, dão maior eficácia às intervenções públicas na recuperação da qualidade ambiental
dos ecossistemas do estuário.
PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas; organizações não-governamentais; baía de Guanabara; políticas
ambientais; participação política; sociedade civil.

Este texto pretende verificar os efeitos da questão do papel do terceiro setor em políticas
interação entre novas formas de gestão pública públicas de elevada repercussão, executadas no
descentralizada no contexto de políticas de contexto político-geográfico altamente visível de
despoluição urbana, com foco em projetos de re- uma baía famosa e apregoada como símbolo de
cuperação ambiental na baía de Guanabara, e a beleza natural, mas também alvo de inúmeras
atuação da sociedade civil, aqui representada pe- externalidades negativas e agressões, tanto roti-
las organizações não-governamentais (ONGs) neiras quanto acidentais.
ambientalistas. Pretende-se analisar a atuação dos
A discussão nacional sobre a resolução das
atores sociais (ONGs e comunidades beneficia-
complexas questões presentes na estrutura social
das) e atores políticos (órgãos de governo) como
brasileira e o seu desenvolvimento em bases sus-
promotores do desenvolvimento local, verificar
tentáveis tem destacado, dentre outras noções, as
como eles mobilizam-se em torno do planejamen-
de co-responsabilidade e complementaridade en-
to e da execução de projetos e programas
tre as ações efetivadas pelos diversos setores atu-
ambientais e identificar em que medida as comu-
antes no campo social. A hipótese que orienta boa
nidades são beneficiadas pelas ações das ONGs
parte da literatura é que a interação de ações e
ambientalistas. Pretende-se dar uma contribuição,
agentes que implementam políticas públicas pro-
fundamentada em dados originais, ao estudo da
picia a troca de conhecimento sobre as distintas
experiências, proporciona maior racionalidade,
qualidade e eficácia às ações desenvolvidas e evi-
1 Este texto resume os principais achados da dissertação ta superposições de recursos e competências. A
de mestrado em Ciência Ambiental de Solange Maria da noção de co-responsabilidade tem impulsionado a
Silva Nunes Mattos, Recuperação ambiental na baía de
constituição de parcerias, o que implica reconhe-
Guanabara: avaliação das principais contribuições das
ONGS ambientalistas, 1990-2001, RJ, defendida na Uni- cer, entender e encontrar as melhores formas de
versidade Federal Fluminense, em novembro de 2002 relacionamento entre agentes com lógicas distin-
(MATTOS, 2002), sob a orientação de Sandra Hacon e a tas de atuação, com objetivos comuns e sem per-
co-orientação de José Augusto Drummond. da de identidades nem desvio de missões

Recebido em 01 de março de 2004


Aprovado em 10 de setembro de 2004
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 177-192, jun. 2005
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institucionais específicas. Nesse sentido, as sig- municação e de intervenção. Afinal, esses líderes
nificativas diferenças e os conflitos entre as lógi- integram a elite do saber do país. Existe o outro
cas de governo, de mercado e da sociedade civil lado da moeda, porém: essas organizações podem
organizada são dificuldades entendidas como in- ser usadas pelo próprio Estado, atolado em uma
centivos à constituição de arranjos cooperativos máquina burocrática sucateada e incapaz de de-
entre as partes. Devido à natureza diversificada e sempenhar as suas incumbências, para disfarçar
às funções que desempenham, as instituições go- e prolongar a sua inadimplência e mesmo a sua
vernamentais, as organizações do mercado e as paralisia.
da sociedade aglutinam competências bastante
Em geral, não se espera nem se defende, mes-
diferentes, mas cuja complementaridade é cada
mo entre os observadores simpáticos a essa faceta
vez maior e necessária.
das ONGs, que elas substituam a organização
A ativa participação das entidades sem fins lu- popular ou as ações do Estado. Porém, há um
crativos na sociedade brasileira remonta ao final do consenso de que elas podem ocupar com eficácia
século XIX. O processo de constituição e consoli- espaços e lacunas deixados pelo Estado, movidas
dação das ONGs, hoje com presença tão forte no por preocupações privadas (ainda que com a mis-
cenário nacional, é mais recente. Pertence às déca- são de realizar o interesse público) e baseadas em
das de 1960 e 1970, marcadas por graves restri- redes de conhecimentos e em padrões próprios
ções político-partidárias impostas pela ditadura mi- de eficiência e eficácia. Essas instituições não ge-
litar. O processo expandiu-se e consolidou-se basi- ram nem distribuem lucros, mas movimentam e
camente nas décadas de 1980 e 1990, período em transferem volumes financeiros significativos.
que as ONGs cresceram em número, ampliaram- Tornam-se cada vez mais profissionalizadas e for-
se em escopo e tornaram-se mais visíveis. Apesar mam o que alguns autores caracterizam como um
da sua evolução ainda recente, pode-se afirmar que mercado próprio (GARRISON, 2000).
as ONGs alcançaram papel relevante como
Mesmo sem se aderir a uma perspectiva
catalisadoras dos movimentos e das aspirações so-
neoliberal extremada, dominada pelo imperativo
ciais e políticas da população brasileira.
da redução do tamanho e das funções do Estado,
Autores como Petras (1990) e Moller (1991) é fácil constatar que nos anos recentes dissemi-
criticam as organizações não-governamentais por nou-se nos sistemas democráticos ou representa-
promoverem a “profissionalização” do exercício tivos de muitos países ocidentais o conceito de
da cidadania e por beneficiarem-se de um proces- que a responsabilidade social não é mais um atri-
so de empobrecimento da população, que reduzi- buto exclusivo do Estado, nem da ação cívica dos
ria sua capacidade de agir autonomamente, sem o indivíduos tomados um a um. Além do fenômeno
apoio de atores “externos” como as ONGs. Her- da emergência das ONGs, podemos verificar em
culano (2000), por outro lado, sustenta que não pesquisas recentes que segmentos da sociedade
se pode negar que, onde faltam bens públicos li- civil brasileira, especialmente empresas que bus-
gados à educação, à saúde, ao saneamento bási- cam exclusivamente o lucro, estão aderindo a ou
co, dentre outros, os benefícios produzidos pela tomando a iniciativa de realizar programas de “res-
ação dessas organizações para as populações re- ponsabilidade social”. Seriam elas movidas por um
presentam ganhos substantivos cujo valor é difí- sentimento de altruísmo? Provavelmente não, pois
cil desqualificar. A literatura sobre o tema e sobre em uma economia globalizada essa atitude pode
as suas implicações sobre a cidadania já é extensa ser também uma estratégia capaz de ajudar as
(cf., entre outros, FERNANDES, 1985; LANDIM empresas a desenvolverem uma boa imagem jun-
& FERNANDES, 1988; DINIZ, 1995; to aos seus consumidores, fornecedores e regu-
AVRITZER, 1997; SERVA, 1997; LANDIM, ladores, implicando uma preciosa vantagem em
1998; LANDIM & BERES, 1999; REILLY, 1999; um ambiente competitivo (COSTA, 2002).
CAMARGO 2001; VIEIRA, 2001).
Este estudo parte da premissa de que a socie-
O fato de essas organizações nascerem, em dade civil e o governo estão buscando, cada vez
sua maioria, de iniciativas de intelectuais e pro- mais, parcerias entre si e assumindo co-respon-
fissionais altamente capacitados e descontentes sabilidade pela oferta de alguns bens públicos.
com o Estado conferiu-lhes uma certa credibilidade Existe um consenso em expansão de que os re-
e deu-lhes capacidade de constituir redes de co- cursos naturais – como categoria especial de bens

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públicos – precisam ser geridos de modo susten- tituições selecionadas foram contatadas por tele-
tável e conservados por quem faz uso deles fone ou via correio eletrônico, com as finalidades
(DRUMMOND, 2000). No caso aqui examinado, de sondar se aceitavam participar da pesquisa e
nota-se que a motivação maior dos atores é evitar de agendar entrevistas; a terceira etapa constou
erros do passado, como os enormes gastos em da aplicação dos questionários, em entrevistas
grandes projetos, como o Programa de pessoais conduzidas pelos autores nas sedes das
Despoluição da Baía de Guanabara, no qual houve entidades. O questionário constou de perguntas
mais acidentes de percurso e menos resultados abertas, informando o entrevistado sobre o obje-
do que a cidadania tolera hoje em dia. tivo da pesquisa e esclarecendo que representan-
tes de outras organizações também seriam entre-
O presente estudo, sem pretender esgotar o
vistados.
assunto, busca contribuir para a discussão e o
entendimento da questão da execução não-estatal A pesquisa aplicou uma ferramenta de análise
das políticas públicas. O olhar recaiu sobre um social denominada “Diagnóstico de grupos de in-
ecossistema importante e de alta visibilidade, a baía teresses”, utilizada na pesquisa Mapeamento e
de Guanabara, muito sacrificado por numerosas caracterização dos grupos de interesse da Shell
agressões ao longo de longos anos de laissez-faire Brasil na atividade de perfuração do Bloco BC-4
e de intervenção estatal incompleta ou ineficaz, (Bacia de Campos), desenvolvida pela ONG Ins-
em função da urbanização e da industrialização tí- tituto Pro-Natura (2001). O método consiste na
picas do modelo econômico em que vivemos, cri- coleta de dados por meio da consulta direta aos
ador de exclusão social e de degradação ambiental. indivíduos representativos dos grupos de interes-
Constatamos que as ações de preservação e recu- se. Ele permite um levantamento mais autêntico
peração ambientais desenvolvidas pelas ONGs es- das demandas, expectativas e problemas,
tudadas contribuem para resgatar, por meio da ação freqüentemente não captados por meio dos ca-
coletiva eficaz, uma relação mais harmoniosa en- nais formais de comunicação (questionários envi-
tre homem e meio ambiente, há muito perdida. ados pelo correio ou pela internete, folhetos e do-
cumentos institucionais etc.).
O estudo busca dar resposta às seguintes ques-
tões: quais são as contribuições que as ONGs Assim, o depoimento e o discurso dos entre-
ambientalistas dão com o seu envolvimento em vistados, fielmente reproduzidos, foram as prin-
projetos de recuperação ambiental da baía de cipais fontes de informações. No entanto, a nossa
Guanabara? Elas atuam de maneira sinérgica com pesquisa baseou-se também em outras fontes,
o governo e com as comunidades locais? Elas estão como revisões bibliográficas e de documentos de
preocupadas com a eficácia do seu trabalho? As projetos e instituições, portais oficiais das organi-
suas ações conseguem acelerar o desenvolvimen- zações, além de visitas às comunidades envolvi-
to local? das e aos locais onde se desenvolvem os projetos
(entre outros, ver ASSOCIAÇÃO PROJETO
Os resultados da investigação evidenciam a
RODA VIVA, 2000). Optou-se por trabalhar, ba-
eficácia das novas formas da gestão descentrali-
sicamente, com a técnica de entrevistas semi-
zada de políticas públicas, com a participação da
estruturadas, o que implica fazer poucas pergun-
sociedade civil, no contexto de um dos ambientes
tas ao entrevistado. A maioria das perguntas foi
costeiros mais degradados do país, do ponto de
colocada no transcurso da própria entrevista.
vista ambiental e social. A baía de Guanabara e a
Usou-se um roteiro de perguntas abertas2. Novas
sua bacia contribuinte, apesar da sua importância
perguntas foram formuladas no transcorrer da en-
histórica, econômica, cultural, científica, social e
trevista, de acordo com as circunstâncias.
ambiental, sofrem os efeitos de um processo se-
cular de alteração e destruição, o qual se acentuou
nas últimas décadas, com a implantação do mo- 2 O questionário foi testado por meio de aplicação e apre-
delo de desenvolvimento urbano-industrial (AMA- sentação aos colegas de turma da autora principal, do Pro-
DOR, 1997; CANEDO, 2000). grama de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Univer-
sidade Federal Fluminense (PPGCA-UFF), para ajustes,
A nossa abordagem foi qualitativa. Primeira-
críticas e sugestões. Foi submetido ainda à apreciação de
mente, desenhamos o perfil das entidades a se- Neyla Vaserstein, pesquisadora do Instituto de Estudos da
rem pesquisadas e elaboramos um questionário Religião, e da Professora Selene Herculano, do PPGCA-
para obter informações; na segunda etapa, as ins- UFF, a quem agradecemos pela colaboração.

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A escolha dos entrevistados não foi aleatória. como manifestações de crítica e resistência à di-
Obedeceu aos seguintes critérios, na tentativa de tadura militar e às suas políticas públicas vertical-
formar uma amostra de informantes qualificados: mente decididas e de alcance social limitado. A
do setor público, foram selecionados os órgãos Federação de Órgãos para Assistência Social e
diretamente envolvidos nas questões ambientais, Educacional (FASE), o Instituto de Estudos da
sobretudo aqueles que financiam e/ou executam Religião (ISER) e o Instituto Brasileiro de Análi-
projetos de recuperação ambiental na baía de ses Sociais e Econômicas (Ibase), por exemplo,
Guanabara; do terceiro setor, as organizações es- todos do Rio de Janeiro, nasceram a partir de uma
colhidas foram selecionadas dentre as inscritas no combinação de (1) ação cidadã, (2) acompanha-
Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas mento sistemático de políticas públicas de grande
(Cnea), mantido pelo Conselho Nacional de Meio capilaridade social (segurança pública, política
Ambiente (Conama). Esse cadastro serve para pré- salarial, assistência e seguridade sociais etc.) e (3)
qualificar as ONGs ambientalistas para diversos assessoria a movimentos e organizações popula-
fins, oferecendo uma amostra confiável das enti- res.
dades desse tipo atuantes na baía de Guanabara,
Por muitos anos, pertencer a ONGs significa-
já que adota critérios rigorosos de seleção. Um
va ser de oposição a quase qualquer governo –
segundo critério de seleção foi a indicação de ou-
federal, estadual ou municipal. Com a
tras ONGs pelas próprias ONGs contatadas. Usa-
redemocratização do país, a partir de meados da
mos ainda a listagem de entidades que consta do
década de 1980, muitas ONGs transitaram para a
cadastro elaborado pela Fundação Getúlio Vargas
condição de parceiras de certas coalizões de po-
(2000). Da sociedade civil, foram identificados
der, atuando na formulação e execução de políti-
líderes locais por meio de indicações feitas pelas
cas públicas, configurando um novo ator social –
próprias ONGs. Essas lideranças das comunida-
o terceiro setor – que passou a assumir papéis
des beneficiadas pelos projetos desenvolvidos no
asseverativos e até executivos de grande alcance
entorno da baía de Guanabara foram entrevista-
social. As ONGs examinadas neste texto atuam
das à parte.
nesse formato mais recente, embora as origens
Do resultado da aplicação desses critérios e mais antigas do ISER emprestem-lhe um caráter
dos contatos com as ONGs por telefone ou cor- de ONG “pioneira”.
reio eletrônico, foram selecionados para as entre-
Quanto ao crescimento acelerado das ONGs,
vistas: no governo, o Instituto Brasileiro do Meio
um levantamento da Associação Brasileira de ONGs
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Abong) (ABONG, 1996; ver ainda ABONG,
(Ibama) e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente
1998a; 1998b; 1998c; 2002) mostrou o quão ra-
e Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro
pidamente se disseminaram as ONGs no Brasil.
(Semads); das 26 ONGs fluminenses listadas no
Ele revelou que cerca de 60% das 143 mais im-
CNEA, oito foram entrevistadas por desenvolve-
portantes ONGs do país tinham sido criadas de-
rem projetos de vulto no entorno da baía de
pois de 1984 e 15,4% depois de 1989. Somente
Guanabara, embora algumas também atuem em
21% das ONGs tinham mais de 20 anos em 1996.
outras localidades. Foram visitadas ainda quatro
A pesquisa do WWF (apud GARRISON, 2000,
comunidades (de três municípios – duas em Magé,
p. 37) constatou que apenas 39,2% das ONGs
uma em São Gonçalo e outra em Niterói) benefi-
ligadas às questões de meio ambiente existem há
ciadas pelas ações das ONGs. Foram entrevista-
mais de 10 anos e que a grande maioria delas foi
das as lideranças locais e fotografados aspectos
criada pouco antes ou pouco depois da II Confe-
dos trabalhos realizados pelas ONGs. As entre-
rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
vistas e visitas foram realizadas entre maio de 2001
e o Desenvolvimento (Rio-92). Para além da sua
e março de 2002.
crescente expressão numérica, o setor de ONGs
Duas das mais notáveis características do se- no Brasil tem a sua relevância política reconheci-
tor das ONGs no Brasil são a sua origem ainda da por uma literatura analítica relativamente ex-
recente e o crescimento meteórico do seu núme- tensa (citada acima) e até por relatórios de insti-
ro. As ONGs mais antigas no Brasil não têm mais tuições governamentais de fomento (por exem-
do que 30 ou 40 anos de idade, já que nasceram plo, BNDES, 2001).
nas décadas de 1960, 1970 e 1980, via de regra

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Isso se reproduz na amostra selecionada para Em relação aos públicos-alvo das ONGs
esta pesquisa, pois as instituições entrevistadas são pesquisadas, existe considerável variedade. Inclu-
relativamente novas, em sua maioria fundadas entre em desde comunidades locais, passando por gru-
os fins da década de 1980 e início da década de pos sociais mais amplos e pelo governo, até a so-
1990. A exceção é o ISER, fundado na década de ciedade como um todo. Isso é um traço comum a
1970, embora a sua área de meio ambiente tenha muitas ONGs de vários tipos e setores: a de atua-
sido criada apenas em 1991. Em 2002, a idade rem tanto na dimensão “macro” quanto na dimen-
média das ONGs aqui examinadas era de 13 anos. são “micro”.
Isso demonstra que, em termos de gerar organi-
Analisando os principais projetos desenvolvi-
zações específicas dentro da sociedade civil, o
dos – listados no Quadro 1 (abaixo) – pelas ONGs
marco histórico do despertar para a questão
entrevistadas, constata-se uma diversificação das
ambiental no Brasil é bem recente.
ações. Elas atuam em nichos específicos, mas
Quando as organizações foram indagadas so- convergem para as questões educacional, de
bre os seus objetivos institucionais, percebe-se em conscientização e de mobilização. A maioria de-
suas respostas, apesar dos seus diferentes senvolve projetos que abrangem o fornecimento
enfoques e metodologias, que elas têm ligação ín- e a organização de informações e a conscientização
tima com as seguintes questões: conscientização das comunidades inseridas nos ecossistemas ob-
ecológica das comunidades de baixa renda, inser- jeto de recuperação e/ou proteção. Diante disso,
ção das mesmas no meio ambiente, educação, dis- entendemos o trabalho das ONGs de acordo com
seminação de informações e formação de opinião. a definição de Aquino Alves sobre terceiro setor
Verifica-se, também, que a pesquisa científica e (em que se inserem as ONGs) – ele representa
social é uma tônica de grande parte destas insti- um “espaço institucional que abriga ações de ca-
tuições. O fato de prestarem serviços para as co- ráter privado, associativo e voluntarista que são
munidades e, simultaneamente, enfocar cientifi- voltadas para a geração de bens de consumo co-
camente questões mais amplas relativas a políti- letivo, sem que haja qualquer tipo de apropriação
cas exige uma capacidade para abordar temas es- particular de excedentes econômicos que sejam
truturais, incluindo as realidades e preocupações gerados nesse processo” (Alves apud WOOD,
das populações locais, combinando o conhecimen- 1999, p. 68), haja vista o caráter público que es-
to técnico com a presença nas – e o conhecimen- sas ações representam.
to a respeito das – comunidades.

QUADRO 1 – PRINCIPAIS PROJETOS DESENVOLVIDOS PELAS ONG'S ENTREVISTADAS

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FONTE: os autores.
NOTA: APA: Área de proteção ambiental; IBG: Instituto Baía de Guanabara; Caceb: Centro Afro da Comunidade Brasileira;
Aprec: Associação de Proteção de Ecossistemas Costeiros; Seplantec: Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia
do Estado da Bahia.

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Constatamos que todas as ONGs abordadas jetos coletivos acontecem na medida em que se
têm um perfil de desenvolvimento de projetos só- relacionam com os projetos individuais. O tercei-
cio-ambientais e/ou de pesquisa, indicando a sua ro setor é o campo propício para o desenvolvi-
especialização para determinados fins. Algumas mento desses projetos coletivos.
entidades disseram ter um perfil originalmente
Verifica-se, a partir dos dados do Quadro 2
ativista, mas informaram que ao longo do tempo
(abaixo), que todas as ONGs estudadas têm as-
tornaram-se mais voltadas para a execução de
sento em conselhos e comitês ambientalistas ou
projetos sócio-ambientais. Assim, as ONGs incor-
participam de algum cadastro oficial ou, ainda, de
poraram um caráter propositivo e mesmo execu-
associações e consórcios. Isso indica um nível
tivo, talvez em resposta às transformações glo-
elevado de organização, facilitando uma ação
bais. Para Giddens (1991, p. 46), “na era da
profissionalizada e/ou em rede. Aponta ainda para
globalização a participação em atividades coleti-
uma intensa troca de informações ou, pelo me-
vas está tornando-se um fator decisivo na consti-
nos, para a existência de fóruns apropriados para
tuição de identidades pessoais e nas biografias
isso. Em nossa percepção, a importância desse
pessoais na moderna sociedade industrial”. Fica
fato reside em possibilitar que as ações dessas ins-
patente que criatividade e inovações só podem
tituições disseminem-se independentemente dos
surgir em ambientes abertos em que haja a dis-
governos, o que indica uma preocupação com a
cussão das idéias e o debate das opiniões. Os pro-
continuidade das intervenções.

QUADRO 2 – REPRESENTAÇÃO DAS ONG'S ENTREVISTADAS EM CONSELHOS E CONSÓRCIOS

FONTE: os autores.
NOTA: Apedema: Assembléia Permanente das Entidades de Defesa do Meio Ambiente; Fecam: Fundo Estadual de Controle
Ambiental.

O Quadro 3 (abaixo) traz os dados sobre a natureza de sua atividade leva-o a atingir uma po-
abrangência geográfica das ações das ONGs en- pulação maior e mais difusa, em virtude da ampla
trevistadas. Encontramos vários níveis de divulgação de suas pesquisas. Isso indica uma
abrangência, de municipal a nacional, mas nenhu- vocação das ONGs para a implementação de ações
ma delas atua em nível internacional. Vale ressal- locais (inclusive agendas 21), mesmo quando elas
tar que as ações executadas são quase todas pon- sejam dotadas de uma ampla visão de mundo.
tuais, sendo a exceção principal o ISER, pois a

QUADRO 3 – ÁREA DE ABRANGÊNCIA GEOGRÁFICA DAS AÇÕES DAS ONG'S ENTREVISTADAS

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FONTE: os autores.
NOTA: A atuação “municipal ampliada” significa que a ONG em questão atua em várias áreas do mesmo município.

Constatamos, a partir dos dados reunidos no pouca ou nenhuma participação desse tipo, pelo
Quadro 4 (abaixo), que 50% das ONGs são de fato de não ser esse o seu objetivo precípuo. Mes-
base, ou seja, a participação comunitária angaria- mo assim, desenvolvem ações e têm vínculos in-
da é grande, tanto na forma de voluntariado quan- diretos com comunidades urbanas de baixa ren-
to na filiação à entidade. As demais contam com da.

QUADRO 4 – PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA NAS ONG'S ENTREVISTADAS

FONTE: os autores.
NOTA: O que se quer indicar neste quadro é se há muita ou pouca presença de membros da comunidade nas entidades.

O Quadro 5 (abaixo) contém dados sobre a cos de algumas ONGs e uma diversificação da
infra-estrutura das ONGs. Foi observado nas vi- formação do pessoal de outras. As fontes de re-
sitas que na sua grande maioria as ONGs têm se- cursos estão basicamente nos financiamentos e/
des apropriadas para o desenvolvimento de suas ou patrocínios de projetos desenvolvidos, nos
atividades, bem como boas instalações, inclusive quais os principais financiadores são o governo,
equipamentos de informática. A maioria não dis- grandes empresas e agências internacionais. Com
põe de laboratórios, no entanto. Registramos ain- menor incidência, as entidades financiam-se com
da o alto nível de qualificação dos corpos técni- doações e com recursos próprios.

QUADRO 5 – INFRA-ESTRUTURA DAS ONG'S ENTREVISTADAS

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FONTE: os autores.
NOTA: Na equipe do ISER não se consideram os numerosos funcionários administrativos, pois trata-se de uma instituição
de grande porte.

Analisando os dados do Quadro 6 (abaixo), de trabalho de replantio de manguezais no entorno


que constam os projetos específicos desenvolvi- da baía, a ser executado pelo Consórcio Baía Azul.
dos no entorno da baía de Guanabara, verifica- O ISER também realizou um trabalho de pesquisa
mos o quase domínio do Consórcio Baía Azul, em função do acidente, encomendado pelo
que se formou após o notório episódio de derra- Semads. Outras iniciativas fora desse contexto
mamento de óleo pela refinaria Duque de Caxias foram desenvolvidas apenas pelo IBG e pelo Mun-
(da Petrobrás), em janeiro de 2000. Da multa de do da Lama, por estarem ligados especificamente
R$ 50 milhões cobrada pelo Ibama à Petrobrás, à baía de Guanabara e ao ecossistema manguezal.
R$ 2 milhões e 400 mil foram alocados para o
QUADRO 6 – PROJETOS DESENVOLVIDOS PELAS ONG'S ENTREVISTADAS NA BAÍA DE GUANABARA

FONTE: os autores.
NOTAS:
1. N/I: não informado.
2. UFF: Universidade Federal Fluminense; UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; RITS: Rede de Informações para o
Terceiro Setor.
3. Em relação ao valor que a ONG Onda Azul recebeu: da multa (R$ 50 milhões) aplicada à Petrobrás, R$ 2 400 000,00 foram
transferidos ao Consórcio; a organização Onda Azul recebeu 44% desse valor.

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Os dados do Quadro 7 (abaixo), desdo- sociedade. No tocante ao cumprimento de prazos


brando os do quadro anterior, colocam a questão e metas, é preciso considerar que esses dados são
das metas previstas versus as realizadas, com base retratos parciais, pois espelham aquilo que a visão
nos dados levantados nas entrevistas. Notamos do entrevistado permite ou prioriza enxergar. Con-
em primeiro lugar um ponto de confluência em tudo, percebe-se um compromisso com as co-
atrelar as atividades de reflorestamento à dissemi- munidades em concretizar o proposto, mesmo
nação de informações, produção de conhecimen- com recursos escassos.
to, sensibilização e transferência de valores para a

QUADRO 7 – METAS PREVISTAS/REALIZADAS DOS PROJETOS DESENVOLVIDOS PELAS ONG'S


ENTREVISTADAS NA BAÍA DE GUANABARA

FONTE: os autores.

Analisamos a seguir as informações obtidas de 2000) na baía de Guanabara fornece informa-


nas entrevistas. O resultado da pesquisa efetuada ções relevantes para a nossa análise. A pesquisa
pelo ISER3 sobre a percepção do dano ambiental comparou a percepção da população da situação
causado pelo derramamento de óleo (em janeiro da baía antes e depois do derramamento. O resul-
tado indica que as pessoas tiveram dificuldade em
3 Informações obtidas em entrevista realizada no ISER avaliar o dano, porque a baía de Guanabara já é
com Samyra Crespo, em 12 de março de 2002; os dados vista como histórica e diariamente agredida. Ou
estatísticos da pesquisa não foram obtidos, por terem sido seja, elas sabem que o problema agravou-se de-
encomendados pela Semads. pois do acidente, mas estão convencidas também

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de que existem derramamentos diários em menor templam uma visão “holística”, considerada es-
proporção, mas igualmente graves. Um achado sencial no trato das questões ambientais atualmen-
interessante dessa pesquisa é que a imagem da te4 . Constatou-se a persistência de um ranço
empresa causadora do dano, a Petrobrás, não pi- tecnocrático do Estado, que traz projetos prontos
orou depois do episódio de janeiro de 2000. para execução, sem internalizar uma abordagem
multidisciplinar. Para Jannuzzi (2002, p. 70), o
Outra questão levantada pela pesquisa do ISER
processo de planejamento no contexto de uma so-
diz respeito ao efeito do episódio sobre a atividade
ciedade democrática não pode ser conduzido de
econômica no entorno da baía. Para a maioria dos
modo tecnocrático, como se as pressões políti-
entrevistados, a população que vive dos recursos
cas não fossem legítimas ou como se os interes-
fornecidos pela Baía de Guanabara já tem uma
ses divergentes não devessem ser explicitados. O
atividade econômica decadente, independentemen-
planejamento público é um jogo político legítimo,
te do derramamento recente. São julgadas neces-
de que participam e devem participar técnicos de
sárias, por isso, uma ampla política pública para a
planejamento e vários outros stakeholders, isto é,
recuperação da baía e a criação de um Conselho
outros grupos de pressão com interesse na defi-
Gestor para ela. No que tange às indenizações
nição das políticas, situados no governo, na soci-
pagas pela Petrobrás, as pessoas em sua maioria
edade civil e nas diferentes instâncias da burocra-
consideraram que foram justas, que foram
cia pública (federal, estadual e municipal). Não é
suspensas antes do tempo necessário e que fo-
um processo linear, mas permeado de vicissitu-
ram transferidas para pessoas e entidades sem base
des e sujeito a condicionantes político-
em critérios adequados. Finalmente, as pessoas
institucionais.
percebem conflitos de atribuições entre o Ibama,
o estado e os municípios, mas atribuem ao estado Assim, a implementação das políticas depende
do Rio de Janeiro a principal responsabilidade pela também do papel crucial desempenhado pelo agen-
despoluição da baía da Guanabara. Consideram tes encarregados de colocá-las em ação, os quais
que se passaram anos de descaso público e que podem desenvolver ou criar barreiras adicionais à
isso fez que os órgãos ambientais ficassem deca- sua efetivação. Como em toda atividade dessa
dentes e sucateados, mesmo que se perceba o natureza, é importante garantir a participação e o
começo de uma melhora. controle sociais no processo, a fim de legitimá-lo
perante a sociedade, garantir o compromisso dos
A pesquisa do ISER mostra, também, que é
agentes implementadores e alcançar a efetividade
pequena a diferença entre a opinião da população
social almejada pelas políticas públicas. Afinal, as
atingida e a da população não-atingida a respeito
decisões públicas são sempre difíceis, já que os
do grande desastre ambiental representado pelo
recursos são em geral insuficientes para atender à
derramamento de petróleo de janeiro de 2000. A
totalidade dos problemas. Jannuzzi (ibidem) e
principal diferença é que a baía de Guanabara é
González (1999, p. 27) afirmam existir uma ten-
valorizada como paisagem por quem não freqüenta
dência emergente de necessidade do envolvimento
as suas praias, por serem poluídas e/ou distantes,
de múltiplos atores nas políticas sociais, estabele-
e por não dependerem dela para a sua sobrevivên-
cendo-se parcerias para o combate à pobreza em
cia. Podemos concluir, a partir dessa pesquisa,
nível local.
que o público em geral não tem a percepção de
valor desse ecossistema enquanto patrimônio pú-
blico e que a sua preservação exige uma postura 4 Não discutimos o mérito da questão sobre se a atuação
mais ativa da sociedade civil. Notamos, nesse caso, das ONGs examinadas tem ou não caráter “holístico”. Con-
uma ação voltada à integração das comunidades sideramos que a questão ambiental tende a ser tratada por
com o meio em que vivem, no intuito de dissemi- elas de maneira holística ou interdisciplinar ou ao menos
nar um sentimento favorável à sua preservação. A multidisciplinar. No entanto, como muitas vezes os finan-
ciamentos obtidos e as parcerias feitas exigem o cumpri-
ação ecológica passa pela instrumentalização de mento de metas específicas ou setoriais, as abordagens mais
comunidades de baixa renda, de forma a levá-las integradas ou abrangentes podem perder ênfase. De toda
a buscar a sustentabilidade. forma, nota-se que tipicamente cada organização tem uma
“marca” na sua abordagem – ênfase na educação e na
As opiniões seguintes trazem para a discussão mobilização comunitária – o que tende a ampliar os efeitos
um aspecto interessante: a visão das organizações de ações eventualmente focalizadas em metas mais estrei-
quanto à implementação dos projetos que não con- tas.

187
O TERCEIRO SETOR COMO EXECUTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS

De acordo com um estudo realizado pelo Ins- As ONGs que cumprem funções públicas perce-
tituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA bem a sua prática como uma nova forma de arti-
apud ANDRADE, 1999, p. 6), “o Brasil não é um culação de uma emergente esfera pública social e
país que gasta pouco com a área social. O proble- consideram-se precursoras de uma nova
ma é que gasta mal. Os investimentos represen- institucionalidade. Em suma, essas entidades po-
tam 20,9% do PIB, sendo que a média latino-ame- dem assumir um papel estratégico quando se trans-
ricana é de 10,8%”. As ONGs, nesse contexto, formam em sujeitos políticos autônomos e levan-
são importantes agentes de atenuação desse qua- tam a bandeira da cidadania, da democracia e da
dro de desperdício de investimentos sociais, busca de um novo padrão de desenvolvimento que
reorientando a comunidade e os demais agentes não produza a exclusão social e a degradação
públicos para soluções alternativas e eficazes. ambiental.
Guattari (1990, p. 52) já dizia que se precisa de
Vimos que as ONGs brasileiras, particularmen-
“[...] uma autêntica revolução política, social e
te no segmento ambientalista, apresentaram um
cultural, reorientando os objetivos da produção de
crescimento muito rápido a partir da Eco-92. Vi-
bens materiais e imateriais, revolução que deverá
mos, também, que os seus objetivos, apesar de
concernir não só as relações de forças visíveis
enfoques e metodologias diferentes, apresentam
mas também a sensibilidade, a inteligência e o de-
uma forte ligação com a questão educacional e de
sejo”. Esse movimento envolve, entre outras coi-
conscientização ecológica. O fato de terem públi-
sas, a articulação entre o social e o ambiental.
cos-alvo variados demonstra uma característica
Camargo (2001, p. 18) relata que, historica- singular de atuação local – buscam-se nichos bem
mente, esse tipo de trabalho está vinculado às ini- definidos, mas concebidos e elaborados a partir
ciativas de caridade das mulheres da alta socieda- de uma visão global, já que o nível de instrução
de, uma iniciativa essencialmente feminina, priva- dos corpos técnicos dessas instituições é muito
da, por vezes ligada a preceitos religiosos. Só nas alto. Vimos ainda que esses corpos técnicos dedi-
últimas décadas, em decorrência da luta por direi- cam-se a alcançar a articulação entre o desenvol-
tos humanos, civis e sociais, é que esse trabalho vimento social e a conservação ambiental.
começou a ser visto, em algumas esferas da soci-
As ONGs estudadas têm forte capacidade de
edade civil ocidental, como possibilidade de ação
mobilizar voluntários e profissionais para as ques-
cívica, bem como de ação voltada para o bem
tões da conservação da natureza, no sentido de
alheio ou público. Nos anos 1990, o movimento
revitalizar a consciência da solidariedade, traduzida
chamado “Ação da Cidadania contra a Fome, a
em esforço cívico ou voluntário. Desenvolvem
Miséria e pela Vida” revitalizou uma consciência
projetos de preservação e/ou recuperação de
adormecida na sociedade brasileira: a da solidarie-
ecossistemas degradados, conseguem envolver as
dade, traduzida em esforço voluntário. A partir
comunidades locais, otimizam os recursos escas-
desse movimento, surgiram muitos outros com a
sos de entidades estatais tipicamente sucateadas
mesma proposta: fazer que a sociedade tome ini-
ou falidas. Criam conexão das pessoas com a na-
ciativas próprias para resolver os seus problemas
tureza e sensibilizam-nas para cuidar do que seria
e, ao mesmo tempo, pressionar o Estado para que
uma extensão de suas casas. Um dos resultados
cumpra o seu papel de formular políticas públicas
observados nos projetos bem-sucedidos é que as
e executá-las com eficiência. Não casualmente, a
comunidades que dependem desses recursos na-
engenharia institucional em construção ao longo
turais para as suas atividades produtivas assumem
do ano de 2003 para executar o “Programa Fome
uma postura de seus guardiões.
Zero”, prioridade do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva, inclui a participação de numerosos orga- Verificamos que as ONGs caminham para uma
nismos da sociedade civil em sua concepção, em especialização e profissionalização de suas ativi-
seu acompanhamento e sua execução. dades, bem como para a formação de redes de
relacionamento e fóruns de debates. Agrupam-se
Essas idéias são relevantes para refletir sobre
em consórcios e em frentes comuns de trabalho e
algumas práticas recorrentes de ONGs
participam de conselhos e comitês gestores de
ambientalistas no entorno da baía de Guanabara.
unidades de conservação. Detecta-se uma mudan-
Muito esforço e pesquisa, muitas atividades e
ça em suas intervenções, antes mais voltadas para
muitos recursos vêm sendo aplicados nessa área.
o ativismo de denúncia e protesto e agora mais

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 177-192 JUN. 2005

asseverativas e mesmo executivas. Nesse quadro, bem a realidade local de cada comunidade. Essa
elas exibem um traço bem peculiar, que é a preo- proximidade com a vida das pessoas faz grande
cupação com a eficiência e eficácia dos resulta- diferença na eficácia do investimento. O Estado
dos de suas ações, traço baseado em sua consci- não vem conseguindo fazer isso sozinho com o
ência da precariedade – permanente ou passagei- mesmo sucesso.
ra, não importa – da ação estatal e na necessidade
Entretanto, não deve ser desprezado o princí-
de “fazer mais e melhor” do que o Estado.
pio de que as políticas públicas são eminentemen-
As ONGs estudadas desenvolvem ações pon- te prerrogativas do Estado e que precisam “irri-
tuais, à exceção de instituições de formação de gar” todo o organismo social. Assim,
opinião, como o ISER, voltadas para pesquisa e a normativamente, continua a valer o imperativo de
disseminação dos seus resultados. Isso lhes con- que os setores sociais eventualmente desorgani-
fere um conhecimento das bases e uma conse- zados não podem ser “punidos” com a ausência
qüente penetração nas comunidades, constituin- de oferta de bens públicos. Continua a valer a ne-
do-se, entre outras coisas, em potenciais instru- cessidade de que as políticas públicas, executa-
mentos de implementação de agendas 21 locais, das diretamente pelo setor público, ou indireta-
atualmente em plena expansão pelo país afora. As mente pelo terceiro setor, contemplem todos os
ONGs conseguem alcançar, portanto, uma forte cidadãos, mesmo os desorganizados. Dessa for-
capilaridade social, um recurso valioso para qual- ma, o corolário do avanço eficaz do terceiro setor
quer coalizão de poder ou governo para não é o desmantelamento dos serviços públicos
implementar as suas políticas públicas na área propriamente estatais e sim o seu aprimoramento,
ambiental e social. Assim, a existência de um es- pois que sempre haverá diferenças no grau de or-
paço público não-estatal parece tornar-se cada vez ganização dos diversos setores sociais e nos ser-
mais condição necessária para a democracia con- viços que o terceiro setor pode oferecer-lhes. O
temporânea, que, como vimos, sofre hoje uma papel do Estado moderno, democrático e voltado
profunda crise de legitimidade. Enfrentar os de- para o bem público é precisamente atacar e supe-
safios de aperfeiçoar os instrumentos de rar os eventuais desníveis no atendimento das
governabilidade e criar novas estruturas de necessidades e dos direitos (a esse respeito, ver
governança, no que diz respeito à capacidade de ARRETCHE, 1996).
ação estatal na implementação das políticas e na
As ações das ONGs ambientalistas encontram
consecução das metas coletivas, são requisitos
respaldo no artigo 225 da Constituição brasileira:
necessários para superar a crise da democracia
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-
representativa.
mente equilibrado, bem de uso comum do povo e
Não se deve esquecer que o crescimento do essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
terceiro setor é um fenômeno mundial, que pres- ao Poder Público e à coletividade o dever de
supõe um espaço democrático. A sociedade civil defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futu-
assumirá um papel protagonista, pois o Estado vem ras gerações” (BRASIL, 2005). Isso significa que
reduzindo a sua presença, tornando-se cada vez o meio ambiente, como bem público de uso co-
mais orientador e normatizador e cada vez menos mum da população, não pode ser objeto de apro-
executor. O espaço assim ganho pela sociedade priação privada ou estatal contrária ao interesse
civil parece ser irreversível, pois ela torna-se público. Impor ao Poder Público e à coletividade
“constitucionalmente” (independentemente do que o dever de defender o meio ambiente significa di-
rezem os textos constitucionais) parceira do bem- zer que se, por acaso, o governo não tomar as
estar comum. Ela alcança um nível de domínio e devidas providências contra a degradação
competência setoriais que o Estado não consegue ambiental, os cidadãos e as suas associações de-
mais ter. vem contar com meios legais de exigir, com su-
cesso, a proteção ambiental.
Na medida em que as comunidades desejam
maior nível de qualidade de vida e desenvolvimento Constatamos, também, que as ONGs desen-
social e em que o Estado distancia-se delas, am- volveram uma capacidade de angariar fundos junto
plia-se o espaço de intervenção do terceiro setor. a financiadores, principalmente o governo e as
As ONGs – principalmente as que desenvolvem instituições internacionais de fomento, para o cus-
projetos comunitários – atuam in loco, conhecem teio de suas atividades. Há, portanto, um campo

189
O TERCEIRO SETOR COMO EXECUTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS

fértil para a sustentabilidade das ONGs para além promove parcerias por meio de programas e pro-
do simples dispêndio de parcelas dos orçamentos jetos sociais, contemplando a sua participação em
públicos. A isso devemos somar o fato distinto, grandes projetos, como o Plano de Despoluição
mas aparentado, de haver uma tendência de au- da baía da Guanabara, executado sob responsabi-
mento da responsabilidade social entre o lidade exclusiva do Governo. Nesse contexto, as
empresariado brasileiro. Isso sinaliza não apenas ONGs apresentam-se como agentes de ampliação
ações diretas do setor privado com objetivo de da cidadania, em um momento de construção das
produzir bem-estar, mas uma outra fonte de pa- novas práticas sociais, que assinalam uma aber-
trocínio para as atividades sócio-ambientais do tura maior de espaço na gestão das políticas pú-
terceiro setor, via parcerias entre empresas e blicas e novas relações entre Estado e sociedade.
ONGs. No Brasil, há 1,2 milhão de pessoas atu-
A principal conclusão da nossa pesquisa suge-
ando em mais de 250 mil organizações não-go-
re que as ONGs ambientalistas, atuando em con-
vernamentais, que movimentam cerca de R$ 12
junto com o governo, são um eficiente instrumento
bilhões anuais – o que corresponde a 1,2% do
de planejamento e execução de políticas públicas
PIB brasileiro (VILELA, 2002, p. C-2) –, sendo
na área ambiental. Elas promovem o trabalho vo-
que a tendência dessas cifras é ascendente O ter-
luntário, despertam o sentimento de cidadania e
ceiro setor vem fazendo mais do que buscar aten-
valorizam o bem público. Ajudam, ainda, a
der às necessidades da sociedade que o governo e
conscientizar a população acerca da preservação
a iniciativa privada não atendem; ele é em si mes-
dos ecossistemas. Finalmente, constroem fóruns
mo uma força econômica que gera, cada vez
de debates abertos à sociedade civil, nos quais se
mais, renda e emprego.
consubstanciam soluções para problemas
A nossa pesquisa constatou, ainda, que o Es- ambientais locais.
tado, percebendo a contribuição social das ONGs,

Solange Maria da Silva Nunes Mattos (solange@aprec.org.br) é Mestre em Ciência Ambiental pela
Universidade Federal Fluminense (UFF) e Diretora-Executiva da Associação de Proteção de Ecossistemas
Costeiros (Aprec).
José Augusto Drummond (jaldrummond@uol.com.br) é Doutor em Recursos Naturais e Desenvolvi-
mento pela University of Wisconsin (EUA) e Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento Susten-
tável da Universidade de Brasília (UnB).

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