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Morfologia Luisa Azuaga Introdugao Se fizermos uma pesquisa bibliogréfica por assuntos numa rede computacional, usando para tal a palavra morfologia, vamos deparar com varias referencias a estudos de Quimica, Boténica, Biologia, e nao apenas de Lingufstica. Na verdade, trata-se de um termo que nio é exclusivo da ciéncia da Tinguagem; aliés, quando, no inicio do século XIX, comegou a ser utilizado, também 0 no era, referindo, sim, qualquer andlise cujo ob- {ecto fosse a forma. Nessa drea do saber, porém, morfologia foi desde logo ‘empregue, especificamente, no sentido tradicional de anélise das formas que as palavras de uma dada lingua podem assumir. Presume-se, entdo, a partir desta definigao cléssica, que uma palavra ‘ocorre sob diferentes formas; mas, dado o termo forma ser polissémico, nao s6 em Linguistica, como no seu uso quotidiano, como vamos interpreté-lo neste contexto? Consideremos os exemplos apresentados em (1a), ou em (1b): (1) @) canto cantas canta cantamos cantais cantam (b) cantar cantor pintar —pintor lutar —_Iutador Em (Ja), reconhecemos tratar-se sempre do verbo cantar que ocorre nas, diferentes manifestagdes, ou seja, seis elementos de um conjunto de alter- 25 nativas paradigméticas, as suas formas no Presente do Indicativo. Em (1b), estamos perante seis ocorréncias de seis palavras diferentes, porém, de al- gum modo, notamos que elas também se relacionam formalmente, entre si, i. e., a estrutura interna de cada uma reflecte relagdes com as outras. A Morfologia analisa, entio, as formas das palavras, ou melhor, as alteragdes sistematicas, na forma destas unidades, alteragdes essas que es tio relacionadas com mudangas no sentido das mesmas, como observamos, ‘quer em (1a) quer em (1b), ilustrando, embora, estes exemplos, dois tipos distintos de alteragdes, como teremos oportunidade de atender mais adian- te, ao longo deste capitulo. E uma disciplina linguistica que tem a palavra por objecto, € que estuda, por um lado, a sua estrutura interna, a organi- zagio dos seus constituintes e, por outro, 0 modo como essa estrutura re- flecte a relago com outras palavras, que parecem estar associadas a ela de maneira especial. Nesse estudo inclui-se a anilise das unidades que usadas nas alteragdes sofridas, como, por exemplo, afixos flexionais e derivacionais, bem como as regras que sio postuladas para dar conta des- sas alteragdes. 1. Palavra Mas o que é uma palavra? Qualquer falante parece nao ter dificuldade em dar imimeros exemplos de palavras ou reconhecer também um grande ntimero de palavras da sua lingua. Agora que estamos a ler esta pagina, reconhecemo-las facilmente pelos espagos em branco entre elas e, se deparamos com uma, da qual no sabemos 0 significado, podemos procuré-la num dicionério, lugar onde tais elementos se encontram quase que armazenados a espera da nossa consulta, Mas as palavras néo so apenas reconhecfveis na escrita, como 0 que apontémos acima poderia fazer supor; a0 ouvirmos alguém falar, também identificamos certas sequéncias como palavras. Por exemplo, imagine-se que, durante uma conversa, nos perguntam: — O que & que «-----» signi- fica? ou — Como pronuncias «-----» ? O item lexical a incluit no espago entre aspas, normalmente, deve representar uma palavra. De facto, esta constitui-se na associago do sentido que expressa com os sons que a for- mam € conhecer uma palavra implica, por conseguinte, saber 0 que signi- fica ¢ como é pronunciada. Repare-se que, em geral, para além de identificarmos estas unidades, todos nés concordamos também com 0 que consideramos ser, ou no, uma palavra na nossa lingua. Assim, a forma sublinhada na frase Era um gato enorme e muito spluto, nfo & uma palavra em Portugués, embora todas as outras 0 sejam. 216 Este quadro, & primeira vista simples e incontroverso, analisado de. mai perto comeca, porém, a revelar-se muito diferente. Aceitando, em princi pio, a existéncia da palavra, no nos apercebemos, por exemplo, na maior parte das vezes, da complexidade da sua natureza. Por outro lado, & vulgar os falantes suporem que as palavras so uni- dades de sentido indivisiveis. Na verdade, muitas delas, como, por exem- plo, pai, mde, bom, para, nao podem ser segmentadas em unidades menores, que também sejam portadoras de sentido, ou seja, nao possuem estrutura interna, tratando-se de palavras simples e, com certeza, este facto deve pesar na formagio dessa convicgdo, que € relativamente generaliza- da. Todavia, notemos que grande nimero de palavras do Portugués sio palavras complexas, i. ¢., divisiveis em partes menores, portadoras de sen- tido, como por exemplo folhagem ou plumagem, em que folha refere uma parte de uma planta e pluma uma pena de ave, enguanto em ambos 0s casos sua parte final, -agem, transmite a nogéo de conjunto. ‘Analisemos em seguida, com algum pormenor, a estrutura intema de uma palavra que apresente um certo grau de complexidade, como € 0 caso de erigosamente: podemos explicar 0 seu sentido, que representamos entre as- pas, como «de modo perigoso», o que implica recorrer-se ao sentido de pe- rigoso, que por sua vez podemos explicar como «cheio de perigon. Encontramos, entéo, varias camadas de referéncia ao sentido, endo uma sim- ples associago homogénea de uma forma fonética a um contetido semntico. Para dar conta do sentido de perigosamente, podemos proceder do se- guinte modo: separamos uma parte do seu sentido e associamo-lo com a relagdo que estabelece com outta, perigoso, presumivelmente mais «bési- ca», ¢, depois, procedemos da mesma forma com perigoso, estabelecendo tuma relago com perigo. Temos de actuar da mesma maneira com a outra parte do seu sentido, relacionando perigosamente, desta vez, com palavras como lentamente ou rapidamente, e, em seguida, perigoso com palavras como venenoso ou brioso. Em cada um dos casos, a outra palavra, com a qual se estabelece a relagdo, possui uma forma incluida na forma da que esté a ser definida, por exemplo, lentamente/ perigosamente e perigoso/ Iperigo, para além da relagio de sentido encontrada. Parece, entdo, existir uma relagao sistemitica entre subpartes da forma de uma palavra e subpartes do seu sentido; sendo assim, podemos atribuir 4 perigosamente a representagao (2), em que (2a) indica a sua divisto for- ‘mal, ¢ (26) uma anélise paralela do seu sentido: Q (a) { KIperigo] [oso] ]__ {mente} ] (b) [ [[SITUAGAO} [CHEIO}} [MODO] } U7 Note-se que, no esquema, ocorre -oso, embora na palavra em andlise tenhamos perigosamente. Uma explicagio para este facto recorre & etimologia do sufixo adverbial -mente, que, oriundo do substantivo latino ‘mens, mentis, do género feminino (cf, Cunha e Cintra, 1984: 103), se adi- ciona sempre a forma feminina do adjectivo: perigosa-mente. O sentido de uma palavra complexa, portanto, seré fungio do sentido das suas partes. Deste ponto de vista, 0 sentido de perigosamente é a com- binagéo do sentido das subpartes perigo, -os0 ¢ -mente, como indicado na andlise que acabamos de realizar. Voltando & nossa pergunta inicial, que nos fez pensar sobre © que en- tendemos por palavra, note-se ainda que, no nosso conhecimento linguistico, em relagio a cada uma destas unidades, para além de sabermos o seu sen- tido e a representagdo fonolégica tinica que determina a sua prontincia, possuimos ainda informagao quanto & sua categoria sintéctica ou classe gramatical (ver capitulo Sintaxe). Assim, se compararmos a frase em (3a) com a sequéncia nfo gramatical em (3b), sabemos que construir, sendo um verbo, nfo pode ocorrer numa frase em que um nome como construed pode figurar, e que urgentemente, como & um advérbio, ndo pode ocorrer onde um adjectivo como urgente pode aparecer. (3) (@) A construgio de parques de estacionamento € uma tarefa urgente, (b)*A construir de parques de estacionamento € uma tarefa urgen- temente. Sabemos estes factos intuitivamente, enquanto falantes do Portugués, por isso alguns linguistas consideram que possuimos uma gramética interiori- zada, incluindo regras de construgio de frases (ver capitulo Sintaxe) que, ‘como vemos, recorrem informag4o sobre a categoria sintéctica das pala- Do que acabémos de expor, é possfvel concluir que podemos definir uma palavra a partir de vérios pontos de vista. Podemos caracterizé-la, por exemplo, como 0 dominio de princfpios que regulam 0 material morfo- I6gico, mas também como uma unidade grafica, como uma unidade fono- J6gica (ver capitulo Fonologia), como 0 elemento bésico do Iéxico (ver capitulo Semantica), ou como 0 elemento terminal da estrutura sintéctica (ver capitulo Sintaxe); hi uma variedade considerével de perspectivas que, naturalmente, delimitam unidades que nao tém forgosamente de coincidir. Diferentes abordagens sobre o que & uma palavra convergem na mesma unidade em muitos casos, noutros nio, 0 que tem sido causa de grandes controvérsias, Vejamos alguns dos aspectos que ilustram esta falta de coincidéncia, Consideremos, para comegar, 0 continuo sonoro. Quando as pessoas ory falam, muitas vezes interrompem o discurso através de pausas, porque querem dar uma formulagéo correcta aos seus pensamentos, melhorar a ‘ordem das palavras na frase, procurar 0 termo exacto, etc. Se observarmos este pormenor, daremos conta de que tais pausas, feitas em siléncio, ou preenchidas por sons indicadores de hesitago, como «ah...ah..ah...», no correm, em geral, no interior das palavras, mas sim entre elas. Com base neste aspecto, qualquer segmento de uma frase, limitado por pontos suces- sivos, nos quais é possfvel fazer uma pausa, € uma palavra, Assim, em (4), marcando com a letra p as posigdes de pausas pi veis, de acordo com esta definicao, cada segmriento entre duas instanciagées desta letra € uma palavra, Pop P P (4) Agora, chamem o guarda-nocturno, No continuo sonoro em (4), encontramos, deste modo, trés segmentos, agora, chamem © 0 guarda-nocturno. Se a nossa segmentacio se fundamen- tar na atribuigdo de acento principal de palavra, critério que diz igualmen- te respeito a0 aspecto sonoro de (4), verificamos uma coincidéncia nas unidades encontradas: agora, chamem € o guarda-nocturno sio tr8s unida- des, trés_palavras fonolégicas. Porém, se analisarmos (4), partindo de outros critérios, ortogrificos ou sintécticos, por exemplo, j& isso se néo verifica: de facto, tanto a andlise ortogrifica como a sintéctica no identi- ficam com uma palavra a sequéncia 0 guarda-nocturno. Esta falta de coincidéncia esté associada ao facto de a palavra palavra niio ser um termo cientifico, mas emprestado do vocabulério corrente. Alias, muitas das dificuldades encontradas na clarificagao da natureza desta uni- dade radicam, em larga medida, na utilizagao do termo com uma varieda- de de sentidos que, regra geral, no chegam a ser delimitados. ‘Tentemos, por conseguinte, identificar esses diferentes sentidos. Em (5), se quisermos contar as palavras, nfo levamos muito tempo a chegar ao mimero seis, notando os itens que ocorrem entre espagos em branco. (5) Quantas contas contas abrir neste Banco? Trata-se da nogio de palavra enquanto palavra ortogréfica, unidade que, na escrita, € delimitada por espaos em branco. No entanto, muitas vezes, este critério ortogréfico no nos permite ter a certeza de quando omega ou acaba uma palavra, mesmo a este nivel, dado que, em alguns casos, como, por exemplo, em alfinete-d’ama, se usa hifen e um apéstrofo, sinais gréficos que, na realidade, nao constituem propriamente um espago. 219, Consideremos outro pormenor: contimos as palavras ortogrificas em (5), mas haverd na frase repetigdes? Quantas sio consideradas diferentes? ‘A resposta a estas perguntas no é to simples como parece & primei- ra vista, ou melhor, nfo hé apenas uma Gnica resposta, pois ela depende do sentido a atribuir a palavra; com efeito, repare-se como as duas ins- tincias de contas so, de um ponto de vista ortografico, a mesma palavra ortografica e, de um ponto de vista do sentido, por exemplo, palavras di- ferentes: trata-se de palavras homénimas, que se escrevem da mesma maneira, embora designem nogdes diferentes, nao se encontrando relacio- nadas semanticamente. HA palavras, como pregar (pregos) € pregar (um sermao), que, se tém a mesma grafia, no se pronunciam da mesma maneira, apresentando sig- nificados diferentes: sao palavras homégrafas. Entretanto, podemos tam- bém encontrar palavras que se pronunciam da mesma maneira, mas se escrevem ¢ tém sentidos diferentes, como concelho € conselho, ou cozer © coser: séo palavras homéfonas. Estes termos, homégrafo, homéfono € ho- ‘ménimo, tém todos um elemento comum, de origem grega, homo, que sig- nifica «© mesmo»; assim, homégrafo significa «a mesma grafia», homéfono «0 mesmo som € homénimo «o mesmo nome». ‘Se em (5) contas, no sentido de «escrituragio do crédito © débito de alguém», € contas, no sentido de «tencionas», nao sio a mesma palavra, em (6), € continuando a analisar a ambiguidade do termo, quantas palavras diferentes encontramos? (6) Sou professor, mas jé fui estudante. A resposta vai depender, portanto, da perspectiva a adoptar; assim, podemos considerar sou e fui a mesma palavra ou palavras diferentes Sou ¢ fui sio palavras diferentes, do ponto de vista gréfico; nessa base, € possfvel afirmar que contamos seis formas de palavra em (6): sow, pro- ‘fessor, mas, jd, fui & estudante, entendendo por forma de palavra uma for- mma, fonolégica ou gréfica, que pode ocorrer isoladamente € que representa uma ocoréncia particular, sob a qual uma palavra se apresenta, No entanto, podemos também considerar sou e fui a mesma palavra, pois a forma de palavra sow e a forma de palavra fui sio formas do lexema SER, ou seja, sow e fui sao formas de palavra que realizam o mesmo item vocabular abstracto, sio diferentes manifestagdes dessa unidade lexical. Palavra, com este novo sentido, nao é um elemento constitufdo por letras ou sons; o lexema é uma unidade lexical abstracta que retine em si todas as flexdes (ver adiante 5. Flexo e derivacao) de uma dada palavra; de certo modo, & 0 que todas as formas de palavra associadas a ele pos- suem em comum; dai que, por convengio, e como critério metalinguis- 220, tico, se tenha estabelecido escrever as formas de palavra em itélico e os Jexemas com letras maiisculas; podemos, assim, escrever sou € urna for- ma de SER. Os lexemas nao ocorrem no plano da expressio; se, neste caso, usa- ‘mos 0 termo ocorténcia, fazemo-lo apenas metaforicamente. De facto, as ocorréncias, quer na escrita quer na fala, apresentam sempre uma forma, gréfica ou sonora, logo as unidades que ocorrem sao as formas de pala- ‘ra, que representam ou realizam os lexemas. E frequente identificar-se lexema com entrada no dicionario (0 que nio esté totalmente correcto, na medida em que alguns dicionérios podem in- cluir, explicitamente, numa entrada, por exemplo, palavras derivadas «tegu- Jarmente> da que consta na entrada), o que implica entradas separadas para hom@fonos, homénimos e homégrafos, mas nao para as formas de palavra. Assim, ndo encontramos directamente as formas de palavra sou e fui num iciondrio, mas a forma do infinitivo, ser, a sua forma de citagao. A forma de citagio de um lexema € a forma de palavra que convencionalmente se escolheu para representar esse lexema na entrada de um dicionério. ‘Até agora identificdmos quatro empregos diferentes de palavra, aos quais correspondem quatro nogées diferentes: 1. palavra ortografica: unidade da escrita, delimitada por espagos em branco. As palavras ortogréficas sao distintas umas das outras, por- que escritas de modo diferente — pai, passo, paco: 2. palavra fonolégica: unidade fonolégica, resultante de um determi- nado tipo de segmentagdo do continuo sonoro. As palavras a este nivel sdo distintas pelos processos fonolégicos que as delimitam; constituem-se como sequéncias que formam constituintes prosédicos ‘inicos, apresentando uma determinada propriedade unificadora, como um s6 acento principal, ou indivisibilidade de produgao, ou outro critério fonolégico. De modo muito simplista, diremos que sio distintas umas das outras, porque pronunciadas de modo diferen- te — pai, pregar (pregos), pregar (wm serméo); 3. formas de palavra: palavras distintas umas das outras, porque re- presentam variantes flexionais de uma mesma unidade lexical. Trata-se de formas fonolégicas ou gréficas, que podem ocorrer isoladamente — pai, pais; sou, fui; 4. lexema: unidade lexical, abstracta, que retine todas as flexdes de ‘uma mesma palavra. Em prinefpio, os lexemas sao distintos uns dos outros, porque portadores de sentidos diferentes — PAI, MAE, Em muitos casos, estes quatro tipos so representados pelo mesmo iter, e.g. a palavra lépis, considerada isoladamente, é sempre escrita e pronun- Bi ciada da mesma maneira, nio apresenta variagdo gramatical e € um lexema; porém, o mais frequente é estes tipos néio serem idénticos. ‘Como vimos, por vezes, quando empregamos © termo palavra, nfo pretendemos referir um item vocabular abstracto, um lexema, mas uma realizagao desse lexema, ou seja, uma forma de palavra. Outras vezes, ain- da, palavra pode também ser considerada a representagdo de um lexema, mas com a particularidade de a ela se associarem certas propriedades morfossintdcticas, i, e., em parte morfoldgicas, em parte sintécticas, como, por exemplo, nome, verbo, género, mimero, etc. Observemos as frases em (7), reparando, tanto em (7a) como em (7b), que, por um lado, se repete a mesma palavra ortogréfica, ldpis, realizando festa forma de palavra o lexema LAPIS mas que, por outro lado, nao se trata exactamente dos mesmos elementos em ambas as frases: (D (@) Comprei um lpi (b) Comprei dois lépis. Com efeito, se substituirmos lépis por formas equivalentes do lexema FUNIL, por exemplo, como em (8), verificamos que, em (7a) € em (7b), Idpis representa duas palavras gramaticalmente distintas: (8) (@) Comprei um funil. (b) Comprei dois funis. Podemos, por conseguinte, dizer que Idpis em (7a) realiza LAPIS & SINGULAR, enquanto em (7b) realiza LAPIS ¢ PLURAL; sio, portanto, palavras diferentes morfossintacticamente. Palavra morfossintéetica é entio © termo que se deve utilizar, quando pretendemos designar a especificagio ‘ou a descrigao de uma das formas de um lexema, tal como ela ocorre num dado enunciado, ‘A natureza das palavras é, consequentemente, muito complexa, existindo ‘uma vasta literatura sobre definigio de palavra ¢ sobre a maneira de con- ciliar as varias altemnativas. (s cinco tipos de palavras que identificémos permitem-nos atingit um maior grau de preciséo, no emprego que deles fizermos, dada a sua espe- cificidade. Porém, sempre que essa especificidade nao seja necesséria, con- tinuaremos a usar 0 termo palavra, embora conscientes da imprecisiio do seu contetido. ‘Além de atentarmos para a complexidade da unidade lingufstica que propomos para objecto da Morfologia, chamémos também a atencio para 6 facto de as palavras poderem ser internamente complexas, como verifi- cémos acima com perigosamente m st ‘Ao tentar analisar, quer as palavras simples quer as complexas, con- sideramos que se tratava de associacdes particulares de som e sentido; no entanto, note-se que as palavras nao constituem, numa lingua, a tinica uunidade em que se estabelece este tipo de asssociagao. Nao sio consi- deradas a unidade maxima desse tipo de relagdo sonvsentido, pois as frases © os sintagmas (ver capitulo Sintaxe), sequéncias estruturadas de palavras, sio unidades maiores; devem, entio, ser consideradas a uni- dade minima portadora de sentido, ou precisamos de postular a existéncia de uma unidade menor que a palavra, essa, sim, a unidade mfnima signi- ficativa? Este é um problema bésico em Morfologia. Em (2), quando analismos perigosamente, a correspondéncia entre a decomposi¢ao da forma em (a) € a andlise paralela do sentido em (b), parece querer sugerir que o domfnio da relacao directa entre som e senti- do nao é a palavra como um todo, mas as subpartes dela, dado perigosa- ‘mente ser uma combinagao estruturada de unidades menores que a palavra, igualmente portadoras de sentido. Baseados nestas observagies, os linguistas estruturalistas dos anos 40 © 50 concluftam que as palavras so, em geral, constitufdas por tais uni- dades mais pequenas do que elas, a que deram o nome de morfema. Palavra e morfema so duas nogdes cruciais em Morfologia, cada uma escondendo um vasto projecto incompleto de pesquisa; da palavra ja falé- ‘mos um pouco; vamos agora considerar a outra nogio. 2. Morfema Nao deve ser apenas coincidéncia o facto de in-, quer em inconstitu- cionalmente, quer em ingrato, quer em varias outras palavras do Portugués, ter a mesma promtincia e 0 mesmo sentido, podendo nés dizer 0 mesmo & -al em professoral, formal, essencial, etc. Propusemos acima, em (2), baseando-nos na correspondéncia que af se verifica entre as duas andlises, formal e seméntica, que palavras como perigosamente niio so signos sim- ples, mas uma combinag4o determinada de signos individualmente simples, cada um representando a unido de uma parte discreta do sentido da pala- vra com uma parte discreta da sua forma. Esses elementos so 0 que, no estruturalismo americano, geralmente se designa por morfemas. Em Bloomfield (1933) encontram-se os fundamentos para este tipo de andlise morfolégica, baseada na nogo de oposigao (ver capitulo Fonologia) € no estudo da distribuigdo dos elementos linguisticos. Segundo a definicao deste autor, 0 morfema €, por um lado, uma com binagdo de sequéncias fonolégicas, e, por outro, uma unidade de sentido, 23 ou seja, «uma forma lingufstica que ndo presenta semelhancas fonético- -seménticas com qualquer outra forma» (Bloomfield, 1933: 161) So estas unidades indivisiveis, de contetido semantico (ou de fungao gramatical) que constituem as palavras, neste quadro teérico. O morfema é geralmente também definido como a unidade minima significativa que, como jé sabemos, tem uma forma fisica (i. e., fonol6gi- ca e fonética) e um sentido, ow fungao, no sistema gramatical. © morfe ¢ essa forma fisica que representa um morferna Em prinefpio, cada morfe diferente representa um morfema. Os morfes sao, entdo, as unidades que, enquanto segmentos da forma de palavra considerada, podem ser escritos, como neste caso, ou falados, como to frequentemente acontece; trata-se, por consequéncia, de unidades discretas que realizam, na fala, ou na escrita, as unidades abstractas a que chamamos morfemas; existe, assim, uma relagdo de actualizagiio ou rea- lizagio entre morfema e morfe, este iltimo a expressdo fisica dessa uni- dade abstracta. O morfema é, portanto, realizado por algo de natureza diferente: nao se pode ouvir ou pronunciar um morfema, s6 se pode ouvir ou promunciar 0 que realiza esse morfema, ou seja, o morte. ‘Como afirmamos antes acerca dos lexemas, dado que os morfemas nao ocorrem no plano da expresso, usamos, também neste caso, 0 termo ocor- réncia apenas metaforicamente. Quando nos queremos referir a um morfema, regra geral utilizamos 0 morfe que o realiza e escrevemo-lo entre chavetas, com letra maiscula, por exemplo, (LAPIS), (PLURAL), {FELIZ}. Para reconhecermos, num som tnico, ou num conjunto de sons, a re- presentagdo de um morfema, existem técnicas e prinefpios a serem util dos. Antes, porém, de abordarmos estes aspectos, repare-se em algumas questées importantes: @) 0 facto de uma dada sequéncia sonora ser considerada a manifesta- ¢40 de um morfema depende da palavra em que ocorre. Por exemplo, se in- representa um morfema com 0 sentido de negacdo em palavras como indbil, incombustivel, este conjunto de sons nio tem 0 estatuto de morfema em infante ou indiano, pois, nestas dltimas palavras, no possui valor se- ‘mantico ou gramatical identificdvel. 4b) Até agora, temos utilizado o critério semntico para identificar os morfemas. Na verdade, em muitos casos, formas que tém em comum 0 ‘mesmo sentido podem ser atribufdas a0 mesmo morfema; no entanto, 0 emprego exclusivo de tal critério pode revelar-se problemético, o que le- vou & utilizagio de outros, de cardcter formal. ©) Finalmente, perante palavras como helicéptero, pterépode ou diptero, devemos considerar pter- morfema do Portugués? Historicamente, pter € um empréstimo do Grego, lingua em que significava «asa»; helicéptero é um 24 aparelho aerostético que conhecemos bem, possuindo hélices horizontais que, quais asas, 0 sustentam na atmosfera; diptero é um insecto, uma mosca ou um mosquito, que tem duas asas, e pterépode 0 grupo de moluscos cujos pés apresentam expansdes laterais, lembrando asas. E Gbvio que pter ocorre em palavras portuguesas, cujo sentido tem a ver com «asas», 0 problema € que a maior parte dos falantes nunca reparou na conec¢do semntica entre helicdptero € «asas». Convém, portanto, estabelecer uma distingao entre informagio etimol6gica, cuja relevancia é, essencialmente, histérica, ¢ in- formagao sincrénica, que faz parte do nosso conhecimento linguistic. Dissemos ja que, dadas as falhas de uma abordagem puramente semanti- ca, embora este critério do sentido desempenhe o seu papel na identificagaio dos morfemas, os linguistas estruturalistas procuraram atribuir prioridades a ctitérios formais. O prinefpio bdsico usado na anélise das palavras é o principio da oposigio, como referimos acima. Procedemos, entio, opondo formas que, por um lado, sio diferentes fonologicamente e, por outro, so também diferentes semanticamente. Assim, a diferenga fonoldgica entre, por exemplo, /pa/ e /pe/ est correlacionada com uma diferenca semantica. Comegamos a anélise das palavras em morfemas com a sua segmenta- do em morfes. E frequente um morfe realizar um morfema, mas esta relagio de um para um nem sempre se verifica; por vezes, dois ou mais morfes apresen- tam o mesmo sentido, mas, entretanto, nunca ocorrem no mesmo contex- to; por outro lado, @ soma dos seus contextos constitui 0 conjunto dos contextos em que o morfema que realizam pode ocorrer. Como exemplo, analisemos 0 caso do morfema de plural do Portugués. Nos falares de Lis- boa e do Rio de Janeiro, o plural, manifesto na escrita pela terminagio -s, pode assumir formas fonéticas diferentes (ver Cunha e Cintra, 1984: 76) como verificamos em (9) na palavra casas: (9) (@) casas amarelas (b) casas bonitas (©) casas pequenas © morfema plural realiza-se de trés maneiras diferentes, como indica- mos em (10): (10) (a) {2] antes da vogal que inicia a palavra amarelas; (b) {3} antes da consoante sonora que inicia a palavra bonitas; (c) [f] antes da consoante surda que inicia a palavra pequenas. De facto, a diferenga na forma que detectamos, néo se encontra asso- ciada a nenhuma diferenca de sentido. 225 Estamos perante morfes diferentes que realizam, nos trés casos, © mes- mo morfema {PLURAL}. Quando morfes diferentes representam 0 mesmo morfema, so agrupa- dos ¢ intitulados alomorfes desse morfema. Repare-se que, nos exemplos que acabémos de analisar, a escolha entre estas diferentes realizagdes & determinada ou condicionada pelo som seguin- te. Dizemos nestes casos que 0 morfema {PLURAL} apresenta alomor- fismo condicionado foneticamente. Outro exemplo de alomorfismo também inteiramente condicionado por razbes fonolégicas, verifica-se nas terminagdes de plural das seguintes pa- lavras inglesas em (11): (1) Singular Plural cat [kaet] cats [kaets] dog {dog} dogs [dogz} horse [ho:s] horses[ho:siz] A terminagio de plural apresenta, como vemos, trés promtincias dife- rentes: [s}, (2), [iz], mas estes trés elementos representam o mesmo morfema (PLURAL} A técnica utilizada na identificag3o dos morfemas baseia-se na nogéo de distribuigio, i. e., 0 conjunto dos contextos em que uma forma linguis- tica particular ocorre. Note-se que as terminagies de cats, dogs ¢ horses rnunea ocorrem no mesmo contexto; estes morfes encontram-se em distri- buigdo complementar. Dizemos que os morfes se encontram em distribuigo complementar, por consequéncia, quando representam o mesmo sentido ou serve & mes- ‘ma fungo gramatical e, para além disso, nunca ocorrem em contextos idén- ticos. Assim, os trés morfes [2], [3] ¢ [J], que representam 0 morfema de plural na palavra casas em (10), encontram-se também em distribuigio complementar. Cada um deles ocorre apenas em contextos especificados em (11), logo sao alomorfes do mesmo morfema de plural... ‘A escolha do alomorfe a usar num determinado contexto nao é feita ‘a0 acaso; nestes dois exemplos, dependem da natureza do som que os se- ‘gue imediatamente: sio alomorfes condicionados fonologicamente. Mas a distribuigao dos morfes pode ser condicionada por outras razbes, que nao fonolégicas; em inglés, ha outras maneiras de manifestar a pluralidade além da que apontimos; hé palavras cujo plural se manifesta na terminagio -en, como oxen ou children; ora, a escolha desta outra ma- neira de manifestar pluralidade ndo depende do contexto fonético, mas dos exemas em questo, OX e CHILD; esta variante do morfema de plural, neste caso, € condicionada lexicalmente. 26 ? Noutros casos, ainda, como em confortavel e confortabilidade, ou inte- ligével, inteligibilidade, por exemplo, é a estrutura morfol6gica que determi- na a ocorténcia dos dois morfes, confortd-vel e conforta-bil, ou inteligé-vel € inteligi-bil, ou seja, 0 alomorfismo, neste caso, € condicionado pela pre- senga do sufixo -dade, adicionado a uma palavra que terminava com 0 sufixo -vel; estamos, entao, perante um alomorfismo com base num con dicionamento morfolégico, uma propriedade idiossincrética destas palavras. Repare-se que 0 morfema {SER} se realiza sou, quando se encontra associado aos morfemas de presente, primeira pessoa e singular, mas fui, quando se encontra associado 20 morfemas de pasado, primeira pessoa € singular, (SER) apresenta, portanto, varios «disfarces», alomorfes que de- pendem inteiramente da presenga de um elemento gramatical particular no seu contexto; nestes casos, dizemos que estes alomorfes sio condiciona- dos gramaticalmente. Numa lingua como 0 Alemao, a forma dos adjectivos depende do género dos nomes que modificam; vejamos, como exemplo, o nominative singular do adjectivo gross, que, portanto, apresenta alomorfes condiciona- dos gramaticalmente, que indicamos usando itélico: ein grosser Wagen «um carro grande» (Wagen: nome masculino) ein grosser Hund «um co grande» (Hund: nome masculino) ein grosses Haus «uma casa grande» (Haus: nome neutro) ein grosses Rad «uma roda grande» (Rad: nome neutro) Os morfes que realizam um morfema especifico e que sio condiciona- dos (fonética, lexical, morfol6gica ou gramaticalmente) sao chamados, como vyimos, alomorfes desse morfema. Qualquer alomorfe & um morfe; apenas se especifica, com a utilizagao daquele termo, que o morfe em causa é uma centre varias realizagées de ‘um morfema determinado. Em resumo, para identificarmos morfes como alomorfes de um morfema Gnico recorremos, portanto, a um critério duplo, semantico e distribucional; por um lado, os morfes, apesar da sua diferenga formal, devem apresentar 0 mesmo sentido, por outro, devem encontrar-se em dis- tribuico complementar. Repare-se, entretanto, que 0 termo morfema nem sempre € utilizado com © sentido que aqui the atribufmos, verificando-se, consequentemente, 0 mesmo com a palavra alomorfe; dai que, ao encontrarmos estas palavras noutros trabalhos, devamos sempre verificar se as definigdes usadas coin- cidem com estas que apresentamos. A andlise de uma determinada palavra numa determinada lingua con- siste, na abordagem estruturalista, na identificagdo dos seus morfemas constitutivos: vimos como perigosamente, por exemplo, era constituida por 27 trés elementos perigo, -oso ¢ -mente; porém, hd ainda outros aspectos que devem ser analisados, na medida em que, para formar uma palavra com- plexa, néo parece apenas ser necessério concatenar esses morfemas constitutivos: o sentido de uma palavra complexa requer que se represen- tem certas relagbes de hierarquizagio, entre os seus elementos constituin- tes, i. e., que se conheca 0 modo como os seus constituintes se estruturam no dominio da palavra; para contemplar este pormenor, atribui-se as pala- vras uma anélise que inclui uma estrutura interna hierarquizada, ou estru- tura de constituintes imediatos, Cs (ver capitulo Sintaxe), como em (12): 2) Adv Adj” in’ feliz -mente Resumindo a posigo estruturalista quanto a estrutura da palavra, po- demos dizer que: As palavras so constitufdas por morfemas, Os morfemas so realizados pelos morfes. 3. Os morfemas encontram-se ordenados numa estrutura hierarquizada de Cls, quanto & forma. Deste modo, 0 estudo morfolégico esté dividido em duas partes: uma que contempla 0 alomorfismo, i. e., que dé conta da maneira como os morfemas, unidades abstractas, se relacionam com a sua parte fonol6gica, ou seja, que diz respeito & natureza dos princfpios que regem a variacao, na realizagio do material morfolégico, e outra parte, que chamaremos de morfotictica, que se interessa pelo modo como os morfemas se agrupam em estruturas hierarquicamente organizadas, para construir palavras com- plexas. A morfologia, nesta abordagem, é um conjunto de afirmagées acerca do modo como os morfemas se distribuem em relagdo uns aos outros € se organizam em estruturas de CIs, e do modo como cada um € realizado, em termos do seu contexto. 3. Alguns problemas Em quadros te6ricos estruturalistas, propds-se o morfema, como temos vindo a ilustrar, como unidade bésica da Morfologia, em altemativa & nog de palavra. Parecia haver interesse em eliminar esta substitul-l ne Sapam ‘A definigéo tradicional de morfema como unidade minima significati- va € entao posta em causa, Este conjunto de problemas ¢, talvez, um pouco heterogéneo, mas a frequéncia das situagdes em que eles ocorrem nas linguas de todo © mun- do levou linguistas, como, por exemplo, Aronoff (1976) e MacCarthy (1981), a rever os principios norteadores da nogao estruturalista de morfe- ‘ma, generalizando-os ou até mesmo abandonando-os. A teoria morfolégica, hoje em dia, em particular a generativa, tem como unidade chave a palavra, porém, como o morfema continua a ser uma en- tidade tedrica importante, consideremos ainda os diferentes tipos de morfema mais em pormenor. 4, Tipos de morfema Os morfemas classificam-se, quanto & natureza da sua significagdo, em morfemas lexicais « morfemas gramaticais, ou morfemas funcionais; es- tes tikimos tém como tinica fungao assinalar relagdes gramaticais, como os morfemas de nimero ou de tempo, as preposigdes ou 0 artigo, ao passo que 65 primeiros tém conteiido seméntico, como os que se referem ao mundo objectivo ou subjectivo, como {RAPAZ), {AZUL}, (BEM) ou {LISBOA} Os morfemas lexicais constituem uma classe aberta, sio em nimero ilimitado, sendo sempre:possivel criar um novo verbo, nome, adjectivo’ ou advérbio (neste caso, s6 quando se trata dos advérbios em -mente); em contrapartida, os morfemas gramaticais constituem um grupo finito, uma classe fechada de unidades numa dada Iingua. De facto, as unidades lexi- cais pertencem a inventarios ilimitados ou abertos ¢ as unidades gramaticais pertencem a inventérios limitados ou fechados; como a escolha do falante nos diferentes pontos da cadeia falada incide, consequentemente, sobre um miimero consideravel de unidades do primeiro tipo, enquanto 0 paradigma das unidades gramaticais & restrito, é de esperar que, num texto.dado, a percentagem das diferentes unidades empregues seja muito menos elevada para os elementos lexicais do que para os elementos gramaticais. Convém notar que alguns linguistas, particularmente de tradigao europeia, usam o termo monema para designar estas unidades a que de-. mos 0 nome de morfema (ver Martinet, 1967: 12-13), reservando morfe- ‘ma para um grupo restrito que apresenta um sentido apenas gramatical, relacional; em esquema, teriamos __ lexicais (Iexemas): (CLASSE},{PAI), etc. Monemas << "~~~ gramaticais (morfemas): {UM}, {DE},{PL}, etc. 232 Repare-se que ji usdmos o termo lexema, mas com um sentido dife- rente, 0 de palavra lexical, e néio monema lexical, como Martinet propde. Embora alguns linguistas estabelegam esta distingao entre lexema e morfema, preferimos usar sempre 0 termo morfema em sentido nao restri- to, ou seja, em esquema _~ morfema lexical: {CLASSE}, (PAI], etc. morfema < ~~~ morfema gramatical: (DE), (PLURAL), ete Hé morfemas que, ocasionalmente, coincidem com 0 que geralmente chamamos palavras, mas outros ndo; os morfemas podem ser, entdo, po- tencialmente livres ou presos, conforme, respectivamente, podem, por si 6, constituir uma palavra independente, como {MAE) ¢ {LAPIS}, ou no, como -mos em bebemos. Em (15) um, café e esquina so morfes que ac- tualizam morfemas livres, enquanto -mos e -aria sio morfes que realizam ‘morfemas presos. (15) J4 bebemos um café naquela pastelaria da esquina, Por outras palavras, relacionando as duas grandes distingSes que estabe- Jecemos entre os morfemas, uma com base na sua significacdo, outra com base na sua possibilidade de ocorrer sozinhos, note-se que os morfemas livres podem ser de duas categoria, lexicais (café, esquina) ou funcionais, grama- ticais (um, de), © os morfemas presos, que so necessariamente consttuintes dde palavra, podem ser derivacionais (-aria, em pastelaria), no sentido em ue ajudam a formar uma nova palavra, ou flexionais (-mos em bebemos), zna medida em que permitem formar formas diferentes de uma mesma pala. vra. Iremos tratar estes dois wtimos em pormenor, mais tarde (cf. 5. Flexao e derivagéo). Por agora, limitamo-nos a dominar a terminologia para os di- ferentes tipos de morfemas, que acompanhamos com um esquema: lexicais os _ livres felicidade, gerar —> geragdo), como nas formagies flexionais (classe > classes, cantar + cantamos). Para além da afixago, hd um outro processo aditivo, ou melhor, de repeticdo, geralmente designado por reduplicagao. Nesses casos, 0 afixo no € uma constante, possui antes uma forma determinada, na totalidade ou em parte, pela forma da base a que se aplica 0 processo; por outras palavras, © formativo & uma cépia de parte do material a que é adicionado, no exemplo que se segue de verbos em Tagalog: maglakbay «viajar magialakbay «viajar + intensivo» buksan «abrir» pagbubuksan «abrir + intensivo» As sflabas reduplicadas, que assinalmos com 0 itélico, nfo possuem segmentos fonolégicos em comum, no entanto, representam © mesmo ele- mento morfolégico: o intensivo. O Giltimo grupo de processos morfolégicos a que nos vamos reportar envolve uma modificagao, total ou parcial, da propria base. Jé demos al- guns exemplos em Inglés de modificago parcial, ao referirmos casos de mutacio vocélica, como em sing —> sang («cantar, cantei»); outros exer- plos sero break — broke («pattir, partin), ou foot — feet («pé, pés), man > men («homem, homens»). Ao postularmos uma mudanga vocélica, ou outra mudanga, convém, se possivel, verificar a direccao do processo, ou seja, considerar a razio por que se deriva x de y e nio y de x. Nos casos que nos serviram de exem- plo, em Ingles, a justificagio & facil: como, regra geral, as formas de pas- sado derivam do presente, ou melhor, de uma raiz idéntica a0 presente, afixando-se um sufixo dental (sail —> sailed), e as formas de plural deri- ‘vam das no singular, preservamos, entio, o padrio regularmente seguido, propondo essa direcg8o nos casos de mutacio. HA casos em que a modificagdo da base € total, como em ser —> fui, x g0 > went («ir > fui»): a esse proceso chama-se normalmente su- pletivismo. Outro subtipo de modificagio € ilustrado pelas formas resultantes de supresso de estrutura, como as palavras portmanteau: franglés (francés+inglés) ou termindtica (terminologia+ informatica) ou ainda a pa- lavra inglesa motel (motorway+hotel) ‘Segundo uma andlise de Bloomfield, as formas masculinas do adjecti- vo em Francés sio derivadas das formas do feminino por subtracgio; as- sim, 0 feminino bonne e 0 masculino bon, ou blanche e blanc, sio exemplos em que se verifica uma relagao estabelecida por supressio de estrutura. De facto, nio € possivel prever da forma do masculino que con- soante deve ser-Ihe adicionada para formar a forma do feminino, mas, se assumirmos que 0 masculino € derivado do feminino, podemos descrever a relagdo existente entre estas duas formas do adjective por meio de uma tinica operagdo: subtrair a consoante final. Estes processos, todavia, podem ser classificados de forma diversa, conforme as anélises a que forem submetidos. Por exemplo, a forma fran esa bon pode ser considerada a forma de ligagio, sendo bonne formada 2 por afixagdo do elemento que na grafia corresponde a -e; a forma inglesa went pode set segmentada em wen mais 0 sufixo dental -f, que encontra- ‘mos em formas de passado, como em burn-t ou fel-t; estariamos, tanto no caso em Francés, como no caso em Inglés, perante um proceso de afixa- ‘¢fo, e niio de modificagao, como propusemos antes. ‘Nao € nosso objectivo escolher a andlise que consideramos mais apro- priada, 0 que pretendemos, sim, € chamar a atengio para 0 facto de 0 ‘mesmo proceso poder ser integrado em diferentes grupos tipolégicos, con- forme @ anilise a que for submetido, ‘Ainda no falimos de uma operagio em que duas palavras, ou mais, se juntam para formar uma nova palavra, como em couve-flor, amor-per- feito, guarda-nocturno, etc., i. €, a composig&o. Trata-se de mais um pro- ‘cesso morfoldgico, se considerarmos que uma palavra A € composta, quando possui uma estrutura do tipo geral BC, em que B e C sio elemen- tos que podem ser relacionados com outras palavras que podem ocorrer independentemente, 7. Formagiio de palavras ‘As questées morfol6gicas podem também ser encaradas a partir da andlise de como as palavras so formadas numa lingua, De facto, ao re~ flectirmos sobre este tema, podemos descobrir que as palavras obedecem a certos princfpios na sua formagio. Desta maneira, qualquer falante do Portugués, ao deparar-se com inconstitucionalissimamente, poderd eventual- ‘mente dizer que nunca ouvira antes este termo, que tem alguma dificuldade ‘em 0 pronunciar, tio comprido ele é, que nfo sabe bem o que quer dizer, fou melhor, que pode tratar-se de um modo de actuar muito inconstitucional, mas de certeza que nio o rejeita como nfo fazendo parte da sua lingua, 40 contrério de, por exemplo, *issimaconstituinciomental Inconstitucionalissimamente 6, portanto, uma palavra portuguesa, € 0 falante tem disso consciéncia, assim como também sabe intuitivamente que nela podemos considerar componentes que ocorrem noutros contextos, como in- (em ‘ingrato), -al (em original), -(ssimo (em belissimo), -mente (em calmamente) ou ainda constituigdo, 0 que demonstra que palavras comple- xas, como € 0 caso desta, revelam semelhangas fonéticas e seminticas parciais umas com as outras. A intuigdo que temos quanto as relagSes entre palavras, como vimos quando do nosso exemplo, inconstitucionalis- simamente, era captada na perspectiva tradicional, pelo facto de se dizer que partilham um morfema, mas pode ser também considerada nesta nova abordagem, dizendo-se que essas palavras partilham, por exemplo, uma base (inconstitucional € constitucionalmente) ov partilham uma propriedade ae morfolégica relevante, como (PLURAL) (casas ¢ alunos), ou que a sua derivagdo envolve a mesma regra, como ingrato e infiel, em que o prefi- XO in- se junta a um adjective. Chegamos assim a uma visio mais refina- ‘da do que a que propde que as palavras apenas partilham, ou néo, um ou mais morfemas, Quanto & questio da reconstrugdo das relagdes internas, ou hierarqui- zacio, entre as partes constituintes de uma palavra complexa, que a visio tradicional representa por meio de uma organizagio dos seus morfemas Componentes numa drvore de estrutura de constituintes, propde-se, em al- temativa, uma regra de formagao de palavras que opere sobre a palavra (ou radical), manipulando tanto a sua forma fonolégica (tipicamente, mas no exclusivamente, por afixagio), como as suas outras propriedades. Se considerarmos que 0 estudo das formas é representado mais adequa- damente por meio de relagdes ou processos do que por concatenagdes e afixos, acontece entiio que a morfologia de uma lingua consiste em um conjunto de regras, cada uma desctevendo uma dada modificagio de for- mas existentes, modificagao que as relaciona com outras formas. Em vez de se investigar uma teoria da estrutura da palavra, fundamentada na no- slo classica de morfema, parte-se do principio de que as palavras se en- contram relacionadas umas com as outras, através da operago de processos, através de regras de formacdo de palavras. Este € um projecto de trabalho que a Morfologia tem levado a cabo Uultimamente, mas que no iremos desenvolver, dado o earscter introdutério deste capitulo. Esta designagio Formagdo de Palavras é por vezes, empregue para referir, na sua globalidade, os processos de variagio morfoldgica na cons- tituigdo de palavras, incluindo, portanto, flexio, derivagio e composigio; em geral, porém, 0 seu emprego restringe-se a estes dois tiltimos. Podet-se-ia supor que caberia aqui falar da criagio de palavras total- mente novas, como foi o caso de kodak, ou da criagio de palavras que se formam por meio de vérias alteragdes sobre palavras existentes; por exem- plo, as eriadas pelo processo de truncamento, como manif (manifestagio), Prof (professor!a), ou fac (faculdade) em que se elimina uma sequéncia no final de uma palavra, no se verificando alteraco do seu sentido ou da sua categoria gramatical, ou ainda de outros casos de abreviatura, como as si- glas, de que sio exemplo PS, CGTP, ov MFA; no entanto, estes casos, ¢ outros, embora sejam recursos para criagdo de novas palavras no Iéxico, niio serio inclufdos na nossa andlise de formagdo de palavras, pois nao sio rocessos regulares. Vejamos em primeiro Iugar os processos de formagao de palavras ca- racterizados pela adigdo de afixos. Com jé sabemos, chamamse derivadas as palavras formadas por afi- 9 xagio. Trata-se de palavras complexas, constitufdas por um constituinte, @ base, a0 qual se associa outro constituinte, o afixo. Recorde-se que se cos- uma usar este termo base para referir a parte de uma palavra a qual se aplica uma operagdo, como a jungdo de um afixo; por exemplo, na pala- vra complexa init, a base € ‘itil, mas se adicionarmos a intitil 0 sufixo -mente, considera-se base desta vez inttil. A base pode, portanto, corres- ponder a: ) um radical simples (constituido por um nico morfema); b) um radical complexo (constituido por mais do que um morfema); c) um tema (inclui um radical e um {ndice temético). ‘Vimos, entiio, que a base tanto pode ser um radical (dental), uma pa- avra simples (cafézinho), como uma palavra complexa (infelicmente). Em Portugués 0 processo mais frequente & o da sufixagdo, aliés, tanto em formagdes derivacionais (felidfelicidade, gerarlgeracdo), como nas for- mages flexionais (classe/elasses, cantarfcantemos). ‘Varios exemplos mostram que tanto os sufixos como os prefixos po- dem, quer ocorrer em sequéncias, como legal, legalizar, legalizagdo, ou introduzir, reintroduzir, quer também co-ocorrer na mesma palavra, como em ilegalizagao, desarmamento, etc. Entretanto, note-se que 0s prefixos ndo alteram: a) a posigo do acento principal da base: vestir/revestir, felivinfeliz, b) a categoria sintéctica da base: vestir y, revestir y feliz yy, infeliz Os sufixos, por seu lado, a) alteram a posigfio do acento principal da base: silabal sildbico, deda/ Idedal, b) e determinam a categoria sintéctica das palavras a que se afixam: triste ,4/ tristeza y, estudar ,/ estudante y. Regra geral, prefixos e sufixos associam-se a palavras.pertencentes a uma winica categoria sintéctica; por exemplo, o prefixo in- associa-se a adjectivos (apto, inapto), mas 0 prefixo re- a verbos (fazer, refazer), 0 sufixo -mente a adjectivos (alegre, alegremente), mas 0 sufixo -050 a no- mes (veneno, venenoso). ‘Além destes processos de derivacdo, iremos ainda chamar a atengao para a derivagao parassintética, a derivacao regressiva e a derivacao imprépria, ou conversio. Na derivagtio parassintética, deparamos com vocébulos formados pela 240 agregagio simulténea, a um determinado radical, de um prefixo ¢ um su- fixo, © que designamos acima por circunfixo; so derivados parassintéticos desalmado, abotoar, adogar ou encurtar. Na derivacdo regressiva, a palavra derivada, ao contrério do que acon- teceu com todos os exemplos que apresentémos até aqui, nao é uma am- pliagdo da primitiva, mas a redugdo da palavra derivante; assim, danga deriva de dancar e ataque do verbo atacar. Trata-se de um processo derivacional em que o elemento que se subtrai se assemelha a um morfe ‘com existéncia noutras palavras; porém, s6 € possivel dizer que danga deriva de dangar, ¢ nao contrério, se soubermos qual € a forma mais antiga na lingua ‘A conversio, que alguns linguistas (ver Adams, 1973, por exemplo), designam por derivago zero, ou ainda derivagao imprépria, consiste na obtengio de uma palavra a partir de uma palavra ja existente, sem qual- quer alterago na sua forma, A nova palavra difere do vocébulo jé exis- tente apenas no que diz respeito A sua especificacéo categorial; assim, este processo permite-nos formar, entre outros, a) substantivos de verbos: comer, jantar, ser, etc., ou b) substantivos de adjectivos: rico, velho, pobre Trata-se de um processo de formagio de palavras cujo estatuto nao € bem claro, na medida em que, por vezes, € considerado um ramo da deri- vago (ver Marchand, 1969), por outras, um processo independente, & par- te da derivagdo e da composicao (ver Strang, 1968). ‘A composigao consiste em formar uma nova palavra a partir de duas palavras (ama-seca, mestre-escold) ou de um radical ¢ uma palavra (orto- grafia, bibliografia), por exemplo. Repare-se que © composto pode ser constituido por elementos perten- centes a diferentes classes gramaticais, assim temos: a) nome+nome: saia-cala, abelha-mestra b) nometadjectivo: cofre forte, ferro-velho ©) adjectivotnome: belas-artes d) adjectivotadjectivo: azul-marinko ¢) verbotnome: tira-teimas, passatempo f) nome+preposigo+nome: lua-de-mel, maquina de escrever No que se refere ao sentido, a palavra composta pode apresentar um conceito novo, dissociado das nogdes expressas pelos seus constituintes, como em amor-perfeito, uma flor, ou barba-azul, um homem com deter- minado comportamento, mas também pode ser composicional, i. ¢., 0 seu Dai

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