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A Condição de Homo Sacer.

O Direito e a Arqueologia do Sagrado, um Diálogo com


Giorgio Agamben
Author(s): CASTOR M. M. BARTOLOMÉ RUIZ
Source: Revista Portuguesa de Filosofia , 2013, T. 69, Fasc. 2 (2013), pp. 331-348
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia

Stable URL: https://www.jstor.org/stable/23631112

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A Condiçâo de Homo Sacer.
O Direito e a Arqueología do Sagrado,
um Diálogo com Giorgio Agamben
CASTOR M. M. BARTOLOME RUIZ*

Resumo

A pesquisa de Giorgio Agamben a propósito do sintagma homo sacer se debruça sobre a d


relaçâo do direito e a vida humana a partir da arqueología da sacralidade. No marc
reflexâo, apresentamos a tese de que, entre o direito e sacralidade da vida, há uma r
paradoxal que nâo se résolve negando um dos aspectos, nem dissolvendo-os. O pa
contemporáneo do direito em relaçâo à vida humana é um desdobramento do pa
biopolítico da sacralidade nas sociedades antigas. Para meihor entendermos esta tens
faz necessário perfazer, mínimamente, a arqueología de conceitos-chave como homo
parricidium e a condiçâo jurídico-política do estrangeiro nas sociedades antigas.

Palavras-chave : direito, estrangeiro, homo sacer, parricidium, vida humana, vida nua

Abstract

Giorgio Agamben's research concerning the words homo sacer is focused on the difficulty
of the relationship between law and human life from the archaeology of sacredness. In the
frame of this reflection, we present the thesis that, between the right and the sacredness
of life, there is a paradoxical relationship that can not be solved by denying one aspect, or
dissolving them. The contemporary paradox of law in relation to human life is an offshoot
of biopolitical paradox of sacredness in ancient societies. To better understand this tension,
it is necessary to make up, minimally, the archaeology of key concepts such as homo sacer,
parricidium and legal-political condition of the foreigner in ancient societies.

Keywords : alien, homo sacer, human bare, human life, law, parricidium

Introduçâo

rando os limites e armadilhas epistemológicas, políticas e jurí


Urna consolidada
dicas que vinculamtradiçâo
o direito com de
a vida.pensamento crítico vem reconside
Recentemente, Giorgio
Agamben1 tem retomado as pesquisas sobre o direito e a vida humana

* Pesquisador de Programa de Pôs-Graduaçâo em Filosofía. Universidade do Vale do Rio


dos Sinos - UNSINOS, Brasil, castorbartolome@terra.com.br

1. Agamben, Giorgio - O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.

Vol. 69 —

Fase.2 fi RPF 2013 331-348

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no cruzamento teórico de, entre outro


Arendt,2 Michel Foucault3 e Walter Benja
de 1921, Zur kritik der Gewalt,4 mostrou
com a Gewalt (violência ou poder) ao p
direito fora da relaçâo com a Gewalt.
vida nua ou mera vida [blofi Leben\ pa
culpada no nexo que vincula a violênci
é essa vida nua que costuma ser procla
nada explícitas induziram Benjamin a d
sentido da sacralidade inerente a esta re
Agamben resgatou a figura jurídico-po
homo sacer, e através déla desenvolveu
exclusâo biopolítica originária da vida p
A figura jurídica do homo sacer repre
originário através do quai a vida human
forma de exceçâo. A exceçâo seria, entâo
que ameaça a vida através de urna excl
direito incluindo-a em urna zona de anomia onde se encontra totalmente
vulnerável e pode ser controlada pela arbitrariedade da vontade soberan
Para Agamben, o direito mostra toda sua potência na exceçâo sobre a
vida humana. Haveria um vínculo oculto do direito com a exceçâo bio
política que se revela através da arqueología da sacralidade. Para Agambe
a sacralidade é "A forma originária da implicaçâo da vida nua na orde
jurídico política".7
No marco deste ampio debate de filosofía crítica do direito, propomos
problematizar alguns pontos das teses de Agamben, em especial o seu

2. Arendt, Hannah - Origens do totalitarismo. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2009
3. Foucault, Michel-// fout défrendre la société. Paris: Seuil / Gallimard, 1997 (ediçà
portuguesa: Em defesa da sociedade. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2000); Foucault,
Michel - Sécurité, territoir, population. Paris: Seuil / Gallimard, 2004 (ediçâo portuguesa:
Segurança, territorio e populaçâo. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2008).
4. Benjamin, Walter-"Zur Kritik der Gewalt". In: Gesammelte Schriften, II. 1, Heraus
gegeben von R. Hedemann & H. Schweppenhàuser. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1999,
S. 179-204 (traduçâo portuguesa: Benjamin, Walter - "Sobre a crítica do poder como vio-lência".
In: Benjamin, Walter - O Anjo da historia. Belo Horizonte: Auténtica, 2012).
5. Benjamin, Walter - "Sobre a crítica do poder como violência". In: Benjamin,
Walter - O Anjo da historia. Belo Horizonte: Auténtica, 2012, p. 79.
6. "Talvez valesse a pena investigar as origens do dogma do caráter sagrado da vida.
Talvez esse dogma seja recente, é muito provâvel que assim seja. Talvez seja o último erro da
enflaquecida civilizaçâo ocidental Benjamin, Walter - "Sobre a crítica do poder como
violência", ed, cit., p. 81.
7. Agamben, Giorgio - O homo sacer. O poder soberano e a vida nua, ed. cit., p. 91.

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A Condiçào de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado 333

entendimento de que a sacralidade está vinculada inexoravelmente à


exceçâo biopolitica. Esta questâo nos levará a repensar a relaçâo crítica do
direito com a vida humana. Para tanto, inicialmente apresentaremos uma
síntese do pensamento de Agamben, num segundo momento contrasta
remos sua visâo com um estudo arqueológico de duas categorías inter
ligadas com a sacralidade e o direito, designadamente, o conceito de
parricidium e a condiçào do estrangeiro nas polis antigás. Concluiremos
com algumas teses a respeito da relaçâo paradoxal que vincula o direito
com a vida, por sua vez inerente aos paradoxos da sacralidade antiga e seus
correlatos modernos como a dignidade humana e os direitos humanos.

A sacralidade do homo sacer em Agamben

Agamben mostra a insuficiência das interpretaçôes dadas à figura


do homo sacer em sua relaçâo com o direito e a política ocidentais. Critica
a frágil compreensâo da sacralidade nesta formula, uma vez que as expli
caçôes oferecidas nâo conseguem dar conta do duplo caráter do homo
sacer, que é insacrificável, porém pode ser morto sem que se cometa crime;
sua morte é inimputável. Esta tensâo nâo pode ser explicada pelo mero
viés antropológico da ambiguidade do sagrado {sacer)} Para os estudos
antropológicos e sociológicos de inicio do século XX, o sagrado deveria
ser interpretado como um termo ambivalente porque o sagrado poderia
igualmente condenar ou salvar, ser puro ou impuro, manchar ou limpar.
A ênfase dessas análises se centra na ambivalência do sacro em relaçâo
com o tabú. Esta é a perspectiva dominante na obra de Robertson Smith,
Lectures on the Religion of the Semites, e de Freud, Totem e tabu. Estudos
posteriores como os de Hubert e Mauss, Essai sur la nature et la fonction
du sacrifice, e de E. Durkheim, Formes élémentaires de la vie religieuse,
abordam também o sacro desde a perspectiva da ambiguidade, porém em
relaçâo ao horror e ao terrível.
Segundo Agamben, em todas estas interpretaçôes a ambiguidade do
sagrado é percebida como fenómeno religioso fora do político, por isso
todas estas percepçôes da ambiguidade do sacro nâo dâo conta da verda
deira tensâo que perpassa a sacralidade do sintagma homo sacer. Para o
autor, a sacralidade da vida do homo sacer se configura a partir da exceçâo
que exclui sua vida do direito incluindo-a numa zona de anomia em que,

8. Agamben, Giorgio - "A ambivalência do sacro". In: Agamben, Giorgio - O homo sacer.
O poder soberano e a vida nua, ed. cit., pp. 83-88.

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paradoxalmente, fica capturada. E urna exceçâo bipolar que a excluí


capturando-a e a captura excluindo-a.
A sacralidade do homo sacer implicaría urna significaçâo política
original pela quai a vida humana é capturada de forma soberana. A pessoa
declarada sacer era legalmente excluida do direito das polis e civitas.9
Nao era condenada, nem à morte, nem ao sacrificio, mas abandonada de
qualquer direito e, como consequência, exposta a toda violência.10 O homo
sacer é urna vida matável cuja morte nâo é imputável. A vida do homo
sacer existe numa zona de anomia em que é capturada pelo abandono.
Ela vive relegada à condiçâo de pura vida natural [zoe\, sobrevive entre o
direito divino (que nâo a reconhece pura o suficiente para o sacrificio) e o
direito humano (que a excluiu de qualquer direito). Quando é decretada a
condiçâo de sacer sobre alguém, o direito da polis fica ipso facto retirado
da vida do cidadâo. Ele deixa de ser cidadâo para se converter em mero
homo, um homo comunis. O homo comunis, contrastando com o cidadâo
protegido pelo direito sagrado, era um mero ser humano; ele existia fora
do direito, sem direitos, reduzido, portanto, à condiçâo de vida nua [blofi
Leben]. Para Agamben, a arqueología do sacer remete a urna dupla exclusâo
do direito, sendo a sacralidade e a exclusâo categorías indissociáveis.11
Um dos méritos dos estudos de Agamben é terem mostrado a
dimensâo política da sacralidade e sua relaçâo com a soberanía na forma
de exceçâo. Porém, há urna dificuldade filosófica na afirmaçâo unidire
cional desta tese, que interpreta a sacralidade das cidades antigás num
único sentido, precisamente, como "a formulaçâo política original da
imposiçâo do vínculo soberano".12
A arqueología proposta por Agamben para a sacralidade da vida a
partir, entre outras, da figura do homo sacer, demanda urna problemati
zaçâo mais ampia, para melhor compreensâo desta prática nas sociedades
antigás. Para tanto, iniciamos contextualizando históricamente os signifi
cados do sintagma homo sacer.

9. Dada a consolidaçâo adquirida na língua portuguesa por estes termos como


conceitos próprios, optamos por manter o plural "aportuguesado" polis e civitas no lugar do
plural correspondente no grego e latim Poleis e civitates.
10. Agamben, Giorgio - O homo sacer. O poder soberano e a vida nua, ed. cit., p. 90
11. "Podemos, aliás, adiantar urna primeira hipótese: restituido ao seu lugar próprio,
além tanto do direito penal quanto do sacrificio, o homo sacer representa a figura originária
da vida presa no bando soberano e conservaría a memoria da exclusâo originária através da
quai se constituiu a dimensáo política." Agamben, Giorgio - O homo sacer. O poder soberano
e a vida nua, ed. cit., p. 91.
12. Ibidem, p. 93

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado

Agamben retoma, nas suas análises do homo sacer, o verbete sacer


mons que o gramático romano Sesto Pompeu Festo (século II d.C.)
escreveu no seu tratado Sobre o significado das palavras. Neste verbete,
conservou-se, de forma fragmentar e incerta, a memoria de urna das figuras
jurídico-políticas do direito romano arcaico. Na fórmula de Festo, trans
parece a tríplice conexáo entre a sacralidade, o direito e a vida humana,
pela quai a vida humana é capturada e abandonada pelo direito na forma
da sacralidade. Diz o texto de Festo:

[...] homo sacer is est quem populus iudicavit ob maleficium: ñeque


fas est eum immolari, sed qui occidit parricidi nom damnatur; nam
lege tribunicia prima cavetur "si quis eum qui eo plebei scito sacer sit,
occiderit, parricida ne sit" Ex quo quivis homo malus atque improbus
sacer appellari solet.13

A interpretaçâo de Agamben do homo sacer consegue resgatar o


genuino sentido jurídico-político da sacralidade no contexto das cidades
antigás, descartando as leituras meramente antropológicas da ambigui
dade.14 A releitura jurídico-política proposta por Agamben é referendada por
especialistas em historia romana antiga como Andrea Carandini, que no seu
comentário à obra de Agamben, elogia o filósofo dizendo que: "compreendeu
o nexo entre o homo sacer e a origem da soberania".15 Igualmente Andrea
Calore, um arqueólogo estudioso da cultura romana antiga, concorda com
Agamben que o homo sacer se encontrava de fato numa zona de indistinçâo
em que se lhe pode dar morte e nâo é sacrificável.16
Porém também é verdade que outros romanistas como Roberto
Fiori17 mantêm urna certa prudência crítica a respeito da interpretaçâo
tâo conclusiva que Agamben faz da categoría homo sacer. Para Fiori,
Agamben fez urna sugestiva interpretaçâo do homo sacer, mas adverte
que continua havendo urna certa incompreensâo a respeito do real signi

13. Ibidem, p. 79
14. "[...] ter tomado um fenómeno jurídico-político (a insacrificável matabilidade do
homo sacer) por um fenómeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcaram
no nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como aqueles sobre a soberanía." Agamben,
Giorgio - O homo sacer. O poder soberano e a vida nua, ed. cit., p. 93
15. Carandini, Andrea - La nascita di Roma. Dei, Lari, eroi e uomini all'alba di una civiltà.
Torino: Einaudi, 1997, p. 190.
16. Calore, Andrea - "Per lovem lapidem". Alie origini del giuramento. Sulla presenta del
"sacro" nell'esperienza giuridica romana. Milano: Mondadori, 2000, p. 75.
17. Fiori, Roberto. - "Homo sacer". Dinámica politico-costituzionale di una sanzione
giuridico-religiosa. Napoli: Jovene Editore, 1996.

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ficado deste sintagma na Roma arcaica já


o poder soberano castiga mediante o sacr
de morte decretada, ou seja, sacer esto. N
urna pena de morte que nâo seja também ur
O contexto geral desta controversia par
diosos da Roma antiga de que nao se sabe ao
da figura do homo sacer na Roma arcaica, r
fórmula recolhidos em tempos muito po
historiador da Roma antiga Rainer Maria
nâo é possível determinar com exatidâo o
na Roma arcaica.19 Tudo que conhecemo
fragmentários de urna prática em grand
presente. Por causa dessas lacunas de sen
homo sacer e o sentido da sacralidade na
plicam. A despeito de haver um consenso
jurídico política que Agamben propôe pa
é preciso perquirir outros possíveis senti
de outras investigaçôes, sentidos passive
logia dos restos e dos rastos que conhecem
discursivas daquelas sociedades.

A sacralidade da vida e o paradoxo do

Em vez de aferir o sentido da sacralida


propomos reposicionar a significaçâo jur
no contexto maior da sacralidade nas pol
exploramos a tese de que o sentido da sacralidade nas cidades indo
-europeias é mais ampio e complexo do que aquele que a figura
enigmática do homo sacer pode nos oferecer. O homo sacer reflete um tipo
ou sentido dessa sacralidade, sem esgotar os sentidos do termo nas socie
dades antigás. Metodológicamente partimos do contexto das cidades indo
-europeias, como Grécia e Roma. Nas polis antigás, o sagrado era a cate
goría semántica dominante que legitimava a origem e existência do conjunto
político das instituiçôes, leis, valores e costumes vigentes. O sagrado está na
origem e na legitimaçâo de todas suas práticas e instituiçôes.20

18. Ibidem, p. 521 ss.


19. Kiesow, Rainer Maria -"lus sacrum. Giorgio Agamben und das nakte Recht". In:
Rechtsgeschichte, I, 2002, pp. 56-70.
20. Esta tese está amplamente desenvolvida no estudo clássico de Coulanges, Fustel
de-A cidade antiga. Lisboa: Clássica, 1988. Também é corroborado pelo estudo semántico

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado

Para melhor entendermos a complexidade do sagrado nas cidades


antigás, propomos uma distinçâo conceitual entre ambivalência e
paradoxo. A ambivalência joga com vários sentidos, o paradoxo imbrica
os sentidos sem dissolvê-los entre si ou resolvê-los numa síntese maior.
O paradoxo mantém a tensâo como parte constitutiva das verdades e
práticas humanas, neste caso, o "dispositivo" da sacralidade. Podemos
dizer que a dimensâo paradoxal mantém a tensâo agónica dos termos
numa abertura permanente. Afirmar a condiçâo paradoxal do humano,
das suas verdades e práticas, significa reconhecer a tensâo como elemento
constitutivo de seu agir. O paradoxo nâo se résolve numa síntese maior,
nem se dissolve num dos termos; ele abre os sujeitos e as sociedades para
a responsabilidade. Eles sâo responsáveis pelas verdades que criam e o
modo como essas verdades dirigem as práticas.
Algumas dimensöes do paradoxo da sacralidade nas cidades antigás
sâo percebidas em duas categorías relevantes daquele contexto histórico:
o conceito de parricidi utilizado na fórmula de Festo e a condiçâo jurídico
-política do estrangeiro. A análise dos paradoxos que perpassam estas
duas categorías nos permitirá entender melhor algumas aberturas ético
-políticas provenientes da arqueología da sacralidade.
O texto de Festo afirma que aquele que matar ou assassinar o homo
sacer nâo será punido porque nâo comete parricidi. Parricidium21 é um
termo, poderíamos dizer, técnico, para designar um tipo muito peculiar
de morte. Parricidium designava a morte do pater, de um par (um seme
lhante) ou de um parente. Só se comete parricidium quando se mata um
par ou se assassina um parente, principalmente o pater.22 Nâo cometerá

de Benveniste, Emile - Le vocabulaire des instituitions indo-européens. Pouvoir, droit, religion,


vol. 2. Paris: Minuit, 1969; cf., ainda, entre os diversos estudos da Grécia e Roma antigas, a
obra de Jaeger, Werner - Paideia. A formaçâo do homem grego. Sâo Paulo: Martins Fontes,
2001.

21. "par(r)icida, -ae, m.; par(r)icidium, -i, n.


Quel que soit le sens étymologique du premier élément du composé, les Latins l'ont
rapproché de pater, parens.
Le mot a désigné dans la langue juridique de l'époque impérial le «meurtrier d'un
parent», cf., Paul., Sent. 5,25,1, «lege Pompeia de parricidiis tenetur qui patrem, matrem,
avum, aviam, fratrem, sororem, patruelem, matruelem, patronum, patronam, ..., occiderit»,
et en particulier le «parricide». Les gloses l'expliquent le plus souvent par KaTpoicrôvoç «qui
patrem occidit, sive matricida» quoique certains le rattachent à par, paris, «qui homines
occidit pares natura». Sur paricida a dû être formé homicida." Ernout, Alfred & Meillet,
André - Dictionnaire étymologique de la Langue Latine. Histoire des mots, 4e édition Paris:
Klincksieck, 1967, p. 741.
22. MacCormark, Geolfrey-"A Note on a Recent Interprétation of Parricidas esto".
Labeo, 28, 1982, p. 43.

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parricidium, no sentido estrito do termo, quem matar um ser


nao esteja nestas categorías, um mero homo, um homo com
O próprio Festo narra que Numa Pompilius promulg
segundo a qual: "Se urna pessoa mata de forma intenciona
homem livre, ele será um parricidas".24 A fórmula de Fes
mente que aquele que matar o homo sacer nao cometerá p
assim como a lei de Numa afirma que aquele que matar um
se torna parricida. Quem matar o homo sacer nao comete
nem delito, porque nâo transgride a lei e, portanto, nao poder
Deste contexto se deduz a tese de que a lei cria o delito, s
delito. Só pode ser punido pela lei quem cometer parricidiu
pares, parentes e certamente o pater estâo protegidos pelo dir
que estâo fora desta relaçâo de par nâo sâo reconhecidos pel
semelhantes e consequentemente nâo se comete delito cont
Este é um dos marcos paradoxais da sacralidade da vid
nas sociedades indo-europeias. Nâo se reconhece o mesmo
par (semelhante) para todos os seres humanos. O direito e
há seres humanos que sâo semelhantes, e estâo protegidos
lidade do direito.25 Protege os homens porque sâo seus par
e, numa circularidade semântico-politica, sâo seus pares p
sob a proteçâo do mesmo direito.26 Concomitantemente, h
humanos nâo reconhecidos como pares pela sacralidade ao
isso, nâo podem ser semelhantes. Estes nâo têm o estatut

23. Esta é a interpretaçâo que faz Tomas Yan do termo:


"Parricida-parricidium se disent essentiellement du meurtrier, du meurtre du
père - l'agent coupable étant en règle générale le fils et, dans deux cas seulement, la fille.
Cet usage prévaut en particulier chez Cicéron, les rhéteurs, Sénèque, Suétone et Valère
Maxime, c'est-à-dire chez des auteurs contemporains ou postérieurs à la lex Pompeia.
Dans certains cas, le vocable désigne l'homicide d'un parens, ce qui réfère en principe au père
et à la mère. Il arrive qu'on parle alors, avec une intention étymologique, deparenticida - ou, à
propos de la poena cullei, de lex parensta. Mais il semble que parens doive être pris ici comme
pater, dans la mesure où le matricide, d'ailleurs très rarement attesté, ne reçoit que par abus
de langage - par catachrèse, dit expressément Quintilien - la dénomination de parricidum."
Yan, Thomas - "Parricidium". In: Mélanges de l'École française de Rome. Antiquité, 93 (2),
1981, p. 679.
24. Cloud, J. D. - "Parricidium from de Lex Numae to de Lex Pampeia de Parricidis.
Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte, Romanistische". Abteilung, 88 (1971),
pp. 2-18;
25. Platâo-As leis, XI, interpreta o parentesco como a relaçâo dos pares que por sua
vez formant a comunidade dos pares que têm os mesmos deuses domésticos.
26. Demóstenes afirma que o parentesco de dois homens se prova pela participaçâo
comum no mesmo culto, por fazerem os mesmos repastos familiares. Apud Coulanges, Fustel
d e-Acidade antiga. Lisboa: Clássica Editora, 1988, p. 64

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pessoas. Sâo seres humanos nâo protegidos pelo direito sagrado da polisI
civitas ou da oikos/domus; qualquer violência que se cometa contra eles
se encontra fora do direito sagrado e, por tanto, nao pode ser punido.27
O mesmo direito, através do dispositivo da sacralidade, protege e
abandona.
O homo sacer era aquele que tinha o estatuto de pessoa e os direitos
da cidadania, porém sofreu a retirada desse direito, por decreto soberano.
A suspensâo do direito sagrado da vida do cidadâo implicava a perda
automática da sua condiçâo jurídica de pessoa. Cabe destacar que a vida
humana nas polis antigás nâo era reconhecida como urna alteridade
em si. O outro nâo era necessariamente um semelhante por natureza.
Jurídicamente o outro ser humano só era reconhecido como semelhante
quando se tornava pessoa jurídica, que por sua vez significava estar
protegido pelo direito sagrado da polis ou da oikos.2S O estatuto de pessoa
era concomitante ao de cidadania.29 Só se reconhecia a condiçâo de pessoa
num ser humano quando este detinha para si esses direitos sagrados, caso
contrario, era um homo comunis, um simples ser vivente humano.
O mero homo [homo comunis] se caracteriza por nâo ter direitos,
por estar fora do direito sagrado da polis e da oikos. O homo comunis
é urna vida nua por natureza. É certo que o sentido da sacralidade do
direito nas cidades indo-europeias foi modificando-se, inclusive a sacra
lidade do regime patriarcal foi cedendo espaço para o regime da cidade.
Esta mudança foi acontecendo por força das revoluçôes sociais em que
os eupátridas e patricios cujos status e privilégios estavam ligados à
religiâo da familia, viram-se comprimidos pelas pressóes da plebe que
nâo entendia o sentido nem o valor dos privilégios desse direito sagrado
e que aspirava a novos direitos. O código das Doze Tábuas [Lex Duodecim
Tabularum] em Roma veio a substituir a Mos maiorum, que era a antiga
lei nâo escrita e vigorava como regra de conduta. Na Grécia, o código de
Solon testemunha este tránsito.30
Há urna diferença importante entre o homo comunis e o homo
sacer, este sofreu a retirada do direito por um ato de soberania, enquanto
o homo comunis está fora do direito por "natureza". Esta divisâo social

27. Rüpke, Jörg - "You shall not kill. Hiérarchies of norms in Ancient Rome". Numen,
39, 1992, pp. 58-79.
28. Na perspectiva das polis antigás, a origem do direito está vinculado ao caráter
sagrado dos gens e dos lares. Coulanges, Fustel de - A cidade antiga, ed. cit., p. 100.
29. Iglesias Juan - Derecho Romano. Instituciones de derecho privado. Madrid: Ariel,
1965.

30. Cf., Coulanges, Fustel de-A cidade antiga, ed. cit., p. 378 ss.

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Castor M. M. Bartolomé Ruiz

induz Aristóteles a afirmar que é a natureza responsável pela e


dois tipos de seres humanos, uns sâo naturalmente dotados
e outros para serem governados.31 Na base da naturalizaç
vidâo, enunciada por Aristóteles, encontra-se a convicçâo d
homo era essencialmente desprovido de direito e que o ac
sagrado da casa e da polis era privilégio natural daqueles q
nessa condiçâo ou a conseguiam de algum modo.
Retornando à fórmula de Festo, cabe perguntar-se sob
entâo a denominaçâo que deve dar-se ao assassinato do h
que, segundo está escrito na sentença, aquele que o mata
parricidium. Haveria que concluir que sua morte seria téc
homicidium porque se matou um simples homo, um hom
e nao urna pessoa (par, parente ou pater).32 O homicidio, a
homo comunis, por estar fora do direito sagrado da polis
nâo é delito. Ela nao pode ser punida, ao menos da mesma
que se pune a morte de um par. A morte de um homo com
tável porque sua condiçâo de homo comunis o coloca, por n
do direito da polis ou da familia. Por usa vez, a vida do ho
encontra-se, por natureza, desprotegida de qualquer direit
vulnerável a qualquer violência sem possibilidade de defes
o homo sacer, o direito é suspenso como exceçâo por um decre
soberana, enquanto o homo comunis vive a exceçâo como
condiçâo e natureza. Para o homo sacer, a exceçâo é decre
homo comunis, a exceçâo é a norma de sua vida natural. O
vive a suspensâo do direito como parte constitutiva de sua vid
As distinçôes paradoxais que propomos abrem novas p
para a compreensâo arqueológica da sacralidade da vida e se
mentos ético-políticos. Como Agamben aponía, o homo sace
to-limite do ordenamento jurídico romano. A sacralidade d

31. Aristóteles - La Política. Madrid: Alba, 1996, p. 28


32. "Ce qu'indique pater, ce n'est pas la paternité physique, qui est
par parens et par genitor. Pater a une valeur sociale. C'est le chef de la ma
le pater familias; c'est l'homme qui est un des représentants de la suite d
l'on parle ainsi de patres (conscripti = senadores; patricios)." Ernout, A
André - Dictionnaire étymologique de la Langue Latine. Histoire des mots,
Klincksieck, 1967, p. 742.
33. Nossa pesquisa se situa no marco do questionamento maior de por q
pesquisadas as implicaçôes biopolíticas de categorías essenciais às polis e civ
a do estrangeiro e a do escravo, entre outras. Cf., Fiskeskjö, Magnus - "Ou
slaves. Critical reflections on Agamben's homo sacer". HA U: Journal of Ethn
2(1), 2012, pp. 161-180.

Vol. 69 ~iA
Fase.2 (J RPF

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado 341

o homo sacer é, na verdade, uma maldiçâo. Como é sabido, sagrado é aquilo


que se separa do uso comum,34 e os motivos da separaçâo-santidade podem
ser vários e paradoxais, neste caso a sacralidade conota a negatividade da
maldiçâo. O sentido da sacralidade como maldiçâo do homo sacer postula
colocar a vida no limiar vazio em que se conectam o ius divinum e o ius
humanum. Um limiar de anomia em que a vida humana se torna mera
vida nua, pura vida natural. Agamben teria percebido, no dispositivo da
sacralidade amaldiçoadora, um vínculo biopolítico originário do direito
com a vida humana, que condena a vida humana à exceçâo por decreto
soberano. Náo exploraremos neste ensaio o questionamento da sua tese
de que esta exceçâo seja a causa explicativa da política ocidental. Porém,
além da questâo enunciada por Agamben, transparece na relaçâo da sacra
lidade do direito com a vida humana outros aspectos mais complexos e
paradoxais. Esta complexidade paradoxal presente nos indicios arqueo
lógicos da sacralidade e do direito perduram até hoje. O ponto cegó
dessa tensâo está na polivalência semántica da sacralidade que protege
pelo direito sagrado as pessoas-cidadâs porque se encontram sob seus
auspicios, e concomitantemente as ameaça com o decreto da exceçâo
soberana que suspende o direito sagrado e, como consequência, impöe
a condiçâo maldita de homo sacer. A sacralidade e o direito aparecem,
desde as origens, perpassados por uma tensâo: seu objetivo é proteger a
vida humana como algo mais que uma mera vida biológica animal, porém
também se tornam dispositivos com poder de relegar a vida da pessoa à
mera condiçâo de vida natural.

O estrangeiro, uma vida cuja norma é a exceçâo

Outro exemplo do paradoxo da sacralidade na cidade antiga


se verifica paradigmáticamente na condiçâo jurídica do estrangeiro.
Nas sociedades greco-romanas, a cidadania tinha um forte vínculo com
a sacralidade, ser cidadâo advinha do direito à participaçâo nos cultos
sagrados da cidade. Quando alguém era excluido dos cultos, homo
sacer, automáticamente lhe eram retirados os direitos civis e políticos.
Por exemplo, em Esparta, o cidadâo que nâo assistisse à cerimônia dos
repastos, ainda que fosse involuntariamente, era excluido automatica

34. Este será o ponto de referência que Agamben utilizará para desenvolver o conceito
de profanaçâo como alternativa política à sacralidade. Agamben, Giorgio - Profanaçôes.
Sâo Paulo: Boitempo, 2007.

Vol. 69 -Uj
Fase.2 £J RPF

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342 Castor M. M. Bartolomé Ruiz

mente da categoría dos cidadâos.35 Em R


que nâo participasse das cerimônias da lu
dania até o lustro seguinte. Nas cidades
direito se expressavam em relaçâo ao sag
tante à legitimidade dos direitos.36
O estrangeiro se distinguia, socialmente, do cidadâo porque
estava proibido de participar dos cultos da cidade. Esta era urna lei geral
e comum a todas as cidades indo-europeias. A lei era tâo estrita que a
presença de um estrangeiro nas cerimônias religiosas da cidade cons
tituía um sacrilégio, sinónimo de delito político gravíssimo, castigado, na
maioria dos casos, com a pena de morte. A sacralidade envolvía e pene
trava todos os aspectos jurídicos e políticos da cidadania que a distinguia
dos estrangeiros pelo acesso aos direitos da polis. Quando se convocava
urna assembleia política na cidade, o sacerdote traçava um círculo sagrado
ao redor da assembleia para que nenhum estrangeiro o atravessasse.
Caso algum o fizesse era imediatamente executado. Urna extrema rigidez
legal prevenía que estrangeiros viessem a ter qualquer direito na cidade
e criava inúmeros obstáculos para que alguém pudesse conseguir os
direitos de cidadania.37 O número e a gravidade dos entraves eram tais que
tornavam a cidadania quase inacessível para o estrangeiro.
O estrangeiro era um ser humano fora do direito da cidade, um
homo sem direitos. A exclusâo do direito era concomitante à exclusâo
da sacralidade dos cultos que fundavam a validaçâo do direito. As leis
da cidade nâo se aplicavam a ele, por isso vivia um estado de exceçâo
de fato pela suspensâo natural do direito. Caso cometesse algum deli
o estrangeiro era tratado como um escravo, se lhe aplicava o tratamen
da pura vida nua. Era punido de forma arbitraria, sem direito a proce
nem possibilidade de invocar a lei. Ele estava fora do direito e nâo pod
invocar qualquer tipo de justiça legal ou procedimental. O estatuto político
do estrangeiro nas cidades antigás sintetiza o registro da exceçâo bio

35. Coulanges, Fustel de - A cidade antiga, ed. cit., p. 238 ss.


36. Na Grécia, a formula que reconhecia a cidadania de pleno direito a alguém se faz
com a expressâo compartilhar as coisas sagradas (pexeivai tiov itpov). Cf., Coulanges, Fu
de - A cidade antiga, ed. cit., p. 239.
37. Em Atenas, para que um estrangeiro conseguisse a cidadania tinham que se reun
todos os cidadâos em assembleia e votar sua aceitaçâo. Depois de nove dias, se convoc
urna segunda assembleia com escrutinio secreto da quai tinha que conseguir como mínim
seis mil votos favoráveis. Esta era urna cifra muitíssimo difícil de atingir. Caso um est
geiro conseguisse essa proeza, ainda qualquer cidadâo particularmente poderia opor u
espécie de veto ante os tribunais para anular as votaçôes das assembleias. Cf., Coulan
Fustel de-A cidade antiga, ed. cit., p. 240.

Vol. 69 •

Fase.2 Q RPF

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado

lítica nâo decretada por urna vontade soberana, como seria o caso do
homo sacer, mas naturalizada pela ausência normal do direito na sua vida,
tornando o estrangeiro urna vida sem direitos, urna pura vida nua.
Na medida em que as cidades foram consolidando redes de
comércio e suas economías délas dependiam, os estrangeiros se tornaram
elos importantes da riqueza da cidade. Para preservar a presença
económica dos estrangeiros, nâo se lhes abriu a possibilidade de terem
os direitos da cidade, mas se criou um tipo de direito secundário e aces
sório que, de forma normativa, regulava suas atividades. Inicialmente,
criaram-se tribunais especiáis para julgar os casos dos estrangeiros, mas
sem que se lhes aplicasse o direito da cidade. Em Roma, se criou a figura
do praetor peregrinus, em Atenas, o juiz que julgava os estrangeiros era o
polemarca. Nâo por acaso o polemarca era o mesmo magistrado respon
sável pela guerra. Os estrangeiros tinham a condiçâo de inimigos reais ou
potenciáis, e como tal eram tratados. Em Roma, principalmente na época
imperial, a presença dos estrangeiros se tornou vital para o comercio e
as finanças da cidade. Roma tinha que oferecer algum tipo de proteçâo e
direitos aos estrangeiros, porém o ius civile da cidade de Roma nâo poderia
ser o mesmo direito para os estrangeiros porque aquele era um direito
sagrado que só as pessoas das familias, das domus e os cidadâos poderiam
ter.38 A fórmula encontrada foi criar um tipo de direito secundário que se
aplicasse extramuros já que intramuros só podia vigorar o direito sagrado
da cidade. Esse direito foi denominado de ius gentium. Era um direito de
gentes/estrangeiras, nâo de pessoas/cidadâs, que regulava as relaçôes com
os estrangeiros e peregrinos que acudiam à cidade. Este direito sempre foi
considerado inferior ao ius civile porque aquele nâo era um direito sagrado
enquanto este sim. A sacralidade do ius civile outorgava a sua legislaçâo e
normativa um estatuto específico de inviolabilidade prescritiva, enquanto
a positividade profana do ius gentium fazia que suas leis tivessem um valor
relativo e violável quando havia interesses outros.
A condiçâo de mera vida nua a que estava reduzido o estran
geiro nas cidades antigás atingía todas as dimensóes de sua existência.
Nem em Roma nem em Atenas, se lhe reconhecia o direito a ser proprietário.
Era um ser simplesmente sem direitos. Nâo poderia casar-se oficial
mente, já que o casamento gerava direitos e era permitido por direito.
Caso houvesse urna uniâo entre um cidadâo e urna estrangeira, seus filhos
nâo eram reconhecidos pela cidade como filhos legítimos, eram filhos
bastardos, também sem direitos. Sua condiçâo impedia-o de realizar
qualquer contrato com um cidadâo, caso o fizesse, esse contrato nâo teria

38. Al ves, José Carlos Moreira - Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 7.

Vol. 69
Fasc. 2O QRPF
RPF 2013

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344 Castor M. M. Bartolomé Ruiz

nenhuma validade legal para a cidade e n


direito a respeito. A lei romana proibia qu
um cidadâo e vice-versa. Inclusive nas pr
proibido aos estrangeiros terem qualquer
O paradoxal da figura do estrangeiro é
direito, sua vida poderia estar mais despr
Embora submetidos à arbitrariedade tota
eupátrida, os escravos eram propriedades
direito da cidade e das oikos/domus e ne
violentar sem transgredir o direito de pro
escravo também poderia ser considerado
no ámbito das propriedades da familia. Po
direito à sacralidade, nem sequer no túmulo.
Nas polis gregas, existia urna figura jur
à do homo sacer: atimia [enripia desonest
para condenar, em casos extremos, cidadâ
contra a cidade. O individuo condenado p
mente a sua cidadania e, com ela, todos os
direito. O condenado por atimia nao poder
porque se encontrava fora do direito. Qua
fosse cometida contra ele ficava impune.
delito legal contra quem fosse condenado
cuja vida de pessoa e cidadâo foi reduzida
condenado por atimia-, era assimilado a um
a cidade, seria um estrangeiro.40

Conclusâo

Das breves arqueologías do conceito de parricidium e do estr


anteriormente apresentadas, conclui-se que a caráter paradoxa
lidade se desdobra em várias aberturas conceituais problemáticas
do homo sacer, como mostram os estudos de Agamben, o parado

39. Coulanges, Fustel d e-Acidade antiga, ed. cit., p. 243.


40. Fustel de Coulanges menciona um ampio leque de autores como Esquino,
Tucídides, Cicero, Valerio Máximo, Digesto, Dionisio, Dion Casio, etc., que fazem
à atimia e suas implicaçôes que o excluía do direito e da cidadania e o reduzia à c
estrangeiro sem direitos. Nessa condiçâo estava exposto a qualquer violência de f
putável. Cf., Coulanges, Fustel de-Acidade antiga, ed. cit., p. 244.

Vol. 69
Fase. 2 0 RPF

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado

o limiar que conecta a vida humana com a soberanía através da exceçâo.


Porém, e complementando as teses de Agamben, a análise do parricidium
mostra que a sacralidade também serve para proteger as vidas sobre as
quais se aplica o direito sagrado. A sacralidade protege, paradoxalmente,
as pessoas-cidadâs. Estas nâo sâo homines comunes, nâo estâo reduzidos
a mera vida natural, porque o direito sagrado lhes conféré um estatuto
diferenciado, separado, dos homines comunes. Esta tensâo revela o caráter
paradoxal da sacralidade nas polis e nas civitas; em ambos os casos (pesso
as-cidadâs e homines comunes) a sacralidade é um dispositivo que separa,
ainda que de forma diferente, ambas categorías humanas. Num sentido
semántico, a sacralidade separa politicamente os cidadâos dos homines
comunes tornando-os pessoas e outorgando-lhes direitos próprios da
polis. Pelo contrario, no homo sacer, a sacralidade opera pelo caminho
inverso: separa a pessoa-cidadá dos pares excluindo-a pela maldiçâo para
torná-la um homo comunis; através da separaçâo, a sacralidade consegue
concomitantemente proteger e abandonar, capturar e incluir.
A separaçâo operada pela sacralidade na vida humana inocula
nela o paradoxo da captura protetora ou da exclusâo inclusiva. A sepa
raçâo sacral protege a vida das pessoas pelo direito da polis. Sem essa
separaçâo, as suas vidas seriam assemelhadas à vida natural dos meros
homines comunes. Porém, como mostrou a figura do homo sacer, a sacra
lidade também pode ser decretada como maldiçâo. Ela pode agir como
dispositivo biopolítico de exclusâo do direito e inclusâo da vida da pessoa
cidadá na mera vida natural convertendo-a num homo comunis. A sacra
lidade que protege opera com o mesmo dispositivo da sacralidade que
amaldiçoa. Proteçâo e maldiçâo sâo possibilidades do dispositivo sacral
pelas quais, concomitantemente, se protege e ameaça a vida humana.
A figura do homo comunis revela outra face da exceçâo, aquela
que naturaliza os excluidos. A naturalizaçâo da exceçâo e do abandono
continua a ser urna técnica biopolítica ativa nas sociedades contempo
ráneas. Para os oprimidos, a exceçâo continua sendo sua norma de vida.
Em muitas de nossas sociedades, os excluidos sociais sobrevivem, geraçâo
após geraçâo, numa condiçâo em que a negaçâo dos direitos fundamentais
é considerada normal. Sua exclusâo transparece naturalizada como parte
normal da demografía económica e política. A normalizaçâo da exclusâo
dos pobres do mundo a respeito das vantagens dos ricos, continua a natu
ralizarse sob o prisma da inevitabilidade da exclusâo e dos excluidos.
Na sua condiçâo, se replica na atualidade o paradoxo de um direito que
nâo retira formalmente os direitos por um ato de exceçâo, mas consente
que nâo existam, considerando, implicitamente, como algo normal a
ausência de direitos em essas pessoas ou grupos sociais

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Fase. 2 O RPF

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Castor M. M. Bartolomé Ruiz

II

O paradoxo da sacralidade, mutatis mutandis, continua ativo em


dispositivos atuais como a dignidade e a nacionalidade. Inclusive, esta
problemática conduz, entre outros, ao debate sobre as vidas indignas
ou a indignidade da vida que nao merecería ser vivida. Se o conceito de
dignidade defende a vida, o poder de decretá-la a ameaça com a morte.
Este é um debate cada vez mais agudo, urna vez que o limiar sobre o que
seja vida humana ou mera vida natural parece que se dilui na medida em
que as filosofías naturalistas, neurociências, naturalismo biologista, entre
outros, impöem o critério "científico" de que a vida humana é, estricto senso,
urna vida biológica. Os atuais debates sobre o direito a nascer ou a morrer,
ou ainda, a decisâo de quem deve viver ou morrer em hospitais porque nao
há possibilidade de atender com igual dignidade a todos, trazem de volta
a existência de urna vontade soberana que decide e decreta sobre a vida e
morte da vida humana como mera vida natural.41 Despojada da sacralidade
ou da dignidade, a vida humana se torna vulnerável à vontade soberana.42

III

Um terceiro paradoxo (re)aparece na relaçâo do direito com a v


humana. Urna vida sem direito é urna vida abandonada à pura violên
Porém, o direito defende a vida com a violência. O direito defende da
violência nâo legal com a violência legal. Contudo, a definiçâo do que seja
violência legal é urna decisâo que compete ao próprio direito. Quando

41. Os posicionamentos de Peter Singer sâo emblemáticos a este respeito. O médico


é chamado a ser o novo soberano que decide sobre o que é vida ou morte e, como conse
quência, quem pode viver por ser pessoa e quem deve morrer por ser mero corpo: "Por tanto,
se o que valorizamos é a vida com consciência, e nâo a vida em si mesma, entâo parece
muito boa ideia a tentativa de harmonizar a prática médica com a definiçâo da morte [...]
Quais funçôes cerebrais adotaremos como marcadores de diferença entre a vida e a morte, e
por qué? A resposta mais plausível é que as funçôes cerebrais realmente importantes sâo as
relacionadas com a consciência. Segundo esse ponto de vista, aquilo com que realmente nos
importamos - e com que nós devemos nos importar - é a pessoa, e nâo o corpo delà." Singer,
Peter - "Estará doente terminal a ética do caráter sagrado da vida?". In: Singer, Peter - Vida
ética. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 222
42. O pronunciamento do juiz Stevens no veredito do caso Nancy Cruzan revela o
impacto jurídico dos debates biopolíticos sobre a sacralidade da vida humana. "[...] a
inquebrantável determinaçâo do Estado a perpetuar a existéncia física de Nancy Cruzan
só é compreensível como um esforço de definiçâo do significado da vida, e nâo como urna
tentativa de preservar seu teor sagrado... seja como for, a ideia de vida, à parte alguma
abstraçâo teológica, nâo é concebida em separado da ideia de pessoa viva." Apud. Singer,
Peter - Vida ética, ed. cot., p. 223.

Vol. 69
Fase. 2
-sjkr
Q RPF

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A Condiçâo de Homo Sacer. O Direito e a Arqueología do Sagrado

instrumentalizado como dispositivo utilitário da ordem, o direito se torna


urna ameaça violenta para todos que se opöem à ordem estabelecida.
A vida humana de quem coloca em questâo a ordem estabelecida fica
sob ameaça da violência do direito. Em estas circunstâncias, se invoca a
exceçâo, agora como dispositivo de governo. O estado de exceçâo, sob as
diversas fórmulas em que se aplica, continua a imperar como dispositivo
de controle de grupos e pessoas consideradas potencialmente perigosas
para a ordem social. Seu uso, de tâo expandido, torno-o um dispositivo de
governo quase comum.
Num outro aspecto, a violência do direito também captura a vida pe
normatizaçâo das condutas. A vida submetida ao direito, para poder exis
tem que se sujeitar ás normas ditadas, caso contrario entrará na esfera d
vidas perigosas e estará exposta à exceçâo. A vida controlada pelo dir
é urna vida normatizada, sufocada pela norma. Concomitante ás for
de exceçâo, a normalizaçâo biopolítica tornou-se a técnica hegemón
dos dispositivos de poder contemporáneos. A norma se disseminou c
técnica de sujeiçâo das pessoas às instituiçôes. A normatizaçâo dos com
tamentos possibilita sujeitar as vontades numa aparência de liberd
A perspectiva crítica deste debate evita as soluçôes unilaterais, q
na sua simplicidade costumam ser reducionistas. A emancipaçâo nâ
virá, simplesmente, ao retirar o direito da vida, pois urna vida sem dire
continua a ser urna vida abandonada. Porém, a vida nâo está a salvo
da violência porque se incremente a normativa do direito. Muito pelo
contrario, a normatizaçâo da vida tornou-se urna das principáis tecno
logías biopolíticas para controle dos sujeitos na atualidade. Os direitos
humanos sao um paradigma destas tensöes paradoxais. Criados para
defender umversalmente a vida humana como vida digna, estâo expostos,
como verdade discursiva, ao uso instrumental do poder. O mesmo discurso
dos direitos humanos serve de técnica política para resistir aos dispositivos
de controle biopolítico, porém, como todas as verdades e práticas discur
sivas, pode ser instrumentalizado pelos jogos de poder. O discurso dos
direitos humanos é urna significaçâo simbólica aberta à disputa política
dos sentidos.
Poderíamos dizer que as conclusóes deste ensaio nos projetam num
horizonte trágico em que prevalece a condiçâo agonística do ser humano.
Concomitantemente, o paradoxo da sacralidade nos conduz para a inter
pelaçâo ética da responsabilidade. Somos responsáveis pelos modos em
que a vida humana é significada e valorada e pelas práticas que a atingem.
No limiar da responsabilidade ética reconhecemos, frente a frente, a alte
ridade. A alteridade da vida é sempre um outro com rosto singular.

Vol. 69 ■

Fase. 2 Q RTF

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Castor M. M. Bartolomé Ruiz

Exceto em situaçôes ideáis, a que temos que aspirar, nâo é


pensar urna vida humana fora do direito, sob pena de reduz
vida natural. Mas a vida nâo pode ser abandonada ao mero di
risco de ser ameaçada e normatizada. Resta assumir a condiçâo
do humano, que nos desafia e responsabiliza para construir p
temente a relaçâo entre a vida e o direito. Este desafio é urn
bilidade ética. Somos responsáveis por reconhecer a vida hum
alteridade irredutível ao direito, fazendo do direito um mero inst
da alteridade humana. Desde esta perspectiva, a alteridade hu
critério ético irredutível ao sentido estratégico ou instrumental,
urna técnica política ao seu serviço. A alteridade humana fog
cipios transcendentais abstratos e vazios dos conceitos, ape
nossa responsabilidade ética do agir. No campo histórico de fo
jogos de poder, as verdades sobre o valor ético da alteridade
sao urna aposta política em disputa com os dispositivos biopo
controle. Resta ao direito tornar-se urna técnica política ao ser
ridade humana.

Vol. 69 -J|
Fase2 Q RPF

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