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PENSAMENTO OCIDENTAL 3) A A AVENTURA DOS PRE-SOCRATICOS A WITTGENSTEIN Traducao: Laura Alves e Aurélio Rebello 6" Edigao & Do original: Wisdom of tthe West Copyright da traducio © by Ediouro PublicagSes S.A. 2001 “Tradugdo autorizada, da edigéo em inglés, pela Routledge, um membro do grupo Taylor & Francis “Todos os direitos reservados ¢ protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. E proibida a reproducao total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorizacio prévia, por escrito, da editord Coordenagao editorial SHEILA KAPLAN Preparagéo de originais Maria JOsé DE SANT'ANNA Producao editorial JaQueLine Lavon Assistentes de produgito CRISTIANE MARINHO F JULIANA FREIRE Reviséo SANDRA PAssARO E MARCOS ROQUE Projeto gréfco, editoragdo ¢ capa MiRiAM LERNER Producto grdfica ARMANDO GoMEs CIP - BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R925h Russel, Bertrand, 1872-1970 Hist6ria do pensamento ocidental: a aventura dos pr socriticos a Wittgenstein / Bertrand Russel: rasucio, Laura Alves € Aurélio Rebello. - Rio de Janeii. : Ediouro. 2002 Tradugio de : Wisdom of the West ISBN 85-00-00793-1 1, Filosofia — Histéria. 1. Titulo. 00-1699. DD 109 CDU 11091) 02 03 04 05 06 10 09 08 07 06 EDIOURO PUBLICAGOES S/A Rio de Janeiro Sede, Dept de vendas e expedicion Rua Nova Jerusalém, 345 — CEP 21042-23— Rio de Janeiro ~ RJ "el: 21) 3882-8240 / 8323 / 8284 — Fax: 21) 3882-8212 / 8313 E-mail livos@ediouro.combe Sto Paulo Rua Catulo da Paisio Cearense, 631 - Via Snike - CEP 04145.011 Sio Paulo ~ SP "Tel: (11) 8589-3300 — Fax vendas (11) 5589-3300 ~ ermal 233 Esmaik ediouro@ediouro comb / E-mal Vendas: vendasp@ediouo.com be Internet: www.ediouro.combe Sumario PREFACIO 8 PROLOGO 10 ANTES DE SOCRATES 13 ATENAS 66 O HELENISMO 144 O CRISTIANISMO PRIMITIVO 170 A ESCOLASTICA 195 O SURGIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA 239 O EMPIRISMO BRITANICO 303 O ILUMINISMO E O ROMANTISMO 331 Do UTILITARISMO EM DIANTE 375 . O PERIODO CONTEMPORANEO 411 EPiLoGo 450 INDICE 457 “Um grande livro € um grande mall”, disse 0 poeta alexandrino Calimaco, De um modo geral, sinto-me inclinado a compartilhar dessa opinigo. No entanto, se ouso oferecer ao leitor 0 presente volume é porque, diante dos males existentes, este livro é um mal menor. Contu- do, requer uma explicagao especial pois hd algum tempo escrevi um livro sobre 0 mesmo assunto. Histéria do pensamento ocidental é uma obra inteiramente nova embora, é claro, jamais teria surgido se a minha Histiria da filosofia ocidental nao a precedesse. A presente obra pretende oferecer uma visio geral da filosofia 0: dental, deTales a Wittgenstein, além de alguns lembretes das circunstan- cias hist6ricas em que a narrativa se desenrola. Para reforcar o relato, ha uma colegao de ilustragées de homens, lugares ¢ documentos, escolhidas, na medida do possivel, de fontes pertencentes ao periodo a0 qual 'se referem, Sobretudo, sempre que pareceu exeqiivel, tentou-se traduzir idéias filoséficas, normalmente expressas apenas por palavras, através de diagramas que transmitam a mesma informagio por meio de metifora geométrica, Neste campo hé poucas fontes as quais recorrer ¢ assim os resultados nem sempre foram inteiramente satisfat6rios. No entanto, pa- rece que tais métodos de apresentagio merecem ser explorados. A expo- sigo diagramética, quando conseguida, tem a vantagem adicional de nao estar vinculada a nenhum idioma em particular. ‘Quanto ao surgimento de mais uma hist6ria da filosofia, pode-se apre- sentar duas atenuanees. Em primeito lugar, hi poucos relatos a0 mesmo tempo compactos ¢ razoavelmente compreensiveis, Na verdade, existem muitas histérias mais abrangentes, que tratam cada item com extensio muito maior, Obviamente, 0 presente volume, no pretende competir com tais obras. Aqueles que desenvolverem um interesse mais profundo pelo assunto, sem diivida as consultardo oportunamente ¢ talvez até mesmo recorterio aos textos originais. Em segundo lugar, a tendéncia atual por uma especializacio cada vez mais extensa e exagerada esta fazendo os homens esquecerem as suas dividas intelectuais para com os seus antepassados. Este estudo pretende se opor a tal esquecimento, Num HistoRss D0 PENsaMeNto OciDENTAL sentido formal, toda a filosofia ocidgntal é filosofia grega e ¢ intitil nos entregarmos ao pensamento filoséfico se cortarmos os vinculos que nos ligam aos grandes pensadores do passado. Costumava-se afirmar, talvez. de maneira ertdnea, que o fildsofo deveria saber algo sobre todas as coisas. A filosofia reivindicava para a sua esfera todo o conhecimento. Seja como for, a opiniao predominante, segundo a qual os filésofos nao precisam saber nada sobre coisa alguma, com certeza também esté muito errada. Quem pensa que a filosofia “realmente” comegou em 1921, ou em data ndo muito anterior, nao percebe que os problemas filoséficos atuais nao surgitam de repente nem do nada. Portanto, no pedimos desculpas pelo nosso tratamento relativamente generoso para com a filosofia grega. A histria da filosofia pode ser examinada de uma das seguintes ma- nciras: ou a narrativa € puramente expositiva, mostrando 0 que um de- terminado homem afirmou ¢ como um outro foi influenciado, ou entao a exposigao pode ser combinada com uma certa dose de discurso critico, para demonstrar como funciona a discussao filosdfica. Aqui foi adotado © segundo caminho. £ preciso acrescentar que isso nao deve induzir 0 leitor ao erro de acteditar que um pensador pode ser descartado sem mais rem menos, s6 porque os seus pontos de vista deixaram a desejar. Kant afirmou certa vez que temia mais ser mal-interpretado do que ser refu- tado. Antes de desprezar os fildsofos, devemos tentar compreender o que estio tentando dizer. Mesmo assim, é preciso confessar que as vezes 0 esforgo parece desproporcional ao resultado obtido. Afinal, trata-se de uma questio de critério, que cada qual precisa resolver por si. O escopo ¢ o tratamento do assunto neste volume diferem dos do meu livro anterior. © novo material deve muito ao meu editor, Dr. Paul Foulkes, que me ajudou a escrever texto, além de ter escolhido muitas das ilustragées ¢ idealizado a maioria dos diagramas. O objetivo foi pro- piciar um panorama de algumas das questées fundamentais que os filé- sofos tém discutido. Se ao examinar estas paginas o leitor for tentado a se aprofundar no assunto, mais do que teria feito sem Ié-las, o principal propésito deste livro teré sido alcangado. BertRAND RUSSELL Hisroia 00 PeNsamento Ocroenra 0 sistema do mundo na Renascenca (séc. XV). Que fazem 05 filésofos quando estéo trabalhando? De fato, trata-se de uma pergunta singular, que poderiamos tentar responder de- terminando, antes de tudo, 0 que cles nao estéo fazendo. No mundo que nos rodeia existem muitas coisas bastante compreensiveis, Como exemplo, comemos 0 funcionamento da maquina a vapor. Isso per- tence aos campos da mecanica e da termodinamica. Por outro lado, sa- bemos muito sobre a constituicdo ¢ o funcionamento do corpo hu- mano. Sao assuntos estudados em anatomia ¢ fisiologia. Ou, final- mente, consideremos 0 movimento das estrelas, que conhecemos bem. Disso se ocupa a astronomia. Todas essas partes do conhecimento perfeitamente definido pertencem a uma ou outra ciéncia, Porém, todos esses campos do conhecimento confinam com uma rea circundante do desconhecido. Quando se chega as regides limi- trofes ¢ se vai além, passa-se da ciéncia para o campo da especulagio. Essa atividade especulativa é uma espécie de exploragio nisso, entre outras coisas, consiste a filosofia. Como veremos adiante, neste sentido, os varios campos da ciéncia comecaram como exploragio filoséfica. Assim que uma ciéncia se consolida, prossegue mais ou menos inde- pendente, exceto no que diz respeito a problemas de limites e questoes de método. Mas, num certo aspect, 0 processo exploratério no avanga assim: simplesmente continua ¢ encontra nove emprego. ‘Ao mesmo tempo, devemos distinguir a filosofia de outros tipos de especulagao. Em si, a filosofia nio pretende resolver as nossas dificuldades nem salvar as nossas almas. Como dizem os gregos, € uma espécie de aventura turistica que se empreende por gosto. Portanto, em principio, néo hd nenhuma questio de dogma, nem de ritos, nem de entidades sagradas de qualquer tipo, ainda que os fildsofos, individualmente, possam ser obstinadamente dogméticos. Na verdade, h4 duas atitudes que podem ser adotadas ante 0 des- jo. Uma ¢ aceitar as afirmagées de pessoas que dizem co- conh nhecer, baseadas em livros, mistérios ou outras fontes de inspiracao. HisTORiA DO PeNsamento OcioeNrat 10 A outra consiste em sair em busca por si mesmo, ¢ este € 0 caminho da ciéncia ¢ da filosofia. Por dltimo, podemos observar um trago peculiar da filosofia. Se alguém pergunta o que é a matemética, podemos dar-lhe uma defi- nigao do dicionério, dizendo, como ponto de partida, que é a ciéncia dos ntimeros. Trata-se de afirmagio inquestiondvel ¢ além do mais facilmente compreensivel por quem fez a pergunta, mesmo que ignore matemitica. Desse modo, é possivel dar definigdes a respeito de qual- quer campo onde exista um corpo de conhecimentos definido. Mas a filosofia néo pode ser definida assim. Qualquer definigo € ques- tiondvel e ja implica uma atitude filoséfica. O tinico modo de se des- cobrir o que € filosofia ¢ fazer filosofia. O principal objetivo deste liveo € mostrar como os homens fizeram isso no passado. ‘Vex por outra as pessoas que pensam fazem muitas perguntas para as quais a ciéncia nao consegue dar resposta. E quem tenta pensar por si mesmo nao se dispée a accitar em confianga as respostas prontas dos adivinhos. Cabe a filosofia explorar tais questoes as veres descarté-las. Assim, podemos ser tentados a nos fazer perguntas tais como, qual «0 significado da vida, se é que de fato existe algum. Seré que o mundo tem um propésito, o desenrolar da histéria nos leva a algum lugar, ou estas perguntas nao tém sentido? Depois, vém os problemas sobre se a natureza é, de fato, governada por leis, ou se simplesmente cremos que é assim porque gostamos de ver as coisas em certa ordem. E por outro lado, é uma questo geral saber se 0 mundo ¢ dividido em duas partes dispares, mente € matéria €, se assim for, como se mantém unidas. E que dizer do homem? Seré um grio de pé a vagar desamparado num planeta pequeno ¢ insignificante, segundo os astronomos? Seri um monte de substincias quimicas reunidas de forma engenhosa, como poderiam afirmar os quimicos? Ou, finalmente, 0 homem ser © que parece ser para Hamlet, nobre pela razio, infinito pelas fa- culdades? Por acaso © homem nao seria tudo isso a0 mesmo tempo? HISTORIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL 7 A ciéncla lida com fatos conhecidos, a filosofia com a especulacao. Ofélia e€ Hamlet Seré que © homem é um ando dos Ou seré que é um monte de argila? nparado? Ou seré que 6 como Hamlet o v8? Além disso, ha as questées éticas acerca do bem e o mal. Haveré um modo de viver que seja bom ¢ outro mau, ou tanto faz. como vivemos? Se existe um bom modo de viver, qual é, € como podemos aprender a viver assim? Existe algo que possamos chamar de sabedoria, ou 0 que parece ser sabedoria é mera ¢ va loucura? Todas essas questdes sio embaragosas. Nao € possivel respondé-las mediante experiéncias de laboratério € os que possuem uma atitude mental independente se recusam a recorrer aos pronunciamentos dos dispensadores de panacéias universais. Para aqueles, a histéria da fi- losofia fornece as tinicas respostas que podem ser dadas. Ao estudar es- te assunto aprendemos 0 que outros homens, em outras épocas, refletiram a respcito. E assim chegamos a compreendé-los melhor, pois © seu modo de abordar a filosofia constitui uma importante faceta do seu modo de viver, Em tltima instincia, isso pode nos ensinar a viver, ainda que saibamos pouco. HisTORiA DO Pewsamento OciDENTAL A filosofia comeca quando alguém faz uma pergunta de caréter geral, e 0 mesmo acontece com a ciéncia. Os primeiros a evidenciarem esse tipo de curiosidade foram os gregos. A filosofia ¢ a ciéncia, como as conhecemos, sio invengbes gregas. O advento da civilizagao grega que produziu tal explosio de atividade intelectual € um dos acon- tecimentos mais espetaculares da histéria. Jamais ocorreu algo seme- Ihante, nem antes nem depois. No curto espago de dois séculos os gregos produziram na arte, na literatura, na ciéncia e na filosofia uma assombrosa torrente de obras-primas que estabeleceram os padroes gerais da civilizagéo ocidental. AA filosofia e a ciéncia comegam com Tales de Mileto, no inicio do século VI a.C. Que teria acontecido antes, para desencadear esse re- pentino desabrochar do genio grego? Precisamos tentar descobrir a melhor resposta possivel. Com a ajuda da arqueologia, que deu gran- des passos desde o final do século XIX, podemos fazer uma avaliagao bastante exata do desenvolvimento do mundo grego. Em comparacéo com outras civilizagdes do mundo, a grega € re- cente, As do Egito e da Mesopotamia sao varios milénios mais antigas. Essas sociedades agricolas cresceram nas margens dos grandes rios ¢ seus governantes eram reis divinizados, uma aristocracia militar ¢ uma poderosa classe de sacerdotes que presidiam os complexos sistemas religiosos politeistas. A maioria da populacdo era constituida de servos que trabalhavam a terra. Tanto o Egito quanto a Babilénia legaram certos conhecimentos, mais tarde aproveitados pelos gregos. Mas nenhum desenvolveu cién- cia nem filosofia. Nao cabe aqui questionarmos se isso se deveu a falta de génio nativo ou as condigées sociais, ainda que esses fatores tenham contribuido. O significative é que a fungio da religido no conduziu ao exercicio da aventura intelectual. No Egito, a religido preocupava-se muito com a vida apés a morte. As pirimides si0 monumentos funerdrios. Foi preciso algum conhe- HisTORIA 00 PENSAMENTO OcrDENTAL . IZ A mais antiga inscrigao grega conhecida, numa pedra de Tera, do século Vill. cimento de astronomia para garantir a efetiva previsio das enchentes do Nilo e, como administradores, os sacerdotes desenvolveram uma forma de escrita pictogréfica. Nao restaram, porém, grandes recursos que pudessem ser desenvolvidos em outras diregoes. Na Mesopotamia, os grandes impérios semiticos suplantaram os primitivos sumérios, de quem adotaram a escrita cuneiforme. No que tange & religido, o interesse central consiste mais no bem-estar neste mundo. © estudo do movimento das estrelas ¢ as priticas associadas da magia e da adivinhagao eram direcionadas para tal finalidade. Pouco mais tarde encontramos o florescimento das comunidades cometciais. Entre estas sobressai a dos habitantes de Creta, cuja civi- lizagao sé recentemente voltou luz. Os cretenses provavelmente vi- nham das terras litorineas da Asia Menor e rapidamente ganharam importancia nas ilhas do mar Egeu, Em meados do terceiro milénio a.C., uma nova onda de imigrantes conduziu a um extraordindrio desenvolvimento da cultura cretense. Foram construidos grandes pald- cios em Cnossos ¢ Festos € navios cretenses sulcaram 0 Mediterraneo de uma extremidade a outra. A partir de 1700 a.C., terremotos e erupges vulcdnicas recorrentes desencadearam uma migragio cretense para as vizinhas Grécia e Asia Menor. O artesanato cretense transformou a cultura dos povos conti- nentais. Na Grécia, 0 sitio que melhor comprova isto € Micenas, na Argélida, tradicional bergo de Agamenon. E 0 periodo micénico, cuja meméria é relatada por Homero. Por volta de 1400 a.C., Creta sofreu um violento terremoto que pés fim 4 supremacia cretense. Enquanto isso, a Grécia continental absorvera duas ondas suces- sivas de invasores. Os primeiros foram os jénios, vindos do norte por volta de 2000 a.C., € que aos poucos se fundiram com a populacio na- tiva. Trezentos anos depois, seguiu-se a invasio dos aqueus, que desta vez constituiram uma classe dominante. Os senhores de Micenas e os gregos de Homero em geral pertenciam a essa casta dominante. Os aqueus de Creta mantinham extensas relagées cometciais por todo 0 Mediterraneo. A catéstrofe cretense de 1400 nio as interrom- HistORIA DO PeNSAMENTO OCIDENTAL 4 peu. Entre os “povos do mar” que ameagaram © Egito por volta de 1200 a.C., encontramos os cretenses, que os egipcios chamavam de ppeliset. Foram os primitivos filisteus, que deram o nome a Palestina, terra onde se estabeleceram. Por volta de 1100 a.C., outra invasio realizou o que os golpes da natureza nao conseguiram: sob 0 impacto das invasdes déricas, toda a Grécia ¢ o Egeu sucumbiram as vigorosas hordas de conquistadores barbaros. Os aqueus, esgotados pela Guerra de Trdia no inicio do século XII a.C., ndo puderam resistir ao ataque violento. O poder maritimo cai nas maos dos fenicios e a Grécia entra num periodo de obscuridade. Foi mais ou menos nessa época que os gregos adotaram © alfabeto semitico dos comerciantes fenicios ¢ 0 completaram acres- centando as vogai A Grécia propriamente dita é rude, tanto de aspecto como de clima O pais é dividido por éridas cadeias de montanhas. E dificil passar por terra, de um vale para outro. Nas planicies férteis cresceram comu- nidades isoladas ¢ quando a terra nao podia mais sustenté-las devido 20 aumento da populacio, algumas cruzaram 0 mar para fundar colénias. A partir da metade do século VIII até meados do século VI a.C., os litorais da Sicilia, do sul da Icdlia e do mar Negro ficaram pontilhados de cidades gregas. Com o nascimento das colénias, 0 comércio se de- senvolveu ¢ os gregos renovaram 0 contato com 0 Oriente. Politicamente, a Grécia pés-dérica sofreu uma seqiiéncia regular de mudangas, comecando pela realeza. Aos poucos, 0 poder caiu nas mios da aristocracia, a qual, por sua vez, foi seguida por um periodo de monarcas nao hereditérios ou tiranos. No final, 0 poder politico passou as maos dos cidadaos, que € o sentido literal de “democracia”. Dai em diante, a tirania ¢ a democracia se alternam. A democracia pura pode funcionar enquanto todos os cidadaos puderem ser reu- nidos na praga do mercado. Na nossa época, s6 sobrevive em alguns dos menores cantdes da Suica. O mais antigo e maior monumento literério do mundo grego é a obra de Homero. A respeito do homem, nada sabemos de definitivo. HistoRiA 00 PENsaMENTO OciDENTAL 5 Homero Alfada, de Homero Hermes (Mercirio) com 0 Dioniso (Baco) crianga, Alguns chegam a pensar que houve uma linhagem de poetas mais tarde chamada por esse nome, De qualquer forma, os dois grandes poemas homéricos, Miada ¢ Odisséia, parccem ter sido concluidos por volta de 800 a.C. A Guerra de Trdia, tema dos poemas, aconteccu pouco depois de 1200 a.C. Assim, temos um relato pés-dérico de um acontecimento pré-dérico, ¢ daf uma certa dose de inconsisténcia. Na sua forma atual, os poemas remontam a recensao de Pisistrato, tirano ateniense do século VI a.C. Grande parte da brutalidade do periodo primitivo foi suavizada em Homero, embora sobrevivam tragos. Na verdade, os poemas refletem as atitudes racionais de uma classe dominance emancipada. Os corpos so cremados, ¢ nao enterrados, como se sabe que era costume nos tempos micénicos. O pantedo olimpico é um ruidoso grupo de patrées que levam uma vida cheia de dificuldades. A religiao é praticamente ausente, enquanto se fortalecem costumes sofisticados, como a hospitalidade para com estrangeiros. Os cle- mentos mais primitivos, como 0 sactificio humano sob a forma de matanga cerimonial de prisioneiros, acontecem de vez em quando, embora muito raramente. Em geral, o tom é de moderagao. De certa forma, isto simboliza a tensio da alma grega. De um la- do ha 0 ordeiro € racional, de outro o indisciplinado e instintivo. O primeiro dé origem a filosofia, & arte e a ciéncia. O iiltimo surge na jade. Este elemento parece muito mais controlado em Homero; em tempos pos- rcligido mais primitiva em conexio com os ritos de fert teriores, especialmente com a renovacio do contato com o Oriente, ressurge. F associado a0 culto a Dionisio ou Baco, originariamente uma divindade da Tra dizem ter sido dilacerado membro a membro por bacantes embria- . Com a legendéria figura de Orfeu, que gadas, surge uma influéncia reformadora dessa selvageria primitiva. A doutrina érfica tende ao ascetismo e enfatiza o éxtase mental. Com isso espera-se conseguir um estado de “entusiasmo”, ou unio com o deus, ¢ assim adquirir conhecimento mistico que nfo se obtém de outra mancira. Nesta forma refinada, a religido érfica teve um pro- fundo efeito sobre a filosofia grega. Aparece pela primeira ver em HistOnIn DO PENSAMENTO DCIOENTAL 16 Pitigoras, que a adapta ao seu proprio misticismo. A partir dat, ele- mentos dessa religido chegam até Plato ¢ & maior parte da filosofia grega, & medida que ela nao foi puramente cientifica. Porém os elementos mais primitivos sobreviveram até mesmo na io, de faro, a fonte da tragédia grega. Aqui, a simpatia tradigéo érfica. esté sempre do lado daqueles que sio abalados por emogées ¢ paixdes violentas. Aristételes fala corretamente da tragédia como catarse, ou purgacao das emogées. Afinal, foi este aspecto duplo do carater grego que possibilitou a definitiva transformagio do mundo. Nietesche chamou esses dois elementos de apolineo ¢ dionisiaco. Isoladamente, nenhum deles produziria a extraordindtia explosio da culcura grega. No Oriente, 0 elemento mistico reinava, soberano. O que salvou os gregos de serem dominados por esse fascinio exclusive foi o advento das escolas cientificas da Jonia. Mas a serenidade, sozinha, € to in- capaz quanto 0 misticismo de causar uma revolugéo intelectual necessdrio é buscar apaixonadamente a verdade ¢ a beleza e parece que a influéncia drfica propiciou exatamente essa concepsio. Para Socrates, a filosofia é um modo de viver. Vale a pena lembrar que de inicio a palavra grega “teoria” significava algo como “ato de contem- plar”. Herddoto a utiliza neste sentido. Uma viva curiosidade, apoiada numa investigagao apaixonada, embora desinteressada, cis 0 que ga- rantiul aos gregos antigos o seu lugar tinico na hist6ria. A civilizagio ocidental, que brotou das fontes gregas, se baseia nu- ma tradigéo filos6fica e cientifica que comegou em Mileto hé dois mil € quinhentos anos e nisso difere das outras grandes civilizagées mun- diais. A nogio predominante que percorte toda a filosofia grega é 0 Jogus, termo que tem a conotagdo, entre outras, de “palavra” ¢ “me- dida’. Portanto, 0 discurso filosdfico ¢ a investigagao cientifica estao intimamente vinculados. A doutrina ética surgida desse vinculo vé o bem no conhecimento, objeto da investigagdo desinteressada. Jé dissemos que fazer perguntas gerais € 0 inicio da filosofia e da ciéncia. Entdo, qual ¢ a forma dessas perguntas? No sentido mais amplo, clas correspondem a busca de uma ordem naquilo que, para 0 HisroRiA DO PENSAMENTO OCIDENTAL Apollo (acima) © Dionisio (abaixo) observador casual, parece uma série de eventos fortuitos ¢ acidentais. £ interessante notar de onde deriva pela primeira vez a nogio de ordem. Segundo Aristételes, o homem é um animal politico. Nao vive isolado, mas em sociedade. Mesmo no nfvel mais primitivo, isto envolve algum tipo de organizagio ¢ a nogao de ordem brota desta fonte. A ordem é, antes de tudo, a ordem social. Algumas mudangas regulares que ocorrem na natureza, como a seqiiéncia do dia e da noite 0 ciclo das estagées, foram descobertas, sem dtivida, h4 muito tem- po. Contudo, foi a luz de alguma interpretacéo humana que essas mudangas puderam ser compreendidas pela primeira vez. Os corpos celestes so deuses, as forcas da natureza so espititos construidos pelo homem & sua prépria imagem. © problema da sobrevivéncia significa, em primeiro lugar, que 0 homem precisa tentar submeter as forcas da natureza & sua vontade. Antes que isso fosse feito com os meios que hoje podemos chamar de cientificos, o homem praticava a magia. A nogao geral subjacente é a mesma em ambos os casos pois, a magia é uma tentativa de obter resultados especificos com base em certos ritos rigidamente definidos. Baseia-se no reconhecimento do principio da causalidade segundo o qual, dadas as mesmas condigées antecedentes, deve-se obter os mesmos resultados. Assim, a magia é protociéncia. Por outro lado, a religido se origina de uma fonte diferente ¢ tenta obter resultados independentemente da seqiiéncia regular. Atua na regido do mira- culoso, que implica em anular a causalidade. Portanto, essas duas ma- neiras de pensar séo bastante diferentes, mesmo que no pensamento primitivo freqiientemente as encontremos misturadas. A partir das atividades comuns em que grupos participam, desen- volve-se 0 meio de comunicagéo que chamamos de linguagem. O seu objetivo fundamental ¢ possibilitar aos homens pér em pratica um propésito comum. Assim, a nogao bisica, neste caso, € acordo, Igualmente, isto poderia ser considerado perfeitamente como 0 ponto de partida da légica. Resulta do fato de que, a0 se comunicarem, os homens eventualmente chegam a concordar, ainda que s6 concordem Historia DO PENsAMENTO OcIDENTAL 18 em que nfo estio de acordo. Quando se achavam em semelhante impasse, os nossos ancestrais, sem diivida, resolviam o assunto fazendo uso da forca. Quando nos desvencilhamos do nosso interlocutor, ele deixa de nos contradizer. A alternativa as vezes adotada é insistir na discussio do assunto, se for o caso. Esse € 0 caminho da ciéncia ¢ da filosofia. © leitor julgara por si mesmo até que ponto progredimos nisso desde os tempos pré-histéricos. A filosofia dos gregos revela, através das suas etapas, a influéncia de um certo ntimero de dualismos. Sob uma ou outra forma, estes con- tinuaram sendo tépicos sobre os quais os filésofos escrevem ou dis- cutem. Na base de todos eles esta a distingio entre verdade e falsidade. No pensamento grego estes conceitos estéo estreitamente vinculados aos dualismos do bem ¢ do mal, ¢ da harmonia ¢ da discérdia. Em seguida vem © dualismo da aparéncia e da realidade, muito vivo nos dias de hoje. Junto com eles temos as questoes da mente ¢ da matéria, da liberdade ¢ da necessidade. Além disso, existem as questoes cos- moldgicas, que se referem a se as coisas sio uma ou muitas, simples ou complexas, ¢, finalmente, os dualismos do caos ¢ da ordem, do ilimi- tado ¢ do limite. ‘A maneira pela qual estes problemas foram abordados pelos pri- meiros fildsofos é instrutiva. Uma determinada escola se dedicava a um dos lados de um dualismo; em seguida, outra the faria criticas € adotaria o ponto de vista oposto. Afinal, surgiria uma terceira escola, que produziria uma espécie de compromisso, substituindo as duas opinides anteriores. Ao observar essa batalha pendular entre doutrinas riyais de fildsofos pré-socriticos, Hegel desenvolveu pela primeira vez a sua nogao de dialética. Muitos desses dualismos se relacionam de algum modo. No entan- to, podemos separi-los para mostrar os diferentes tipos de questdes com que a filosofia tem lidado. O verdadeiro ¢ o falso sao discutidos na Iégica. A julgar pela aparéncia, o bem e 0 mal, a harmonia ¢ a discérdia sio questées que pertencem a ética. Aparéncia ¢ realidade e as questées da mente ¢ da matéria podem ser consideradas como os HistoRiA D0 Peesamenro Ocioewral ( 19 0 universo € simples ou complexo, ordenado ou cabtico? Teatro de Mileto problemas tradicionais da teoria do conhecimento, ou epistemologia. Os dualismos restantes pertencem mais ou menos a ontologia, ou reoria do ser, f claro que nio existe nada de rigido nem de fixo nessas divisoes. Na verdade, alguns dos tragos mais caracteristicos da filosofia groga residem na mancira pela qual esses limites sio rompidos. A primeira escola de fildsofos cientificos surgiu em Mileto, Esta cidade no litoral jénico era uma ativa encruzilhada de negécios comércio, A sudeste ficavam Chipre, Fenicia ¢ Egito; ao norte, os ma- res Egeu ¢ Negro; a oeste, através do Egeu, a Grécia continental ¢ a itha de Creta. A leste, Mileto mantinha estreito contato com a Lidia e, através desta, com os impérios da Mesopotamia, Com os lidios, os milésios aprenderam a pritica de cunhar moedas de ouro para servir de dinheiro. O porto de Mileto vivia apinhado de veleiros de muitas nnagées € os scus armazéns estocavam mercadorias do mundo inteiro. Como conheciam o dinheiro como meio universal de armazenar valor ¢ trocar mercadorias, nao admira que os filésofos milésios se inda- gassem de que sao feitas todas as coisas. “Todas as coisas sao feitas de gua’, teria dito Tales de Mileto. E assim comegam a filosofia ¢ a cigncia. A tradigao grega registra Tales ‘como um dos Sete Sébios. Herddoto nos conta que Tales previu um eclipse do sol. Os astrénomos avaliaram que isso ocorreu em 585 a.C. € portanto se considera que ele viveu nessa época. FE, pouco provavel ~ que Tales tivesse uma teoria sobre os eclipses, mas devia estar fa- miliarizado com os registros babilénicos de tais fendmenos e portanto sabia quando esperé-los. Por sorte, aquele eclipse foi visivel em Mileto, © que foi bom para a cronologia ¢, sem diivida, também para a fama de Tales. Igualmente, € muito duvidoso que, na geometria, ele tenha estabelecido os teoremas referentes a semelhanga dos tridngulos, No entanto, é certo que ele aplicou 0 método do polegar, usado pelos egipcios para determinar a altura de uma pirdmide, a fim de descobrir a distancia de navios no mar e de outros objetos inacessiveis. Isso in- dica que ele tinha alguma nogdo de que as regras geométricas so de aplicacio geral. Esta nocio do geral é original e grega. Histonca DO PeNsAMENTO OCIDENTAL 20 Diz-se que Tales também afirmou que 0 ima tinha alma porque pode mover o ferro. A afirmagio seguinte, de que todas as coisas esto cheias de deuses, é mais questiondvel. Isso bem pode ter sido atribuido a ele baseado na afirmagio anterior, mas torna-a supérflua. Dizer que o ima tem alma s6 faz sentido se as outras coisas nio tiverem. Muitas histérias tém sido associadas a Tales, algumas possivelmente verdadeiras. Diz-se que certa vez, quando desafiado, demonstrou o seu genio pritico monopolizando 0 mercado do azcite de oliva. Seu co- hecimento de metcorologia antecipou-lhe que a colheita seria abun- dante, Portanto, alugou todos os lagares que conseguiu e, chegada a hora, alugou-os, estipulando o prego. Assim, obteve uma grande quan- tia ¢ demonstrou aos seus algozes que os fildsofos podem ganhar dinheiro quando se dispdem. ‘A idéia mais importante de Tales € a sua afirmativa de que o mundo é feito de dgua. Isto nio ¢ tao artificial, como poderia parecer & primeira vista, tampouco pura fantasia da imaginacio, separada da observacio. O hidrogéni nossa prépria época como o elemento quimico a partir do qual podem , substineia geradora da 4gua, tem sido considerado na ser sintetizados todos os demais. A opiniao de que toda a matéria é una representa uma hipétese cientifica muito reputada. Quanto 4 obser- vagao, a proximidade do mar torna mais do que plaustvel a possibi- lidade de se notar que 0 sol provoca a evaporagio da agua, que a neblina se eleva da superficie para formar as nuvens, as quais voltam a se dissolver em forma de chuva. Segundo esta visio, a terra € uma forma de agua concentrada. Os detalhes podem ser bastante fantasiosos mas, ainda assim, é um notével feito ter descoberto que uma substancia permanece a mesma em diferentes estados de agregacio. O filésofo milésio seguinte é Anaximandro, que parece ter nascido por volta de 610 a.C. Como Tales, foi inventor ¢ homem pritico. Foi o primeiro cartégrafo ¢ chefiou uma das colénias milésias no litoral do mar Negro. Anaximandro criticou a teoria cosmolégica do seu antecessor. Na verdade, por que razao escolher a Agua? A substincia primaria da qual Historia Do Pensamento Ocipenrat 21 Herédoto: historiador & esctitor romano (€.482-425 .C). Considerado por Cicero como *o pal da Historia", foi o primero a tratéla de forma realista e no postica, a so feitas as coisas nao pode ser uma das suas préprias formas especiais. Portanto, deve ser algo diferente de todas elas, algo mais fundamental, pois as virias formas da matéria esto em continua luta: © quente contra o frio, © timido contra o seco. Invadem-se continua ¢ mu- tuamente, ou cometem “injustica’, no sentido grego, que neste caso significa falta de equilibrio. Se qualquer destas formas fosse a matéria bésica, hd muito teria suplantado as outras. A matéria original é 0 que Aristételes chama de causa material. Anaximandro intitula isso de limitado, uma reserva infinita de material que se estende em todas as diregées. Dele surge o mundo ¢ a ele retornard no final. Anaximandro considerava a terra como um cilindro flutuando li- vremente, do qual ocupamos uma das bases. Além disso, supde-se que © nosso mundo seja cercado por outros inumeréveis mundos. Nes- te caso, mundo corresponde ao que hoje chamarfamos de galaxia. A fungio interna de cada mundo é governada por um movimento em vértice, que atrai a terra para o centro. Os corpos celestes sio rodas de fogo escondidas pelo ar, exceto em um ponto. Poderiamos imaginé-los como cimaras de bicicleta cujas valvulas seriam os pontos visiveis. Devemos lembrar que o ar, para os gregos daquela época, era algo capaz de tornar as coisas invisivei No que diz respeito a origem do homem, Anaximandro sustentava uma visio extremamente “moderna”. Ao observar que a crianga ne- cessita de um longo perlodo de cuidado protecdo, conclui que, se 0 homem tivesse sido sempre como € hoje, nao teria sobrevivido. Por conseguinte, em outros tempos deve ter sido diferente, ou seja, deve ter evoluido de um outro animal capaz de prover a propria subsis- téncia com mais rapidez. Este tipo de argumento € chamado de re- ductio ad absurdum. A partir de uma determinada hipétese, deduz-se algo decididamente erréneo (neste caso, que 0 homem nao sobre- viveria). Em conseqiiéncia, a hipétese precisa ser rejeitada. Se este argumento é sdlido, ou seja, se a partir da hipétese de que o homem sempre foi o que € hoje segue-se, como me sinto inclinado a crer, que cle nao poderia ter sobrevivido, entéo o argumento prova, sem mais HistoRIA 00 PENsAMENTO OciDENTAL 22 a “estudos da natureza fisica das coisas”. Assim, a variedade de assuntos foi ampla ¢ 0 tratamento provavelmente no muito profundo. Sem diivida, foi contra esse tipo de “conhecimento de muitas coisas” que Heréclito protestou mais tarde. Na filosofia, o importante no sao tanto as respostas, mas sim as perguntas. Por isso, a escola milésia merece a sua fama. Nao surpre- ende que a Jonia, que produziu Homero, fosse também o bergo da ciéncia ¢ da filosofia. Como vimos, a rcligio em Homero é olimpica em seu carter, ¢ assim continuou. Quando ndo pesa sobre a sociedade uma grande carga de misticismo, é mais provavel que a especulagio cientifica se desenvolva. E embora muitas escolas posteriores da filo- sofia grega tivessem a sua cota de misticismo, é preciso lembrar sempre que todas elas muito deveram aos milésios. A escola milésia nao esteve ligada, de forma alguma, a qualquer movimento religioso. Na verdade, um dos tragos mais notaveis dos pré-socréticos consistiu na discordancia de todos para com as tradig6es religiosas dominantes. Isto é verdade até mesmo quanto a escolas como a pitagérica que, em si, nao se opunha a religido. As priticas reli- giosas dos gregos, em geral, eram ligadas aos costumes estabelecidos nas varias cidades-estados. Quando os filésofos tracavam os seus pré- prios caminhos, ndo surpreende que entrassem em conflito com as re- jis das suas cidades, sina suscetivel de recair sobre as ligides ofi mentes independentes em todos os tempos ¢ lugares. A ilha de Samos fica a pouca distancia do litoral da Jénia. No en- tanto, apesar da proximidade fisica, em alguns aspectos importantes as tradigdes das ilhas foram mais conservadoras do que as das cidades do continente. Neste caso, parece ter sobrevivido uma continuidade maior com a antiga civilizagio do Egeu e convém ter em mente essa diferenga para 0 que se segue. Enquanto a Jénia de Homero e a primitiva escola milésia nao se mostraram, em geral, inclinadas a levar a sério a religiao, desde o inicio 0 mundo das ilhas foi mais receptivo a influéncia drfica que acabou se enxertando nas crengas remanes- centes dos tempos creto-aqueus. Historia DO PENSaMENTO OCIDENTAL 24 O culto olimpico foi muito mais uma questéo nacional, sem um dogma religioso rigido. Por outro lado, o orfismo possufa textos sa- grados e mantinha unidos os seus seguidores pelos vinculos da crenga compartilhada. Neste contexto} a filosofia se torna um modo de viver, perspectiva mais tarde adotada por Sécrates, O pioneiro deste novo espirito da filosofia foi Pitagoras, nativo de Samos. Pouco se sabe a respeito das suas datas de nascimento e morte ¢ dos pormenores da sua vida. Diz-se que brilhou em 532 a.C., durante a tirania de Policrates. A cidade de Samos era rival de Mileto ¢ de outras cidades do continente, que haviam sido dominadas pelos persas invasores depois que estes tomaram Sardes em 544 a.C. Os barcos de Samos sulcaram o Mediterraneo em todas as direcGes. Du- rante algum tempo, Policrates foi aliado préximo de Amasis (Ahmés), rei do Egito, o que, sem dtivida, deu origem & histéria de que Pird- goras viajara ao Egito ¢ que dai se derivava o seu conhecimento ma- temitico. Em todo caso, Pit4goras abandonou Samos porque nao conseguia suportar © regime opressivo de Policrates. Estabeleceu-se em Crotona, cidade grega do sul da Itdlia, onde criow a sua sociedade. Viveu em Crotona durante vinte anos, até 510 a.C. Depois de uma revolta contra a sua escola, retirou-se para Metaponto, onde per- maneceu até a morte. Como vimos, para os milésios a filosofia era assunto eminen- temente pritico e os filésofos podiam ser, e eram, homens de aco. Na tradicao pitagérica, emerge a concepcao oposta: a filosofia se torna uma contemplacao apartada do mundo. Isto esté ligado & in- fluéncia érfica, personificada na atitude pitagérica diante da vida. Temos uma divisao dos homens segundo trés modos de vida. Assim como hd trés tipos de homens que participam dos jogos olimpicos, também ha trés tipos de homens na sociedade. No nivel inferior, esto os que vém para comprar e vender; depois, temos os que pat- ticipam da competisio e, finalmente, os espectadores, ou os que vém para ver, os teéricos no sentido literal. Estes ultimos corres- pondem aos filésofos. O modo de viver filoséfico é 0 unico a Hisronss DO PENSAMENTO OCIDENTAL 25 Pitigoras A corda solta soa a tonica, Presa fem 3/4 soa uma quarta acima. Essa corda encurtada, agora presa em 2/3 da sua extensio, oa uma quinta ainda mais acima. A extensio final & 1/2 do original e soa uma oitava acima. oferecer alguma esperanca de superar os acasos da existéncia, pro- piciando uma fuga a roda do destino. Pois, segundo os pitagéricos, a alma é sujeita a uma série de transmigracées. Este aspecto da tradicao esta ligado a um certo ntimero de primitivos tabus ¢ regras de abstinéncia. Voltaremos a encontrar a divisio tripartite dos modos de viver na Repiiblica de Platdo e, de fato, muito mais no pitagorismo © nas outras escolas pré-socriticas. Poderiamos dizer que Platdo fornece a sintese das lutas doutrindrias dos primeiros filésofos. Por outro lado, a escola pitagérica deu origem a uma tradicdo cien- tifica ¢ mais especialmente matematica. Os matemiticos séo os verda- deiros herdeiros do pitagorismo. Apesar do elemento mistico que sur- ge do renascimento érfico, este aspecto cientifico da escola nao é de faro distorcido por idéias religiosas. A ciéncia em si nao se torna religiosa, ainda que a busca por um modo de viver cientifico esteja impregnada de um significado religioso. Um poderoso agente no aspecto purificador desse modo de viver é a missica. O interesse pitagérico por cla bem pode ter nascido dessa influéncia. Seja como for, Pitdgoras descobriu as relagées numéricas que denominamos intervalos musicais. Uma corda Da simples dag afinada soaré a oitava, se o seu comprimento for dividido ao mei mesma forma, se 0 comprimento for reduzido a trés quartos, obte- remos uma quarta; se a dois tergos, uma quinta. Uma quarta e uma quinta juntas constituem uma oitava, ou seja, 4/3 X 3/2 = 2/1. Assim, estes intervals correspondem a razdo da progressio harménica /3:1. Sugeriu-se comparar os urés intervalos da corda afinada com os trés modes de viver. Embora isto possa continuar sendo espe- culacao, certamente ¢ verdade que dai em diante a corda afinada desempenha um papel central no pensamento filos6fico grego. A nogio de harmonia, no sentido do equilibrios 0 ajuste e a combina- io de opostos, como alto ¢ baixo, mediante uma afinagio adequada; © conceit de caminho intermedirio na ética, e a doutrina dos quatro temperamentos, tudo isso, afinal, remete a descoberta de Pitégoras. Voltaremos a ver muito disso em Platao. HistoRia 00 PENsaMeNto OciDENTAL 26 E muito provavel que as descobertas na miisica tenham conduzido a idéia de que todas as coisas sdo ntimeros. Assim, para com- preendermos 0 mundo que nos cerca, precisamos descobrir 0 niimero que existe nas coisas. Uma ver descoberta a estrutura numérica, con- trolaremos 0 mundo. Na verdade, esta concepsao é muito importante. Embora a sua relevancia sofresse um eclipse temporirio depois dos tempos helenisticos, foi novamente reconhecida quando o re- nascimento do saber gerou um renovado interesse pelas fontes antigas. E um trago dominante da concepcao moderna de ciéncia. Com Pité- goras, também, encontramos pela primeira vez um interesse pela ma- tematica nio ditado primordialmente por necessidades priticas. Os egipcios tinham algum conhecimento matemético, porém, apenas 0 necessdrio para construirem as suas pirimides ou medirem os seus campos. Os gregos comecaram a estudar essa matéria “pelo gosto de investigar”, para usar uma frase de Herddoto, e Pitégoras se destacou entre eles. Pitdgoras desenvolveu um meio de representar os ntimeros através de combinagées de pontos ou seixos. Na verdade, trata-se de um método de calcular que de alguma forma sobreviveu por longo tempo. A palavra latina equivalente a “célculo” significa “manejo de seixos”. estudo de certas séries aritméticas relaciona-se a isso. Se com- binarmos linhas de seixos, cada uma contendo um a mais do que a anterior, comesando por um, obteremos um ntimero “triangular”. Atribi linhas e demonstrava que 1+2+3+4=10. De modo similar, a soma de -se um significado especial a0 tetrakeys, que consistia de quatro ntimeros impares sucessivos dé origem a um ntimero “quadrado”, ¢ a soma de ntimeros pares sucessivos a um nuimero “oblongo”. Em geometria, Pitégoras descobriu a famosa proposigao de que 0 quadrado da hipotenusa é igual a soma dos quadrados dos catetos, embora nao saibamos que provas ele apresentou. Aqui, mais uma vez, estamos diante de um exemplo de método e demonstracao de tipo geral, em oposigio a0 método do polegar. No entanto, a descoberta dessa proposigo provocou um tremendo escandalo na escola. Pois HistORIA D0 PENSAMENTO OCIDENTAL 27 a) Um tetraktys, nimero ‘Tiangular” de quatro filas, simbolo do juramento pitagorico b) Nameros “quadrados", somas de sucessivos rdmeros impares. Nameros “oblongos", somas de sucessivos svimeros pares. uma conseqiiéncia da mesma € que 0 quadrado da diagonal de um quadrado é igual a duas vezes 0 quadrado do lado. Mas nenhum ntimero “quadrado” pode ser desdobrado em dois ntimeros quadrados iguais. Dai o problema nio poder ser resolvido por meio do que hoje chamamos de ntimeros racionais. A diagonal é incomensurdvel com o lado. Para resolver o problema precisamos de uma teoria de ntimeros inracionais, que foi desenvolvida pelos pitagéricos posteriores. O nome “irracional”, neste contexto, evidentemente se refere aquele primitivo escandalo matematico. Conta-se que um membro da irmandade foi afogado no mar por ter divulgado o segredo. Em sua teoria do mundo, Pitdgoras se baseia diretamente nos mi- lésios combina isto com as suas prdprias teorias relativas ao nimero. Os mimeros, nas combinagées antes mencionadas, chamados de “marcos”, sem diivida porque esta concepcio se refere & medigio dos campos, ou “geometria” no sentido literal. A palavra latina corres- pondente a “termo” tem o mesmo sentido literal. Segundo Pitégoras, 0 ar ilimitado é 0 que mantém a distingao entre as unidades e sio as unidades que dio medida ao ilimitado. Além disso, o ilimitado ¢ identificado com as trevas ¢ 0 limitado com o fogo. Trata-se, eviden- temente, de uma concepsio inspirada no céu e nas estrelas. Como os milésios, Pitégoras acteditava haver muitos mundos, embora, com a sua visio de nuimero, seja improvavel que os considerasse inumerdveis. Ao desenvolver a opiniio de Anaximandro, Pitégoras reafirmou que a terra era uma esfera, € abandonou a teoria do vértice, defendida pelos milésios. No entanto, caberia a outro nativo de Samos, de época poste- rior, formular a teoria heliocéntrica Foi a preocupagio pitagérica com a matemitica que deu origem a0 que mais tarde encontraremos como a teoria das idéias, ou como a teoria dos universais. Quando um matemitico demonstra uma pro- posigdo a respeito dos tridngulos, nao fala de uma figura desenhada em algum lugar, mas sim de algo que cle vé com os olhos da mente. Assim, surge a distingao entre o inteligivel e o sensivel. Além disso, a proposigio estabelecida ¢ verdadeira sem reservas ¢ para sempre. Dai HistORIA 00 PENSAMENTO OCIDENTAL 28 s6 falta um passo para a idéia de que s6 o inteligivel € real, perfeito € eterno, enquanto o sensivel € aparente, defeituoso e transitério. Sio essas conseqiiéncias diretas do pitagorismo que desde entéo dominam © pensamento filoséfico ¢ a teologia. ‘Também devemos lembrar que o principal deus dos pitagéricos foi Apolo, apesar dos elementos drficos presentes nas suas crengas. A ten- déncia apolinea distingue a teologia racionalista da Europa do mis- ticismo do Oriente ~ Sob a influéncia dos primeiros pitagéricos, a velha religiio do Olimpo foi substituida por uma nova concepgao religiosa. Xen6fanes empreendeu um ataque muito mais virulento aos deuses tradicionais. Nascido provavelmente em 565 a.C. na Jonia, ele fugiu para a Sicilia quando os persas chegaram, em 540. Seu principal objetivo parece ter sido erradicar 0 pantedo olimpico com os seus deuses, feitos a imagem do homem. Opés-se igualmente ao misticismo do renascimento érfico € cacoou de Pitégoras. © seguinte na linha da tradicao filosdfica foi um outro jénio, Herdclito de Efeso, que viveu em fins do século VI a.C. Pouco se sabe da sua vida, além do fato de ter pertencido a uma familia aristocratica. No entanto, alguns fragmentos dos seus escritos sobreviveram ¢ a partir deles é facil perceber por que foi considerado con- obscuro. Suas frases tm um tom profétice. Os fragmentos isos ¢ elegantes, cheios de vividas metiforas, Ao falar do eterno ciclo da vida e da morte, Hericlito diz: “O tempo é uma crianga jogando damas, 0 poder supremo € 0 de uma crianga.” Ao desdenhar © es- carnecer dos desprovidos de discernimento, ele da largas ao seu des- prezo com frases mordazes: “Os tolos, quando de fato ouvem, si0 co- mo os surdos; a eles se aplica o ditado de que estio ausentes quando presentes”, ou entio: “Os alhos ¢ 0s ouvidos sio més testemunhas para os homens, cujas almas nao compreendem a sua linguagem.” Para nos lembrar que as conquistas vilidas demandam muito tra- balho ¢ esforgo, ele diz: “Os que procuram ouro, cavam muita terra € encontram pouco.” Aqueles que acham essa tarefa dificil demais sao dispensados com esta frase: “Os burros preferem a palha ao ouro.” HistOniA DO PeNsameNto OcioENTAL 29 c’=(a-b) +4xJab zatb’ a) 0 famoso teorema de Pitaigoras. Nao se sabe que prova ele tinha, ) Um triangulo isbsceles cujos lados 3 formam um Angulo reto tem uma hipotenusa que n3o pode ser expressa como ndmero Reconstituigao do tempto de Artemis, considerado uma das sete maravithas do mundo. Ainda assim, cle antecipa um pensamento que seria mais tarde expresso numa famosa frase de Sécrates, segundo a qual ndo devemos nos orgulhar demais do que aprendemos: “Deus considera o homem um bebé, assim como o homem considera a crianga.” Um estudo mais acurado da teoria de Herdclito ajudard a esclarecer tum pouco mais algumas dessas frases. Embora Hericlito nao tivesse os interesses cientificos dos seus antecessores jénios, as suas teorias se baseiam, contudo, nos ensinamentos dos j6nios ¢ de Pitégoras, Anaxi- mandro afirmara que os elementos antag6nicos voltam ao ilimitado para reparar as suas transgress6es miituas. De Pitégoras vem a nogio de harmonia. Heréclito desenvolve uma nova teoria a partir desses ingredientes ¢ af esta a sua descoberta ¢ contribuigéo marcantes para a ibrado de ten- déncias opostas. Por trés da luta entre opostos, segundo certas normas, filosofia: 0 mundo real consiste de um ajuste equi existe uma oculta harmonia ou afinagio, que é 0 mundo. Com freqiiéncia, esta noo universal nao € evidente porque “a natureza gosta de esconder.” Na verdade, Herdclito parece ter sustentado que, num certo sentido, uma afinagio deve ser algo que no salte aos olhos de imediato. “A afinagéo oculta ¢ melhor do que a aparente.” De faro, em geral ndo se costuma atentar para a existéncia da harmonia. “Os homens nio sabem como 0 que est4 em desacordo concorda consigo mesmo. E uma afinagao de tensées opostas, como as do arco ¢ da lira.” Assim, a luta € 0 motivo principal que mantém vive 0 mundo. “Homero estava equivocado quando disse: ‘Quem dera acabasse essa luta entre deuses ¢ homens!” Ele nao percebeu que rezava pela des- truigéo do universo, pois se a sua prece fosse atendida, todas as coisas se acabariam.” E neste sentido légico, e ndo como maxima militar, que devemos tomar a sua afirmagio de que “a guerra é a origem de tudo”. Esta visio exige uma nova e fundamental matéria, que enfatize a importancia da atividade. Seguindo os milésios em princ{pio, embora nao em detalhes, ele escolheu o Fogo. “Todas as coisas podem se trans- formar em Fogo e o Fogo em todas as coisas, assim como a mercadoria HISTORIA DO Pensamento OcioeNTaL 30 em ouro € © ouro em mercadoria.” Esta simile mercantil mostra 0 cere da teoria. A chama de uma lamparina a dleo parece um objeto fixo. No entanto, 0 tempo todo o leo esté sendo consumido, o com- bustivel se transformando em chariia ¢ a fuligem caindo da queima. Assim, tudo 0 que acontece no mundo é um processo de trocas deste tipo, nada permanece sempre igual. “Nao se pode entrar duas vezes no mesmo tio, pois novas 4guas estéo sempre fluindo.” Devido a esta imagem, escritores posteriores atribu(ram a Heréclito a famosa frase: “Todas as coisas esto em constante fluxo.” Sécrates se refere aos se- guidores de Heréclito apelidando-os de “os fluentes”. £ importante contrastar isto com outro fragmento de Heréclito, que diz; “Entramos ¢ nao entramos no mesmo rio, somos ¢ ‘nao somos”. A primeira vista, isto parece irreconciliével com a afirmativa anterior. No entanto, esta tiltima declaracéo pertence a um aspecto diferente da teoria. A chave esté na segunda metade. Somos ¢ nao somos € um modo um tanto enigmético de dizer que a unidade da nossa existéncia consiste numa mudanga perpétua, ou, para usar uma linguagem mais tarde forjada por Platéo, 0 nosso ser € um perpétuo devir. © mesmo acontece com o exemplo do rio. Se eu entrar no Tamisa hoje ¢ novamente amanhi, entro no mesmo rio, mas a 4gua em que entro nio é a mesma. Espero que a questio esteja suficien- temente esclarecida ¢ nao recomendo ao leitor tentar este exercicio. Outra maneira de dizer isto se encontra na afirmacéo de que “o caminho para cima ¢ para baixo é uma unica e mesma coisa”. Jé ‘observamos isto no caso das chamas: o dleo sobe, a fuligem cai, € ambos fazem parte do processo da queima. Pode-se dizer que no primeito caso a afirmativa deve ser tomada literalmente. Uma ladcira tanto vai para cima quanto para baixo, dependendo da diresao que se tome. A teoria dos contrarios, de Heréclito, neste caso nos lembra que 0s tragos que parecem conflitantes so, na verdade, partes essenciais de uma situago. Uma das mais surpreendentes maneiras de expressar isto ocorre na afirmagéo de que “o bem ¢ 0 mal sio uma unica coisa” Evidentemente, isto nao significa que 0 bem € 0 mal sejam uma e a HistoRiA 00 PensamENto OcivenTaL 31 s opostos de Anaximandro e as cordas afinadas de Pitégoras, levam & visio de Herdclto: a harmonia das tens6es opostas, © caminho acima e abaixo 0 mesmo. Ao remover um, remove-se ambos. mesma coisa, Ao contritio, assim como nao se pode conceber um caminho para cima sem um caminho para baixo, nao se pode com- preender a nogio de bem sem ao mesmo tempo compreender a nogio de mal. De fato, se destruirmos 0 caminho para cima, removendo a colina, por exemplo, também aboliremos 0 caminho para baixo: o mesmo ocorre com o bem e o mal Até aqui, a teoria de que todas as coisas esto em constante fluxo nao € realmente nova. Anaximandro sustentara opinides exatamente semelhantes. Contudo, a explicagao de por que as coisas permanecem as mesmas constitui um avango em relacao aos milésios. A idéia pre- dominante de medida provém de Pitagoras. E mediante a preservagio de medidas adequadas que a mudanga perpétua mantém as coisas tais como sio. Isso vale tanto para o homem quanto para o mundo. Na natureza, as coisas se transformam de acordo com determinadas leis € 0 mesmo ocorte na alma humana, onde acontecem mudangas entre o seco ¢ o timido. Uma alma timida definha ¢ corte 0 risco de se desintegrar se isso nao for controlado pelo fogo, observagao nao de todo incorreta a respeito de um bébado. Por outro lado, “a alma seca €a mais sabia ¢ a melhor”, embora nao devamos nos equivocar com este aspecto da exceléncia, pois um excesso de fogo mataré a alma, com tanta certeza quanto a umidade descontrolada, No entanto, a destruigao pelo fogo parece ser admitida como um fim mais glorioso, jd que “Mortes grandiosas sto mais bem aquinhoadas”, Provavelmente isto se deve ao fato de o fogo ser a substancia eterna: “Este mundo, que 0 mesmo para todos, nao foi criado pelos deuses nem pelos homens; mas sempre foi, é agora ¢ sempre sera um fogo eterno, que se acende € se apaga segundo as leis.” Quanto aos processos da natureza, todos obedecem as suas res- pectivas leis. Como afirmou Anaximandro, nao se deve procurar a injustiga na luta entre contrérios, mas sim no desrespeito as leis. “O sol nio desrespeitard as suas leis; se o fizer, as Erinias, servas da justia, © desmascararao.” Mas as leis no sio absolutamente rigidas, desde que os limites nao sejam excedidos. De fato, podem oscilar dentro de HistoRi2 DO PENSAMENTO OCIDENTAL 32 um certo ambito, e isto explica fendmenos periédicos da natureza como 0 dia ¢ a noite, 0 acordar e o dormir do homem, e mudangas semelhantes. £ tentador vincular a nogio de leis oscilantes 4 cons- truco pitagérica de ntimeros irracionais por fragdes continuas, nas quais sucessivas aproximagées, alternadamente, excedem ou nio al- cangam o valor exato. No entanto, nio sabemos se os primeiros pi- tagéricos desenvolveram este método, ¢ embora na época de Platéo fosse seguramente bem conhecido, nao podemos atribuir com certeza esse conhecimento a Hericlito. Como Xenéfanes, Heraclito escarneceu da religido da época, tanto na sua forma olimpica quanto érfica. Nao é através de ritos ¢ sacti- ficios que os homens se tornar4o bons. Herdclito reconheceu clara- mente o caréter superficial e primitivo das préticas rituais. “Em vao se purificam manchando-se de sangue, como se alguém que caminhasse na lama lavasse os pés na prépria lama. Qualquer homem que o visse agit assim o consideraria louco.” Nenhum bem pode vir dessa diresao. No entanto, ha um caminho para se alcangar a sabedoria e consiste em captar o principio subjacente das coisas. Esta frmula é a harmonia dos contrdrios, mas os homens nao a reconhecem, embora ela se manifeste por toda parte. “E como eu digo, a formula sempre escapa 2 compreensio dos homens, antes ou depois de ouvirem falar dela. Pois, embora todas as coisas acontecam de acordo com esta formula, parece que os homens néo a experimentaram, ainda que experimen- tem palavras ¢ feitos como eu explico, quando distingo cada coisa segundo a sua espécie e mostro como é.” Se nao reconhecemos a for- mula, entao nenhum saber ter4 qualquer utilidade. “O aprendizado de muitas coisas ndo ensina a compreensao.” Este € um conceito que voltaremos a encontrar em Hegel, ¢ a fonte ¢ Herdclito. Portanto, a sabedoria consiste em captar a formula subjacente que €comum a todas as coisas. Devemos obedecé-la, tal como uma cidade obedece as suas leis. Na verdade, devemos fazé-lo de maneira ainda mais rigida, pois a formula comum ¢ universal, ainda que as leis sejam diferentes de cidade para cidade. Assim, Herdclito insiste no cardter Historia 00 PeNsamENTo OcIDENTAL 33 absoluto do comum, em oposigao a idéia de relativismo, que se de- senvolvia 4 época com base na comparacao entre os varios costumes de diferentes povos. A doutrina de Herdclito se opde visio pragmética dos sofistas, que Protigoras mais tarde expressou ao declarar: “o ho- mem é a medida de todas as coisas.” ‘Mas, embora a formula universal, o /ogos, seja encontrada por toda parte, a maioria é cega em relagdo a ela, e se comporta como se cada pessoa tivesse uma sabedoria particular ¢ exclusiva. Assim, a f6rmula comum é qualquer coisa exceto opiniao publica. Heraclito despreza a multidio por essa cegueira. Ele é, no sentido literal da palavra, um aristocrata que defende o poder dos melhores. “Os efésios deveriam se enforcar, todos os homens adultos, deixando a cidade para os jovens imberbes, pois expulsaram Hermédoro, 0 melhor deles, dizendo: nao queremos ninguém que seja melhor que nés; se houver alguém assim, que o seja em outro lugar e no meio de outros.” Sem divida, Herdclito tinha uma boa opiniao de si mesmo, pela qual talvez devamos perdod-lo. Deixando de lado essa esquisitice pessoal, ele surge como um poderoso pensador, que reuniu as prin- cipais concepgGes dos seus antecessores ¢ exerceu influéncia vital so- bre Platao. ‘A doutrina de Heréclito sobre o fluxo chama a atengao para o fato de todas as coisas estarem envolvidas em alguma espécie de movi- mento. A etapa seguinte da filosofia grega nos leva ao outro extremo da escala ¢ nega completamente 0 movimento. Um trago compartilhado por todas as teorias até aqui examinadas & que cada uma tenta explicar 0 mundo mediante um tinico prin- lpi escola, mas cada uma propée um principio basico acerca do que sao individuais oferecidas diferem de escola para . As solugies feitas todas as coisas. No entanto, até entéo ninguém examinara ctiticamente esse ponto de vista geral. O critico que se dedicou a essa tarefa foi Parménides. Quanto a sua vida, como acontece com tantos outros, pouco sa- bemos de interessante. Era nativo de Eléia, sul da Itdlia, e fundou uma HistoRiA DO Pensamento OcioeNTAL 34 escola intitulada eledtica em homenagem & cidade. Floresceu na pri- meira metade do século V a.C. ¢, a se acreditar em Platio, visitou Atenas junto com o seu seguidor Zendo, onde ambos se encontraram com Sécrates por volta de 450 a.C. De todos os filésofos gregos, Parménides e Empédocles foram os tinicos que expuseram suas teorias em forma poética. © poema de Parménides recebeu 0 titulo de Da Natureza, como muitos outros escritos dos filésofos mais antigos. Divide-se em duas partes, das quais a primeira “O Caminho da Ver- dade”, contém a sua doutrina ldgica, que nos interessa principalmente aqui. Na segunda parte, “O Camino da Opinio”, ele estabelece uma cosmologia essencialmente pitagérica, mas € bastante explicito 20 dizer que devemos considerar tudo isso como ilusério. Ele mesmo fora seguidor da doutrina pitagérica, mas abandonou-a quando formulou suas criticas gerais. Esta parte do poema, portanto, pretende ser um catdlogo de erros dos quais cle se libertara. A critica de Parménides se origina de uma falha comum as teorias de todos os seus antecessores. Ele descobriu-a na inconsisténcia do ponto de vista de que todas as coisas sio feitas de alguma matéria basica e 0 mesmo tempo falar-se de espaco vazio. Podemos descrever a matéria dizendo “é” ¢ 0 espaco vazio dizendo “nao é”. Ora, todos os filésofos anteriores haviam cometido 0 erro de falar do que no é como se fosse. Inclusive se poderia dizer que Herdclito afirmou que uma coisa ¢ ¢ no é ao mesmo tempo. Diante de tudo isso, Parménides afirma simplesmente que “é”. A questio é que aquilo que nao é nao pode nem mesmo ser imaginado, pois nao se pode imaginar o nada. © que nao pode ser pensado, igualmente nao pode ser, ¢ portanto o que pode ser pode ser pensado, Esta é a tendéncia geral do argumento de Parménides. ‘Algumas conseqiiéncias emergem de imediato. O “é” significa que © mundo esta cheio de matéria por toda parte. O espago vazio sim- plesmente nao existe, nem dentro nem fora. Além disso, deve haver igual quantidade de matéria em todos os lugares, caso contrétio pre- cisarfamos mencionar um lugar de menor densidade, que de certo Historia DO PeNsAMENTO OCIDENTAL 35 modo nao era, ¢ isto € impossivel. O “isto” deve existir igualmente em todas as diregées e ndo pode alcangar o infinito, pois significaria que era incompleto. E incriado e eterno: nao pode surgir do nada nem se dissolver no nada, nem pode surgir de algo, pois nao existe nenhuma outra coisa além dele. E assim chegamos a uma representagao do mun- do como uma esfera material, uniforme, sélida e finita, sem tempo, movimento nem mudanga. Na verdade, trata-se de um monstruoso golpe no senso comum, mas também é a conclusio légica de um ra- dical monismo material cabal e completo. Se isto ofende os nossos sentidos, pior para cles: precisamos descartar a experiéncia sensorial como iluséria, e € precisamente o que Parménides faz. Ao levar a teoria monista as tiltimas conseqiiéncias, ele forca os pensadores posteriores a recomegarem. A esfera de Parménides ilustra 0 que Herdclito quis dizer ao afirmar que se um dia a luta terminasse, o mesmo aconteceria com o mundo. Vale a pena notar que a critica de Parménides nio atinge a teoria de Herdclito, se corretamente tomada, Pois a visio de que as coisas sio feitas a partir do fogo nao é verdadeiramente essencial 4 sua teoria, cuja fungao é metaférica, uma vez que a chama ilustra de maneira vi- vida a importante nogio de que nada permanece eternamente imével, que todas as coisas so processos. J4 explicamos antes como se deve interpretar a afirmagao de Herdclito de que uma coisa “é ¢ nao é”. De fato, a doutrina de Herdclito j contém uma critica impli tafisica lingiifstica de Parménides. A teoria de Parménides na sua forma lingiiistica se resume sim- plesmente ao seguinte: quando se pensa ou se fala, pensa-se ou fala-se a respeito de algo. Deduz-se que deve haver coisas externas, inde- pendentes, acerca das quais se pode pensar ou falar. Isto se pode fazer em muitas ocasiées diferentes e, portanto, os objetos do pensamento ou do discurso devem existir sempre. Se no podem deixar de existir ‘em momento algum, a mudanca ¢ impossivel. que Parménides dei- xou passar foi que, segundo o seu ponto de vista, ele nunca poderia negar nada, uma vez que isso 0 obrigaria a dizer 0 que nio &. Mas, se HistORIA D0 PeNsameNto Ocivewrar a) assim fosse, entio ele nunca poderia afirmar nada, e deste modo seria impossivel qualquer raciocinio, discurso ¢ pensamento. Nada sobre- vive, exceto o “é”, uma vaga f6rmula de identidade. Contudo, a tcoria ressalta o importante ponto de que, se podemos usar uma palavra de forma inteligivel, ela deve ter algum significado, € © que ela significa deve existir num ou noutro sentido. Se nos lembramos de Hericlito, o paradoxo desaparece. Quando se trata 0 assunto de maneira suficientemente explicita descobre-se que, na realidade, ninguém diz que nao é, mas sim que nao é de um de- terminado tipo. Assim, se eu digo “a grama nao é vermelha”, nao estou dizendo que a grama no seja, mas sim que cla ndo é de um determinado tipo de que outras coisas so. Na verdade, eu nao poderia dizer isso se nao tivesse exemplos a oferecer de outras coisas que s40 vermelhas, como, por exemplo, os énibus'. Heréclito afirma que o que é vermelho hoje pode ser verde amanha: pode-se pintar de verde um énibus vermelho. Isto suscita a questo geral das condigées sob as quais as palavras tém significado, assunto demasiado importante para ser abordado aqui. No entanto, a negasio da mudanga, por parte de Parménides, esta na origem de todas as subseqiientes teorias do materialismo. oO chamado substincia, a matéria invaridvel ¢ indestrutivel da qual os sto” a que ele atribui existéncia ¢ 0 que mais tarde passou a ser materialistas dizem que sio feitas todas as coisas. Parménides ¢ Herdclito constituem os dois extremos opostos entre os pensadores dos tempos pré-socréticos. Vale a pena notar que além de Plato, os atomistas produziram uma sintese desses dois pontos de vista opostos. De Parménides tomam emprestado as particulas elementares imutéveis, enquanto de Heréclito vem a nogio de movimento incessante. A dialética hegeliana foi su- gerida pela primeira vez a partir de um desses exemplos classicos. E verdade que o progresso intelectual surge de uma sintese deste tipo, como conseqiiéncia de uma incans4vel exploragao de posigoes ‘extremas. Histoia 00 PensameNto OciDeNTAL 37 1 © autor refere-se aos 6nibus ingleses. (N.T) A ctitica de Parménides requereu uma nova abordagem para a questio de que é feito 0 mundo. Essa abordagem deve-se a Em- pédocles de Agrigento. Novamente, pouco se sabe a respeito das datas em que nasceu ¢ morreu. Viveu na primeira metade do século V a.C. Politicamente, esteve ao lado do povo. Diz a tradigao que era um lider democritico. Ao mesmo tempo, hd nele um trago mistico que parece estar relacionado a influéncia drfica dos pitagéricos. Como Par- ménides, ele parece ter sofrido o fascinio dos ensinamentos pita- g6ricos, dos quais igualmente se libertaria mais tarde. Sobrevivem al- gumas histérias miraculosas a seu respeito. Segundo a lenda, ele podia influenciar no clima. Sem dtivida, devido 4 sua habilidade médica, conseguiu deter uma epidemia de malaria em Salinonto, acon- tecimento que mais tarde foi lembrado de forma agradecida nas moedas cunhadas naquela cidade. Diz-se que ele se considerava um deus ¢ que quando morreu supde-se ter sido levado para o céu. Outros dizem que ele se jogou na cratera do Etna, embora isso pareca inacreditavel, pois nenhum politico que se leve a sério jamais se langaria num vuleao, Para estabelecer um compromisso entre a doutrina eledtica € a evidéncia comum dos sentidos, Empédocles adotou todos os pontos até entio considerados bdsicos e acrescentou-lhes um quarto. Cha- mou-os de “raizes” das coisas, ¢ Aristételes mais tarde os denominou elementos. Trata-se da famosa teoria dos quatro elementos: dgua, ar, fogo ¢ terra, que dominou a ciéncia quimica por aproximadamente dois mil anos. Até hoje sobrevivem vestigios dessa teoria na conversa corrente, como quando se fala da fiiria dos elementos. Esta teoria € realmente uma hipéstase dos dois conjuntos de contrarios: umido ¢ seco, quente ¢ frio, Devemos observar que para refutar a critica de Parménides no basta simplesmente multiplicar os tipos de substincias consideradas como fundamentais. Deve haver, além disso, algo que faga com que a matéria basica se misture de varias formas. A isto respondem os dois princfpios ativos de Empédocles: 0 amor e 0 ddio. A tinica fungéo HISTORIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL 38 desses principios ¢ unir ¢ dividir, embora, como ainda nao se de- senvolvera a idéia de agao insubstancial, precisaram ser considerados como substincias. Por conseguinte, sio tidos como materiais ou subs- tanciais ¢ somados aos outros quatro, formando seis. Assim, quando as quatro substancias sio separadas, 0 dio ocupa o espago existente entre elas, e, quando esti unidas, o amor as aglutina. E oportuno norar que hé uma certa justificativa para o ponto de vista de que um agente deve ser material. Pois, embora esta idéia tenha sido um tanto refinada, a ciéncia moderna ainda considera que tal agio precisa ter uma fonte material em algum lugar, mesmo que nao seja onde age. J& Anaximenes considerara 0 ar como substancial, embora nao saibamos em que se bascou. Empédocles esté num plano diferente, pois descobriu o fato de que o ar era material. Chegou a esta con- clusio através de experiéncias com reldgios de dgua. Portanto, vale hotar que enquanto os seus antecessores falam de ar, Empédocles chama essa substincia de éter, ambas palavras gregas. Esta tiltima conquistou uma nova condigao cientifica na segunda metade do século XIX, quando a teoria eletromagnética exigiu um meio para a propagacao das ondas. Apesar destas inovagées, Empédocles conservou boa parte da teoria cledtica. Assim, as substdncias elementares sao eternas ¢ imutiveis, ¢ nao podem ser explicadas de outra maneira. Este também continua sendo um importante principio da explanagio cientifica, ainda que no seja freqiientemente explicitado. Se, tomando-se um exemplo co- nhecido, alguém explica os fendmenos da quimica em fungéo dos 4tomos, esses mesmos dtomos permanecem sem explicagio. Para ex- plicé-los, € preciso consideré-los como constituidos de particulas ainda menores, as quais, por sua vez, no séo explicadas. Ento, como antes, o que é, é; nada pode surgir do que nao é, bem como algo que € nio pode se converter em nada. Tudo isto € ma- tetialismo eledtico, perfeitamente aceitével. Podemos destacar aqui um ponto geral sobre o qual a revisio que Empédocles faz da doutrina materialista nfo consegue refutar a critica de Parménides. A questio HistORia 00 PENSAMENTO OCIOENTAL 39 Cotheita de azeitonas, principal produto de exportacdo grega. Vaso do século V. que, uma vez admitida a mudanga, é preciso igualmente admitir 0 vazio. Pois, se a mudanga é possivel, entao, em principio, ¢ igualmente possivel que a quantidade de maréria num determinado espago possa set diminuida até que nada reste. Nao vale simplesmente aumentar 0 niimero de substincias. Parménides, entdo, esté bastante certo 20 negar a possibilidade de mudanga, uma vez que negou a possibilidade de espaco vazio, ¢ Empédocles nao ajuda a superar, de fato, a vencer essa dificuldade. Veremos mais adiante como os atomistas resolveram © problema. Empédocles sabia que a luz requer tempo para se propagar ¢ que a luz da lua é indireta, embora nao se saiba de onde ele obteve esta informacio. A sua cosmologia se baseia numa série de ciclos, iniciando a esfera do mundo com édio no exterior e amor no interior, unindo 0s outros elementos. Depois, o ddio expulsa o amor até que os varios elementos fiquem bem separados ¢ 0 amor esteja fora. Depois acon- tece 0 inverso, até voltarmos ao ponto de partida. Sua teoria da vida estd vinculada a este ciclo, No tiltimo estagio do ciclo, quando 0 amor invade a esfera, formam-se separadamente diferentes espécies de ani- mais. Em seguida, quando 0 édio esta novamente bem fora da esfera, produzem-se combinacées acidentais, sujeitas & sobrevivéncia das mais aptas. Quando o dio torna a entrar, desenvolve-se um processo de diferenciagao. O nosso préprio mundo é um estégio avangado desse processo, que mais uma vez é governado pelo principio evolutivo da sobrevivencia dos mais aptos. Finalmente, devemos notar o interesse de Empédocles pela medicina € pela fisiologia. Do médico Alcmeao de Crotona, seguidor dos pita- g¢ricos, Empédocles assumiu a teoria de que a satide € um equilibrio pr6- prio entre componentes opostos, e que a doenga ocorre quando um deles prevalece, Da mesma mancira, adotou a teoria dos poros, ou passagens, através das quais todo 0 corpo respira. Sio esses poros que nos possi- bilitam ter percepgées sensoriais. Em particular, a sua teoria da visio, que prevaleceu por muito tempo, estabelece que ocorre um encontro de efluéncias do objeto visto com um raio de fogo que emana do olho. HISTORIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL 40 Nao precisamos nos deter nas idéias religiosas de Empédocles, que seguiam a tradicao érfica e eram bastante divotciadas da sua filosofia. Contudo, € interessante observar que nos seus escritos religiosos ele parece defender pontos de vista incompativeis com a sua teoria do mundo, Este tipo de discrepancia € muito comum, mais especial- mente entre aqueles que no apreciam um exame critico das suas convicgées. Na verdade, nio € possivel sustentar ao mesmo tempo essas vis6es conflitantes. Mas os homens acreditam alegremente numa coisa agora € no oposto amanha, sem sequer suspeitar que podem incorrer em inconsisténcia. ‘Acsta altura, a nossa hist6ria jé nos colocou em pleno século V a.C. Muito do que se tem a discutir sob 0 titulo de filosofia pré-socrdtica, na realidade, € contemporaneo de Sécrates. Muitas vezes € impossivel evitar certa dose de sobreposicéo. Para apresentar um relato coerente, deve-se ultrapassar, de vez em quando, os limites da mera cronologia. Trata-se de uma dificuldade enfrentada por toda investigacao his- térica. A histéria presta pouca atengao as conveniéncias do cronista. Um pouco mais adiante trataremos mais especificamente de Ate- nas. No momento, devemos tragar um breve panorama das condicoes politicas ¢ sociais da Grécia do século V a.C. Embora as Guertas Persas tenham dado aos gregos uma com- preensio mais profunda dos seus vinculos comuns de linguagem, cultura e nacionalidade, a cidade-estado continuava firme como cen- tro de interesse. Além das tradigdes pertencentes a todos os que falavam a lingua da Hélade, os costumes locais de cada cidade em particular seguiam a sua propria existéncia vigorosa e mantinham a sua identidade. Na verdade, Homero podia ser uma heranca comum, mas Esparta era téo diferente de Atenas como uma prisio de um parque de divers6es, ¢ ambas diferiam de Corinto ou de Tebas. O desenvolvimento de Esparta tomara um rumo peculiar. Devido ao ctescimento demogréfico, os espartanos foram forcados a subjugar a tribo vizinha dos messénios, reduzindo-os a uma raga de criados. Como resultado, o estado espartano se transformou num acampamento militar. HistORIA DO PENSAMENTO OcrDENTAL 41 Planta gerat de Esparta Corinto, 0 templo de Apolo O governo consistia numa assembléia popular que elegia um con- selho de idosos ¢ indicava dois éforos, ou supervisores. Também havia dois reis, ambos origindrios de familias nobres, mas o efetivo poder estava nas méos dos éforos. O tinico objetivo da educacio era produzir soldados disciplinados. Os hoplitas espartanos eram famosos por toda a Grécia e representavam, de fato, uma formidavel forga. A resisténcia de Lednidas ¢ seus trezentos homens contra as hostes persas de Xerxes, nas Termépilas, deve ser considerada entre os memoréveis feitos da histéria, Os espartanos nio eram um povo morbidamente senti- mental. A disciplina era dura ¢ os sentimentos pessoais reprimidos. Os bebés deformados eram abandonados a prépria sorte, para que o vigor da raga nao diminuisse. Bem cedo os jovens eram tirados dos pais € educados em instituigées semelhantes a quartéis militares. Em geral, as meninas eram tratadas da mesma maneira que os meninos € a posicio social das mulheres era de franca igualdade. O estado ideal de Platio & muito inspirado no exemplo de Esparta. A cidade de Corinto, situada no istmo, ocupava posicao privile- giada para as atividades comerciais. Era governada por uma oligarquia ¢ aderira 4 liga do Peloponeso sob a lideranga de Esparta. Os co- rintianos enviaram contingentes para as guetras persas, mas no exer- ceram lideranga. Seus interesses eram principalmente comerciais ¢ Corinto era famosa no como bergo de estadistas e pensadores, mas sim pelos seus lugares de lazer. Era também a metrépole de uma das maiores colénias gregas, a cidade de Siracusa, na Sicflia. Entre essas duas cidades, ¢ com a Magna Grécia em geral, existiam fortes vinculos comerciais que se desenvolviam ao longo da protegida rota maritima do golfo de Corinto. Na Sicilia, os gregos eram vitinhos da poderosa cidade fenicia de Cartago. Junto com a invasio de Xerxes & Grécia, os cartagineses tentaram dominar a ilha em 480 a.C. Os vastos recursos de Siracusa ¢ a lideranga do tirano de Gela frustraram essa tentativa de forma tio permanente quanto os gregos do continente haviam repelido o perigo da conquista pelo Grande Rei. HISTORIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL 42 A gradual superagio de Corinto por Atenas no decorrer do século V concorreu, sem diivida, para desencadear a Guerra do Peloponeso foi a desastrosa campanha de Siracusa que afinal arruinou Atenas. Nas planicies da Beécia, a noroeste de Atenas, fica a antiga cidade de Tebas, ligada as famosas lendas de Edipo. Durante o século V a.C., Tebas também era governada por uma oligarquia aristocrética, Seu papel nas Guerras Persas no foi de todo elogiavel. Um destacamento tebano sucumbira com Lednidas, mas depois que Xerxes invadiu 0 pals, os tebanos lutaram ao lado dos persas em Platéia. Por esta defecgao, Atenas puniu Tebas privando-a da sua posigdo de lideranca na Beécia. Dai em diante, os tebanos foram olhados com leve desdém pelos atenienses. Mas quando o poder de Atenas cresceu, Esparta se aliou a Tebas para contrabalangar esse crescimento. Na Guerra do Peloponeso, Tebas resistiu a Atenas, embora as terras a sua volta fossem invadidas. No entanto, quando os espartanos venceram, Tebas trocou de lado ¢ apoiou Atenas. A maioria das cidades-estados controlava o territério imediatamen- te vizinho. Quem vivia no campo podia lavrar a terra, mas 0 poder do governo se concentrava na cidade. Quando havia oportunidade, como nos estados democraticos, a participagao na condugio dos assuntos ptiblicos era universal entre os cidadéos. Um homem desinteressado pela politica era censurado ¢ chamado de “idiota’, que em grego significa “dedicado a interesses particulares”. O solo da Grécia nao é adequado para o cultivo em larga escala. Com o crescimento da populacio, foi necessdrio importar gréos de ou- tros lugares. A principal fonte de abastecimento cram as terras do litoral do Euxino’, onde ao longo dos séculos se estabeleceram nu- merosas colnias gregas. Em troca, a Grécia exportava azeite de oliva € ceramica. O forte trago individualista dos gregos se manifesta na sua atitude perante a lei. Nisto eles so tinicos e inteiramente diferentes dos seus contemporineos da Asia, onde a autoridade de um governante se apéia em leis consideradas divinas, enquanto os gregos reconhecem HISTORIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL 43 ? Ponto Euxino, atual mar Negro. (N. dos T:) d Moeda de Siracusa. Decadracma de prata. Carro e cabera de Avetusa, Delfes, que as leis sio feitas pelos homens ¢ para os homens. Se uma lei nao esta mais de acordo com a época, pode ser mudada por aquiescéncia comum. Mas enquanto tiver a forga do apoio comum, deve ser obedecida. O exemplo classico desse respeito pela lei ¢ a recusa de Sdécrates de escapar & sentenca de morte decretada pela corte de Atenas. ‘Ao mesmo tempo, isto significava que diferentes cidades possufam leis diferentes, de modo que nenhuma autoridade podia resolver as disputas entre elas de maneira pacifica. Assim, a Grécia, dividida demais por citimes internos e por um individualismo desagregador, nao conseguia estabilidade nacional. Sucumbiu ao dominio de Alexandre ¢ mais tarde de Roma. Contudo, as suas instituiges ¢ ideais comuns Ihe permitiram sobreviver como unidade cultural, J4 foi mencionada a epopéia nacional. Mas havia igualmente outros vinculos. ‘Todos os gregos reverenciavam o san- tudrio de Delfos, nas colinas ao norte do golfo de Corinto, e em certa medida respeitavam 0 Oriculo de Delfos. Delfos foi o centro do culto ao deus Apolo, que representa as forcas da luz e da razio. Diz a antiga lenda que ele matara Piton, 0 réptil mitico que simboliza as trevas, ¢ por este feito os homens constru{ram 0 templo em Delfos, onde Apolo exercia a sua protegao sobre as realizages do espirito grego. Além disso, 0 culto apolineo contém uma tendéncia ética ligada a ritos de purificaga0. O préprio deus tivera de expiar © miasma da sua vit6ria sobre Piton, e agora ali- mentava a esperanga de outros que também se haviam manchado de sangue. No entanto, hé uma excecio: 0 matricida jamais seria perdoado. Constitui um sintoma surpreendente do fortalccimento da confianga ateniense em si mesmo o fato de, na tragédia de Esquilo, Orestes ser finalmente absolyido justo desse crime por Atena e um Areépago um tanto anacrénico. O outro importante templo de Apolo ficava na ilha de Delos, que fora um ponto de encontro religioso das tribos jénicas, € temporariamente sede do tesouro da liga de Delos. HisrORiA 00 PENSAMENTO OCIDENTAL 44

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