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42 AAssinatura das Colsas Estética, Sendo esta a primeira dentre as ciéneias normativas (se- guida pela Etica e, subseqiientemente, pela Légica ou Semiética), sua chave de decifragio encontrase ha primeira categoria feno- menolégica (primeiridade ou possibilidade, presentidade, fres- cor, originalidade, espontaneidade, fragilidade, qualidade, sentimento etc.), assim como nos signos correspondentes a essa categoria (quali-signo, icone, rema). Todos os textos trabalham, cada um a seu modo, com esses conceitos na tentativa de com: preender a “qualidade de sentimento” prépria do efeito estético. © texto mais completo e mais diferenciado em relagio a Estética €0 de B, Kent (1987), uma vez que a autora insere a estética no vvasto diagrama peirceano das ciéncias, fornecendo dados inédi- tos para o seu entendimento. ‘Nao me parece necessitio dizer que o levantamento dos tex- tos, que foram arrolados neste estado da questio, no tem a pre- tensio de ser exaustivo. Ha um elevado nimero de revistas de Semiética, publicadas nas mais diversas linguas, em um grande niimero de paises do mundo, Conhecer 0 contetido de eada uma dessas revistas, para verificar se ha artigos de Semiética literdria com base em Peirce, nfo € tarefa para um s6 pesquisador. As obras aqui citadas sio aquelas que tém circulado mais aberta- mente e que, por isso mesmo, se tornaram mais conhecidas. Se nfo sio suficientes, sio pelo menos representativas para quem quer que pretenda entrar no elenco daqueles que tém se devota- do aos estudos de Peirce e a Literatura, A esses, nossas boas-vin- das, Aos que jd estio inseridos nesse elenco, mas foram aqui involuntariamente esquecidos, dentro da logica da certeza anteci- pada, apresento, de antemio, as necessérias desculpas, Capitulo 3 Signos de Todas as Coisas ‘A Semiética peirceana nfo é uma ciéneia aplicada, nem & uma ciéncia tedrica especial, ou seja, especializada, Nao sio pou- os 0s equivocos que tém rondado a obra de Peirce como conse- qiiéncia da subutilizagio de seus conceitos para usos especificos. Sua Semiética, que é sindnimo de Légica, no sentido amplo que ele the conferiu, nfo pode ser confundida com as areas poten- ciais a que pode ser aplicada. E uma ciéncia formal e abstrata, num nivel de generalidade fmpar. Quando se menciona o nome de Peirce, via de regra, vem & mente das pessoas um conjunto de classificagées, especialmente a Aivisio dos signos em icones, indices e simbolos. Pouco rendimento tam essas classificagées, no entanto, quando se ignoram as fundages € 0 contexto do pensamento que dio raiz e sentido & Semistica. A obra peirceana é gigantesca, complexa, intrincada, apresentando in- terdependéncia indissolivel entre suas partes. Tentar aplicar Peirce a qualquer rea especifica, e em nosso caso, literitia, ignorando 0 contexto geral ¢ as fundagdes filoséficas e cientifieas de seu pensa- ‘mento, traz resultados quase sempre inécuos. O objetivo deste capi tulo é chamar atengio para a necessidade de redimensionamento das finalidades a que 09 eseritos peireeanos se prestam, base para os propésitos que norteiam este livro. OS SIGNOS ESTAO CRESCENDO. Embora a preocupacio com o estudo dos signos tenha acompanhado a humanidade desde 0 mundo grego, foi s6 na se- gunda metade do século XX que a Semidtica veio ocupar um lugar de destaque como uma nova area de saber com caracteristi- ‘cas bem peculiares. Entre essas caracteristicas, desde © bem co- nhecido ensaio de Umberto Eco (1978), “Semiotics: a discipline 44 AAssinatura das Coisas or an interdisciplinary method?" (“Semiética: uma disciplina ou ‘um método interdisciplinar?”), tem sido bastante discutido — ¢ 08 semioticistas estdo longe de alcangar um consenso definitive — se 1 Semiética é uma teoria ou método, uma disciplina ou enfoque interdisciplinar, um ponto de vista metatedrico ou uma arte. A prépria dificuldade para se colocar um rétulo imediato e saber, a0 certo, de que se trata, jf demuncia a existéncia de um campo heteréclito e plural de indagacdes pesquisas no qual as diferen- «as sio a regra. Contudo, em meio a essa diversidade, uma coisa parece evidente: a tendéncia proliferante, propagadora ¢ até ‘mesmo pulverizadora da Semiética. Falase e trabalhase, por exemplo, em Semistica tedrica aplicada, Semidtica geral ou formal e especial ou regional, Se- miética critica, empirica, experimental, descritiva, comparativa etc. Mas o poder proliferante aumenta porque, conforme as in- vestigagdes vio se desenvolvendo, elas vio permitindo 0 reconhe- cimento, cada vez mais abrangente, de uma diversidade de rocessos signicos, tais como: ‘© metabolismo de formas unicelulares (microssemiose), 08 pro- ‘cessos signicos conectando os érgios dentro de um organisiio (endossemiose), os processos parasitirios nos quais o$ fungos envolvem os organismos hospedeiros (micossemiose), 0s pa- drdes de estimulo e resposta na vida das plantas (fitossemiose), a interagio dos animais (zoossemiose), ¢ 0s tipos adicionais de semiose desenvolvidos pelos humanos (antropossemiose). Tam- bem ineluidos nessa série estio os processos de espécie mais recente (semiose das méquinas) que foram introduzidos com a invengio de maquinas processadoras. (Poener gt al. 1986.) ido os estudos propriamente semi Jes foram se confrontando e interagindo com was individuais relacionadas com signos, isto 6, “Areas estabelecidas como disciplinas dos curriculos uni- versititios ¢ que ja haviam desenvolvido seus préprios e inde- pendentes tipos de metodologia para o trabalho com 0s signos ¢ semioses que ocorti disciplinas estavam a Biologia, a Psicologia e a Medicina, de um lado, e, de outro, a Filologia, a Musicologia, a Histéria da Arte, ¢ coutras” (Posner et al. 1986). Signos de Todas.as Colsas 45 ‘Sem se restringir A interagio com as reas ou disciplinas ja estabelecidas tais como Direito, Ciéncias Sociais, Educagio, Lite- ratura etc,, foi também se desenvolvendo um amplo espectro de Semidticas regionais, entre as quais podem ser citadas as Semisti- cas do circo, da épera, teatro, fotografia, cinema, e video. Ou ain- da: Semiética dos mukimeios, do jornalismo, da holografia ete. O mimero de regides, com suas tendéncias atomizadoras, é po- tencialmente interminavel. Mas, ao mesmo tempo, comecaram a aparecer tendéncias & unificacio das diferentes regides em clas- ses mais amplas, tais como: Semiética da imagem, Semidtica vi- sual, Semidtica do espaco, Semistica da comunicagio nioverbal etc. Essa tendéncia unificadora veio culminar na Semiética da cultura, Ha, de um lado, um vetor mais tedrico que conduz a ten- déncias unificadoras. De outro lado, o vetor das Semidticas apli- cadas conduz As tendéncias atomizadoras. Contudo, a abrangéncia da Semidtica nao se limita as disci- plinas que explicita ou implicitamente estudam processos signi- cos. Ela invade também todas as regides nas quais redes semisticas aparecem. Cada vez mais esti se tornando evidente que as redes semidticas nao se restringem ao mundo orginico, mas estéo presentes também na Fisica ¢ Quimica inorginica. ‘Num outro nivel, 0 fato de que toda e qualquer ciéncia, toda e qualquer disciplina, para se estruturar como tal, envolve proces. sos signicos, coloca a Semiética numa posigo de meta que “toma todas as outras disciplinas sob seu dominio, inde- pendentemente do fato delas estucarem processos signicos (hu- lades, ciéncias sociais, Biologia ¢ Medicina etc.) ou nio -a, Quimica € Astronomia)” (Posner et al. 1986). Sendo essa posigio metadisciplinar necessariamente multidisciplinar, ela leva ao didlogo ¢ confronto da Semiética com outros campos in- terdisciplinares, ou seja, a Hermenéutica, a teoria da Gestalt, teo- tia da Informagio, teoria dos Sistemas etc. Além de tudo isso, Umberto Eco fala ainda em Semidtica explicita, onde ha o reco- nhecimento por parte dos investigadores de que eles estio lidan- do com signos, ¢ Semistica implicita, quando se lida com signos, ‘mas isso nao € reconhecido ou admitido (Houser 1990: 212). Essa tendéncia expansiva das investigagées semisticas s6 pode estar enraizada na tendéncia ao crescimento que se mani- festa no préprio mundo dos signos. Nao sio apenas o olho e a _— 46 A Assinatura das Coisas mente semioticamente informados ¢ treinados que nos fazem en- xergar redes semisticas tanto nos reinos mais microsc6picos quanto nos macroscépicos. Esta também havendo uma tendéncia ininterrupta ¢ cada vez mais acelerada de crescimento dos pré- prios signos no universo. Pensemos no refinamento das técnicas copiadoras ¢ na grande quantidade de novos sistemas de signos criados a partir do advento da revolugio industrial. Pensemos nas possibilidades inimaginaveis de se criar ¢ romper cédigos ‘que surgiram com o aparecimento dos computadores. Pensemos ainda no desenvolvimento de linguagens, cédigos ¢ inteligéncias artificiais que as novas méquinas estio tornando possivel. Pense- mos, enfim, que “com o aumento de escala nas estagdes de trans- missio ¢ recepcao, um sonho imemorial da humanidade parece estar préximo da realizacio: estabelecer contato com seres extra- terrestres, se é que eles existam” (Posner et al. 1986). Em sintese: © aspecto que o mundo apresenta sob uma inspegio semistica parece estar caminhando numa diregio que confirma a dout na peirceana do sinequismo. Essa doutrina prope que “assim como 0s signos tendlem a se espalhiar continusamente (CP 6.104),a mente também se espalha continuamente, ¢ todas as mentes se misturam umas 8s ottas" (CP 1.170). Essa nogdo ‘esti baseada na hipétese de que o universo da mente coincide com o universo da matéria, nono sentido de imagem especular 01 paraleismo cérebromente, mas no sentido da matétia exist ‘como una forma mental de tipo especial. (Santaella 1991: 153.) Nao € por coincidéncia, portanto, que a doutrina do sine- quismo funciona como uma espécie de coroamento do pensa- mento peirceano, assim como nao é casual a Semiética estar bem. no coragio do conjunto de sua obra. A Semistica, que esté alicer- cada na Fenomenologia € que se expande no Pragmatismo, fun dando a Metatisica, foi concebida como uma doutrina formal de todos 08 tipos possiveis de semiose.' Esta doutrina é tio geral ¢ abstrata a ponto de poder dar conta de qualquer processo signi co, esteja cle no invisivel mundo fisico microscépico ou no uni 1 Nio we deve confundirsemiose com Semistica, Semiose quer dizer agio do signo, aagio do signa é de ser interpretado ex setae, anima, humanas artificas ete Signos de Todas as Coisas 47 verso cosmolégico, esteja cle nas interagdes celulares ou nos mo- vimentos politico-sociais. $6 uma teoria légica em nivel de gene- ralidade maxima, tal como Peirce a concebeu, poderia dar suporte & doutrina do sinequismo ou postulagio radical do conti uum do universo. Uma vez que essa doutrina do sinequismo, tanto quanto pos- 80 ver, est se apresentando como a teoria unificadora mais ca- paz de nos fornecer meios de compreensio para a tendéncia a0 wento diversificado ¢ continuo dos signos do universo, é necessirio chamar atengio para a urgéncia de uma reavaliagio das potencialidades e escopo da obra peirccana em scus préprios termos, sem restringila aos limites especificos que 0 ponto de vista de uma dada semiose, disciplina ou area de investigagio es- pecializadas impéem sobre ela, Nessa medida, estarei fazendo, este livro, justamente o caminho inverso do que tem sido comu- mente feito até agora. Ao invés de extrair fragmentariamente conceitos, classificagdes ou citagdes das idéias de Peirce, que po- deriam direta ¢ imediatamente servir aos propésitos especificos de um dado estudo ou descricio de um determinado proceso de signos, buscarei sobrevoar o extenso campo da obra peirecana €—com uma certa fidelidade ao desejo que era dele — examinar em que medida sua obra como um todo pode contribuir para Tangar uma nova compreensio sobre campos de investigacio e produgio os mais diversos (no nosso caso, o litersrio), Nao se trata, evidentemente, de postular a superioridade da Semidtica peirceana sobre outras correntes semidticas ou sobre disciplinas especificas como a teoria literaria, Direito ou Musico- logia etc., mesmo porque a enorme potencialidade da teoria de Peirce coincide também com seus limites. Ao mesmo tempo que sua obra permite mapear, discriminar e analisar todo ¢ qualquer tipo de semiose, nas suas linhas mestras, levando-nos a perceber que tipo de assinatura as coisas do mundo tém, seu poder de de- talhamento descritivo das particularidades de cada processo sig- nico especifico € muito pequeno. Tanto é assim que, para o mapeamento fenomenolégico, ontolégico ¢ epistemoldgico de quaisquer campos de semiose, a Semistica peirceana é poderosis- sima. Jé para a descrigio de processos concretos de signos, sua teoria precisa do didlogo € interacio com teorias mais particula- res e especificas, Peirce estava perfeitamente ciente da fria e abs- 48 A Assinatura das Coisas twata cirurgia dos seus conceitos. Num fragmento em que discu- tia com muita clareza a generalidade da definigio Igica dos sig- nos, ele dizia: Se © légico for porventura falar das operagdes da mente, ele deve significar por mente algo bem diferente do objeto de estu- do do psicélogo... A Légica sera definida aqui como Semiética formal. Uma definigio de signo sera dada que nao tem nenhu ‘ma referencia ao pensamento humano, nio mais do que teria a definigao de uma linha como o lugar que uma particula ocupa, parte por parte, durante um lapso de tempo. (NEM 4:20.) ‘Num outro fragmento ainda, ao colocar énfase no estatuto abstrato da teoria, Peirce tornou evidente a enorme distincia que separa a definigio légica e a realizagio concreta de um sig- no: “... embora uma pega musical seja um signo, assim como so signos uma palavra, um sinal ou um comando, a Légica nao tem nenhum preocupacio positiva com quaisquer desses signos. Ela deve, no entanto, se preocupar com eles negativamente, definin- do 08 tipos de signo com os quais eles lidam” (MS 499, apud Fisch 1978: 53). © que pretendo por em relevo nas colocagdes acima so os reais propésitos da Légica considerada como Semiética, que fo- ram tantas vezes explicitados por Peirce, mas que lamentavel- mente — salvo algumas excecdes (Fisch 1978, 1983, Johansen 1985, Colapictro 1989) — nao tém sido absorvidos nem por gran- de parte dos semioticistas, nem pelos fildsofos, por proviveis ra- zes que mencionarei mais adiante, AGENERALIDADE DOS CONCEITOS Num artigo que visava por énfase no alto grau de generalida- de dos conccitos peirceanos dos signos, para responder per- gunta sobre o uso possivel de uma teoria tio geral, M. Fisch (1983: 60) conchufa: Para que serve uma teoria geral dos signos — o que ela pode fa- 2zer por nés (..)? Ela nos dar um mapa tio completo € tio de- talhado a ponto de podermos localizar qualquer campo de pesquisa altamente especializado em relagio a quaisquer ou Signos de Todas as Coisas 49 ‘ros; ensinard rapidamente como passar de um campo a outro, € como distinguir campos ainda nio explorados daqueles jf Jongamente cultivados. Fornecers enciclopédias e dicionsrios e teriais para as introdugdes A Semistica. Aperfeicoara as dos especialistas cujos relatérios @ co- igiveis Aqueles que nio compartitham da fade. Assim, a comunicagio entre especialis- tas, em campos semidticos ndo-adjacentes, sera grandemente aperfeicoada, assim como entre semioticistas ¢ nio-semioticis- ‘as, ou entre semioticistas e pessoas que ainda nio se reconhe- cem como tal. Seremos entio capazes de localizar pesquisas em progresso, visto que perspectivas sobre mods de ver ¢ avaliar seus resultados nos sero fornecidas. Mas por um bom tempo ainda, a teoria geral dos signos iri requerer revises continuas luz de novas descobertas. Em consondncia com as colocagées de Fisch, minha hipétese sobre os reais propésitos e conseqiientes usos a que a obra peir~ ceana se presta distribuem-se em trés niveis crescentes de abran- géncia. Num primeiro nivel, conforme ja mencionei, penso que a doutrina formal dos signos, tal como ésta filosoficamente funda- da, apresenta um padrio abstrato para a andlise compreensiva dos signos que pode funcionar como fundagio geral, isto é, ‘como Semistica geral, capaz. de fornecer elementos para o dislo- go € confronto com quaisquer outras teorias semidticas existen- tes, ou seja, quaisquer outras correntes que levem © nome de Semiética, assim como quaisquer disciplinas que sio patentemen- te semisticas, mas nio sabem disso ou ndo querem saber que sio. Em comparagio com a generalidade da teoria peirceana, quaisquer desses dois casos caracterizam-se necessariamente como semisticas especiais ou especializadas. Num segundo nivel, a arquitetura filos6fica peirceana como um todo, com a Semidtica no seu bojo, constituise num conjun- to unificado de e para o pensamento cientifico (cf. Ketner 1983). Esse conjunto esta plenamente capacitado para funcionar, tal como queria Peirce, como uma fundagao fenomenolégica, onto- légica e epistemoldgica para toda e qualquer ciéncia, area do sa- ber humano ou disciplina particular: Como extensio desse segundo nivel, num terceiro nivel de complexidade, creio que o pensamento peirceano est em perfei- ta sintonia com as tendéncias das aquisic&es ¢ especulagdes mais 50 AAssinatura das Coisas ‘emergentes das ciéncias contemporaneas, fisicas, biolégicas ¢ cognitivas. O sinequismo, que representa © coroamento de seu Pensamento como um todo, constitui-se também num dos fios que Ihe da unidade. Ora, o sinequismo tem sua base na prépria nogio de semiose como acio ininterrupta do signo. “Todo o uni- verso est permeado de signos, se é que ele nao esteja composto exclusivamente de signos” (CP 5.448, n.1). Portanto, a ago conti nua do signo, que une todos os filamentos do universo, desde os niveis mais microscépios aos macroscépios, a0 mesmo tempo em que € inseparavel da indeterminacio ¢ incerteza, é também a agio que da fundamento & teoria peirceana do tempo e da evolu- Gio. A nogio chave da terceiridade, complementar ao conceito de continuidade, é a nogio de generalidade. E na definigio de signo que a generalidade e continuidade encontram sua forma mais simples de expressio (CP 1,839.40). A generalidade tem seu andlogo antitético na nogio de indeterminacio ou incerteza. Se- gundo Peirce, nenhum signo, por si mesmo, pode ser absoluta- mente preciso, visto que a relagio do signo com seu objeto (aquilo que o signo representa) é uma fonte de indefinigio na ex- tensio ou aplicabilidade do signo e a relagio do signo com 0 in- terpretante (0 efeito que o signo produz na mente que 0 \erpreta) é uma fonte de indefinigao na profundidade (poder conotativo) do signo, Um signo ¢ objetivamente geral na medida ‘em que deixa para o intérprete o direito de completar a determi nagio por si mesmo. Um signo é objetivamente vago na medida ‘em que, deixando sua interpretacio mais ou menos indetermina- da, cle reserva para algum outro signo ou experiéncia possivel Ginterpretante) a fungio de completar a dctcrminagio. (CP 4.505, cf. Nadin 1988: 156-57; CP 5.447, ‘cf. Eschbach 1983: sexevi.) A semiose ow acio do signo é a agio de determinar um in- terpretante. Sendo essa aco ininterrupta, visto que a potencial dade infinita do processo de mediagio ou semiose determina que apenas uma fase relativamente completa pode ser atingida num dado momento de uma dada semiose concreta, tornase cla- Fo porque a continuidade, que est no cerne da natureza mesma da semiose, é inseparsvel da indeterminagio, incerteza e impreci ‘A partir disso, pode-se afirmar, sem embaracos, que a Semié- Signos de Todas as Coisas $1. tica geral, nas suas divisdes ¢ nas operagées signicas que ela defi- | > ne, € também, e sob quaisquer condicées, uma Légica da indeter- | ~ minagio ¢ da incerteza. E portanto na Légica considerada como _{ Semiética, que € necessariamente uma Légica da indetermina- io, onde esto os fundamentos do sinequismo e do evolucionis- mo peitceanos. Nao é & toa que o sinequismo é, para ele, a idéia “5 do falibilismo objetivado. Foram essas nogdes basicamente que me autorizaram a lan- es de aqui colocar em discusstio os pressu- 3¢5 do terceiro € mais complexo nivel de minha hiptese. Essa discussio faz parte integrante de uma pesquisa, sob o titulo de “C. S. Peirce e 0 Paradigma Evolucionista Con- temporaneo”, que estou realizando ha algum tempo sobre as afi- nidades entre a teoria da evolugao peirceana ¢ os evolucionismos que tém sido formulados dentro das ciéncias contemporineas." O primeiro nivel da hipétese, ou sea, o da generalidade da Semiética peirceana, quando posta em confronto com outras teo- rias semidticas ow disciplinas existentes, sera brevemente traba- Ihado nos capitulos 6 ¢ 7. Ja o segundo nivel, o da possibilidade de funcionamento da obra peirceana como fundagio ou orienta- iéncia, disciplina ou mesmo semiose es- pecifica, que também seré visto mais detalhadamente nos capitulos 6 € 7, constitui-se, no fundo, na semente a partir da qual este livro germinou. Trata-se de uma interrogacio quanto as Tuzes que essa proposta pode lancar sobre as ciéncias, e, neste ‘aso especifico, sobre os insime: igagdes c produgées litersrias. HA porém uma pergunta prévia cuja resposta precisa ser ensaiada. Por que a utilizagio, que Peir- ce verdadeiramente sonhou para sua obra (¢ que, no caso deste livro, estarei experimentando com a Literatura), nio parece estar sendo nem expressa, nem acolhida até agora, salvo raras excegbes, nem pela comunidade dos semioticistas, de um lado, nem pela dos filésofos de outro? wveis desdobramentos das inves- 1 Numa linha similar & dessa pesquisa, mas com uma amplitude muito mais explén- ida, encontiase a tilogia de Floyd Merrel (1991, inéditoa inéditob), onde o a tor faz inspiradas comparagées do pensamento de Peirce com ae revolugies 52 A Assinatura das Coisas PEIRCE ENTRE OS FILOSOFOS E OS SEMIOTICISTAS Hi dois tipos bem definidos, perfeitamente diferenciados, € até mesmo antagénicos de estudiosos que tém trabalhado com os escritos de Peirce. De um lado, 0s fildsofos, incluindo, em menor medida, 0 filésofos da ciéncia. De outro, os semioticistas. Como tenho convivido, com alguma freqtiéncia, com ambos os grupos, em fungio do meu apreco pela obra peirceana, fui acumulando condigdes para perceber o que exporei a seguir. Salvo algumas excegdes — excegdes que evitarei aqui citar para nao incorrer, pelas minhas limitagdes, na injustica do esque- cimento de alguns — é notéria a negligéncia, ¢ até mesmo o des- prezo com que os filésofos tém até agora tratado a Semidtica peirceana como tal. Que ela ocupa 0 coracio de sua arquitetura filoséfica tem sido de modo geral ignorado, em prol da eleigio de temas tidos como consensualmente filos6ficos. Em sintese, mesmo sem ignorar a existéncia da Semiética no eixo da obra peirceana, pois isso tem se tornado cada vez mais dificil de ser ig- norado, a maioria dos fildsofos tende simplesmente a negligen- ciar ou ignorar a Semidtica como sendo periférica para a Filosofia, O que parece cont ‘ande medida, para o di- vércio dos fildsofos em relagio & Semistica, é que eles sio leva- dos a confundir 0 movimento da Semiética no mundo apenas ‘com as tendéncias das Semidticas regionais ¢ aplicadas. Uma vez que a Semiética aplicada, algumas vezes também chamada de Se- midtica descritiva “é mais pratica e lida com disciplinas ou areas de aplicacio especificas” (Houser 1990: 208), os filésofos tendem a se afastar de qualquer coisa que possa ser confundida com Se- mi6tica, visto que, segundo eles, as preocupagées das areas espe- cificas das Semidticas aplicadas nao sio preocupagées filosoficas Ao discutir esse problema no ensaio “O Escopo da Semiética Peirceana”, 0 filésofo Nathan Houser — aliés um filésofo plena- mente alerta a0 papel central que a Semiética desempenhia no pensamento de Peirce — simulow a resposta por parte dos filé fos para seguinte questio: Como os filésofos tenclem a responder & afirmagio de que se- ‘iética formal é filosofia pura e simples? Suspeito que eles res- ponderio que, se a semidtica meramente cava seu territério a partir da filosofia tradicional, entio mio hé razio para aceiti-la Signos de Todas as Coisas 53 como um campo de estudo identificivel separadamente, Es- queca a semistica, eles poderiam dizer, faca apenas filosofia. Se ‘hd lugar para a semidtica, & nos campos de sua aplicagio. A se- mictica formal nio passa de uma colegio conveniente de teo- tas filos6ficas. Ela no contribui em nada para a filosofi apenas tenta usurpar o territ6rio da filosofia, (P, 212-18.) Outro fator de separacio entre os filésofos peirceanos ¢ os semioticistas foi apontado com justeza por H. Bucrinska-Gare- wicz (1978: 3) De acordo com Peirce, a semitica 6 uma filosofia dos signos, 0 que significa que ela lida com a esséncia genuina do signo, com seu modo de ser, e com a estrutura bisiea do universo signico. A semidtica descreve o signo na categoria de “algo”. Além di so, uma teoria dos signos é ela mesma uma disciplina filos6fica que é capaz de explicar e interpretar todo 0 dot io humana. Assim, tomada de modo geral, a semidtica é para Peirce, uma cin validade da cognicio. Além de ser uma to, a semiética também fornece as categorias para a andlise da cogniglo ja realizada. Com isso, ela também é uma metodolo- gia, Este Sentido fundamental ¢ amplo da teoria dos signos é uito tipico de Peirce, formando um traco constitutivo de seus cescritos. Toda utilizacio moderna da semidtica peirceana, con- seqiientemente, deve garantir e estar alerta a todo 0 contetido filoséfico da sua teoria; caso contrétio, essa utilizagao nao pas- sara de uma interpretagio muito superficial e equivocada. Infe- lizmente, € moda recente aludir & semiética de Peirce em geral, ‘ow a muitas de suas categorias semiéticas, sem uma apreensio mais completa de seu sentido profundo e multidimensional. Sem deixar de concordar com essas colocagdes, cumpre aler- tar para dois sentidos da semidtica peirceana que, a meu ver, nio foram abordados pela autora que, na sua defesa da Filosofia, es quecetse de lembrar que a Semidtica de Peirce é uma disciplina filos6fica cientificamente concebida e nio-antropocéntrica. Pri meiro sentido: embora a semidtica seja, de fato, uma Filosofia dos signos, o estatuto da Filosofia, em Peirce, ganha um sentido totalmente novo em relacdo ao passado filosdfico. Longe de ter desprezado esse passado, pois Peirce com ele dialogou sistemati- camente, sua pretensio foi a de fundar uma Filosofia em bases 54 A Assinatura das Coisas efetivamente cientificas. Antes de ser um filésofo, ele era, na ver- dade, um cientista e um matemitico, e suas preocupagées com a Logica nasceram no contexto da Légica das ciéncias. Segundo sentido: embora sua Semiética seja, de fato, uma teoria do conhecimento “capaz de explicar e interpretar todo 0 dominio da cognicio humana’, ela nao esté confinada nos reinos das semioses humanas. Ao contrério, é tao geral a ponto de nos fornecer elementos para compreender e descrever semioses de qualquer ordem, sejam elas fisicas, orginicas, humanas ou cos- molégicas. De que a semiose nio é privilégio do homem, Peirce ‘stava claramente convicto, conforme ficou expresso na sua qua- se peremptéria afirmacio a seguir: © pensamento nio esti necessariamente conectado a um cére- bro. Ele aparece no trabalho das abelhas, dos cristais ¢ por todo o mundo puramente fisico; ¢ nao se pode negar que ele realmente esta ali, assim como nao se pode negar que as cores, formas ete. dos objetos ali realmente estio. Adira consistente- mente a essa negativa injustificivel, e o leitor ser levado a al- guma forma de nominalismo idealista préximo ao de Fichte. Nio apenas o pensamento esti no mundo orginico como tam- ‘bém ali se desenvolve. (CP 4.551.) Passemos, assim, para o lado dos semioticistas que, alis, ‘com raras excegdes, se colocam em posi¢io exatamente inversa ¢ antitética & dos filésofos. Se os filésofos negligenciam a Semiéti- a por ser periférica & Filosofia, os semioticistas igualmente negli- genciam a Filosofia como sendo geral, abstrata e desligada das Preocupacées priticas qu 2 Semidtica. De fata, 2 imensa maioria dos semioticistas é imigrante de das, na maior parte das vezes, das disciplinas nadas com signos, Esses semioticistas vieram para a Semi ‘em busca de fundamentagies tedricas e metodolégicas especi ‘camente signicas para iluminar com mais rigor o carter semi co de suas disciplinas. Assim sendo, voluntiria ou mesmo involuntariamente, a tendéncia deles é colocar énfase nos aspec- tos da Semidtica peirceana que podem servir as suas disciplinas particulares, As conseqiiéncias desse comportamento levam, de ‘um lado, ao desprezo pelo enraizamento da Semiética em funda- mentos matemiticos, cientificos e filos6ficos. De outro lado, le- Signos de Todas as Coisas 55 vam ao abandono do carter incomparavelmente geral e abstrato da obra peirceana, em prol de um estreitamento dessa generali- dade para atender aos ditames priticos ¢ exigéncias especificas de semioses particulares. Nao pretendo desmerecér toda e qualquer utilizagio direcio- nada para o exame de semioses especificas que tem sido, pode ¢ deve ser feita da Semidtica de Peirce. O problema surge porque © uso constante e sistemitico de recursos dirigistas tem levado a um reducionismo abusivo de sua obra que acaba confinada a um esqueleto classificatério de signos estereotipado ¢ ressecado. Tal esqueleto redunda na sistematica ignorincia de que as classifica- ‘ges de signos “fornecem um padrio para uma anilise signica compreensiva ao invés de funcionar como uma classificacio estri- to senso. Esse padrao inclui todos os aspectos epistemoldgicos € ontolégicos do universo dos signos, o problema da referéncia, da realidade ¢ ficcio, a questao da objetividade, a andlise légica do significado, ¢ © problema da verdade” (H. Buczinska-Carewicz 1983: 27). Conclusio, nem o grosso dos filésofos, de um lado, nem 0 grosso dos semioticistas, de outro, tém tido condigées ou estio dispostos, neste mundo da velocidade e da pressa, a recuperar 0 aleance da totalidade da obra peirceana em toda a sua magnitu- de, Se 0 seu edificio filos6fico é cientifica e matematicamente fundamentado, ¢ se, no coragio dessa Filosofia, esti a Légica considerada como Semidtica, a empresa de recuperar 0 conjunto de seu pensamento nio pode ser tarefa exclusiva de cientistas, ou de matemsticos, ou de fildsofos estritamente, nem pode ser ex- clusivamente de l6gicos estritos ou semioticistas estritos. Conse- qientemente, € um empreendimento que envolve todos esses campos conjuntamente, Uma vez que a especializacio é ainda a marca registrada do modo de produgio do conhecimento, no parece haver no horizonte, por enquanto, nenhuma perspectiva de que uma visio unificada do pensamento peirceano esteja pres- tes a emergir. Conforme ja chamei atengio em um outro traba- Iho (Santaelia 1991a: 129): Estou crescentemente convieta do fato de que hi, pelo menos, trés Peirces. Primeiro, o Peirce de seus esctitos, aqueles ja Dlicados ¢ os que ainda nio receberam publicagio, Evidente- mente, esse Peirce niio existiria sem os pesquisadores que, em LK 56 A Assinatura das Coisas cada leitura, em cada interpretagio, o trazem de volta & vida do, pensamento. Mas hi também um segundo Peirce, aquele que {tem softido injustamente o estigma de confusio ¢ incoeréncia. Isto o resultado da natureza fragmentiria da parcela de seus cectitos que recebeu publicagio até agora. O terceiro Peirce & mais recente, Ele nasceu ¢ esti crescendo nas publicagdes de cestudiosos que tiveram acesso a todos os manuscritos. Trans- ‘cendendo 08 limites impostos 10s leitores pelos Colleced Papers, ‘esta segunda e terceira geragdes de estudiosos estio trazendo uma visio mais equilibrada da sua obra como um todo. Ao ‘mesmo tempo, este terceito Peirce jé anuncia o nascimento de ‘um possivel quarto que devers surgir com a publicagio da edi lo cronolégica dos seus escritos [juntamente com a informati- zagio de todos os manuseritos, ambos os projetos atualmente em curso], no Peirce Edition Project em Indianpolis.. Uma vez que essa edi¢io cronolégica sera finalizada apenas no século XXI, s6 o futuro poderé dizer que tipo de efeito ela po- der produzir. Enquanto isso, nio obstante minhas limitagoes, das quais estou até certo ponto consciente, pretendo que este Ir vro funcione como uma contribuigio ainda timida, mas nao des- tituida de coragem, para o resgate da obra peirceana o mais proximamente quanto possivel do modo de utilizagio que foi so- nhado por seu criador grande desideratum & delinear uma teoria tio compreensiva que, por um longo tempo, o trabalho inteiro da razio humana, na filosofia de todas as escolas e espécies, na matemtica, na psicologia, nas ciéncias fisieas, na hist6ria, na sociologia, e em qualquer outro departamento que possa haver, deve aparecer como o preenchimento de seus detalles. © primeiro passo para isso € encontrar conceitos simples, aplicaveis a qualquer objeto, (CP 1. vi.) A escolha da Literatura como rea de aplicagio dessa idéia e como tubo de ensaio nao foi casual. Os estudiosos da Literatura verdadeiramente vocacionados primam pela ousadia ¢ pela capa- cidade de busca € reconhecimento dos meandros da vida ¢ do signo que escapam dos casulos ideolégicos, abrindo fendas rumo a0 desconhecido. Também nao casual que, no mundo inteiro, a imensa maioria de semioticistas nao-fildsofos, que tem se dedica- do aos estudos de Peirce, vem da area de Literatura, provavel- Signos de Todas as Coisas 57 mente porque nio Ihes falta a forga da curiosidade para avancar diante de novos desafios. (© que seré aqui proposto para a Literatura, poderd ser tam- bém transposto para quaisquer outras areas. Basta que o execu tante transite com intimidade pela area escolhida e que Peirce rio The seja estranho. Quanto a mim, a escolha ou necessidade, manifesta neste livro, representa o cruzamento inevitivel de dois dos meus mais antigos, mas ainda persistentes amores, ou secre- tas formas de quase felicidade: A Literatura e Peirce. Capitulo 4 Tempo da Colheita © desenvolvimento de minhas idéias tem sido o resultado de lum labor de trinta anos. Nio sabia se um dia chegaria a publi- clas. Seu amadurecimento parecia tio vagaroso. Mas o tempo dda colhcita chegou, afinal, e, para mim, esta colheita parece turbulenta, embora nao seja eu quem possa julgila. Nem tam- pouico vocé, leitor individual, mas sim a experiéneia ¢ a hist6- tia, (GP 1.12.) Peirce fez. essa declaragio cm 1897, aos 58 anos de idade. Por que s6 entao ele sentiu que suas idéias tinham amadurecido © suficiente para serem colhidas e distribuidas? Que conjunto de fatores pode ter contribufdo para the infundir confianca quanto ao resultado de seu longo labor? Segundo as hipéteses que me guiam, de 1885 em diante, Peirce foi chegando gradativamente 20 ajustamento de alguns dos aspectos mais cruciais de suas idéias, Esses ajustamentos levaram-no, finalmente, a enxergar certa unidade na diversidade dos seus escritos ¢ dos multifaceta- dos interesses que 0 haviam absorvido por trés décadas, Neste capitulo, pretendo explicitar quais so os aspectos cru- ciais, acima mencionados, evidenciando que as solugdes de coc- réneia, encontradas para cada um deles, convergiram no ponto mente satisfatdrio a que Peirce fez chegar seu sistema dlassificatério das ciéncias, dentro do qual se insere sua arquite- tura filoséfica concebida como ciéncia. A partir disso, passou a sugerir, com clareza, 1ndo 86 as relagdes internas de sua filosofia cientifica, mas também as relagdes desta com as ciéncias especiais ¢ destas entre si. Tanto para a visualizacio dos intercambios pos- siveis entre as diferentes ciéncias, quanto para a previsio dos ni- veis de manifestagio de cada uma delas (no nosso caso, da ciéncia literaia), assim como para a compreensio dos fundamen- to que a Filosofia, em todos os seus ramos (Fenomenologia, Es . Etica, Semidtica ¢ Metafisica), pode fornecer as ciéncias Hilti 60 A Assinatura das Coisas cespeciais (entre elas também a Literatura), tornase fundamental uma andlise detalhada do diagrama peirceano das ciéncias, tal como buscarei realizar no proximo capitulo. Antes disso, no en- tanto, nao deve ser negligenciado o exame, mesmo que esquems- tico, das dividas espinhosas que Peirce teve de ir resolvendo até chegar a colheita de alguns dos frutos amadurecidos ao longo dos seus mencionados 30 anos de labor cientifico. Quanto a enigmética “turbuléncia” da colheita, esta fica pro- vavelmente por conta, de um lado, da aparentemente irreconci- lidvel heterogeneidade de sua extensa obra, para a qual Peirce, ‘com encantamento, parecia ter finalmente vislumbrado a unida- de ou holarquia, conforme deixou expresso em posteriores pas- sagens autobiograficas de 1902:" Subtraindose as eventunis distragdcs, 40 anos de trabalho & aproximadamente 0 que meus resultados me custaram, Estes resultados munca foram publicados. F verdade que publiquci textos fragmentarios, na sua maioria sobre t6picos de impor- tincia menor; mas o todo forma wm sistema unititio ent tal grau que nenhuma parte, que parece ter importéncin, pode ser Apresentada scparacamente, sem que seu valor seja perdido tanto no que diz respeito a0 seu significado quanto as suas evi dléncias. (75: A 21) Meros fiagmentos do mea trabalho foram publicados,¢ partes relativamente sem importincia, que, ademais, nao podem ser propriamente compreenclidas, se tomadasisladamente, (L. 75: 5) De outro lado, a “turbuléncia” deve ficar também por conta, tanto quanto posso ver, da grande originalidade ¢ conseqiiente opacidade de suas idéias, fato de que ele, na sua solidio, nio dei- xava de estar dolorosa e lucidamente consciente. Seu testemu- ho sobre isso é eloqiiente: T Nessa data, Pesce esceven longo manuscrito, contendo as justiicativas e des: 10 do contetido de sua obra, parao pedido de uma bolsa de aulio& pesquisa Airgida 20 Institute Comegie. A'bolsa foi recusada, mas 6 manuscrito ficou e fun cdona hoje como um documento precioso das misturas inepariveis entre su vida cobra A seqjiéncia de suas descobertas & apresentada com clara, a0 mesmo tempo que as partes da obra gradualmente se integram numa vasta topografia, Desnecessvio por énfase no valor inesinvel desse manusctito © no quanto de auxiio pude extrair dele para aconfeccio deste capitulo. Tempo da Colheita 61 108 meus estudos, quase sem nenhuma interrupcio. orta quais fossem as distrages que pudessem me afas- inha tarefa solitiria, mesmo assim uma bea quantida- de de trabalho sobre minha légica era uma necessidade didria Nio se deve dar mais mérito a essa minha perseveranca, no en- tanto, do que & minha perseveranga em respirar. Isso resultou na construgio de um sistema tio claborado que a empresa de explicéo € agora de extrema dificuldade. (L.75: C 62.) ALOGICA COMO DESTINO E DEVOCAO_ J&é mais do que notério, entre os estudiosos de Charles San- ders Peirce, que seu primeiro grande interesse, antes mesmo de completar dez anos de idade, estava dirigido para a quimica. Foi ‘em quimica que recebeu seu diploma summa cum laudae, em Har- vard, em 1863. Desde 1861, no entanto, Charles ja estava empre- gado na Coast Survey como cientista auxiliar de seu pai, matemdtico ¢ astrénomo Benjamin Peirce. Em fevereiro de 1867, Benjamin tornowse o terceiro Superintendente da Coast Survey. Com excecio de algumas curtas visitas a Washington, exerceu esse cargo a partir de Harvard, de cuja universidade era profes- sor. Logo apés a promogio de seu pai, Charles foi promovido de auxiliar a assistente, em julho de 1867, ¢ nessa posicio ele perma- neceu por mais 24 anos ¢ meio, até dezembro de 1891, quando foi forcado a se aposentar. Como fruto de vicissitudes biogrif cas, que aliés nao Ihe faltaram, e que nao se trata aqui de explo- rar, aquilo que dever lo um emprego provisério, acabou se constituindy no Guico emprego permanente que Charles Peirce conseguiu conquistar em toda a sua vida (Cf. Fisch 1982: 270-72), Seu trabalho para a Coast Survey estava prioritariamente vol- tado para a Astronomia e a Geodésia, mas envolvia também me- trologia, espectroscopia, dtica, teoria das cores, projecio de mapas, o problema das quatro cores ea histéria da Astronomia e da ciéncia em geral (Fisch 1978: 33). No meio nacional, ¢ princi- palmente internacional, da Astronomia e Geodésica de seu tem- Po, Peirce alcangou o reconhecimento € respeito de scus pares. ‘Nao satisfeito, entretanto, com o leque de campos inter-relacio- nados aos quais se dedicava, nao apenas diversificou suas pesqui- sas para além daquilo que seu trabalho na Coast podia requerer, ©2 A Assinatura das Coisas mas também fez contribuigdes para outras areas cientificas nio diretamente ligadas ao seu emprego. Bastante importantes, por exemplo, foram seus trabalhos em Matemitica, conforme 0s es- forcos de C. Eiscle (1976, 1979) ja trataram de enfatizar. Tam- bém merecem mengio seus trabaihos em Quimica e Historia (cf. Fisch 1981). Embora nio tenha feito contribuigées originais nas ‘reas de Biologia ¢ Geologia, foi um estudioso sério de ambas. Além disso, como ja foi mencionado com alguns detalhes, no ca- pitulo 1 deste livro, era grande a diversidade de campos dentro das humanidades a que também se devotou, Nio obstante 0 ‘enormemente diferenciado elenco de ciéncias nas quais se empe- nhou, a nenhuma delas Peirce se entregou com o ardor de um amor absoluto. Todas Ihe serviam como meio para atingit um objetivo que as transcendia: a Légica, concebida como Légica das ciéncias. Sao ilustrativas as variantes retrospectivas de Peirce sobre isso: Nasci em 1839 ¢ eduquetme num cireulo cientifico, Fui inicia- do nos métodos das ciéncias fisicas, antes dos dez anos de ida- de. Os métodos sempre foram ¢ continwam sendo 0 que mais, ‘me interessa, Por volta de 1856, ja tudando légica, no seu sentido amplo, comecando com a Crit: ca da Razdo Pura. Continuci meus estudos diligentemente, passando para Hegel, Herbart, Aristételes, os escolisticos, Ber- keley, Hume, Leibniz, etc. Foi em 1861, que, paralelamente as ‘minhas teituras, iniciet uma pesquisa séria e original, comegan- do a publicar em 1866. De 1856 até hoje, minha paixio pelo es- tudo da légica tem sido tio intensa que nenhuma outra motivagio teve oportunidade de prevalecer, embora a porcio de encorajamento que ja recebi seja tio eseassa'que tenho pas- sado a maior parte do tempo em depressio desesperada. Vie rias pessoas, aqui ¢ ali, auxiliaram-me na consecugao dos meus estudos. Nunca poderei esquecé-las. De qualquer modo, houve resultados sélidos, como demonstrarei na ocasiio adequada. No entanto, publiquei pouco,' pois mio recebi nenhuma espé- estava sistematicamente es- 1 Em vida, Peirce publicow 12 mil pginas, nas maie diversas revitas¢ enciclopédias dentificase flosficas. Numa base de 500 piginas por volume, seus textos, que for ‘am publicados em vida, chegarinm a um total de 24 volumes, © que nie € de ‘modo algum pouco. A ele parecia pouco, porque possulao irme hibto de escre- ver uma média de duas mil palavras por dia (L.75:E 194), e assim o fer por perto de 50 anos. Ao morrer, deixow nada mais nada menos do que 80 wil paginas ma Tempo da Colheita 63 cic de estimulo para isso. Durante a maior parte de minha vida, as cadeiras de l6gica, nas Universidades, foram ocupadas por homens que alimentaram suas mentes em seminérios teol6gi- 0s, destituidos de qualquer ideal pelo progresso das ciéncias, insuflados com formalismos, sem nada examinar com real exa. lidio, Este fato, naturalmente, trouxe consigo toda uma situa: ‘io suficiente para me desencorajar a levar um editor a Publicar o que ninguém iria ler. O pouco, que pude publica, teve de ser breve e fragmentirio, (75: € 60.) Comecei o estudo da légica em 1856, ¢ esta tem sido minha principal ocupagio desde entio. Por dias vezes, fz esforcos de- ferminados para arrancar esse assunto dos meus pensamentos, ‘mas a inclinagio de minha mente para isso é tamanha que ‘meus esforgos nao tiveram sucesso por mais de alguns meses, fem cada uma das vezes.(L.75: A 21.) Fui embebido, desde minha infincia, no espirito das ciéncias postivas, e, especialmente, das tornei intensamente curioso em relagio & teoria dos métodos da cigncia, de modo que, pouco depois da graduagao, em 1859, decidi devotar minha vida a exse estudo embora, de fato, tenha sido menos uma resolugio do que uma paixio incontro- Havel que, por muitos anos, fui incapar de por em xeque. Ela nnunea esmaeceu. (L 75: FV 346.) ALOGICA DAS CIENCIAS Ao se aposentar da Coast Survey, no final de 1891, aos 52 anos, Peirce tentou se estabelecer como “profissional liberal” (se- gundo a terminologia atual), na area de engenharia quimica. Oito anos mais tarde, desistiu definitivamente de ganhar a vida como cientista, tornando-se 0 primeiro norteamericano a indicar sua profissio como sendo a de um légico (Fisch 1977: 29). Du- Fante 0s 30 anos em que trabalhou na Coast Suruey, apesar da no- tivel diversificagao de seus estudos e contribuigdes nas ciéncias da mais variadas espécies, todas as ocasides em que teve de indi- car sua profissio, ou mesmo sua ocupagio, Peirce sempre se cha- mou de quimico. Que s6 aos 60 anos tenha decidido assumir Publicamente a profissio de légico nao significa que sta vida in- ‘nuscritas que, se fossem publicadas integral ode 100 volumes te, chegariam a um total aproxima- 04 AAssinatura das Coisas tclectual tenha pasado ai por um desvio de rota. Ao contrério, a0 que tudo indica, suas atividades e produces parecem ter se desenvolvido, até 0s 60 anos, em trés camadas superpostas e per- feitamente imantadas num ponto comum ¢ tkimo para a qual todos os seus diferenciados esforcos convergiam. Esse ponto co- mum era a Légica. Mas foi sé por volta dos 60 anos (“tempo da colheita”), que vislumbrou, finalmente, a coeréncia com que as partes de sua obra se ajustavam ao todo. Sé entio as trés cama- das de sua vida intelectual e profissional se fundiram numa sin- gular unidade, de que resultou o perfodo mais fértil e maduro de sua obra, Paradoxalmente, no entanto, uma vez que nao havia soado a hora da Légica, e muito menos da Légica como era por le concebida, desses anos em diante, até sua morte, Peirce foi caindo numa solidio e miserabilidade irremediavelmente cres- centes, Conforme nos relata M. Fisch (1982a: xvii), quando Peirce se bacharelou em Harvard, em 1859, cada colega de sua classe ¢s- creveu uma mensagem no livro do ano. Peirce apresentou uma bastante bem-humorada biografia-em-miniatura para cada ano, de 39 a 59. A tiltima dizia: “1859. Meditava sobre 0 que eu itia fa- zer na vida.” Num livro pessoal, depois disso, a autobiografia foi estendida até 1861, onde se Ié: “1861. Nao mais meditava sobre o que iria fazer na vida, tendo definido meu objeto.” Nao ha ne- nhuma indicagao explicita nem ai, nem em qualquer outro escri- to posterior, sobre a natureza desse objeto definido. O texto de Fisch foi todo ele desenvolvido para argumentar convincente- mente que se trata da Légica trabalhada como Légica das cién- cias concebida ela mesma como ciéncia, Em consondncia com Fisch, proponho que esse objeto definido, a Logica, é a camada mais profunda que suportou as outras duas camadas da vida int lectual e produtiva de Peirce. A camada superficial é aquela mais evidente das atividades que ele realizou para ganhar a vida. A ca- mada intermedisria é a das miltiplas ciéncias que foram por ele praticadas como meio para compreender 0s métodos I6gicos de que as ciéncias fazem uso. Que nao houve nenhuma dissonar mas ao contririo, unio de forcas entre essas camadas é 0 que passarei a discut Em uma carta de 4 de dezembro de 1908, L. Welby agrade- cia a Peirce por ele ter estado sempre bondosamente interessado Tempo da Colheita 65 no trabalho ao qual ela devotava sua vida, Em 23 de dezembro, le respondeu: Mas eu sorri, quando voc® falou sobre eu estar sempre “bondo- samente interessado” no seu trabalho, como se houvesse uma, divergéncia ~ eu deveria dizer, um desvio — de minha linha co- mum de atengio. Pois saiba que, no dia em que, com a idade de 12 ou 13 anos, eu peguei, no quarto de meu itmio mais ve- Iho, uma cépia da Légica, de Whateley, ¢ perguntei a ele 0 que cera'a Légica, ao receber uma resposta simples, atirei-me no as- soalho e me enterrei no livro, desde entio nunca mais esteve em meus poderes estudar qui — matematica, ética, metafisica, gravitacio, termodi ica, quimica, anatomia comparativa, astronomia, psicologia, fonética, economia, a his- {Gria da ciéncia, jogo de cartas, homens e mulheres, vinho, me- trologia, exceto como um estudo de semeiotica. (SS 1977: 85.) Considerando-se que a Semiética ou Semeiotica, como Peir- ce preferia chaméla, veio a ser 0 outro nome ou sinénimo que ele deu para Légica, pode-se afirmar que sua obsessio pela Logi ca foi despertada bem antes de 1861, quando da escolha e defini io de seu objeto. Sao abundantes as comprovacdes, tanto em termos de obra realizada, quanto em termos das declaragdes tas por Peirce, no decorrer de sua vida, de que esse objeto defini do também the foi definitivo. Essa, a camada mais profunda de sua vida intelectual. Quanto & mais superficial, M. Fisch (1982a: na época de Peirce, a quimica oferecia a melhor entrada para as ciéncins expetimentais em geral, e cra, portanto, o melhor ‘campo no qual se pés-graduar, mesmo se se quisesse mover para outras ciéneias e, por meio das ciéncias, para a logica da ‘iéncia e para a légica como um todo. Além disso, a engenha- ria quimica era, entio, o campo mais prometedor com 0 qual se podia ganar a vida na ciéncia, Ainda segundo Fisch, Peirce nunca teve qualquer intengio de se confinar na Quimica. Prova disso esté nos inumeraveis ‘campos aos quais se dedicou. Assim sendo, sua permanéncia, na Goast Survey, nido deve ter se dado apenas sob forca das circuns- tncias, mas também porque the permitia ocupar uma posicao es- 66 A Assinatura das Coisas tratégica para a pritica real das ciéncias. Af jé se evidencia que a camada mais superficial de sua vida intelectual ja estava em indi sociavel integracao com a segunda camada, a da pritica das di versas ciéncias, intermediria entre sua paixio profunda e sua luta pela sobrevivéncia. Mas por que 0 exercicio de miiltiplas ciéncias, inclusive a Matematica, era um meio de se por a servico da Légica? Fisch (1977: 32) responde: A solugio & qual Peirce chegou foi a de se devotar A ciéneia como um modo de se devotar A Légica. Afinal de contas, seu interesse em Légica era primariamente um interesse na Logica da cigncia, Entender a Logica da ciéncia era, em primeiro Ii gar, entender os métodos pelos quais, nas diversas ciéneias, re- sultados, que contribuem para © avango de cada uma, sio obtidos, mesmo quando esses resultados so depois superados, Uma condigio necesséria, se nio suficiente, para entender os métodos é testivlos ¢ ustios. Os métodos diferem significativa- mente de uma ciéncia a outra e de um tipo a outro, dentro de uma mesma cigncia, O que € comum a todas as ciéncias s6 pode ser concebido, se & que possa, por estudiosos que conhe- ‘sam as diferencas, conhecendo-as pela pritica dos vrios méto- dos correntes € pela descoberta ¢ reatualizagio dos métodos do passado. © caminho peirceano para a Légica, como se pode ver, teve dois lados: 0 da pratica das diversas ci ciéncia. Além disso, para a compreensio dos métodos, as cién- cias nao bastavam, tornandose necessirio um aprofundamento nos raciocinios mateméticos. Queria ultrapassar as inevitéveis fal tas em que incorrem, de um lado, os matemiticos que nie sko logicos, ou os légicos que nao sio matemiticos; de um segundo lado, 05 cientistas que nao sio légicos, ou os légicos que nao sio cientistas ¢, de um terceiro lado, os cientistas que 6 sio espec listas em uma tinica ciéncia. Em cada um desses casos, o conheci mento dos métodos ¢ raciocinios € sempre p feagmentario (cf. Fisch: 1982a: xxii Infelizmente, contudo, até hoje, Peirce parece continuar s6 na enormidade do seu empreendimento. Em nosso tempo, o ter- ‘mo Légica da ciéncia entrou em desuso, substituido por Histéria ¢ Filosofia da cigncia, enquanto o termo Légica passou a signifi- car Légica matemdtica € dedutiva em forma algébrica. Peirce Tempo da Colheita 67 contribuiu para a dlgebra da Légica, em um nivel de importincia que ombreia, nesse aspecto, a importincia de Frege. Mas ele no punha muita énfase em seu trabalho na algebra da Légica. Den- tro da Légica dedutiva, considerava seu sistema de grafos exi tenciais (ou sintaxe diagramatica) como uma grande aquisigio. Para ele, os grafos eram superiores a dlgebra da Légica como um instrumento de andlise conceitual.' Contudo, nem a Légica maté- mética em si, nem mesmo seus grafos existenciais the eram m to exclusivos ou prioritérios, mas ainda e também apenas subsidios para a compreensio dos métodos e raciocinios utiliza- dos por uma inteligéncia cientifica, inteligencia esta entendida em sentido geral e coletivo ¢ nao individual e pessoal. ALOGICA COMO CIENCIA Peirce esteve sempre perfeitamente cénscio de que sua devo- ao & Légica significava sacrificar qualquer esperanga de ter su- cesso na vida, A deliberada diversificagio de seu trabalho nas ciéncias o impedia de atingir notoriedade em qualquer uma de- las, a0 mesmo tempo em que nao podia esperar reconhecimento por sua dedicagio & Légica, uma vez que, aos ouvidos de seus contemporiineos, suas idéias no encontravam eco, Mesmo as- sim, sua perseveranga, semelhante & de “uma vespa dentro de uma garrafa” (Fisch 1977: 88), e sua defesa da Légica como cién- cia nunca encontraram repouso. Eleito para a American Academy of Aris and Sciences, em 1867, todos os trabalhos subseqiientes, apresentados por ele A Academia, sempre foram em Logica. Quando de sua primeira indicagio para a National Academy of Sciences, em 1872, ao pedido de apresentagio de uma lista de seus trabalhos cientificos, enviou apenas os titulos de quatro tra- balhos em Légica. Na qualidade de légico apenas, queria ser jul gado como homem da ciéncia. Nao foi eleito. Indicado em 1873, ‘74, 76 77, jamais cedeu, Quando finalmente se elegeu, em 77, no agradecimento pela honra recebida, expressou grande satisfa- 1 Com excegio de trés ou quatro estudiotos norteamericanos, entre os quai se des- ‘aca Don D. Roberts (1973), o#ligicoscontinuam ignorando oF grafosexistenciie de Peirce, —— 68 A Assinatura das Coisas ao pelo reconhecimento da Légica como ciéncia que a Acade- mia tornava, entio, implicito (Fisch 1977: 38 e 1982a: xxi). A teoria dos raciocinios, ou como exatamente um dado tipo de raciocinio pode levar a um resultado satisfatoriamente verda- deiro, devia ser tratada ¢ considerada, segundo Peirce, como uma ciéncia na integridade de seus direitos. Sao instrutivas suas declaragoes, em 1902, sobre is Devido ao meu tratamento da Légica como uma ciéncia, & ma- neira das ciéncias fisicas, nas quais fui treinado, fazendo estu- dos especiais, minuciosos, exatos ¢ checados pela experiéncia, e devido ao fato de que a Légica havia sido raramente assim es- tudada, as descobertas me chegaram num tal fluxo a ponto de me embaracar. Esta foi uma das razdes porque, até agora, nao) publiquei seno uns poucos fragments de partes marginais do meu trabalho, ou leves 3s de partes mais importantes Pois a Logica difere das ciéncias naturais, e em alguma medida, ‘mesmo da Matematica, pelo fato de ser essencialmente sistemé- tica. (L.75: FV 347.) De 1879 a 1884, Peirce obteve, em tempo parcial, o emprego de conferencista de Logica na The Johns Hopkins University. Na conferéncia inaugural do seu curso, no outono de 1882, transmi- tiu sua concepcio da Légica como arte de divisar métodos de pesquisa, como método dos métodos (CP 7.60), dizendo: “Esta é a era dos métodos, ¢ a Universidade, que se pretende exponen- ial nas condigées vivas da mente humana, deve ser a universida- de dos métodos.” Embora tenha grandemente contribuido, por ineo anos, para tornar a Johns Hopkins uma universidade expo- nencial, em 1884, foi demitido por razdes que até hoje nio fo- ram totalmente esclarecidas. Nem por isso viu sua paixio pela Légica diminuir de lade, Continuow, na solidio, a dedi- ‘arse a ela com tanta ou mais persisténcia do que antes. Peirce nao foi legivel a seus contemporaneos ¢ infelizmente, a0 que tudo indica, no esté sendo legivel, a no ser parcial e fragmentariamente, até hoje. Nio existe ainda uma apreciacio compreensiva de sua Légica, nem parece que tal aprec a existir proximamente. Os légicos, que se aproximam de sua obra, tém uma visio de Légica mais estrita e menos liberal do que a sua, ¢ ignoram ou desprezam a possivel relevancia daquilo que transcende suas concepe Tempo da Colheita 69 © tempo poderd dizer se, algum dia, a Légica peirceana sera com- preendida na sua integridade, ou se recuara para o limbo da his- Gria, De qualquer modo, a partir do “tempo da colheita”, Peirce cele mesmo, por vezes até com certa imodéstia, passou a conside- rar seu legado para a vida e evolucio do pensamento humano como dotado de bastante relevancia. Vejamos, portanto, que fa- tores de coeréncia ele possivelmente encontrou nos caminhos de sua obra, capazes de levélo a incorrer, inclusive, na falta de mo- déstia, O PONTO DE INFLEXAO. Todas as vezes em que foi convidado para cursos, aulas ¢ conferéncias, em universidades ¢ institutos, era sempre sobre Lé- gica que discorria. Desde o principio, sua ambigio maior era a de construir uma Légica compreensiva dos métodos da ciéncia. Tanto € que o primeiro curso que deu, na Harvard University, em 1865, foi sobre “A Logica da Ciéncia” e sua primeira série de conferéncias, no Lowell Institute, em 1866, teve como titulo “A Logica da Giéncia ou Indugio Hipétese”. De 1865 a 67, traba- Ihou na pesquisa “Sobre uma Nova Lista de Categorias", publica- da em 67. Diversas vezes mais tarde, Peirce relembrou esses dois ‘anos como os de maior esforco mental de toda a sua vida, Os re- sultados dese texto, posteriormente reconhecidos como uma ¢s- pécie de coluna dorsal de toda a sua doutrina légica, levaram-no a adogio de trés categorias — Qualidade, Relacio, Repre- sentacin, Entio, essas eategorias foram usadas para distinguir: 1) és espécies de representagoes (ou signos) — semelhanga (poste- mente chamada de icone), indices e simbolos; 2) uma triade de ciéncias concebiveis — Gramitica Formal, Légica e Retérica Formal; 3) uma divisio geral dos simbolos, comum a todas essas. tués ciéncias — termos, proposigoes € argumentos; 4) trés tipos de inguiveis por suas trés relagdes entre as premis- argumentos, dit sas € conclusiio — deducio (simbolo), indu (semelhanga) (Fisch 1978: 34-35). De saida, encontrase ai, nessas triades inter-relacionadas, formuladas ja desde suas primeiras pi blicagdes, 0 corpo fundamental do sistema légico que Peirce iria defender pela vida afora. 0 (indice) e hipétese 70 A Assinatura das Coisas Em 1868, o editor do Journal of Speculative Philosophy 0 desa- fiou a mostrar como, de acordo com seus principios, a validade das leis da Légica deixavam de ser inexplicaveis. Atendendo ao desafio, em_68-69, foi publicada uma série de trés artigos — “Questdes Concernentes a Certas Faculdades Reclamadas pelo Homem", “Algumas Conseqiiéncias das Quatro Incapacidades”, “Fundamentos para a Validade das Leis da Légica: Mais Conse- giiéncias das Quatro Incapacidades” (W 2: 193-272), nos quais Peirce erigiu, em franco antagonismo ao método de Descartes (ver, sobre isso, especialmente Jones 1972), as primeiras funda- ‘ges do que viria a se tornar sua teoria signica do conhecimento (ver Ochler 1979: 67-76). Apontando para os falseamentos da dit vida ¢ da intuigao cartesianas, a tese central de Peirce & a de que “todo pensamento se da em signos”, do que decorre que a infe- réncia € 0 ato precipuo da mente cognoscente ¢ a cognicio é uma relagio de trés termos, isto é, triddica, uma relagio entre um sujeito ¢ um objeto inevitavelmente mediada pelo signo. Além da rejeigo do racionalismo de Descartes, essa teoria cogni: tiva, por ser triddica, também rejeitava o empirismo inglés. Como saldo, esses trés artigos antiindividualistas nos legaram uma concepcio semistica do ser humano, a teoria de que 0 ho- mem € signo ¢, conseqitentemente, uma teoria social da Légica, ou seja, 2 teoria de que todo signo ¢ todo pensamento sio dialé- gicos. Paralclamente a isso, a partir de 1867, Peirce comecou a desenvolver trabalhos que, visando & investigacio do raciocinio matematico, também subsidiavam suas pesquisas sobre Légica. Em 1877-78, a primeira exposicio do seu pragmatismo foi apresentada nas seis “Ilustracoes para as Leis da Légica”, publica: das no Popular Science Monthly: “A Fixacio das’Grengas”, “Como Tornar Nossas Idéias Claras®, “A Doutrina do Acaso”, “A Pro- babilidade da Indugio", “A Ordem da Natureza”, ¢ “Dedugio, In- ducio ¢ Hipétese” (W 3: 242.388). Para um leitor familiarizado com “A Nova Lista das Categorias” (1867) e com a teoria signica da cognicio (1868-69), este novo elenco de textos deixa imediata- mente evidentes os seguintes pontos: 1) a continuidade do dis- curso anticartesiano do método nas ciéneias; 2) © avango em relagdo a validade das leis da Légica, mais particularmente da Lé- gica da ciéncia (hipdtese e inducio); 3) a presenga implicita das rs categorias, funcionando como arcabouco légico dos textos. Tempo da Colheita 71 A originalidade deste novo grupo de textos, em relagio a0 passa- do, estd na exposicdo inaugural do Pragmatismo como uma pe- culiar teoria do significado. Nao obstante a complexidade indisfarcvel de todos os tex: tos, acima mencionados, as conseqtientes dificuldades para sua assimilacio, aos olhos do leitor, a seqiiéncia da produgio de Peir- ce parece af fluir num entrosamento perfeito. De fato, esse entro- samento é, até certo ponto, inegivel. Contudo, se prosseguirmos na leitura cronolégica de sua produgio, especialmente a partir de 1885-90, scremos levados a constatar que Ihe faltava confianca quanto aos resultados alcancados até entio. Os processos de au tocritica e autocorregio sempre foram acentuadamente persegui- dos por cle. Segundo B. Kent (1987: 100), a data de 1896.97 é digna de nota para se compreender 0 ponto de inflexio rumo a0 amadurecimento da obra peirceana (data, aliés, que coincide com a imagem do “tempo da colheita”), Muitos tépicos estavam fermentando simultaneamente na direcio de solugdes para as- pectos cruciais de suas idéias.' A meu ver, no entanto, essa fer- mentagio deve ter tido inicio pelo menos dez anos antes, vindo a culminar em 1897, Seniio vejamos. O ETERNO RETORNO DAS CATEGORIAS Para Peirce, qualquer pensamento filoséfico deve necessaria- mente comecar com um sistema de Légica, e a primeira tarefa que a Légica tem de enfrentar é a de estabelecer uma tabela de categorias. Nao por acaso sua primeira publicagao de peso (1867) se chamou “Sobre uma Nova Lista de Categorias”. Embora nio faca referéncia as categorias de Aristételes, Kant e Hegel, é com elas que seu texto estd em diflogo e é a elas, categorias mais ve- 1 © momento de inlexio tama separagio e diferenca duro. A ev proposto nio exposa a tse, defendida Fadial entre uim Perce da juventude bra nfo parece ter sftido solugto de continuidade. Ao contritio, foi amadurecendo A maneira natural dem fruto. As rememoragbes de Peirce, em 1902 (L 75: FV 347), servem pata comprovar iso: "Como resultado das vantagens dos métodos cientlicos de eatudo, tanto quanto me lemnbro, nenhuma ortinca, 3 teuatagio. Modiieagbee dos de- wadanga (sparse) ja dos principiossfo as maiores 72 A Assinatura das Coisas thas, que 0 adjetivo “nova” se contrapde. Insatisfeito com as cate- gorias de Aristételes, consideradas mais gramaticais (extraidas da gramatica do grego) do que logicas, tendo descoberto uma falf- cia na légica kantiana, que o liberou de uma prévia € quase cega idolatria por Kant, foi para Hegel que Peirce se voltou. Depois de dois anos, mais tarde reconhecidos como tendo sido os anos “mais apaixonadamente laboriosos de [sua] vida” (CP 1.288), che- gow a trés ¢ nao mais do que trés categorias inicialmente denomi- nadas de Qualidade, Relacio e Representaci Antes de chegar a esse ntimero deveras limitado de categorias, Peirce tentou construir uma lista tio longa ou mais longa do que a das categorias de Hegel. Falhando repetidamente na tarefa, com- preendeu que esse caminho no teria fim, uma vez que 0 universo, em termos de particularidade e qualidade material, é potencialmen- te infinito (CP 1.284, 8.213).' Buscou, entio, as categorias mais uni- versais ¢ gerais dos fendmenos (aquilo que todos os fendmenos tem em comum), chegando & sua triade de categorias formais ¢ quanti: tativas ou valenciais, sendo este tiltimo termo extraido da quimica, nna sua referencia & valencia dos elementos. Concluiu, assim, que aquilo que Hegel chamou de categorias, ¢ que fornecem as divisdes de sua Encyclopaedia, sio categorias particulares. As categorias t versais hegelianas estariam, entio, onde Hegel no as pés: nos seus, trés estigios do pensamento. £ com estes que a triade peirceana presenta semelancas aparentes, no obstante as diferengas em profundidade (Fisch 1986: 263.265). Apesar dos dois anos de estudos incessantes, apesar da dedu- ¢o_muito mais simples das categorias, trés anos mais tarde (1870), através da “Légica dos Relativos” (CP. 8.68, 3.144), apa- Tentemente, por quase 18 anos, Peirce nunca mais voltou a elas. ‘Ao contririo, durante algum tempo, fez tudo que um légico pode fazer para se livrar delas, conforme confessa em seu expres- sivo relato de 1902 (L. 75: A 21-25, B 7-8): Em maio de 1867, apresentei i Academia em Bostor de dez piiginas, ou quatro mil palavras, sobre “Uma Nova Lista 1 Parece que Peirce nunca desistiu completamente dessa longa lista. Uma das rx tes ald, para seu estudo das linguas mais distantes quanto o possivel do indo-cu- ropeu, devese 3 sua desconfianga de que a Ligica hegeliana nio passivs, ‘cette sentido, de um tatado sobre a lingua alema Tempo da Colheita 73 .". Era o resultado de dois anos inteiros de esforgo Intenso ¢ incessante. Hoje me surpreende como, em tio pouco tempo, pude produzir uma proposta daquela espécie, tio pré- xima da precisio, especialmente quando revejo meus cadernos € percebo a rota desnecessariamente dificil que tomei para Atingir meu objetivo. Minha lista de eategorias difere da de Aristteles, Kant ¢ Hegel por ser mais ambiciosa do que as de- les, Eles apenas se apossaram de concepgées ja trabalhadas dis- poniveis,limitandose &selecio das concepcées, desenvolvendo evemente algumas delas, rearranjando-as ¢, no caso de Hegel, separando uma ou duas que tinham sido confundidas com tas, Mas 0 que tomei como tarefa foi retornar & experi no sentido de qualquer coisa que se forga sobre nossas mentes, ‘examinando-a para formar concepgées claras de suas classes de ‘elementos radicalmente distintos, sem confiar, de modo algum, ‘em qualquer filosofia prévia, Esta foi a tarefa mais difiel na ‘qual me aventurei, Esta lista & afortunadamente bem curta, [Mas] depois de alguns anos, (.) disse a mim mesmo, esta lista a como é, deve ser uma ilusio da qual vrar. (..) Quase persuadido disso, por consideréveis anos estive continuamente buscando descobrir alguma refuta- Go que invalidasse minha teoria. Mas toda investigagio feita, que prometia levar a tal refutagio, revelava-se, no fim, apenas como nova evidéncia de sua verdade. Durante anos, as tentativas de refutagio das categorias aca- baram funcionando, de fato, como gestagao para tor poderosas. Tanto é assim que, em 1885, 18 anos depois da “Nova Lista", Peirce produziu um texto, sob o titulo *Um, Dois, Trés. Categorias Fundamentais do Pensamento e da Natureza” (Hoo- pes 1991: 180-85). Antes restritas ao fendmeno mental ¢ extra das por deducio, as categorias se expandiram, entio, para 0 mundo objetivo através de investigacdes indutivas.' Outro fator que contribuiu para infundirthe confianga foi, ainda em 1885, sua descoberta, através da integragio de quamtificadores na Logi- cca dos relativos,? de que sua primeira categoria podia ser indica- 1 Para uma descrigfo simplificaca do percurso indutivo das eateyoriase seus dife- Fentes campos de apicagio, ver Santaclla, 1983: 41453, Bons livros monogriicos sobre as categoria sho os de Rosensolin 1974 e Fsposito 1980. {2 Juntamente com seu aluno da Jonhs Hopkins, O.H. Mitchell (CP 8.350-403), ¢vo- rte independente de Frege, Peitce cheyou a essa descoberta seis anos depois feacio do Beprfisct de Frege 74 A Assinatura das Coisas da quantitativamente por uma varkivel. Isso 0 auxiliou na adogo da visio: de que hé possibilidades reais, ou seja, possibilidades que podem nio se atualizar nunca. Depois disso, retomou suas categorias com mais intensidade e menos desconfianga. Embora consciente de que nenhuma indugio pode ser con- clusiva, por volta de 1890, Peirce estava As voltas com a demons- tragio de que as categorias formam uma base para as ciéncias empfricas, através do exame indutivo das ciéncias. Sua primeira tentativa, em direcio a isso, esti em “Uma Adivinhagao para 0 Enigma” (1890, cf. Hoopes 1991: 186-202 e CP 1.354-68) ¢ tam- bém na “Arquitetura das Teorias” (1891, CP 6.7-34). A partir dai \guiu com seguranga, de um lado, 0 aspecto formal e univer: sal das categorias ¢, de outro, seus aspectos materiais. As catego- rias logicamente formais sio relacdes irredutiveis: ménadas, diadas ¢ tiadas. Estavam dadas, af, as bases para a classificagio. dos signos (Kent 1987; 44). Na verdade, por essa época, Peirce es- tava tomado de tal euforia em relagio as categorias que em “Uma Adivinhago para o Enigma” aparece a seguinte nota: “(..) E este livro, se jamais for escrito, como ser proximamente, se cu estiver em situagio de fazé-lo, sera um dos nascimentos do tempo." Em 1896, na “Légica da Matematica. Uma tentativa de de- senvolver minhas categorias a partir de dentro” (CP 1.417-520), a clareza cristalina de sua exposigio das categorias formais ¢ uni- versais ja havia atingido um nivel préximo da otimizagio. Para isso, s6 faltava mais um passo, significativamente dado em 1897 (“tempo da colheita"). Repudiando a visio nominalista da possi- bilidade, “mantida até 1896" (CP 3.527 M), essa é a data da desco- berta, através da Logica dos relatives (reveladora das virias formas de possibilidade), de que a possibilidade real é uma con- seqiiéncia essencial do Pragmatismo (Kent 1987: 101). A possibi- lidade real ward, assim, conseqiiéncias criticas para tornar 0 Pragmatismo uma doutrina inteligivel ¢ para a relacio entre a Légica ¢ a Ftica, 0 que contribuiu para a inclusio, alguns anos mais tarde, da Etica entre as divisdes da Filosofia, como se vers no préximo capitulo. Dada a precipitagio de todos esses ajustamentos, nio por acaso, em 1902 (L 75: B 8), Peirce confessou seu retorno com energia A sua posigio original, quando adotou as categorias como um esqueleto de toda a sua doutrina légica, 0 que trouxe Tempo da Colheita 75 grande unidade para 0 conjunto, Na formulagio de 1902 (L 75: Cr 140-42), ha trés pontos de vista a partir dos quais as categorias tem de ser estudadas, antes de serem claramente apreendidas. So os pontos de vista das Qualidades, dos Objetos ¢ da Mente. Do ponto de vista da Qualidade, elas aparecem como Qualidade, Reagio, Mediagio. Do ponto de vista dos Objetos, aparecem como Quales, Relatos ¢ Representagdes, do ponto de vista da Mente, como Sentimento ou Consciéncia Imediata, como Sensa- Gio do Fato e como Concepgao ou Mente estritamente. E tam- bém a partir de 1902 que a doutrina das categorias passou a pertencer a ciéncia da Fenomenologia que identifica trés aspec- tos fundamentais do phaneron (qualquer coisa que, de qualquer modo aparece, seja ela real, ou ficticia): primeiridade é qualidade , secundidade & oposigio, agio ¢ reagio, € terceitidade € representacio, mediagio, enfim, idade.! Em 1908, as categorias ja haviam chegado a um ponto tal de itaram a Peirce a solugio de um problema até entio perseguido de maneira tortuosa: sua teoria da percep- cdo. Em 1904, quando reconheceu que a diferenca entre a Mate- matica, Filosofia e as Ciéncias Especiais dependia do modo de observacio empregado por cada uma delas, reconheceu que suas categorias no eram estritamente psicolégicas, mas muito mais gerais uma vez que, para se chegar a elas nfo se requer nada além da atengio cuidadosa aos phanerons que qualquer pessoa, em condicées fisicas € psfquicas relativamente normais, pode ob- servar (CP 8.297). Desde 1896, no entanto, Peirce jé relevancia das categorias para a classificagio das clas, de fato, que estario, todo o tempo, nas bases, sustentando todas ¢ quaisquer das variadas construgées peirceanas. TUDO £ SIGNO Um pouco antes de 1885, durante os primeiros anos em que permaneceu na Universidade Johns Hopkins, Peirce acompa- T Pama tor, ver Ke slo da definicio de continuidade em Peirce, na nia oporigo a Cane 1987: 444. 76 A Assinatura das Coisas nhou os estudos de seu aluno, A. Marquand, sobre um tratado de légica indutiva, conhecido pelo nome latino De Signis, do fil6- sofo epicureano Filodemo. O termo mais freqiiente, usado nesse tratado, cra o termo semeiasis. O sufixo sis, em grego, significa ato, agio, atividade ou processo. Filodemo entendia semeiasis ‘como acio interpretativa ou como producio de inferéncias indu- tivas a partir de signos indutivos. Para Peirce, no entanto, semeio- sis era vista quer como aco, funcionamento do signo, quer como agio interpretativa ou inferencial a partir de signos. Esses dois ‘modos, alias, nao constitufam dois tipos diferentes de agio, mas uma mesma agio vista de dois pontos de vista diferentes (Fisch 1978: 41). A acao do signo é a agio de determinar um interpretan- te, termo que nao deve ser tomado como sinénimo de intérprete. Este seria apenas o meio através do qual o interpretante é produ- zido, Interpretante também nio é sindnimo de interpretacio, vis- to que esta diz respeito mais propriamente ao processo de produzir um interpretante. Desse modo, tal como viria a ser de- senvolvido, mais tarde, na teoria dos signos, o interpretante deve ser rigorosamente compreendido como o efeito que o signo esté apto a produzir (interpretante imediato) ou que efetivamente produz (interpretante dinamico) numa mente interpretadora. O feito ou interpretante vai ter sempre a natureza de um signo in- mente desenvolvido, o que nao significa completo (signo ge- nuino), ou precaria ¢ parcialmente desenvolvido (quase-signo). E também por volta dos inicios da década de 80 que Peirce jd tinha claro para si o aspecto mais particularmente ontolégico do signo. O mundo nao esté dividido entre coisas, de um lado, ¢ signos, de outro. Para Peirce “qualquer ontra coisa que qualquer coisa possa ser, ela também é um signo” (Fisch 1983: 56). Isto quer dizer: nio ha nada que nao possa ser um signo, ou melhor, tudo é signo, ou melhor ainda, todas as coisas tém sua prépria as- sinatura, Para se compreender isso, contudo, sem se incorrer imediatamente no equivoco de tratar Peirce como idealista incu- ravel, é preciso levar em conta que, pelo menos no sentido peir- ceano, pensar algo como signo nao significa ter de deixar de perecber as outras propriedades que coexistem com a proprieda- de que faz algo funcionar como signo. Trocando em mitidos: pensar algo como signo nio significa ter de pensar que, sendo signo, ou, para ser signo, este algo nao possa ser nada além de Tempo da Cotheita 77 signo (Ransdell 1983: 16). Ao contrério, todo signo pressupde € ‘envolve uma substancialidade ontolégica e uma talidade qualitatt- va. Para funcionar como signo, algo tem de estar materializado numa existéncia singular, que tem um lugar no mundo (real ou ficticio) ¢ reage em relacio a outros existentes de seu universo. Assim também, nao ha existente que nao tenha um aspecto pura- mente qualitativo, sua talidade que o faz ser aquilo que é, tal como 6. Essas trés gradacées, baseadas nas categorias de qualida- de (primeiridade), reacao (secundidade) e mediacio (terceirida- dc), so onipresentes. Desse modo, nossa percepcio delas depende, de um lado, do ponto de vista que assumimos no ato de recepgio dos signos, de outro, depende também do aspecto que prepondera no signo: sua qualidade, sua existéncia concreta (ou seja, seu aspecto de “coisa”) ou seu carater de lei (ou seja, sua dimensio mais propriamente signica). Essa, alifs, € a base para a lassificacao fundamental dos signos em icone, indice e simbolo, como aparecerd mais a frente. AS DUAS AGOES DO UNIVERSO ‘Sem diivida, um dos aspectos mais importantes, na diregio do aperfeicoamento da classificagao das ciéncias, residiu na cres- cente certeza, alimentada por Peirce, de que hii duas e nao m: do que duas aces operativas no universo: ago diédica, me ca ou dindmica ¢ agao triddica, inteligente ou signica. E evidente a correspondéncia da agio dinamica com a segunda ¢ a acio in- teligente com a terecira categoria, nio havendo, obviamente, correspondente & primeira categoria porque esta é pura possibilidade, anterior a qualquer ago. A acio diddica pode ser também chamada de causacio eficiente e a triddica, de causagio final. Assim como 0 mundo nio se divide em coisas, de um lado, ¢ signos, de outro, mas vive da mistura das coisas que, sem deixar de ser coisas, sio também signos, e dos signos que s6 podem ser signos porque sio também coisas, as ages, que mo- vem o mundo, sio de duas ordens irredutiveis, mas insepardve € superpostas: a acio didica-mecinica, embutida dentro da agio do signo, acio inteligente ou semiose. Uma nao pode ser conce- bida sem a outra, Se a proeminéncia relativa de ambas varia 78 A Assinatura das Coisas grandemente, somos levados “A hipétese de que agées diédicas ou meciinicas exclusivamente e as ages triddicas ou significagio exclusivamente sio limites ideais dos quais as ages podem se aproximar téo intimamente a ponto de sermos encorajados a abstrair uma da outra ¢ consideré-las sepadamente” (Fisch 1983: 58.59). A agio didica foi também chamada por Peirce de causagio ruta, ot mesmo forca bruta. O termo aristotélico “causagio efi- ciente” também foi utilizado, mas com certas restrig6es, porque nele ficou implicita, a partir de Hume, uma concepgio de causa- io que Peirce s6 accitava relativamente, ou seja, a andlise positi- Vista de acordo com a qual dizer que A causou B é dizer que coisas do tipo A sempre sio seguidas de coisas do tipo B, se A ‘ocorreu, entio B também ocorreu. Sua nogio de causagio bruta, a0 contririo, é uma questo efetivamente bruta, cega ¢ nio racio- nal, de hie ef hunc (ocasido singular). A necessidade, aqui envolvi- da, diferente daquela que est implicita na’ necessidade positivista, estando muito mais préxima da compulsio factual, expressa na palavra grega ananke (Ransdell 1988: 4647). Os exemplos, fornecidos por Peirce, de experiéncias, tanto percepti- vas quanto fisicas desse tipo de acio cega e bruta, sio abundan- tes, Isso nio o levou, porém, & negagio de que haja leis reais. A espécie de necessidade, envolvida nas leis da natureza (que, alias, diferem das generalizagdes empiricas que fazemos dessas leis), ra categoria, ou seja, da generalidade, continui langa ¢ evolucao. Os casos de necessidade nas leis ureza, que podem ser expressas nas proposic3es do tipo “Se A, entio B”, devem ser vistas como casos limites de uma ten- déncia, casos em que a tendéncia jé est completamente rigida, pouco aberta a interferéncia do acaso ¢ pouco sujeita A mudanga. Diferentemente dessa rigidez, a concepgio peirceana de lei, como “poder vivo" (Potter 1967), traduzse na tendencialidade do universo a adquirir novos habitos, © que 86 pode ser preendido & luz do conceito de causagio final, agio do signo, acio inteligente ou semiose. Assim sendo, a lei rigida, expressa na concepcio positivista de lei, ¢ apenas 0 caso limite de uma tendencialidade que perdeu seu frescor. A causagio bruta nio se confunde com essa rigidez. Trata-se apenas do instante singular Tempo da Colheita 79 em que a forca bruta atua cegamente. Desse hie ef nunc, a agio in- teligente depende para que possa se atualizar. ‘Quando se diz agio inteligente, no contexto da teoria peir- cana, nao se deve entender esse adjetivo dentro de limites an- tropocéntricos. Semiose ou agio do signo é o termo técnico geral, utilizado para recobrir'o campo semintico de termos como inteligéncia, mente, pensamento que, segundo Peirce, nio sio privilégios humanos. Onde quer que haja tendéncia para aprender, processos autocorretivos, mudangas de habito, onde quer que haja agao guiada por um propésito, ai haveré inteligén- cia, esteja ela onde estiver, no pélen que fertiliza 0 Svulo de uma planta, no vo de um passaro, no sistema imunolégico, na per- versidade do inconsciente ou na razio humana. £ por isso que causagio final, como Peirce a concebia, deve ser interpretada no cotejo com conceitos cibernéticos (tal como feedback), biolégicos (tais como morfogénese e teleonomia), ou mesmo naturais (tal ‘como estruturas dissipativas). (Short 1988, Ransdell 1983.) Assim como Aristételes, Peirce nao limitou a causagio final a ‘processos conscientes, nem tomou.a como atual, mas como um tipo geral. Também como Aristételes, considerou que os proces- sos de causagiio final so observaveis ¢ que nfo podem agir sem a cooperacio das causas eficientes. Diferentemente de Aristételes, Ro entanto, nao atribuiu a influéncia das causas finais & perfei- ‘sio, nem ao bem, nem a uma fonte pura e primeva de atividade (Short 1981; 869-371). Sem recheios de contetidos de qualquer espécie, Peirce se limitou a descrever um processo légico, 0 pro- cesso de ago do signo (expresso nas suas inumeriveis definigdes de signo, uma das quais estudaremos em detalhe no capitulo 8), que no tem nada de exclusivamente antropolégico, sendo capaz de descrever até mesmo todos e quaisquer processos puramente fisicos, que sio irreversiveis e tendem assintoticamente para a uk timagio de um estado de coisas. Se néo é o bem potencial que move esses processos, entio o que os guia? A resposta de Peirce comegou na constatagio de que causagio eficiente (“forga”) nao pode explicar a irreversibilidade. $6 um tipo geral de natureza auto-reprodutiva seria capaz de governar a atualizagio de parti lares. Os modos através dos quais os particulares se atualizam pode variar enormemente, mas 0 processo orientado para um fim, que os governa, tem uma mesina base légica, Essa base é a

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