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Prefácio

Nas brilhantes encruzilhadas do tempo, onde o passado e o presente se entrelaçam em uma dança
harmoniosa, encontramos as raízes ancestrais da narrativa humana. É neste cruzamento de tradição e
contemporaneidade que a antologia "Guardião das Areias" se ergue, como um tesouro lapidado pela
rica mitologia do Oriente Médio e entrelaçado com os fios mágicos da arte de contar histórias.
As areias douradas do deserto não são apenas grãos que sussurram antigas lendas ao vento; são
testemunhas do início de narrativas que ecoaram através dos séculos. Com os olhos da mente,
podemos nos transportar para as terras onde sábios taumaturgos entoavam feitiços, onde caravanas
mercantes trocavam contos sob as estrelas cintilantes, e onde o mistério do desconhecido alimentava
a chama da imaginação.
No coração desta antologia reside uma conexão transcendente com a figura de Sherazade, a
habilidosa contadora de histórias que, em "As Mil e Uma Noites", teceu fábulas para adiar sua
sentença de morte. Seus relatos encantadores, entrelaçados como os fios de um tapete mágico, são
um tributo duradouro à habilidade de prender a atenção, de evocar emoções e de transmitir
conhecimento através da palavra falada. Em "Guardião das Areias", essa tradição de contar histórias
é revitalizada e celebrada, uma homenagem à capacidade humana de transcender o tempo e as
fronteiras para compartilhar sabedoria e entretenimento.
Mas, aqui, não nos limitamos a uma jornada nostálgica ao passado. Assim como os ventos que
esculpem as dunas do deserto, a tradição das histórias muda com o tempo, encontrando novas formas
de se manifestar. Em uma era de tecnologia e globalização, a arte de contar histórias não apenas
sobrevive, mas floresce. Dos contos clássicos que nos transportam para palácios encantados até as
narrativas contemporâneas que exploram questões complexas, esta antologia serve como um portal
que une eras.
"Guardião das Areias" nos convida a explorar os mitos cativantes do Oriente Médio, apresentando
contos de gênios, deuses, príncipes e donzelas, todos entrelaçados em tramas que ecoam nas areias
do deserto. Com a releitura de contos antigos e a introdução de histórias modernas inspiradas na
mitologia, somos lembrados de que as narrativas são as ferramentas com as quais moldamos nosso
entendimento do mundo, transmitindo valores, sonhos e aspirações.
Que estas páginas sejam uma homenagem à rica história da mitologia do Oriente Médio, à
habilidade de contar histórias que vai além de tempos e culturas, e ao poder duradouro das palavras
para nos levar a lugares desconhecidos. Que "Guardião das Areias" se torne uma viagem inesquecível
para os leitores, onde o tempo se transforma em histórias eternas. As vozes que contaram essas
histórias há muitos anos ainda ressoam em nossa mente, nos convidando a sermos guardiões das
histórias que formam quem somos.

Grazi Gomes,
Medusa Editorial.

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Orações à Babilônia

Yara Tertuliano

U m elegante antílope de cauda curta e de chifres curvos foi trazido ao salão. Era tradição que o
imperador, representante do povo e dos deuses, fosse o primeiro a golpear o animal, seguido
de seus filhos e principais sacerdotes. Como o esperado, o grande Nabucodonosor II segurava
uma adaga, tal como sua filha mais velha, Davke, que respeitava profundamente as tradições
babilônicas. O caçula da família, a quem todos veneravam feito um pequeno deus, estava atrasado.
Como sempre.
— Vossa majestade, devemos começar? — um dos sacerdotes perguntou.
O imperador passou a lâmina de uma mão para a outra, refletindo em sua decisão. Trajava um
manto cerimonial, cheio de adornos e de joias brilhantes. A barba espessa era longa o suficiente para
alcançar o início do abdômen e Davke notou a respiração profunda de seu pai. Ele estava indeciso.
— Nabu conhece as regras.
— Meu filho é o terceiro de seu nome, não começarei sem ele.
Ninguém questionou a decisão do imperador, porém Davke tinha consciência de que o antílope
não esperaria calmo para sempre, muito menos a lua cheia ficaria em seu auge durante a noite inteira.
Ela apertou o cabo da faca e conteve sua impaciência. O som das flautas e dos cânticos se espalhou
pelo jardim a céu aberto, misturando-se aos grasnidos das aves noturnas e aos uivos das hienas.
A princesa notou que a mansidão do adax podia ser causada tanto pelo hipnótico canto do
sacerdote, quanto pelas ervas soníferas misturadas à comida dele antes da cerimônia. De toda forma,
seria uma boa oferenda a deusa Nanshe, a quem deviam agradecer pela colheita fértil, pelos barcos
cheios de peixes que chegariam em breve aos portos e pela justiça que fluía no segundo império da
Babilônia. O deus dos deuses, Marduk, protegia a cidade e, através de seus ensinamentos, os
babilônios prosperavam em paz e em harmonia — fora dos muros, no entanto, não era possível dizer
o mesmo.
Vinho era distribuído quando Nabucodonosor III chegou ao jardim. Caminhava com pressa,
escoltado por três guardas. Davke baixou a cabeça para que seus olhos indignados não fossem
percebidos pelo imperador. Em sua mente, ela só conseguia pensar que o antílope tinha aparecido
com muito mais honra do que o irmão.
Nabu se posicionou ao lado da princesa, sorrindo abertamente para todos que trocassem olhares
com ele. Nabu era assim: risonho, despreocupado, infantil. E, de alguma forma, as pessoas ainda o
queriam no trono. Ele curvou-se para receber a adaga, tornando a atividade mais dramática do que o
necessário. Parecia um bobo, um palhaço que estava ali apenas para divertir os sacerdotes.
Prosseguiram a cerimônia com o imperador avançando até o antílope que permanecia bastante
manso. A estocada devia ser forte o bastante para derrubar o animal, um sinal de bom presságio. E
assim fez o imperador. Davke se aproximou em seguida e não se incomodou quando os pés pisaram
no sangue do animal. Ela decidiu cortá-lo na garganta, espalhando ainda mais o sangue. Quando Nabu
se encaminhou até o adax, enfiou a faca em seu coração, impedindo que os gemidos continuassem.
— O que houve, irmãozinho? Está com pressa?
— Que Marduk me proteja, mas o bicho já cumpriu seu propósito. Para mim, é suficiente.
A princesa mordeu a própria língua. Nabu era desrespeitoso até mesmo com as tradições mais
simples.
— Não somos nós quem decidimos, são os deuses. Lembre-se disso na próxima vez que os deixar
esperando — ela pontuou firme e ajoelhou-se para receber a purificação dos sacerdotes.

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Trouxeram uma bacia de frutas e uma bacia contendo o sangue do animal. Os símbolos da deusa
Nanshe foram desenhados nos braços do imperador; Davke recebeu desenhos no rosto e nos ombros;
Nabu foi decorado com símbolos nas costas. Cada um deles comeu uma fruta. Na cerimônia, ninguém
dizia nada, mas era de conhecimento popular que, durante a noite, os sacerdotes e as sacerdotisas
deitar-se-iam embaixo da lua e receberiam sonhos proféticos. Aquela cerimônia, em especial, era de
extrema importância, pois a anunciação do sucessor estava próxima e todos os presságios dos deuses
seriam bem-vindos.
Nabucodonosor II ofereceu as frutas aos demais participantes da cerimônia; o sangue em seus
braços havia secado e, portanto, os desenhos estavam intactos. Nas costas de Nabu, que também
oferecia comida e bebida para o povo, o sangue estava vívido em sua pele, brilhava toda vez que as
costas do príncipe se curvavam e a luz do luar tocava-lhe. Em Davke, o sangue escorria pelos ombros
e os símbolos em sua testa uniam-se uns aos outros, tornando indecifrável as bênçãos dadas à princesa.
***
Da janela, ela via as embarcações indo e vindo da cidade. As águas límpidas do Eufrates refletiam
o azul dos ladrilhos do palácio e o dourado das torres e dos portais. Davke gostava de observar os
barcos porque o valor da mercadoria não estava no item em si, mas na embarcação que a trazia: isso
revelava, para ela, o quanto a Babilônia estava evoluída perante aos demais impérios. Assim, se
usassem peles de animais nas velas, certamente traziam produtos antiquados; caso fossem de tecido,
notava-se a importância do produto. As embarcações com os itens mais valiosos sequer dependiam
de velas para navegar; utilizavam, no lugar, algo que chamavam de motor.
Os babilônios eram muito criativos e Davke orgulhava-se de cada uma das novidades de
conhecimento que seu povo construía. Os motores, por exemplo, uniam grandes roldanas nos
conveses e erguiam, com a força das alavancadas, barbatanas por toda a lateral dos barcos. Moviam-
se como peixinhos nos rios.
— Princesa Davke! — um grito exagerado invadiu o quarto.
O título fez a mulher inspirar fundo.
— Princesa, distraiu-se de novo. Como vão as equações?
— Fáceis — ela falou com a cabeça apoiada na mão. Os olhos cor de areia mantiveram-se fixos
no trânsito das águas. — Fiquei entediada e resolvi as atividades da próxima semana.
— Oh, maravilhoso! A senhora está aprendendo rápido, graças a Marduk!
— Matemática foi a coisa mais boba e necessária que já inventamos. Serei capaz de construir uma
torre?
— Sem dúvida, princesa! — o tutor de barba negra e olhos esbugalhados falou sorridente. — Uma
dúzia delas, mas me questiono se haverá necessidade. Basta pedir e nosso amado imperador construirá
para você.
— Qual a graça em deixar as tarefas mais divertidas para os outros?
A princesa retornou a olhar para o império. Não importava quantos verões precisasse esperar, o
número de sacerdotes ou a quantidade de tempestades de areia que os deuses mandassem, Babilônia
teria uma imperatriz um dia.
— Onde está meu irmão?
— Nos jogos, princesa.
— Ele deveria estar acompanhando meu pai — Davke falou.
— Oh, mas Nabu é um rapaz agitado. E o príncipe é jovem, se Marduk quiser, ainda terá muitos e
muitos anos para aprender os ofícios da coroa.
Uma nuvem escura fechou o semblante da mulher, todavia ela manteve os pensamentos
silenciosos. Havia apenas uma pessoa a quem Davke confiaria seus segredos e, pela graça dos deuses,
o barco de nadadeiras verde-esmeralda trazia essa pessoa. O coração da princesa saltou e, um segundo
depois, ela correu em direção às escadarias do palácio. O pobre tutor gritava para que retornasse, mas
Davke não perderia a chance de receber seu querido amigo pessoalmente.
A longa saia de linho era usada mais frouxa do que o habitual para que não atrapalhasse momentos
como aquele. As pulseiras e colares de ouro chacoalhavam à medida que a princesa escapava do

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palácio; os adornos nos cabelos crespos também lhe incomodavam, mas eram afiados como adagas e
Davke aprendera a utilizá-los para se defender, caso precisasse. Nos ombros, a túnica era a única
vestimenta que não a incomodava por completo: deixava o abdômen nu e, ao correr, uma brisa
agradável tocava-lhe a pele.
Ela atravessou um pátio bem arejado e a monumental porta dos jardins com ladrilhos de lápis-
lazúli e desenhos dourados de leões, estrelas de oito pontas e palmeiras. Escutou o som das escadas
andantes mesmo antes de alcançá-las. O sol tinha o brilho do verão e também o calor. Davke olhou
a via processional e as fileiras de carroças esperando para atravessar o portão sul da cidade. E muitas
carroças estavam aparecendo na Babilônia nos últimos dias.
A princesa ignorou as crianças brincando com espadas de madeira e puxou a ferramenta que movia
a escada andante. Era semelhante aos barcos, pelo que entendia, mas ao invés de criar barbatanas no
casco das naus, usava a força das águas para impulsionar os degraus a andarem. No primeiro indício
de movimento, Davke foi levada para baixo. A escadaria principal do palácio, feita de pedras,
continuava ali, mas eram imensas e, desde que a escada andante foi inaugurada, Davke jamais
retornou a utilizar a saída anterior.
Nas ruas, decidiu caminhar. Os passos, no entanto, eram apressados. Desviou dos vendedores, dos
músicos e das dançarinas; cumprimentou artesãs, pintores e sacerdotes que pregavam à luz do dia.
Todos os súditos reconheceram-na, mas não interromperam o caminhar da princesa: acenavam,
curvavam-se, mas ficavam longe de seu caminho.
Em minutos, encontrou-se parada na frente do Eufrates.
A embarcação descarregava as mercadorias e os pertences da tripulação. Davke controlou-se para
não correr e pular nos braços do velho amigo. O sujeito de pele marrom-escura tinha deixado os
cabelos crespos crescerem, mas não se permitia deixar a barba crescer, assim como Nabu e os demais
jovens homens: era uma tradição que apenas os guerreiros podiam ter.
O marinheiro abriu um sorriso genuíno ao avistar a princesa, soltou o pesado caixote de madeira
no chão e eliminou a distância que os separavam. Muranu curvou-se apropriadamente para a filha do
imperador, mas abraçou-a com força logo depois com a cautela de não tocar no abdômen desnudo da
princesa. Rodopiou o corpo de Davke e escutou um som que poucas pessoas escutaram na vida: a
risada dela.
— Vejo que está treinando! Logo ficará mais musculosa do que eu.
— Como ousa descobrir minhas intenções mais sórdidas?
Ele a colocou no chão, mas os olhos escuros ainda sorriam. Muranu herdara a frota de barcos de
seu pai: tinha abandonado o título de príncipe e deixado a coroa para que os sete irmãos brigassem
entre si. Não que fosse muito importante, reinavam um pequeno território nas fronteiras da Babilônia
e o rei de lá ainda obedecia ao supremo imperador Nabucodonosor II.
— Precisa me contar tudo! — Davke implorou.
— Não antes de você. Soube que expandiram o comércio, o que mais inventaram na minha
ausência?
Muranu ofereceu o braço para acompanhar a princesa em uma caminhada na beira do rio. Ela não
se incomodou com o calor e com as joias colarem na pele.
— Eu preciso te mostrar, — a princesa disse animada — contar não será o suficiente. As carroças?
Algumas se movem sozinhas! E os ladrilhos são feitos em uma ferramenta de pedra que derruba toda
a cerâmica no fogo e depois na água fria. Estamos produzindo centenas deles por dia!
— Babilônia precisará de bons ladrilhos para vencer os tecidos da China, as pessoas só querem
saber do novo cetim.
Davke não gostou de ouvir sobre o império chinês e prosseguiu:
— Não sabemos como chamar ainda. Penso que pedra andante pode confundir o povo, mas, de
qualquer forma, tem facilitado na modelagem dos tijolos também e isso é bastante útil. Diferente de
tecidos, que não ajudam a construir muralhas.
— A China está construindo muralhas também.
— Quer me dizer alguma coisa?

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Muranu abriu e fechou a boca: considerou se deveria falar, como falar e de que forma. Conhecia
a amiga e sabia que criticar o império babilônico era um tópico sensível. Preferiu tratá-la como um
dos capitães de sua frota.
— Os persas estão crescendo, os assírios também. E há outros. Na costa, os gregos. Do outro lado
do mar, os chineses. Haverá guerra, Davke. E a Babilônia… pelo glorioso Marduk, as invenções são
maravilhosas, abençoadas pelos deuses, mas não é disso que precisamos.
— E pensa que não sei? — ela questionou, soltando o braço dele. A situação político-militar do
império esmagava seus pensamentos e piorava com o passar dos dias.
Caminharam em silêncio até alcançarem um local onde as embarcações tinham dificuldade em
atracar e, portanto, estava sem marinheiros. Davke relaxou os ombros:
— Temo que os deuses não nos amam mais, Muranu. Fizemos algo errado? Aprendemos a ler as
estrelas, a construir pontes e torres tão altas que podem tocar os céus. Abrimos nossas portas para
forasteiros, para vizinhos e renegados de suas pátrias. Fomos bons!
As mãos calejadas do capitão puxaram-na para um abraço. Davke era tão forte e obstinada que, às
vezes, ele esquecia-se o quanto a princesa podia ser passional. Ela certamente amava a cidade mais
do que qualquer um.
— Não quero perder meu império.
O comentário fez Muranu apertar os olhos, mas ele não disse nada.
— Toda minha vida está aqui. Meu corpo será enterrado embaixo do palácio em que nasci e minha
alma ficará junto a meus ancestrais. Eu juro pelos deuses que sim. Não deixarei que o império seja
derrubado como no passado.
A voz sôfrega de Davke tornaram as palavras trêmulas, assustadoras. A respiração dela estava
pesada e, somado ao dia quente, era quase possível notar vapor no ar que ela soltava pela boca.
— Minha amiga, ouvi os boatos... a cerimônia de anunciação. É verdade?
Davke soltou-se do homem e limpou as lágrimas do próprio rosto. Recuperou em questão de
segundos a bravura e a frieza tão conhecidas da filha mais velha de Nabucodonosor II.
— É verdade — ela disse. — O grande imperador escolheu Nabu como primeiro sucessor ao
trono.
— A cidade está cheia...
— A cidade está cheia porque em duas noites será aniversário de Nabu. E todos os aliados
vieram prestigiar o sucessor do império. Faremos uma grande festa. Enterraremos mais ouro,
distribuiremos comida e o mundo todo testemunhará a força do conhecimento da Babilônia!
Ela perdeu o fôlego de repente. Cada palavra feria sua alma como navalhas, nem sempre era
fácil esconder. Davke olhou para o Eufrates — na direção oposta, apesar de impossível visualizar
de onde estavam, ela sabia que o Tigris corria forte. Eram rios paralelos, gêmeos, e graças a
curvatura de ambos os leitos, Babilônia foi capaz de se erguer como um dos maiores impérios
que o mundo já vira.
As extensas muralhas cercavam quase toda a cidade, os três palácios reluziam em ouro e
bronze condizente com a riqueza de todo o império. Jardins suspensos ostentavam plantações de
grãos, trepadeiras e plantas arbustivas que traziam cores vivas aos prédios. Esculturas, templos,
zigurates imensos, pátios com água fresca, plantações de raízes fortes e sem pragas, árvores
verdes e um belíssimo sistema de irrigação, tão grande e tão cheio de vida quanto possível. Era
sua cidade. E amava-a de forma que somente os deuses entenderiam.
— Eu sinto muito, Davke.
— Não sinta. Encontrou o que te pedi?
— Tem certeza disso? — Muranu hesitou.
— Preciso garantir a sobrevivência da minha cidade — ela trovejou ao encontrar dúvida nos
olhos escuros do marinheiro. — Esse é o segundo império da Babilônia. Caímos uma vez, pelas
mãos dos assírios, não custa muito para cairmos de novo. E nosso querido príncipe não será capaz
de nos salvar. Meu pai está cego pelas belezas que construiu, mas eu não.

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O homem respirou fundo. Na infância, a obstinação da princesa fazia com que todas as crianças
participassem do jogo de seu desejo; agora, mais velha, a obstinação crescia feito uma tempestade
de areia, trazia raios e fogo. Como as crianças de antigamente, Muranu faria o que ela mandasse.
Retirou da túnica de linho branco um embrulho não muito maior que as mãos dele.
A princesa desatou os nós e encontrou uma caixa. Era feita de metal, ornamentada com peças
de ouro e de bronze; sem dúvida, feita por babilônios. O grande imperador, Nabucodonosor II,
tinha como deus patrono Marduk — o deus dos deuses, protetor de toda a Babilônia, representante
do fogo sagrado e do conhecimento, vencedor de dragões, regicida, assassino de Tiamat, a deusa
primordial do caos. A caixa que Davke segurava não pertencia em nada ao deus sagrado da
Babilônia, pertencia a deusa destronada.
— São os símbolos de Tiamat, a mãe dos dragões — ela observou nos ornamentos da caixa.
— Encontrei o coração no antigo templo... o fogo ainda estava aceso.
— Claro que estava! — a princesa sorriu. — Vê, Muranu? Aprendemos muitas coisas com
Marduk, fomos pacíficos. Mas o mundo está diferente. Precisamos da fúria de Tiamat de volta ou
Babilônia irá perecer.
— Sabe como fazer?
Davke olhou com segurança absoluta para o velho amigo:
— Estudei minha vida inteira para isso. Em duas noites, despertaremos Tiamat.
***
Os jardins do templo do deus Marduk abriram as portas para receber todos os amigos do
império; dois representantes assírios foram convidados porque o imperador da Babilônia desejava
usar o aniversário de seu sucessor como oportunidade para firmar laços e discutir questões
políticas. Os chineses trouxeram caixas de tecidos e de chás; os egípcios trouxeram ouro; os
territórios vizinhos trouxeram comida; e os senhores juramentados ao grande Nabucodonosor II
apareceram com presentes diversos. Seriam dias festivos e as cores quentes enfeitavam a cidade.
A princesa Davke era uma peça rara que todos os solteiros queriam para si. Ela trajava as cores
do dragão: vermelho, azul, verde, branco e preto. Trazia pesadas joias de ouro branco, nos
tornozelos, e braceletes que mais pareciam armaduras. Os tecidos que lhe cobriam eram leves e
esvoaçavam enquanto ela caminhava pelo templo de Marduk. Cabelos soltos com uma tiara de
espinhos vermelhos; desenhos com tinta dourada no pescoço. Naquela noite, Davke portava-se
como uma deusa viva.
— Irmã! — Nabu a encontrou e deu-lhe um beijo em cada bochecha. O sucessor do trono
também estava radiante, mas não por causa da roupa que usava: ele tinha um infeliz hábito de ser
radiante feito o sol. — Temi que não viesse.
— E perder sua festa?
Nabu a abraçou, na frente dos convidados, com mãos quentes e uma agitação genuína.
— Estamos bem? — ele perguntou apenas para que ela ouvisse. — Não pedi que o pai me
escolhesse. Sempre pensei que seria você.
Davke se afastou, precisava olhar atentamente para o caçula. Tiveram muito tempo para acertar
as diferenças, o príncipe não podia ter escolhido noite pior.
— Tenho um presente para você, irmão — ela falou e qualquer pessoa mais atenta ouviria o
tremor em sua voz.
Um sorriso sádico acompanhou a princesa, mas Nabu não pareceu notar. O sucessor ao trono
solicitou que abrissem espaço para Davke, pediu que os músicos baixassem o som das flautas,
ordenou que os bêbados fossem retirados dos jardins suspensos.
— Minha querida irmã, — ele anunciou majestoso — a quem devo todos os meus
aprendizados, trouxe-me um presente! Ela me ensinou a falar antes que os tutores o fizessem, me
ensinou sobre nossa cultura, sobre nossas leis… eu sou muito jovem! Jovem demais para ser o

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sucessor ao trono, alguns vão dizer, mas sei que trarei honra ao império porque tive a melhor das
melhores professoras. Então, minha irmã, acho difícil que seu presente supere todos esses anos!
Ele riu. E a piada foi recebida com gargalhadas nos quatro cantos do jardim.
Os convidados olharam para Davke, a princesa que jamais seria a imperatriz da Babilônia. A
filha mais velha que foi ultrapassada por um filho mais novo. Em silêncio, ela caminhou pelo
jardim. No silêncio, pensou ter escutado um ruído: algo sem forma que deixava cada um dos seus
sentidos em alerta.
— É curioso que estejamos no templo de Marduk essa noite — ela entoou. Não tinha a voz
agradável do irmão, mas aprendera a ser encantadora na oratória. — Marduk, filho de Tiamat, a
deusa draconiana, destronou a própria mãe para que a paz reinasse entre os humanos. É nosso
guardião, é patrono da nossa cidade. Graças a Marduk, nós aprendemos a controlar a fúria animal
que habitava em nossos corpos. Aprendemos a conviver, apesar de sermos todos tão diferentes.
A princesa caminhou até uma pedra centralizada no jardim que se esticava como uma parede
sem nenhuma sustentação. Era a estela de Marduk, um portal sagrado. Nas gravuras, três símbolos
se faziam presentes: um disco solar, uma lua crescente e a cabeça de um leão; cada figura
representava um dos pilares divinos do deus dos deuses.
— É curioso onde estamos, porque apesar de Marduk ter nos ensinado tanta coisa, não
aprendemos nada! Ainda saqueamos, matamos, guerreamos, escravizamos e toda a culpa que a
deusa draconiana levou, no fim, sempre pertenceu aos próprios humanos.
Davke ouviu comentários surgindo da multidão, chamando-a de louca; o imperador a
observava com atenção, imaginando que se tratava de um sermão ou uma incorporação divina.
Nabu estava mais receoso, foi o primeiro a ver a caixinha guardada embaixo da estela de Marduk.
Na pedra divina, inscrições antigas incluindo maldições e rituais profanos percorriam os
desenhos. Era como se o próprio deus Marduk quisesse que, um dia, alguém chamasse Tiamat de
volta.
— Irmã?
Mas Davke começara a ler a inscrição sagrada: levou uma vida inteira para traduzi-la e nem
os sacerdotes conseguiriam impedi-la agora. Ela abriu a caixa e o coração de Tiamat pulsava
como se a guerra dos deuses tivesse acontecido no dia anterior. Fresco e vivo, sangue de dragão
ainda circulava pelas veias.
O líquido vermelho escorreu das mãos da princesa, jorrando por todos as fissuras da caixa. E
o sangue queimava! Davke soltou o objeto de metal no chão e o estalo soou como uma trovoada.
Não havia mais música e até os bêbados ficaram despertos. O imperador gritou para que alguém
interrompesse a filha, mas ninguém tinha coragem de se aproximar porque uma sombra densa
crescia ao redor da princesa e a sombra crescia por toda a Babilônia.
Então, gritos surgiram embaixo dos jardins suspensos.
Davke sentiu a pele arrepiar. Escutava os gritos, mas procurou pelo ruído fantasmagórico que
crescia na atmosfera; novamente, sentiu um alerta por todo o corpo. Algo estava errado.
— Soem os alarmes! — ela berrou.
Os guardas não sabiam a quem deviam acatar. Os convidados se misturavam em pavor,
tentavam sair do templo pelo mesmo portal que entraram e isso provocava uma aglomeração
barulhenta.
Outra vez, gritos. Davke nunca participara de uma guerra, mas quando viu a fumaça nos
portões inferiores, soube que estavam sendo atacados.
— Irmã! — duas mãos fortes apertaram os braços da princesa. Os olhos de Nabu tinham
amadurecido rápido e ela perguntou-se quando aquilo acontecera. Ambos encararam o terror que
se instalava na cidade que tanto amavam, trocaram um olhar cúmplice e, apesar do orgulho,
acenaram em concordância. — Termine o que começou, irmã. Vou reunir o exército.

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O jovem príncipe desapareceu, levando com ele um grupo de soldados e o próprio imperador,
a quem deveriam escoltar em segurança até o palácio. Flechas correram por cima dos muros,
barcos foram incendiados e os babilônios estavam bêbados pela festa e ainda desorganizados:
quando conseguissem se organizar e revidar o ataque, seria tarde demais.
Davke terminou de ler a inscrição sagrada e, ao olhar para o céu, viu uma espiral se formar
entre as nuvens: a deusa draconiana tinha sido despertada.
A princesa estava pronta para se afastar da pedra ritualística, mas notou que as inscrições
podiam lhe oferecer muito mais do que uma única invocação. Ela poderia rogar para o próprio
guardião da Babilônia, o patrono da cidade.
— Davke, o que está fazendo?! — um grito desesperado lhe pegou de surpresa. Muranu estava
coberto de sangue: principalmente dos inimigos, mas havia um ferimento enorme em seu ombro
esquerdo. — A cidade caiu! Os persas atravessaram as muralhas de Ishtar!
Ela ainda não tinha pensado em qual dos seus inimigos tivera a audácia de invadir a belíssima
cidade do conhecimento, mas agora sabia. E jurou para si que os persas sofreriam as
consequências.
No céu, o redemoinho crescia e disparava raios; no rio, ondas tão altas quanto os portões de
ladrilhos se erguiam em fúria. Deuses do ar, do fogo, da terra e da água se manifestavam como
protetores da Babilônia.
— Davke!
— Ciro, o grande, está aqui! — uma voz angustiada surgiu dos mesmos túneis escondidos por
onde tinha escapado. Nabu vestia o equipamento de guerra, os olhos estavam vermelhos: talvez
pela fumaça, talvez por ter chorado demais.
— E o imperador? — a princesa questionou. Era uma pergunta óbvia, Davke não queria saber
do imperador persa, mas, sim, do grande Nabucodonosor II. Apesar da obviedade, ela notou que
Nabu demorou muito tempo para responder, então reforçou: — Nosso pai, onde ele está?
— No fundo do Eufrates, com uma flecha em seu peito.
— Davke, meu príncipe, os barcos não vão esperar por muito tempo. Precisamos tirar vocês
dois daqui. Agora!
Apesar da urgência na voz de Muranu, a princesa só conseguiu sentir dor. Babilônia em
chamas, o imperador morto… os deuses, apesar de terem sido invocados, não estavam salvando
ninguém. Rugiam tempestades e terremotos, derrubavam colunas para impedir que os inimigos
avançassem, rachavam as escadas para que os invasores não se aproximassem dos templos, mas
era só.
Não era o suficiente.
— Todo nosso conhecimento, nossas construções… — ela soluçou, não de tristeza, mas, sim,
de ódio. Olhou para seu irmão, o novo imperador da Babilônia, e esperou encontrar o mesmo
olhar cúmplice de antes. Eram tão diferentes e amavam de forma tão parecida. — O mundo não
merece usufruir do conhecimento que construímos. Enterrarei essa cidade antes que os persas ou
qualquer outro botem as mãos nela!
Um rugido animalesco ecoou dos céus. Tiamat despertara poderosa e imbatível, deslizando as
cinco cabeças para fora da tempestade, abrindo as asas e cuspindo fogo no exército persa. A
Babilônia, porém, estava sem tempo. O caos da deusa primordial reinaria no mundo, era esse o
presente que os babilônios deixariam para a humanidade.
— Há engrenagens em toda a cidade — Nabu falou. — Vamos enterrá-la.
As três figuras se ajoelharam no templo de Marduk, conscientes de que estavam sacrificando
as próprias vidas para salvar uma dádiva maior, pois a Babilônia foi amada pelos deuses e, no
futuro, os próximos impérios iriam desejar ser tão grandes e tão majestosos quanto a cidade dos
jardins suspensos.

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Fogo queimava nas muralhas, barcos zarpavam com sobreviventes e pelas mãos do deus dos
deuses, guardião da Babilônia, a cidade foi puxada para baixo. Marduk acatou as orações e, como
seus antepassados e os antepassados dos antepassados que tinham o hábito de esconder tesouros
em tempos de guerra, ele escondeu o maior tesouro que havia no mundo. Escondeu a Babilônia.

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Areias Negras

Ash A. Orłowska

A
fogueira foi acesa, no meio do Deserto de Nefude, bem em um buraco para evitar uma
possível luminosidade. Sons ao longe trazem memórias cheias de dor a Khalïd Badawi
Azhari, que trajava roupas especiais para sobreviver às caminhadas durante o dia. Desde
que tudo aconteceu, aos dois anos de Aishä Badawi Azhari, ele cuida de sua filha sozinho.
Um cheiro gostoso de carne, um rato abatido por ele, chega às narinas de Aishä. Ela sorri para
o pai, mas sabe que ele está cansado. Hoje com dezessete anos, ainda lembra como foi difícil perder
a mãe na grande catástrofe. O pai sempre conta como foi sobreviver ao verdadeiro inferno na Terra,
deixando-lhe conselhos preciosíssimos e constantemente protegendo-a.
Porém ela pensa uma bobagem enquanto olha para o seu pai, já bem velho, manco de uma perna
que só não perdeu porque Aúra-Masda teve muita misericórdia dele.

Os anos estão passando rápido demais, estamos em dezembro do ano de 6835, não me lembro do
dia, mas sei que é perto do meu aniversário.
O Sol rasgou nossa atmosfera, em fevereiro de 6820, devido à ambição humana de querer algo que
não podiam controlar. Com isso, a minha mãe não conseguiu sobreviver. Ela se tornou poeira em
frente a meu pai, o traumatizando para sempre. Ele ainda perdeu a visão do olho esquerdo por tentar
salvá-la e foi nesse momento que uma força mística o puxara para dentro, nos cerrando em seu interior
por longos nove meses.
Minha mãe havia subido do abrigo subterrâneo, estava buscando mais vegetais para nossa
alimentação, quando a sirene começou a soar e, um minuto depois, tudo já estava desmoronando. Eu
era um bebê, não me lembro dela, mas sinto muito amor. Meu pai dissera que ela, pouco antes de
morrer, colhera e guardara no abrigo três balaios de vegetais”.
Meu pai sempre foi um bom monge tibetano, mestre de armas que me ensinara desde cedo a me
defender. Mesmo com um olho cego, mancando de uma perna, ele ainda é um grande oponente. Ainda
não contei sobre os Karnähk, um grupo de homens que vivem a saquear abrigos dos outros, mas já
contarei sobre eles.
Após longos meses, nove para ser mais exata, meu pai saíra do abrigo. As cinzas de minha mãe
haviam sumido devido ao grande vendaval que teve depois da atmosfera rasgada. Era dia e, ao longe,
meu pai viu uma sombra erguendo-se com areias negras à sua volta, tão negras quanto o céu à noite
ou quando você observa muito tempo um abismo onde só falta a escuridão te tragar.
Ele sentiu como se sua alma fosse inundada pela escuridão, foi quando retornou com pressa,
acendeu um incenso, fez uma prece a Aúra-Masda e, imediatamente, sentiu seu coração mais limpo.
Depois, meu pai atraiu a escuridão para nosso abrigo, criaturas malignas e os Karnähk vieram para
nos enfrentar… melhor, enfrentar o meu pai.
Naquela época, há quase quinze anos, ele se saíra muito bem fazendo com que as criaturas
malignas e os Karnähk fossem enxotados de nosso abrigo, mas meu pai decidiu que aquele não era
mais um refúgio. Estamos há mais de uma década vagando sem rumo, por um planeta completamente
destruído. Até hoje encontramos engarrafamentos de carros onde todos foram incinerados vivos.
Evitamos as grandes cidades, os Karnähk estão sempre patrulhando por lá, mas aqueles edifícios
enormes estão apenas depenados. Uma vez, precisamos passar por uma cidade gigante. Eu tinha sete
anos, meu pai se esforçou ao máximo para não ter de passar, mas dar a volta seria longe demais,
levamos cinco dias.
A tensão de ter de lidar com a furtividade, num local onde quase tudo fazia barulho, era o mais
difícil. Tivemos que nos esconder em um complexo, meu pai havia avistado uma criatura estranha:

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tinha corpo humano com grandes pinças no lugar das mãos, uma cauda de escorpião, um par de asas
de águia nas costas. Era grande e era bípede.
Ficamos ali durante algumas horas, depois fomos caminhando para fora daquele centro de cidade
destruída. Conseguimos sair, mas foi complicado, porque fomos perseguidos por aquela criatura
durante muitos e muitos quilômetros deserto adentro. Até que uma luz ofuscou os olhos daquela
criatura e nós conseguimos seguir para mais longe, enquanto ela voava para aquele centro destruído.
Numa noite de chuva ácida, precisamos correr para não morrermos. Estávamos num abrigo e meu
pai confessara que havia visto Ahriman, o Deus da Escuridão. Aquilo me fez ficar tão cheia de medo
que tive um pesadelo naquela noite. Antes de contar sobre o pesadelo, nós, meu pai e eu, usamos
roupas que nos protegem quando estamos fora de abrigos, sem elas nós já teríamos morrido há anos.
Aquele pesadelo marcou meus dez anos, foram anos até conseguir dormir em paz; mas a verdade
é essa: nós nunca estamos em paz. Em uma noite qualquer, caminhávamos por algumas dunas até que
chegamos a uma pequena construção. No fundo, sabíamos que não era uma construção abandonada.
Vagamos bem devagar, passo a passo, a mão de meu pai estava no cabo de sua espada e eu o imitava.
O meu coração batia rápido, minha respiração não estava controlada, foi quando uma voz do fundo
do negrume dissera:
— Vai infartar desse jeito, minha criança! — O tom da voz era de um desdém e meu pai me olhara
por sua visão periférica sinalizando que estava tudo bem.
Na maioria das vezes, eu me escondia e meu pai fazia todo o trabalho; desta vez enfrentei seja lá
o que for dizendo:
— Não tenho medo de você. Mas você parece ter medo de nós e gostar de esconder na escuridão.
— Criança tola!
A voz parecia ser doce, algo gostoso de ouvir; me sentia caindo num sonho lúbrico sem vontade
de voltar. Recobrei a consciência quando meu pai me desaprovou, levando o dedo indicador à boca,
e a resposta veio como um furacão. No meio da escuridão, um par de olhos incandescentes se
mostraram com veemência, a palidez mórbida parecia tornar seu corpo, que era pequeno, aceso por
uma luz maligna; a aura tenebrosa se espalhava por todo local.
Era uma menina, porém a vontade de matar era algo mais forte que qualquer coisa que meu pai ou
eu já havíamos sentido, tirando claro o breve encontro que meu tivera com o próprio Ahriman.
Quando ela se jogou com uma velocidade incrível, meu pai sacou sua espada. A lâmina brilhou tão
forte que aquela criatura das trevas se recolheu na escuridão e ninguém se feriu.
Quando vi aquela menina se escondendo, me lembrei de um pequeno pedaço de um livro, quase
todo destruído, que li uma vez: “Nem sempre o mal é mal de verdade. Ele, o mal, está esperando uma
oportunidade para praticar o bem”.
— Ei, moça, eu sei que está aí, nós não queremos te causar mal, estamos apenas querendo um local
para descansar, somos nômades e de alguma forma sinto que podemos nos ajudar.
O silêncio foi longo e profundo. Meu pai não entendeu muito o que eu estava fazendo e para não
me deixar falando sozinha respondeu:
— Aishä, esta criatura só deseja fazer o mal, ela não sabe diferenciar este padrão, deve estar ligada
a Ahriman e promovendo seu mal por esta região. Só olhar para o teto e você verá vários ossos
humanos: Aishä, ela só vive para se alimentar.
— Você se descobrirá um tanto errado quando se trata de minha pessoa — disse ela, em pé diante
de nós dois, sem nos ameaçar.
Pequena, como mencionei., tinha a pele alva que a tornava exótica. Trajava um vestido negro que
mais parecia uma nuvem circulando por seu corpo compacto. Os olhos acesos como um aviso de que
está ali para entender o que queremos, mas sem confiança em nós.
— Qual é o seu nome? — perguntei sem pestanejar.
— Sophie Mimieux.
— Quantos anos você tem?
— Isso está virando um interrogatório, mas vou responder, eu nasci em 17 de fevereiro de 1969
do antigo calendário gregoriano, se é que hoje em dia ainda usamos tal calendário.

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— Você é muito velha para essa aparência de dezessete anos.
— Sim. E você tem quantos anos?
— Dezessete anos, faço dezoito no dia 25 de dezembro.
— Daqui a alguns dias — Sophie replicou com seus olhos parados.
Ela não piscava, não emitia nenhuma emoção. Seu rosto parecia uma máscara de mármore branco,
tão branco quanto um cadáver reanimado, apesar de ser a “mulher” mais linda que eu já pude ver.
— Aishä, não devemos ficar conversando com ela, ela é má e está tentando ganhar nossa confiança
para nos destruir.
— Calma, velho, não sou um tigre que se vinga de quem lhe fez mal.
— Tigre?
— Sim, antes de tudo acontecer, existiam muitos animais nessa terra. Porém, depois do ocorrido,
todos viraram apenas lembranças em nossa mente.
Me senti triste ao ouvir aquilo da boca de Sophie, era como se sofresse mais que eu. Se está nesta
Terra há tantos milênios, imagino que sempre conseguiu se virar sozinha.
— Sophie, o que você deseja?
— Destronar um rival que sempre tenta me destruir e roubar o meu poder.
— Quem é este rival? — perguntou meu pai.
— Ahriman, o Deus da Escuridão, ou o que posso chamar de Abismo, a Entidade Cósmica da
Escuridão de onde retiro o meu poder.
Os olhos do meu pai se arregalaram, ele começou a suar frio. Eu percebi, mas mantive-me firme.
Sophie também percebeu e perguntou:
— Está tudo bem com o senhor?
— Você é uma Feiticeira do Abismo — meu pai afirmou, sem responder à pergunta.
Ela apenas sorriu e confirmou com a cabeça.
— Não imaginava que, ainda no ano que vivemos, alguém saiba de nossa existência.
— Nossa? Existem mais? Pois pelo que consegui colher informações, o próprio Ahriman destruiu
a maioria dos Feiticeiros do Abismo para não dividir seu poder com eles. Como você ainda está
“viva”? — perguntou, fazendo o sinal de aspas com as mãos.
— Na verdade, não sei lhe responder esta pergunta, mas quero deixar claro que vocês dois não são
meus alvos. Se eu quisesse mesmo, já estariam mortos ou…
— Você estaria morta — disse, interrompendo-a, o que a deixou calada por alguns segundos.
Então ela deu de ombros e nem tentou falar mais nada sobre.
— Como podemos confiar em você, Sophie?
— De uma forma simples: eu colocarei todos os meus guardiões das sombras protegendo vocês
até durante o dia. Vocês dois se movimentarão pela superfície e eu, pelo subsolo. Acreditam que
existe uma cadeia de cavernas que se estendem por quilômetros debaixo da terra?
— Sim, acredito. Mas, para nós dois, é um caminho muito perigoso, por isso usamos a superfície.
— Sophie, o que de fato aconteceu para que esta tragédia mundial ocorresse? — perguntei com
lágrimas nos olhos e me sentando no chão.
Ela olhou para o meu pai, sentando ao meu lado, acariciando meus cabelos de pontas cacheadas e
respondeu:
— Os seres humanos foram tolos, queriam utilizar a chamada energia escura ou matéria escura
para produzir energia o suficiente para que todo o planeta Terra tivesse energia de sobra. Mas eles
não imaginavam que, com essa energia escura, vinha de brinde Ahriman, que rasgou a atmosfera e
permitiu o Sol destruir tudo.
Meu pai, sem eu perceber, havia sentado de frente para Sophie. Ele estava mais calmo em relação
a ela.
— Acredito que não tentará nos atacar quando estivermos dormindo — afirmei, e ela prometeu.
— Existem muitos humanos por este grande planeta apocalíptico? — perguntara meu pai.

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— Evidentemente, vocês, seres humanos, são criaturas muito frágeis, porém, quando se trata de
sobreviver, diante a qualquer dificuldade, sempre conseguem. Vocês são seres complicados de se
exterminar — respondeu ela num tom sarcástico, depois gargalhou.
— Não há nada de engraçado nisso, Sophie, sobreviver é um ato de evolução. Você mesma, pelo
o que entendi, vive sempre se escondendo do que poderia destruí-la. Você não é muito diferente dos
seres humanos — disse, sem saber se ela iria ficar ou não irritada.
— Existem seres humanos com coração bom, alguém que possamos confiar?
— Sim, existe um grande abrigo de humanos no subsolo, mas vocês estão muito longe de encontrar
e, para melhor informação, Ahriman está atrás deste mesmo refúgio. Não sei o que aconteceria se ele
o encontrasse.
Ficamos nos olhando em silêncio por algum tempo, enquanto ela continuava acariciar meus
cabelos. De repente, Sophie saltou para o teto da construção dizendo:
— Não estamos sozinhos.
Meu pai se escondeu e eu fiquei ali sentada como que estivesse chorando. Estava de frente para a
entrada da construção quando três silhuetas se mostraram e começaram a entrar bem lentamente.
Quando os três estavam próximos, eu ataquei o da direita primeiro, que empunhava um fuzil. Eles
não esperavam, mas eu era rápida.
Percebendo a minha movimentação, ele começou a usar o fuzil, mas eu repelia todas as balas com
a minha espada: esse era o meu dom. Cheguei a ficar apenas cinquenta centímetros dele, quando
desferi cinco golpes, finalizando a vida dele. A minha espada estava brilhando.
O segundo começou a disparar e eu cravei a espada no chão, me escondendo dos disparos que
acertavam um escudo de energia branca. Enquanto ouvia os disparos, comecei a traçar riscos no chão,
falando algumas palavras mágicas, até que tudo se sincronizou e eu me camuflei naquele local.
Os disparos cessaram e eu escutei os passos chegando para ver além do escudo de energia. Mas
como não foi capaz de me ver, voltou sua atenção para o terceiro. Aproveitando o momento, meu pai,
mais rápido que um raio, decapitou aquele terceiro enquanto as sombras de Sophie seguraram o que
estava à minha frente, erguendo-o para o teto e o escondendo na escuridão. Pouco depois, o corpo
caiu seco como uma casca de árvore.
Ela reapareceu limpando a boca. Os olhos estavam mais brilhantes, a pele estava um pouquinho
mais corada, mas muito leve. Ela parecia feliz.
— Você parece uma predadora com essa espada — Sophie disse, se voltando para onde eu estava
camuflada com o ambiente.
— Consegue me ver?
— Evidentemente sim, meus olhos não seriam enganados por esse seu truque. Ainda bem que
eram seres humanos nos atacando. Mas me diga o porquê de você não se esconder?
— Sempre sirvo de isca, assim meu pai pode pegar os inimigos pela retaguarda e não dá tempo de
revidarem.
— Interessante, mas cuidado, existem seres neste planeta esquecido por Deus que são muito
perigosos e que podem te matar apenas te olhando.
Assenti para ela, começando a amar aquela criatura que não era humana. Mas algo me dizia que
ainda teríamos surpresas pela frente, por isso decidi não me deixar levar pelas emoções.
Meu pai bateu o campo para ver se algo mais se aproximava, mas a noite era tão escura que não
dava muito para enxergar. Relâmpagos clareavam o céu prometendo chover em breve. Meu pai
retornou cansado.
— Eles vieram do Nordeste, estavam em quatro. O último pode estar por aí e não deve ser igual
aos que abatemos.
— Como assim? — perguntou Sophie, intrigada.
— As pegadas desses três aqui são humanas, mas as pegadas do quarto parecem ter três pernas ou
ele usa algum apoio para conduzir seu caminhar.
— Venham, vocês precisam se esconder, venham — disse desesperada.

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Nós a seguimos, ela nos levou para dentro da escuridão. Uma sala bagunçada, após descer muitos
degraus para chegarmos.
— Fiquem aqui e não saiam por nada, irei subir para recepcionar nosso inimigo.
Observei a sala. Diante daquela bagunça, achei dois anéis e uma adaga que mais parecia ser uma
presa de um lobisomem. Meu pai achou uma passagem secreta, tateando as paredes, que levava
novamente para o andar de cima, era uma saída de emergência da construção abandonada.
Os anéis, coloquei um em cada dedo indicador, e fiquei com aquela adaga. Subimos, chegando no
final de uma duna de onde conseguíamos ver a construção. Caminhamos sorrateiramente até
chegarmos bem perto, pois saímos há uns duzentos metros do prédio.
Quando chegamos lá, um ser de manto hieroglífico vermelho, com uma tênue aura maligna que
saltava de seu corpo, estava drenando as veias de Sophie. Os hieroglíficos brilhavam uma falsa paz,
havia um rosnado no fundo daquelas presas cravadas no pescoço da “mulher”. Não pensei duas vezes
e disparei para dentro da construção com a mão no cabo da espada, golpeando num semicírculo e
decapitando aquela criatura. A ponta de minha espada arranhou de leve o pescoço de Sophie, mas ela
estava liberta daquele ser.
Ela caiu no chão se contorcendo, seus olhos eram um poço de escuridão. Olhando diretamente
para mim, ela se voltou para o corpo no chão e desesperadamente atacou-o, consumindo o máximo
de sangue que podia.
Fiquei com a túnica vermelha cheia de hieróglifos e o cajado. Meu pai pegara o colar e um anel
preto que não colocou no dedo, por qual motivo não sei.
— Você me salvou, Aishä, por quê? — Sophie não parecia acreditar que um ser humano tinha
salvado a sua não-vida.
— Porque somos aliadas, não poderia deixar aquela coisa matar você — respondi com um sorriso
no rosto.
— Quem era ele? — perguntou meu pai, vindo até Sophie e ajudando-a a levantar-se.
— Ele era um Durgash, um ser humano com modificações mágicas. Fazem parte de uma facção
criminosa e são grandes caçadores dos Anjos.
— Nunca havia ouvido falar deles. Compreendo, então, que ele atacou com magia, mas o porquê
das presas vampíricas dele se não era um?
— Eles podem moldar suas formas como quiserem, usam a mágica profana para alcançar seus
objetivos e ainda podem usar encantamentos poderosíssimos para isso.
— Precisamos sair daqui, não é mais seguro — disse meu pai.
Sophie e eu concordamos com a cabeça.
Saímos mais uma vez para vagar pelo imenso deserto. Nossas roupas de proteção faziam seu papel,
enquanto Sophie não usava nada parecido. Pelo curso das estrelas acima, ainda temos umas nove
horas de escuridão.
A Lua estava alta, mas não tanto. Vagamos com cautela por mais ou menos duas horas e nos
deparamos com outro Durgash que, antes mesmo de chegarmos perto, nos atacou com magia massiva.
Meu pai segurou com a espada, desviando a magia para a esquerda e começando a correr. Eu já
estava mais perto do Durgash quando algo escuro e negro me segurou, atirando-me para o alto: era
Sophie usando o poder do abismo.
Éramos uma equipe tentando nos livrar desse perigo iminente. Havia uma escuridão cercando a
visão do Durgash quando meu pai o assaltou com a espada. Eu caí em cima do inimigo cravando a
minha lâmina em seu ombro, empurrando-a até o cabo. Então os tentáculos de sombra de Sophie
agarraram o Durgash e o estilhaçaram em vários pedaços.
Atrás de nós havia uns cinco batalhões de Durgash. Meu pai olhou-me e eu entendi o que ele estava
querendo dizer.
— Não, pai, o senhor não pode batalhar contra todos eles.
— Sim, eu posso e Aúra-Masda será meu condutor. Vá, Sophie, leve-a para o destino que seu
coração negro mandar, mas proteja minha filha, ela é a Alva da Esperança.
— Não, pai! — gritei antes de acontecer.

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Naquele momento, a escuridão me alcançou, não vi e nem ouvi mais nada. Acordei pela manhã
numa sala onde a luz do sol entrava. Estava nos braços de Sophie enquanto ela cantava uma nênia
que me acalmava. A dor era grande, meu pai se sacrificou para que chegássemos até aqui…, mas
onde é aqui?
— Aqui é o mais perto possível de Ahriman, o Deus da Escuridão e do último refúgio dos seres
humanos — respondeu Sophie, confirmando que podia ler pensamentos.
— O que acontece se destronarmos Ahriman?
— Posso ser a nova Deusa da Escuridão.
— Será como ele está sendo? Se sim, esqueça, eu não irei trocar seis por meia-dúzia.
— Serei o oposto, pode ter certeza, mas se existe a Luz de Aúra-Masda, evidentemente precisa ter
uma escuridão para manter-se o equilíbrio.
— Certo, se você fizer igual a ele, eu caçarei você e a destruirei.

Os olhos de Sophie estavam enxergando uma nova identidade. Baseada na dor da perda de seu
pai, Aishä agora estava lidando com seus próprios demônios internos.

Ficamos naquele abrigo por longas sete noites à espera de meu pai, mas bem sei que ele não
sobreviveu e acredito mesmo que não tenha sobrado nenhum Durgash daquele exército, pois, ao
contrário, eles já teriam nos encontrado. Na oitava noite, nós duas saímos para prosseguir com o
combinado e, em memória de meu pai, concluir aquilo que ele tanto desejou: encontrar o refúgio dos
seres humanos.
Depois que algumas horas, Sophie travou no meio do deserto, observando tudo com aqueles olhos
incandescentes.
— Aconteceu algo? — perguntei.
— Areias Negras.
Meus pensamentos voaram nas lembranças onde meu pai contava sobre Ahriman, o Deus da
Escuridão. Havia uma construção aos pedaços bem perto, então fomos para lá, onde encontramos um
Durgash que estava sangrando e não tinha um dos braços.
Ele caminhara para dentro das Areias Negras quando foi agarrado pelas pernas e, com uma força
inumana, desmembrado sem conseguir emitir um grito de dor. Os muitos tentáculos levaram os
pedaços do Durgash até uma sombra alta no meio daquela areia.
Era Ahriman, que estava aproveitando para comer um pouco de carne fresca. Enquanto nós o
olhávamos da construção, ele voltou seus olhos para o lugar que escolhemos para nos esconder.
— Ele sabe que estamos aqui, Aishä, o que vamos fazer?
— Ficarmos e enfrentar. Meu pai não morreu em vão.
Observei que Sophie estava olhando para o chão. Seus olhos se alarmaram e ela disse bem
baixinho:
— Aishä, nós estamos na entrada no Último Refúgio dos Homens e Ahriman está vindo para cá.
Não pensei direito, saltei para fora do abrigo. Era rápida, mas as Areias Negras vieram atrás com
velocidade da qual não imaginaria que tivesse. Uma coluna daquela areia se ergueu muito alto,
descendo com violência para me pegar.
Olhei para o anel que estava comigo, o ergui dizendo umas palavras mágicas e um facho de luz
rasgara a coluna debaixo para cima, fazendo as areias recuarem. A cinco metros à minha frente,
apareceu o Deus da Escuridão dizendo:
— Pequeno vaga-lume, essa será sua última noite. Você não tem poder para me enfrentar…
Naquele momento, alguma coisa muito brilhosa estourou sobre a cabeça de Ahriman. A luz era
tão poderosa que escutei o deus blasfemando contra Aúra-Masda e o vi se recolhendo para dentro do
deserto.
De uma duna mais alta, Sophie havia jogado uma granada de atordoamento que não sei onde
encontrou. Mas sei que Ahriman sofrera muito com aquela luz repentina.
Segui duna acima e, chegando, ela me disse:

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— Essa é a nossa deixa para nos prepararmos. Essa luz foi apenas uma distração, agora
batalharemos de verdade.
Ela me entregou cinco granadas de atordoamento, às quais amarrei, pelos pinos, com um fio de
náilon que meu pai me dera, dizendo em minha mente para usar no momento certo, que encontrou na
construção onde é a passagem para o Último Refúgio dos Homens. Sophie ficou olhando para os
anéis em meus dedos, os reconhecendo, então me olhou nos olhos e sorriu leve e grotescamente.
“Seres velhos como ela não sabem mais o que é sorrir”, pensei depois que ela se afastou para
podermos ganhar o campo de batalha.
As Areias Negras voltaram para a superfície, mostrando que não teria mais volta. Ahriman saltou,
caindo em pé e um pequeno fluxo de vento, como uma onda de choque, passou por mim. Aquilo não
me deixou com medo: o anel começou a brilhar e expandir a luz à minha volta. Coloquei a mão na
espada, olhei para Sophie e disse:
— Por Khalïd Badawi Azhari!
Comecei a correr na direção de Ahriman quando as areias negras começaram a cuspir tentáculos
negros; todos, eu cortava com grande facilidade. Chegando bem perto, golpeei o Senhor do Escuro,
mas meu movimento foi bloqueado por uma espada de sombras. Quando as se tocaram, houve um
eco como de um trovão, nos atirando a dez metros para trás.
Começaram a surgir os Karnähk sendo controlados por grupos de Durgash. Sophie estava ocupada
contra eles, mas não estavam dando tanto trabalho a ela, apesar de serem muitos. À minha frente,
aquele que rasgou a nossa atmosfera causando todo o mal.
— Pequeno vaga-lume, você é forte até. Mas antes de te matar, vou lhe contar uma pequena
história: sou o responsável pela destruição da atmosfera de Marte, pelo aquecimento destrutivo de
Vênus, eu sou o Senhor do Universo Escuro e você ainda acha que vai me enfrentar e ganhar.
— Cala a sua boca, Aberração. Eu sou a Alva da Esperança e lhe mostrarei como é se vingar por
toda a vida humana que você ceifou.
Corremos para a batalha. Eu era mais rápida devido o meu tamanho, ele, mais forte. Nossas
espadas sempre se cruzaram. Além de aparar os golpes dele, tinha que me defender dos tentáculos de
areia negra que estavam sempre cuspindo em minha direção.
Estava ficando sem fôlego de tantos golpes desferidos e bloqueados. Os músculos já estavam
ardendo, mas sentia um fogo crescente em meu interior: era o amor pela batalha. Eu sabia que tudo
dependia dessa batalha, que os seres humanos lá embaixo poderiam ser dizimados se eu não vencesse.
Com a ajuda do segundo anel, conjurei algumas coisas por intuição, porque não sabia realmente o
que estava acontecendo. Mas a batalha estava feroz.
Numa ação rápida, segurando aquele fio de náilon, rodei as cinco granadas no ar e, quando tive
oportunidade, as lancei no meio da escuridão. Puxei o fio, que arrancou todos os pinos, explodindo
no rosto de Ahriman, provocando-lhe muitos danos agravados por conta da luz.
Ele estava desnorteado e eu aproveitei para golpeá-lo à vontade. Aquilo saiu como o esperado:
cortei o que podia cortar do corpo do Senhor do Escuro. O sangue negro escorria das feridas, caia no
chão e derretia a areia a seus pés.
Durou até que os olhos de Ahriman voltassem ao normal. Estava muito ferido. Gritando e
blasfemando, girou sua espada no ar, golpeando em minha direção. Desta vez, a onda de choque foi
tão violenta que me atirou para longe, tão longe que trombei com um Durgash no meio do caminho
com tanta força que ele desmaiou.
Um Karnähk aproveitou para me atacar e eu o decapitei com maior facilidade; foi algo que nem
ponderei fazer, apenas fiz. Olhei de volta para Ahriman: ele estava ainda me olhando de longe com
aquela cara cheia de ódio.
Antes de seguir com o pensamento de me atirar novamente contra Ahriman, voltei uns metros e
desferi um golpe de misericórdia no Durgash que estava desacordado. Ergui minha espada e disse:
— Esta noite será o seu fim, Ahriman. Por todos os crimes que cometeu, por todo o mal que
disseminou, para todas as criaturas que você criou e para cada alma inocente que não pode se proteger
de sua covardia.

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— Falar é bem mais fácil do que realmente realizar, Pequeno Vaga-lume — ele dissera, terminando
de regenerar seus machucados.
Corri de novo para o meio da batalha, estava cheia de esperança que seria naquela noite que tudo
iria acabar. Não acreditava que ele tinha se curado; a meu ver, era apenas uma ilusão. Eu iria
prosseguir com tudo o que podia para me vingar do planeta Terra.
Enquanto estava correndo, não dava para prestar atenção em Sophie, que estava se saindo bem
pelo o que pude ver de relance. Em um determinado momento, Ahriman golpeara o chão, me atirando
para longe. Consegui aparar o violento golpe, mesmo estando caída no chão.
Quis levantar o mais rápido possível, mas fui pega pela perna esquerda por um tentáculo que
segurava com força. O chão tremia com os passos de Ahriman correndo. A sombra cresceu, erguendo
a espada, a ponta da lâmina brilhando com a luz lúbrica da Lua e desceu como um augúrio em minha
direção.
Apenas fechei os olhos, senti uma estocada na barriga, e meu rosto ficou todo respingado de
sangue. Abrindo os olhos, era Sophie que recebera o golpe com mais força para me proteger. Ela
gritou uma litania.
Aquela litania atirou Ahriman longe, puxando a espada com força, o que fez com que eu e a Sophie
caíssemos no chão. Ela estava mais ferida do que eu, mas ambas sangrávamos.
— Aishä, perdoe-me, mas não tem como vencermos, aqui será nosso túmulo.
— Ainda não estamos mortas, Sophie, tenha um pouco de fé que vamos conseguir — disse para
amenizar a situação.
Ahriman já estava sobre nós duas novamente, sorrindo e erguendo a espada. Ele não contara que
alguém o golpeasse pelas costas. A batalha retornou feroz, agora era ele contra outra pessoa que não
conseguia enxergar.
Minha visão estava turva devido à quantidade de sangue que havia perdido, foi por um lance que
o brilho da Lua refletiu na espada e direcionou ao rosto daquele guerreiro: era meu pai, estava
batalhando ferozmente para nos proteger.
Ele estava num campo minado por tentáculos de areia negra.
— Pai!
Me ergui com uma força que não sabia de onde vinha, disparei para As Areias Negras cortando
todos os tentáculos que cuspiam em minha direção. Só conseguia enxergar meu pai e aquela sombra
de quase dois metros de altura. Pelo meio do caminho, tirei da mão do meu pai a espada dele, cravando
ambas bem fundo no peito de Ahriman.
— Tarmiarv schrork sajantier, Aúra-Masda — gritei.
Dos céus, desceu uma luz azulada que me acertou, usando-me para conduzi-la até Ahriman que
berrou como um animal ferido. Ele liberou toda a sua escuridão, mas a luz que de minha alma vertia
destruiu aquelas sombras.
A explosão varreu todas as criaturas malignas no mundo pós-apocalítico, menos Sophie. Ela virou
poeira, sua alma escorregou para o abismo, e aquilo fez meu coração doer.
No meu caso, eu deixei de existir, pois meu sacrifício maior era que meu pai estivesse vivo, e,
bem, alcancei a Ascensão sobre o Estandarte de Aúra-Masda. Meu corpo virou poeira; apenas minha
espada, os anéis e a adaga de presas de lobisomem ficaram intactas.
Meu pai recolheu meus pertences com lágrimas nos olhos. Quando ele segurou o segundo anel, o
objeto brilhou tanto que deixou de existir: Sophie foi ressuscitada em seu próprio corpo. Ela observara
o meu pai e se despedira, vagando para o abismo agora como regente. Ele, por sua vez, seguira para
o Último Refúgio dos Homens, levando esperança para aquelas pessoas lá embaixo.
Hoje é dia 25 de dezembro de 6835, meu aniversário, natal e eu me tornei a Santa Aishä Badawi
Azhari, aquela que entregara sua vida para salvar o mundo das amarras de Ahriman, o Deus da
Escuridão e que foi recebida em cima pelo próprio Aúra-Masda.

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Alimentem o faraó

Fellip Rodrigues Marcondes

PORTO DA CIDADE DO CAIRO, EGITO


AGOSTO DE 1858

E ra mais um dia quente, seco e agitado no rústico porto de madeira do Cairo. O calor já fazia
parte do cotidiano dos moradores do local, porém, para a grande quantidade de turistas
europeus, era um dia quente sufocantemente desagradável que fazia com que eles desejassem
voltar ao conforto de seus lares distantes. Muitos destes turistas eram atraídos pelos mistérios que os
jornais noticiavam sobre as tumbas descobertas por arqueólogos famosos e das riquezas enterradas
sob toneladas de areia, mas poucos se aventuravam na busca pelas tumbas ou pelos tesouros perdidos.
Zahi, uma jovem garota órfã, que se vestia e agia como um garoto para que pudesse trabalhar
naquela sociedade conservadora, aguardava pacientemente seus clientes do dia: um grupo de
arqueólogos vindos da Inglaterra que iriam tentar a fama assim como muitos outros historiadores
que haviam tentado encontrar algo na região. Há alguns dias, dois ingleses a contrataram para
que os guiasse por uma região em que, ouviram falar, possivelmente existiria uma tumba perdida
de um faraó há muito esquecido. A garota aceitou o serviço, pois era a que conhecia melhor toda
a região das escavações e que oferecia o melhor preço da região como guia.
Com quase uma hora de atraso, o barco a vapor que trazia seus clientes atracou no agitado
porto da cidade. Zahi já havia preparado quatro camelos para carregar a bagagem dos estudiosos
e, assim que eles desembarcaram, a garota foi recebê-los cordialmente. Ao todo, eram nove
pessoas vindas para aquela expedição que, se desse certo, poderia agregar mais pessoas.
— Espero que tenham feito uma boa viagem — disse Zahi ao líder da expedição que a
contatara há alguns dias. — Essa é a equipe que o senhor havia comentado?
— Infelizmente, sim — respondeu o arqueólogo, visivelmente frustrado. — A academia
acredita que minha expedição não passa de um sonho tolo de um senhor à beira da velhice, mas
irei provar a todos que estão errados. Fez todos os preparativos que solicitei a você?
— Fiz, sim. Os camelos estão esperando logo à frente e já adiantei as papeladas de suas
bagagens. Basta acomodar tudo nos animais para podermos seguir viagem o quanto antes.
— Perfeito!
Após ajeitarem todo o material de pesquisa nos camelos, assim como as provisões, o pequeno
grupo partiu em viagem para o local onde o arqueólogo havia repassado a Zahi. Depois de quase
oito horas de viagem, cruzando um deserto sem fim, o grupo chegou a uma grande inclinação
rochosa que emergia da areia, formando um bom local para que pudessem montar acampamento.
Naquele mesmo local ficava a entrada de uma caverna que, segundo fontes do arqueólogo,
poderia dar acesso a uma tumba ainda não explorada.
Antes de entrarem, o pequeno grupo montou acampamento na encosta da formação rochosa,
um pouco distante da entrada da caverna. O grupo descansou um pouco e se preparou para
adentrar à formação. Nesse meio tempo, o arqueólogo líder da expedição chamou Zahi para um
canto mais afastado para que pudessem conversar.
— Como prometido, aqui está seu pagamento — diz o arqueólogo, entregando à garota um
pequeno envelope contendo uma boa quantia em dinheiro. — E, assim como combinado, coloquei
um adicional para que não conte a mais ninguém sobre este lugar. Enquanto exploramos, peço-

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lhe que não se vá ainda. Iremos precisar de ajuda para voltar para a cidade e, se tudo sair como
planejado, poderemos dobrar sua bonificação, mas apenas se encontrarmos tesouros ou algo de
valor de algum faraó.
A garota assentiu sem dizer nada ao pesquisador e juntos retornaram para a entrada da caverna
onde o grupo os esperava.
À medida que o pessoal avançava na caverna, hieróglifos começavam a ser vistos em cantos
estratégicos, incrustados nas rochas, o que começou a empolgar os pesquisadores que,
entusiasmados, paravam a cada pouco para tentar ler o que cada um daqueles sinais significava.
Após algum tempo de caminhada, o grupo chegou à entrada de algo que parecia um templo com
duas grandes estátuas na entrada de uma porta enorme. As cabeças das imagens estavam bem
danificadas, dificultando o reconhecimento das divindades que representavam.
Ainda do lado de fora, diferente de tudo que já haviam visto, as paredes possuíam diversas
ilustrações que pareciam terem sido pintadas há pouco tempo e nenhuma delas estava danificada
ou inacabada. O interior da tumba também possuía o mesmo tipo de hieróglifos e extensas
ilustrações, que circundavam grandes portas e, no centro do templo, havia uma grande pedra
como uma mesa para sacrifícios.
Empolgadas, cada pessoa do grupo ficou em um canto do templo, admirando o lugar, fazendo
anotações em suas cadernetas e tentando entender o que cada um daqueles hieróglifos queria
dizer. Enquanto isso, Zahi apenas circulava no centro do templo como se nada daquilo importasse.
Quando todos estavam realmente ocupados com a descoberta inicial, a garota saiu do templo e
ficou do lado de fora, pois sabia o que estava para acontecer.
Uma ventania incomum, canalizada por uma das passagens do templo, apagou o fogo das
tochas nas paredes e de alguns dos lampiões que os pesquisadores haviam levado. Sem entender
o que estava acontecendo, o grupo se reuniu novamente no centro do templo, próximo à grande
pedra central, para tentar reacender seus lampiões com quem ainda tinha fogo.
Nesse instante, um dos arqueólogos foi puxado para cima e desapareceu na escuridão. Em
meio a gritos de desespero e pavor, o pessoal que restou tentou fugir, mas foram atingidos pelo
corpo já sem vida de seu companheiro. Antes que pudessem processar o que estava acontecendo,
uma figura grande, esquelética, com faixas por todo o corpo e vestimentas que remetiam às de
um faraó, desceu próximo a eles. Com um golpe, decapitou um dos homens e, logo em seguida,
segurou outros dois com suas grandes mãos esqueléticas. A grande múmia começou a sugar a
vida de ambos e, quando lhe restaram apenas pele e osso, jogou-os no chão como se fossem nada
e partiu para atacar quem havia restado.
Os cinco restantes golpearam a múmia com as pás que haviam trazido e tentaram atear fogo
nela com o querosene de seus lampiões. Porém nada surtiu efeito e, sem cerimônia, a grande
múmia ceifou a vida daquelas pessoas também.
Após tudo ficar quieto, Zahi entrou novamente no templo enquanto a múmia fuçava em um
dos corpos, parecia procurar algo por ainda estar com fome. Com dificuldade, Zahi começou a
arrastar os corpos para um dos cantos do templo onde havia uma grande vala que serviria para
queimar os restos do que um dia já haviam sido pessoas.
— Você demorou demais para me trazer comida dessa vez! — resmungou a múmia, enquanto
se apoiava na pedra central olhando Zahi fazer o trabalho de limpeza do templo. — Comecei a
pensar que talvez tivesse se esquecido de seu acordo de servidão.
— Você faz parecer que é muito simples atrair turistas para essa área remota sem chamar a
atenção de muitas pessoas — respondeu Zahi, ofegante, enquanto lançava o último corpo na vala.
— Nove pessoas não foram o suficiente para saciar minha fome e você sabe disso.
— Mas precisamos manter a discrição até que você consiga regenerar seu corpo e viver uma
nova vida longe desse lugar. Usar o templo como isca ainda é uma saída muito viável e que atrai
muitas pessoas egoístas em busca de fama. Para um ser eterno, paciência deveria ser primordial,
nesse caso.

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— Já estou cansado de ficar nesse lugar. Por ora, ainda irei confiar em você para me trazer
sacrifícios até que chegue o dia em que finalmente poderei ser livre. Ainda possui o amuleto que
lhe dei? — Zahi puxou o colar de ouro, no formato de olho de Hórus com um rubi no centro,
escondido dentro de sua roupa. — Mantenha-o sempre por perto. Como já te disse, ele possui
propriedades místicas que irão lhe conferir proteção e saúde plena. É muito útil quando não estou
por perto.
Após saquear o que havia nos bolsos dos arqueólogos, a garota usou o restante do querosene
dos lampiões para atear fogo, se livrando dos corpos das pessoas que serviram de alimento para
seu mestre. Logo em seguida, Zahi desmontou o acampamento do lado de fora e retornou para a
cidade, onde venderia o equipamento a outros pesquisadores e, se desse sorte, conseguiria atrair
mais pessoas para levar para sua armadilha.

***

Há cerca de três anos, Zahi vivia pelas ruas do Cairo com um grupo de crianças órfãs, tentando
sobreviver da forma que podiam naquela cidade. Diferente das outras crianças, preferia ganhar
seus trocados diários com trabalho honesto ao invés de furtos e depredação. Como conhecia a
cidade como a palma de sua mão, Zahi passou a servir de guia turístico para turistas, até o dia em
que um grupo muito estranho de pesquisadores a abordou na rua. Perguntaram-lhe sobre um local
fora dos limites da cidade, o qual ela conhecia, mas evitava ir devido a boatos que as outras
crianças contavam sobre o desaparecimento de pessoas que iam até o lugar.
Desconfiada daquele pessoal, a garota tentou se afastar do grupo, porém, como lhe fizeram
uma boa proposta de pagamento e ela precisava do dinheiro para ajudar seus amigos, resolveu
aceitar o serviço a contragosto. Não demorou muito para que os preparativos da viagem fossem
feitos e, logo em seguida, o pequeno grupo partiu para o local indicado. Zahi teve a sensação de
que todos daquele grupo a olhavam de um jeito estranho, mas preferia pensar que era paranoia
sua.
Logo quando chegaram na formação rochosa que seus clientes queriam ir, Zahi foi atacada de
surpresa por uma das pessoas do grupo, que colocou um pano em seu rosto, cobrindo seu nariz e
boca. Zahi se debateu o máximo que pode, porém sentiu seu corpo enfraquecendo e sua visão
ficando turva até que apagou por completo.
Quando recobrou a consciência, estava presa a um altar de pedra em um templo desconhecido.
Mãos e pernas estavam amarradas, além de haver uma mordaça em sua boca. Todos os membros
do grupo agora usavam mantos brancos com capuz e falavam entre si em uma língua que a garota
desconhecia. Ao verem que ela estava acordada, todos se reuniram ao seu redor: foi quando ela
viu que um deles possuía uma pequena adaga.
Zahi tentou se debater, mas de nada adiantou. Um deles se prontificou a segurá-la enquanto a
pessoa que estava com a adaga começou a entoar um cântico, levantando a lâmina para cima da
cabeça, porém, quando iria desferir o golpe, uma corrente de ar veio de uma das entradas do
templo e apagou todas as tochas acesas no local, deixando todos no escuro. Logo em seguida,
uma a uma, as pessoas do grupo foram atacadas com precisão e silêncio por uma entidade.
Enquanto todos gritavam de dor e desespero, a garota amarrada no altar apenas fechou seus
olhos esperando pela sua vez, até que tudo ficou quieto e ela pode ver uma tocha se acendendo
novamente bem próximo dela. Ao encarar a figura que a observava, Zahi foi tomada por uma
onda de choque, precisando controlar-se para compreender a situação.
A figura esquelética se aproximou lentamente da garota e começou a desamarrá-la. Enquanto
a múmia a soltava, Zahi pode dar uma olhada melhor naquela criatura que estava parcialmente
enfaixada, porém com muitas partes ósseas expostas e uma fina camada de pele colada ao corpo,
além de estar usando trajes comumente utilizados por faraós do antigo Egito. Quando estava
completamente livre, Zahi saltou do altar e, ao invés de fugir, ficou parada observando a múmia.

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— Vejo que possui mais coragem do que muitas pessoas que já ousaram pisar aqui — disse a
múmia à garota, com uma voz grave e rouca. — Como salvei sua vida, você me deve sua servidão
até que eu consiga sair desse lugar. Traga-me mais vidas para me alimentar e, quando chegar o
dia em que eu consiga um novo corpo, poderei andar novamente entre os vivos para estabelecer
meu novo império, como Rá me prometera há mil anos. Então você poderá ser livre para fazer o
que desejar.
— O que acontece se eu não quiser servi-lo? — perguntou a garota, tentando se manter firme.
— O julgamento de Osíris e de Anúbis poderá vir mais cedo do que você imagina e sua morte
não será tão rápida como a destes sujeitos que iriam lhe fazer mal.
Zahi olhou em volta e só então se deu conta de que todos presentes ali foram mortos. Ela não
tinha outra opção a não ser servir aquela múmia que algum dia já havia sido um faraó importante.
Seja lá por quanto tempo ela teria de servi-lo, mas, pelo menos, parecia ter a perspectiva de que
um dia poderia ser livre novamente.
— Aceito sua proposta.
— Excelente — o faraó então retirou de seu cinto um colar de ouro com um pingente do olho
de Hórus, com um rubi no centro, e deu à garota. — Como forma de firmar nosso acordo, dou-
lhe este amuleto que representa nosso contrato sob supervisão do deus Hórus. Nunca o tire de
perto de você.
***
Quando Zahi saía de uma loja de penhores, onde havia vendido os últimos itens de sua
expedição, encontrou-se com seu amigo Said vagando sozinho pelas ruas.
— Que bom que lhe encontrei, Zahi! Preciso muito de sua ajuda! — disse o garoto, correndo
em sua direção.
— Dependendo do que posso fazer, fico contente em ajudar.
— Hoje cedo desembarcou no porto um grande grupo de arqueólogos alemães que vieram
atrás de alguma área que ainda não possua ninguém escavando. Consegui um acordo com eles e
irão me pagar bem se eu lhes arrumar um bom lugar para começarem sua escavação, porém não
conheço muitos lugares disponíveis por aqui e tenho até amanhã para falar com eles novamente
antes que eles busquem por outra pessoa. Você sabe de algum lugar que posso oferecer a eles?
Zahi não queria envolver seu amigo em problemas, muito menos perdê-lo para o faraó faminto
que ela escondia. Mas podia ser a oportunidade que ela teria de conseguir mais alimento para a
múmia em tão pouco tempo.
— Quantas pessoas há nesse grupo de expedição?
— Contei 30 pessoas e eles me disseram que podem contratar mais 10 pessoas locais para irem
imediatamente com eles, caso eu consiga um bom local.
— Conheço um lugar perfeito perto daqui. Volte e fale com eles. Prepare camelos e me
encontrem na saída do porto logo ao amanhecer. Porém tenho algumas condições para você:
primeiro, deve me prometer que não vai contar nada a ninguém sobre o lugar onde vamos;
segundo, quero quarenta por cento do que te pagarem. E, por fim, quando chegarmos, você fica
do lado de fora, cuidando dos camelos e do acampamento enquanto entro com o grupo. Se não
concordar com essas três condições, terá de procurar ajuda de outra pessoa.
Said achou estranha a última condição, mas, como Zahi nunca o havia desapontado, aceitou
os termos e foi correndo atrás dos arqueólogos para lhes contar as boas novas. A garota se sentia
um pouco mal por ter de esconder algo tão grande assim do amigo, mas, quanto menos ele
soubesse, seria melhor.
***
Logo ao amanhecer, no local marcado, o grande grupo de pessoas partiu rumo ao local que
Zahi havia dito que os levaria. Said a acompanhou por todo o trajeto, fantasiando com o que faria

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com o pagamento que iria receber ao final do trabalho, enquanto ela torcia para que aquele grande
número de pessoas fosse suficiente para acalmar os ânimos do faraó por um tempo.
Assim como em outras inúmeras vezes, ao chegarem no local, Zahi orientou os arqueólogos
onde e como montar seu acampamento, a descansarem um pouco para que posteriormente
pudessem entrar em um templo que ela havia encontrado ali fazia algum tempo. Depois destas
orientações ao grupo, Zahi voltou a alertar Said para que ficasse no acampamento e cuidasse de
tudo.
Tudo corria como nas outras inúmeras vezes em que a garota fizera aquilo. Adentrando
calmamente na montanha, chegando ao local, todos paravam para admirar as pinturas e os
hieróglifos nas paredes externas do templo. Depois, todos se dispersaram dentro do templo, onde
havia mais escrituras e pinturas nas paredes. Quando estavam distraídos o suficiente para se
esquecerem dela, Zahi saiu para que o faraó pudesse agir.
Enquanto ficou do lado de fora esperando tudo terminar, Zahi ouviu passos se aproximando.
Quando ela se virou para olhar o caminho que dava acesso ao templo, Said surgiu, admirando o
local, ignorando completamente os avisos da garota.
— O que pensa que está fazendo aqui?! Eu disse para você nos esperar no acampamento!
— Estava muito chato lá em cima e ninguém vai aparecer para roubar nossas coisas. Estamos
longe o suficiente para qualquer ladrão tentar nos roubar. Aqui é um lugar seguro e…
Nesse mesmo instante, ouviu-se uma gritaria e uma agitação dentro do templo. Said olhou
assustado para Zahi, que parecia visivelmente assustada, mas ele não tinha exatamente certeza
sobre o que. O garoto, então, tentou ir para o templo e ver o que estava acontecendo, mas Zahi o
puxou pelo braço, pedindo para que saísse dali antes que fosse tarde demais. Said conseguiu se
livrar dela e correu para dentro.
Quando chegou na entrada, antes mesmo que pudesse dizer algo, o faraó já havia pego seu
amigo e devorado sua vida. A múmia largou o corpo inerte do garoto no chão enquanto se dirigia
à sua próxima vítima.
Zahi se ajoelhou no chão e segurou o corpo do amigo em seu colo. No momento em que
chorava a sua morte e amaldiçoava o faraó pelo o que havia feito, estranhamente, o pingente em
seu pescoço começou a emitir um brilho vermelho forte. Sem entender o que aquilo significava,
retirou o colar e o jogou longe. Logo em seguida, as areias abaixo de seu pé começaram a
rodopiar, formando um pequeno redemoinho. Quando o redemoinho começou a perder
velocidade, foi possível ver que havia alguém no meio de toda aquela areia e vento. Era Said.
A garota não entendia como aquilo era possível, pois seu amigo havia sido morto pela múmia
e seu corpo inerte estava largado no chão. Como ele poderia estar ali com ela?
Said, então, foi em direção onde ela havia jogado o colar, pegou e lhe devolveu com um sorriso
no rosto. Sem entender nada do que estava acontecendo, a garota apenas ficou ali parada, de boca
aberta, processando o que estava vendo.
— Antes que você comece a dizer qualquer coisa, já vou lhe avisando que apenas você pode
me ver. — disse Said. — Quando o faraó me matou, fui direto para o julgamento dos mortos de
Osíris, que concluiu que minha morte não estava prevista para hoje, porém, como você precisava
de apoio e orientação, me mandaram de volta para que pudesse lhe ajudar em sua jornada e,
quando decidir que não precisa mais de mim, partirei para um lugar melhor com minha missão
concluída.
— Said, eu sinto muito... Eu... Eu...
— Nada disso importa mais. Osíris me contou tudo o que aconteceu a você e do acordo de
servidão para com o faraó, assim como me informou que você estava tentando me proteger todo
esse tempo. Nada mais justo, então, agora eu lhe ajudar nesse meio tempo, não é mesmo?
Zahi gostaria muito de abraçar e se desculpar novamente com seu amigo, porém ele não tinha
mais um corpo físico e, por enquanto, sua companhia espiritual teria de servir no mínimo até ela
se livrasse dos laços de servidão com o faraó. Sem perder tempo, Zahi e Said seguiram rumo ao

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acampamento do lado de fora do templo para que pudessem ajeitar as coisas e procurar por mais
sacrifícios ao faraó, para que assim pudessem se livrar daquele fardo o mais rápido possível.

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30
Contos fantásticos

Érlon Marques Ziquinatti

S
herazade e a sua irmã mais nova estavam na sacada do palácio do rei Shariar. Era noite e o céu
estava estrelado com a lua iluminando todo o deserto da Pérsia.
— Maninha querida — chamou a mulher mais nova —, conte-me uma de suas belas histórias
para passarmos o serão da noite.
Sherazade concordou com a proposta e resolveu contar a história mais impressionante já escutada,
uma que ela nunca tinha contado durante as mil e uma noites que esteve contando histórias para o rei
Shariar. Chamava-se “O Fantasma do Palácio”.

Conta-se que, na cidade de Bagdá, existia um pescador muito pobre que não estava conseguindo
tirar o seu sustento diário na sua profissão. A região onde pescava era muito visada pelos
pescadores, o famoso Rio Tigre.
Segundo a lenda, a fonte do rio Tigre nascia no próprio paraíso Éden, por isso era uma região
visada por pescadores de toda Bagdá. De tanto pescarem, o cardume de peixes acabou diminuindo
no local, além da poluição causada pelo homem que matava vários dos peixes existentes ali. O
homem era responsável por sujar tudo o que Deus construiu.
Por causa desta diminuição de peixes, o pescador a cada dia saía com menos peixes do local, o
que causava cada vez menos moedas de ouro como pagamento. O pobre pescador vivia em uma casa
de madeira em um bairro muito pobre de Bagdá, mas sonhava em viver em um grande palácio pelo
resto da vida.
Um dia, o pescador jogou a sua rede no rio e, quando a puxou, trouxe junto uma garrafa fechada
presa aos fios. Estando chateado com o seu azar, pegou a garrafa, abriu-a e dela saiu um gênio que
cresceu até a altura dos céus e levantou os braços gritando:
— Estou livre da minha prisão, finalmente! Você que me libertou, tem direito a uma escolha. Você
pode escolher entre duas opções, eu posso matar você ou posso lhe realizar um desejo: o doce alívio
e a paz da morte ou continuar vivendo com um pedido e com todas as angústias da vida e tristezas
do tempo. É uma escolha e um agrado que faço pela minha libertação.
O pescador ficou muito feliz com a notícia, era a chance de ele mudar de vida:
— Desejo o pedido realizado, desejo viver em um palácio em cima das montanhas próximas, um
palácio cheio de moedas de ouro e riquezas — pediu, assim, o pescador.
O gênio, incomodado com a mesquinhez do pedido, atendeu ao desejo e, com um estalar de dedos,
surgiu um palácio gigantesco, belíssimo, nas montanhas próximas. Após realizar o desejo, o gênio
sumiu em uma nuvem de fumaça.
O pescador agora era um homem rico. Cheio de tesouros, finalmente ele iria viver bem. Nas
primeiras semanas ele aproveitou, e muito, a mansão repleta de moedas de ouro, tecidos persas,
cerâmicas chinesas e fontes jorrando água para os céus.
Em uma tarde, enquanto o pescador explorava o palácio, viu o fantasma de uma mulher no
corredor. Ela estava coberta de sangue como se tivesse sido morta a facadas, o xador todo branco
estava cheio de manchas vermelhas. O pescador levou um susto e se perguntou como aquilo seria
possível já que o castelo fora criado pelo gênio há pouco tempo. Acabou correndo pelo corredor,
mexendo a cabeça, acreditando que tudo tivesse sido uma ilusão.
Outra vez, o pescador acordou no meio da noite. Perdendo o sono, foi dar uma volta pelos
cômodos do palácio. De repente, escutou um barulho nos corredores:

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— Por Deus — disse consigo mesmo —, um bandido aqui dentro! Veio roubar as minhas
tapeçarias e meus pedaços de carne. Bom, seja homem ou animal, gato ou cachorro, esse gatuno irá
sentir a fúria do meu punhal, irei cortar a sua cabeça.
O pescador foi correndo em direção ao barulho. Entretanto, de novo, apareceu a mulher morta
na frente dele. Outro susto que o enfureceu:
— Quem é você? — gritou. — O que quer aqui? Deixe a minha casa em paz!
Após esse caso, ele se debruçou em livros sobre a história da região: para existir um fantasma,
alguma pessoa devia ter morrido naquele território há muito tempo. Entretanto, não encontrou
nenhum registro que algum ser humano tivesse habitado aquela montanha; nem registros de
escaladores mortos encontrava. Segundo os livros históricos, aquela região, por estar próxima de
Deus, estava longe do fantasma da morte.
Após o insucesso da pesquisa nos livros, ele resolveu ir ao bar mais movimentado de Bagdá: os
bares são os lugares onde as lendas e histórias surgem e são reproduzidas, e dentro de um bar a
pessoa conhece a história de todo um país. Ele entrou naquele estabelecimento movimentado, cheio
de homens bebendo e brincando, e escutou um marujo viajante em uma mesa comentando:
— Eu já fui capturado pelo pássaro gigante Roque, com as asas cobertas de chamas. Já enfrentei
Ghouls e demônios em cemitérios isolados. Já enfrentei um monstro de nove cabeças e nove braços,
venci um ogro de um olho só comedor de carne humana. Já bebi até vomitar com um homem de nove
cabeças e nove braços. Não tem nada no mundo que eu não tenha visto.
O pescador chegou ao lado dele e perguntou timidamente:
— Você já chegou a ver um fantasma de uma pessoa morta?
O marinheiro olhou para ele com a cara de espanto e gritou para todos ouvirem:
— Olhem! O homem acredita que existem fantasmas de pessoas mortas. É um homem doido.
Todos no bar começaram a rir do pobre pescador que saiu envergonhado da situação, indo para
a casa. Chegando em seu castelo, mais uma vez o fantasma da mulher apareceu para ele.
Cansado daquela situação, o pescador resolveu vender o palácio e viver com o dinheiro que
ganharia pelo resto da vida. Um comerciante rico e a sua esposa escutaram que a moradia estava à
venda e resolveram comprá-la: a sós, comprador e vendedor acertaram o negócio. O pescador estava
livre daquela maldição.
No dia que o casal chegou para viver na moradia, o pescador tomou um susto: a esposa do
comerciante rico era a mulher que aparecia como fantasma. Ele finalmente entendeu a situação: não
estava vendo um fantasma, estava tendo uma visão do futuro, uma premonição. Aquela mulher seria
morta, provavelmente pelo marido que tinha uma fama de ser muito ciumento e colérico.
O pescador se mudou para uma outra casa no centro de Bagdá, mas sem esquecer de toda a
história que tinha presenciado. Não poderia deixar a mulher ser morta, tinha que mudar o destino
da pobre donzela. Estava decidido a isso.
— Por Deus — pensou consigo —, essa mulher não pode morrer, é imperioso que eu a salve.
Uma semana depois, o comerciante viajou a negócios e deixou a sua esposa sozinha no palácio;
então o pescador foi escondido até lá. Entrou na sala onde ela estava, provocando-lhe um susto
quando ela o viu. Mas quando os dois se olharam nos olhos, se apaixonaram. O pescador não tinha
percebido, na primeira vez que a tinha visto, como ela era bonita e recitou um poema:

Seus olhos têm a imensidão do oceano


Seu nariz tem a beleza do divino
Sua boca tem o vermelho da tentação
A mulher mais bonita de toda a região
Uma flor no meio do deserto de desolação.
Que faz balançar os sentimentos do meu coração

Os dois, então, fizeram amor, uma tarde de prazeres e afagos os esperavam. Se lambuzaram com
as virtudes da luxúria, o sol do oriente médio foi testemunha da estranheza e beleza do amor.

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Entretanto, o comerciante teve problemas com as mercadorias na viagem e teve que voltar mais cedo,
entrando em casa e vendo, perplexo, a sua mulher com outro homem na cama.
— Traidores! É imperioso que eu mate vocês dois.
E puxou um facão, cortando a cabeça do pescador e matando a mulher a estocadas. Mais tarde,
o comerciante foi preso e foi condenado pelo Califa da região a ser decapitado pelo seu horrível
crime.
Esse é o triste fim da história do pescador e do fantasma do palácio. O pescador queria impedir
o destino sombrio da mulher e foi a causa para ele acontecer. Por causa do pescador, a montanha e
o palácio seriam a moradia de fantasmas para o resto da eternidade.

Sherazade terminou de contar a história, e disse:


— Lembre-se, maninha: em algumas ocasiões, queremos tanto ajudar uma pessoa que somos
responsáveis pelas desgraças que acontecem a ela. E, algumas vezes, o amor excessivo de um homem
por uma mulher pode estar condenando-a.
— Que história aterrorizante e fascinante, maninha. Amanhã você pode contar outra que nunca
tinha contado?
— Claro, amanhã contarei a história do guardião das areias com o seu tesouro — e ambas foram
dormir.

II

No dia seguinte, a irmã de Sherazade pedia para ela contar a história do guardião das areias, e
Sherazade começou a história que se chamava “O Guardião do Tesouro”:

Conta-se, que em Aqaba, existia uma biblioteca famosa em toda cidade. Nela, continha quase
todos os livros de sabedoria e de lendas orientais que existiam. Todos os dias, pessoas faziam
doações, deixando livros no balcão para serem recolhidos pelo bibliotecário responsável.
O homem que cuidava desta biblioteca, uma pessoa famosa na cidade, chamava-se Omar. Era um
homem pobre em recursos, mas rico em companhia. Tinha uma esposa e três filhos, e sonhava em
ter uma vida mais digna, com riquezas e posses, mas não sabia como chegar a este objetivo.
Um dia, surgiu no balcão da biblioteca, como se fosse por mágica, um livro contendo informações
sobre uma suposta caverna contendo tesouros maravilhosos. Omar leu-o e ficou fascinado: moedas
de ouro e pedras preciosas brilhavam no fundo daquela caverna. O livro dizia que todos os
exploradores que tentaram pegar este tesouro, falharam e que nunca tinham voltado para as suas
famílias. No final do livro, continha um suposto mapa da caverna, a sua localização e como chegar
lá.
Omar leu tudo maravilhado e decidiu ir atrás desta caverna. Foi para casa e, no mesmo dia,
preparou as suas coisas; despediu-se de sua família dizendo que voltaria com riquezas e uma vida
mais digna para todos. Sua esposa ficou com medo e disse-lhe para não ir, pois tinha uma sensação
ruim em relação ao livro. O bibliotecário pediu a ela para se acalmar e lhe prometeu que voltaria
em pouco tempo, pois a caverna ficava em um monte dentro do “Vale da Lua”, a leste da cidade de
Aqaba. Assim, ele partiu em sua aventura, deixando a sua família aflita.
Durante dias, Omar enfrentou o calor escaldante do deserto de Wadi Rum. Racionando a água e
a comida que tinha, conseguiu enfrentar o árido lugar em que viajava. O caminho pelo deserto
parecia interminável e, durante vários momentos, pensou em voltar para a sua família e para o
conforto de sua casa, mas persistia pensando no tesouro e nas riquezas que o esperavam.
Após uma viagem cansativa, Omar chegou no conhecido “Vale da Lua”, com seus lindos montes
e a sua atmosfera misteriosa. Neste local, a natureza mostrava todo o seu poder, com suas esculturas
de pedras naturais e seu calor extremo que castigava todos os homens que entravam em seus
domínios.

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Usando o mapa, Omar localizou a caverna em um dos montes. Entrou com cautela no ambiente
escuro, usando a uma tocha acesa para iluminar o caminho. Sempre antes de um dar um passo,
olhava para todos os lados procurando armadilhas, pois imaginava que, se todos os exploradores
pereceram naquela caverna, algo deveria existir para tal.
Após avançar muitos passos, cuidando possíveis armadilhas, Omar chegou em uma parede
construída pelo homem, que não fazia parte dos elementos naturais da Caverna. A parede era toda
de granito com desenhos marcados e continha uma entrada em forma de pirâmide. Quando o
bibliotecário chegou perto dessa entrada, dela saiu um esqueleto humano ainda vivo. Com a criatura
andando em direção a ele, Omar ficou assustado e puxou a sua espada para a luta.
— Não tema viajante — disse o esqueleto —, não farei nada convosco, sou o Guardião das Areias,
guardo o tesouro.
— Não irá me matar para impedir que eu pegue o tesouro? — questionou Omar, ainda em posição
de defesa.
— Não. A minha obrigação é cuidar deste lugar, apenas; não impedir que alguém retire algo
daqui. Você é responsável pelo seu próprio destino — respondeu o esqueleto.
— Mentira — Omar ainda não acreditava naquele monstro da natureza —, então como todos os
exploradores desapareceram nesta caverna?
— Eles não foram responsáveis com os seus próprios destinos — respondeu o esqueleto, se
afastando da entrada da parede e indo em direção à escuridão da caverna.
Omar ficou algum tempo parado, esperando o esqueleto voltar e tentar matá-lo, mas, depois de
algumas horas, desistiu e atravessou o limiar em forma de pirâmide na parede de granito. Um
corredor, também em forma de pirâmide, o esperava. Omar, iluminando o corredor com a sua tocha,
caminhou até chegar na sala iluminada por ouro e pedras preciosas.
Maravilhado com todo aquele tesouro, observou montes e montes de moedas de ouro que
continham, em cima, rubis, diamantes e outras pedras de valores inestimáveis. Com toda essa
riqueza, Omar mudaria a sua vida e a da sua família. Pensava no que poderia fazer com tudo aquilo.
O tempo foi passando e Omar continuava olhando para aquele tesouro, sonhando com todas as
possibilidades; estava hipnotizado com todo aquele brilho de moedas de ouro e pedras preciosas e
não conseguia parar de sonhar. Até que o esqueleto entrou na sala do tesouro, levando o homem a
pegar novamente sua espada, quando percebeu a sua mão apenas em ossos.
— O que aconteceu comigo?
— Anos se passaram — o esqueleto respondeu —, e você ficou nesta posição, inerte, olhando para
o tesouro. Estava sonhando tanto que não viu o tempo passar. Estava preso ao materialismo, como
eu fiquei um dia e outro explorador ficou antes de mim. O seu corpo pereceu, apodreceu e ficou
apenas os ossos. Mas, por uma maldição, ficou vivo como eu estou vivo. O meu tempo de Guardião
acabou, é a sua vez, chegou a hora da minha morte.
— Como assim, eu morri? Quanto tempo fiquei aqui? — perguntou Omar, assustado.
— Duzentos anos se passaram desde que você chegou aqui.
— Duzentos anos? E a minha família?
— Eles já faleceram há muito tempo, não existe mais ninguém que você conheceu vivo. Todos
estão mortos, assim como os que eu tinha conhecido antes de vir para essa caverna.
Omar ficou triste com a notícia que tinha recebido. Não queria acreditar, não podia ter passado
tanto tempo olhando para aquele tesouro.
— Não pode ser verdade — gritou. — Eu vou fugir da caverna, ir atrás da minha família, dos
meus filhos, da minha mulher…
— Sua família morreu. E mesmo que você tente sair da caverna, existe uma barreira invisível que
o impedirá. Acredite, eu já tentei de todas as formas sair daqui, mas o destino já tinha me escolhido
como guardião do tesouro. A cada quatrocentos anos, um demônio maligno leva o livro para alguma
pessoa que esteja com muita vontade de obter riquezas e o atraí para essa caverna, onde o prende
com mágica. O meu tempo de guardião acabou, irei finalmente descansar da minha angústia, o meu
corpo cairá em seguida como um esqueleto sem vida. Por favor, me enterre como um cidadão digno.
Adeus amigo, desculpa pelo infortúnio — então o esqueleto caiu no chão, sem vida.

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— Espere, não vá, não me deixe sozinho. Eu quero rever a minha família — gritou Omar, mas era
tarde.
Ele estava preso naquela caverna, com todo aquele tesouro, preso ao materialismo excessivo. Não
tinha mais família, não tinha mais conhecidos, não tinha mais vida, mas ainda sentia toda a angústia
daquele sofrimento. Caiu no chão, queria soltar lágrimas, mas não conseguia. Era apenas um
esqueleto, um corpo há muito tempo apodrecido.
— A maior riqueza de todas eu já tinha, mas joguei tudo fora pelo sonho da riqueza material. O
destino tirou a vida do meu corpo, mas não me tirou a angústia mental. Penso, sofro e ainda me
lembro, mas não tenho lágrimas para chorar!

Sherazade terminou de contar a história e disse:


— Lembre-se, maninha: nunca fique aficionada pelas coisas materiais, pois isso irá afastá-la dos
seus conhecidos. O que realmente importa na vida é a família.
— Que história triste, maninha. Amanhã você pode contar outra que nunca tinha contado?
— Claro, amanhã contarei a história do tesouro e da filha do califa de Damasco, Aysha — e ambas
foram dormir.

III

No dia seguinte, a irmã de Sherazade pedia para ela contar a história de Aysha, e Sherazade
começou a história que se chamava “A donzela e o tesouro”:

Conta-se que, há muito tempo, em Damasco, havia um califa que era muito ciumento com a sua
filha. Não a deixava sair do palácio e não deixava nenhum homem chegar perto dela. A filha,
chamada Aysha, era muito esperta e tinha um vasto conhecimento de todas as áreas: lia todos os
livros que tinha contato e ansiava por aventuras e por sua libertação. Algumas vezes, Aysha ia
escondida para a cidade populosa de Damasco com o intuito de se divertir e sempre voltava antes
do seu pai notar a sua ausência. Quando a Aysha conversava com o seu pai, sempre perguntava:
— Papai, quando o senhor deixará um homem me desposar?
— NUNCA! — respondia o homem.
O califa, além da sua filha, amava muito um tesouro que ele escondia em uma caverna no
escaldante deserto sírio. Este tesouro, ele havia conquistado nas suas viagens do passado, nos seus
enfrentamentos contra gênios, ghouls e outras criaturas fantásticas. Tal caverna, além de ser
escondida, cheia de armadilhas para intrusos, era um labirinto traiçoeiro que, sem um mapa, levava
à morte. O homem dormia tranquilo, pois sabia que ninguém conseguiria ter acesso ao tesouro.
Entretanto, um dia, em Damasco, surgiu um ladrão especialista em fugas e que encontrou a
caverna, escapando das armadilhas e roubando o tesouro guardado.
O califa, possesso, jurou pela vida dele que recuperaria o que tinha perdido, mesmo sem ter ideia
de quem seria tal ladrão ou como descobri-lo. Damasco, na época, era uma das maiores populações
do Oriente Médio, e achar um ladrão naquela cidade era como achar uma agulha em um palheiro.
Aysha, porém, conhecia toda a cidade e sabia que era um ponto de parada de muitos comerciantes,
pois a cidade ficava perto do Mar mediterrâneo, sendo um local estratégico da região para rotas
comerciais. Sabendo de muitos homens procurando fazer negócios nos bares da cidade, ela deu uma
ideia para achar a pessoa que tinha roubado o seu tesouro:
— Papai, porque o senhor não se disfarça de um rico comerciante e vai nos bares de Damasco?
Diga que você está escrevendo um livro de façanhas e que dará uma bolsa de moedas de ouro para
a maior façanha que encontrar. Assim, o ladrão que roubou a caverna aparecerá para receber as
moedas de ouro.
— Ótima ideia, minha filha, farei isso!
— Aproveitando a oportunidade, quando o senhor deixará um homem me desposar?
— NUNCA! — respondeu o pai.

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O califa se disfarçou de um rico comerciante e começou a ir aos bares de Damasco, sempre
superpovoados, contando a estória do livro de façanhas e que procurava o homem com a maior
façanha já feita em troca de uma bolsa de moedas de ouro. O boato se espalhou por toda a cidade e
muitos homens iam atrás dele contando as suas histórias. Toda noite, ele ia em um bar diferente e,
todos os dias, era cercado de homens que contavam suas façanhas do passado, mas o califa ainda
não tinha encontrado o ladrão.
Uma noite, saindo de um bar, quase de madrugada, em direção ao palácio e ainda disfarçado de
rico comerciante, uma sombra surgiu na sua frente.
— Você é o rico comerciante que dará uma bolsa de moedas de ouro para a pessoa com a maior
façanha que encontrar? — perguntou a sombra.
— Sou.
— Pois saiba que eu encontrei a caverna de tesouros do califa, entrei nela, escapei das armadilhas
e roubei todos os tesouros que lá continham.
O califa, percebendo que tinha encontrado o ladrão, disse:
— Muito bem, tome a bolsa de moedas de ouro! — e esticou o braço.
Quando o ladrão estendeu para pegar a bolsa, o califa pegou o braço dele e gritou:
— Te peguei!
O ladrão, com a outra mão, alcançou a bolsa de moedas de ouro e saiu correndo, abandonando
o braço que ficou na mão do califa. O governante levou um susto com aquele braço decepado, mas
quando o verificou mais atentamente, viu ser de madeira: era um braço falso, usado para enganá-lo
e roubar a sua bolsa de moedas de ouro. Possesso com a situação, voltou à sua moradia vermelho
de raiva.
O califa não sabia mais o que fazer para recuperar o seu tesouro e estava triste por toda a
situação. Sua filha, Aysha, chegou nele e disse:
— Papai, eu tenho uma ideia de como prender o ladrão aqui dentro e colocar o tesouro novamente
debaixo do palácio. Mas, talvez, o senhor não goste da ideia.
— Qual é a ideia? — perguntou o pai.
— O senhor espalha pela cidade de Damasco que dará a minha mão para a pessoa que conseguiu
enganá-lo duas vezes, pelo roubo da caverna e pelo roubo das moedas de ouro. O ladrão, assim,
surgirá para pegar a sua recompensa.
No primeiro impulso, o pai negou o plano, mas, depois de um tempo, pensando no seu tesouro
perdido, aceitou ser a melhor forma de pegar o ladrão.
Assim, foi espalhada a notícia de que o governante finalmente daria a mão de sua filha em
casamento. A informação explodiu em toda cidade de Damasco, todos os homens desejavam se casar
com a filha do califa, mas nenhum deles tinha sido o responsável pelo roubo da caverna.
Em uma tarde, surgiu um homem no palácio se dizendo o ladrão e carregando uma carroça cheia
de bolsas com ouro. Na hora que os guardas viram aquele homem e aquelas sacolas, já o pegaram
para levá-lo ao Califa. Aysha, vendo os guardas levando aquele homem, pediu para um serviçal ir
correndo para Damasco anunciar para todos que o ladrão tinha sido encontrado e que ela iria se
casar na semana que vem.
O califa, quando ficou de frente com o ladrão no salão principal do palácio, disse:
— Agora irei lhe cortar a cabeça pelo afronte.
— Não faça isso, papai — disse Aysha, entrando na sala
— Por que não?
— Porque o senhor prometeu a minha mão para quem tivesse roubado a caverna.
— Nunca darei a sua mão para esse bandido.
— Tem certeza, papai? O senhor prometeu para toda a cidade e eu já enviei um serviçal para
avisar a todos sobre o meu casamento. O senhor não quer que o povo o veja como uma pessoa
sem honra e sem palavra, quer?
— Mas… — o califa ficou sem palavras.

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— Me casarei com ele e, como lhe prometi, o ladrão ficará preso neste palácio. Por
consequência, o tesouro ficará debaixo deste castelo novamente.
O califa, sem reação, permitiu que o casamento fosse feito na outra semana. Aysha ficou muito
feliz, tudo tinha dado certo: ela já conhecia o ladrão das vezes que visitava Damasco escondida,
em busca de aventuras, e foi ela que entregou o mapa da caverna para ele roubá-lo, além de ter
sido dela a ideia do braço falso. Ela sabia que apenas usando a inteligência conseguiria se casar
com o rapaz que queria e ganhar a sua liberdade. Com tudo dando certo, Aysha recitou um
poema para si mesma:

As mulheres dominam o mundo com a razão


Nada se esconde da nossa visão
A arma do homem é a violência
E a da mulher é a inteligência
Nenhum homem tirano irá ganhar
Quando a astúcia da mulher for enfrentar

Sherazade terminou de contar a história, e disse à sua irmã:


— Essa foi a história da donzela e do tesouro escondido. Lembre-se, maninha: com astúcia, se
consegue tudo.
— Que história fantástica, maninha. Espero que um dia eu seja tão inteligente quanto Aysha

— Se ler muitos livros e estudar muito, maninha, nenhum homem irá te prender. O corpo físico
pode ser preso, a mente, não: lembre-se disso.
— Amanhã você pode contar outra história que nunca tinha contado? Existem ainda histórias
desconhecidas nesta região?
E Sherazade respondeu:
— Claro. Os desertos e montanhas do Oriente escondem histórias fantásticas e maravilhosas
que nos fazem sonhar sobre a limitada situação humana na Terra. O homem guarda tesouros
incríveis nas areias da mente. Que o Deus misericordioso e grandioso nos guie pelos desertos
misteriosos da vida com todas as suas histórias fascinantes.

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O zanje que amansava o mar

Marco Aurélio

Dezesseis de Safar de 868: em algum lugar do oceano persa

O
sol ia se pondo, quando me ajoelhava, ao fim da salah, entoando o último ciclo do rakat, nosso
conjunto sagrado de orações. O maghrib, a reza do pôr do sol, era uma de nossas principais
orações, pois, para os fiéis de Alá, o dia começa com o crepúsculo.
O mar estava calmo, não havia motivos para chorar. O marulho me enfeitiçava, suas marés
tentavam conversar comigo, mas relutava a seu chamado. Pelo bem de minha existência, decidi há
muito tempo ignorar seus suspiros.
Não havia nuvens naquela noite, mas me recordava, por algum motivo, de quando descobri que
minhas lágrimas seriam tão valiosas para os outros e ainda mais dolorosas para mim. De doce, minhas
lágrimas nada tinham, a vida é amarga para um mero servo que nem o direito de chorar em paz tem.
Eu era uma criança e meus primeiros captores tentavam compreender como havia chegado às
praias do porto de Sofala com vida em meio de uma das maiores tempestades que o oceano persa
conhecera. Meus captores teimavam em dizer que haviam me resgatado na areia da praia, com meu
corpo ainda quente, como se a fúria do mar houvesse me perdoado de sua tormenta. Porém não fui
resgatado nem fui perdoado pelo destino: desde as areias de Sofala só me recordo da tristeza que é a
vida de um escravo dos mares. De acordo com meus captores, fui encontrado em um pôr do sol meio
desacordado, ajoelhado com a cabeça quase que fincada na areia, mesma posição que me encontro
agora ao completar o maghrib e recordar de meu passado.
A maré banhava meu corpo e só não me consideraram um cadáver afogado, pois chorava,
silenciosamente, como um recém-nascido em seu sono. Em minhas mãos, tinha uma semente
estranha, e eu a segurava junto à terra como uma raiz que não quer deixar o solo. A grande
preocupação dos meus captores mão era meu desalento, crianças tinham pouco valor no negócio que
estavam envolvidos até o pescoço; o que despertou o interesse deles foi o dissipar da tormenta. Meus
prantos mansos, como se buscasse fôlego, fizeram as nuvens rasgarem o céu. Subitamente, a lua
crescente apareceu como se nenhuma tempestade tivesse acontecido.
Nem todos os habitantes de Sofala são adeptos à fé em Alá e, por isso, esses pagãos bantus, dos
confins da nascente do Zambeze, me acharam uma aberração ao associar o meu pranto de joelhos a
salah dos mercantes da Somália. Os piratas do norte começaram a dominar o rico porto de Sofala ao
recapturar a principal mercadoria da costa dos Zanje: seres humanos. Roubando as riquezas desse
comércio escravo, os somalis do norte tomaram a soberania dos bantus de Sofala, criando entre os
zanjes esse desprezo por tudo que representava Alá.
Meus captores viram uma oportunidade no meu suposto poder de sossegar as tempestades,
acreditaram que seria a chance de reconquistarem o domínio de seus portos. Contudo, não faziam
ideia de como iriam despertar essa minha estranha habilidade novamente. Vivi, nesses primeiros
tempos entres os zanjes, as piores experiências que uma criança poderia sofrer: fui rezado, defumado,
emplastrado e banhado por suas ervas, raízes e beberagens de seus cultos impuros; fui açoitado,
torturado, ferido, posto de jejum; e nenhuma dessas tentativas me fez emanar uma palavra nem formar
uma lágrima e muito menos acalmar as intempéries do mar.
Nunca cogitei tirar a minha vida. A vida me era indiferente, como a água que forma as chuvas:
apesar de suas tempestades, ela sempre é a mesma. A partir dali comecei a detestar a chuva, ela me
faz lembrar as lágrimas que a tortura da vida não me deixou formar sem sofrimento.

Vinte e três de Jumada al-Awwal de 868: calmaria a caminho de Baçorá

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A tormenta passou e a tripulação tinha todos os olhos em mim: uns me olhavam com satisfação,
outros me encaravam para tentar aliviar sua visão da existência do pequeno corpo esquartejado no
convés de nossa embarcação. O nojento capitão persa era o único que esbraveja felicidade sem
nenhuma gota de remorso com aquela tragédia.
Permaneci ajoelhado sem coragem de levantar da isha, a reza noturna, a nossa segunda salah do
dia. No alcorão, Maomé nos orientou a estender a isha pela noite toda; quase segui suas orientações
para não precisar encarar aquela criança desmembrada. Mais um inocente perdia a vida por minha
causa, pela maldição que carrego. Aninhar o mar revolto me faz ceifar vidas sem usar as próprias
mãos.
Engoli o choro e limpei as lágrimas. Não sabia que poderia existir um captor pior que os piratas
somalis, mas Alsharu, o capitão persa, era o pior que havia entre os humanos. Os zanjes e os somalis
tinham a pele da cor da noite como a minha, talvez por isso ainda guardassem compaixão comigo,
mas os persas sentiam-se superiores por terem a pele cor de bronze, como o precioso metal. Vi os
membros cor de ébano espalhados que, juntos, um dia, fizeram parte do pobre menino sacrificado e
recordei novamente de meu passado. Meu primeiro choro foi um alívio que prenunciava a penitência
que viveria a partir dali.
Fazia uns anos que passara a trabalhar na estiva, descarregando navios em Sofala. Passei de mãos
em mãos, todos incrédulos e desapontados com a lenda que me acompanhava, mas que não se provava
como verdade. Uns me compravam crendo que iam despertar e comprovar a existência de minha
dádiva; outros me revendiam, me culpando por seus infortúnios.
Além do incerto mito, carregava comigo a lisa, reluzente e estranha semente que escondia debaixo
de minhas vestes, amarrada em um cordão. Entre uma descarga e outra, aproveitava para segurar forte
a semente, mesmo sem entender o porquê, mas era a única coisa que me dava alegria de viver. A
escondia de qualquer olhar furtivo, os zanjes já haviam tomado a minha infância e não poderiam
tomar o único acalanto que tinha em vida.
Muito se dizia sobre o oculto que o mar esconde, ouvi, nos portos de Sofala, as mais fascinantes e
brilhantes histórias sobre sereias, monstros marinhos, tesouros perdidos e ilhas prósperas
desconhecidas. O mar não me instigava fascínio como aos zanjes e os somalis: para eles, o mar
significava prosperidade; para mim, era apenas decepção. Muitas tempestades se passaram sem que
nenhum zanje se desesperasse com alguma tentativa louca de pôr em prova a minha maldição. A
minha história se tornava mais um mito daquele vasto oceano, o que me desafogava do sufocamento
que me perseguia desde que cheguei nas areias de Sofala.
Um estivador, velho demais para seu trabalho, me observava de soslaio; para muitos eu era um
agouro ambulante, e o desconhecido nos atrai do mesmo jeito que nos repulsa. Por esse desprezo, não
me esforcei para aprender a língua dos bantus e vivia recluso, apenas com a confidência de minha
semente como companhia. Acostumado com os olhares inquisidores, fui ficando desatento até me
distrair ao ponto de deixar o estivador velho me pegar acariciando o cordão. Com desprezo, o velho
cuspiu no chão e escarrou algumas palavras bantas me repudiando, mas, por sorte, me deixando em
paz por enquanto.
Luas depois, uma tempestade vinda do oceano persa atormentava o litoral de Sofala. Mesmo
aportados, o trabalho nos navios ficava ainda mais tenso com a iminência de temporal. Todos estavam
indignados em trabalhar naquelas condições, sobretudo porque quase todos os navios eram somalis e
a maioria das mercadorias descarregadas foram pirateadas em saques marítimos de embarcações
zanjes. Basicamente, os bantus recebiam uma ínfima parte de seu possível lucro descarregando a
própria mercadoria saqueada. O estivador velho era um dos mais descontentes, enquanto eu sentia
que ele saboreava um desgostoso prazer ao me observar e sonhar com a descoberta de meu segredo.
A noite caia e terminávamos o expediente; eu manuseava a semente, como se esperasse o pior, e
o velho me encarava indignado. Num lampejo de trovão, ele se irritou. Me golpeou na nuca e tomou
o cordão de mim. Caí de joelhos e, quando olhei para cima, o velho estivador atirou minha semente
no mar revolto. Num instante, toda a indiferença que me acompanhava até ali se precipitou em choro.
Pus as mãos na cabeça e desabei com ela no deque e, antes que as primeiras gotas do temporal

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chegassem na costa, a lua se abriu dissipando em céu estrelado. A maldição foi desvelada. Os zanjes
foram abençoados com uma pequena estiada em seus anos de tormenta, mas ali se deu o início da
tempestade que tomaria conta da minha vida.

Vinte e oito de Ramadã de 868: minha cabana nas fazendas de Baçorá

Aportávamos mais uma vez em Baçorá, uma das ricas cidades do Califado Abássida, reinado que
governava todo o território fiel a Alá. Era um bálsamo sair do alto mar, mesmo que brevemente e
sabendo que o capitão persa não deixaria sua fonte de riqueza perambular livremente. Baçorá era um
porto muito mais movimentado do que Sofala, a maioria das riquezas dos zanjes desaguavam ali,
principalmente os cativos que iriam trabalhar na vasta agricultura da cidade. Alsharu me deixava livre
quando estávamos em terra firme, por isso retornar era sempre uma alegria, mesmo que momentânea,
já que sempre estava sob os olhares dos capangas do capitão.
Eu vivia recluso em uma cabana de uma das plantações escravocratas de Alsharu e dedicava o
tempo que tinha aos ensinamentos de Maomé, sempre a empreender lições do alcorão. As quatro
paredes e a terra entre os dedos do meu pé me confortavam; o nauseante chamado do mar, que me
invocava sorrateiramente, não me incomodava tanto ali: era um suspiro de maresia distante. Viver
em uma embarcação como cativo era viver enclausurado na imensidão dos oceanos.
O embrulho do mar definhando minhas entranhas se inaugurou quando fui capturado pelo imame
Al-Haqq, anos atrás. O pirata somali era um dos mais temidos da costa dos zanjes, mas era conhecido
pela sua honestidade. Tudo que aprendi sobre Alá foi através dele, inclusive só escrevo esse diário
por ter aprendido as letras do árabe com esse imame.
Al-Haqq se achava no direito divino de conquistar tudo que não era tocado pela palavra do islã; as
embarcações dos zanjes eram de suas presas preferidas, não apenas por suas mercadorias, mas pela
oportunidade de conversão à fé de Alá. Seus navios piratas saqueavam o ouro e o marfim que escoava
do Zambeze, escravizavam e batizavam à força os incrédulos tripulantes dessas tripulações em nome
de Alá. O somali dizia existir uma verdade que Alá havia escondido pelos oceanos e que era dever
dos fiéis explorarem todo tesouro que o mar tinha a oferecer. Quando os somalis ficaram sabendo de
meu suposto dom, o pirata armou uma emboscada para capturar o bem falado zanje que amansava o
mar com seus prantos.
A altivez do imame me instigou, Al-Haqq emanava a benção de Alá. Me recordo de minhas
primeiras incursões no islã e seus cinco pilares: a Fé, ao rezar e aceitar o credo; a Oração, ao realizar
cinco salah ao longo do dia em direção a Meca; o Jejum, em respeitar as obrigações do Ramadã; a
Caridade, ao doar dinheiro aos necessitados; e a Peregrinação, ao peregrinar à Meca pelo menos uma
vez na vida. Este último pilar é um sonho que pretendo realizar, o que redimiria toda a maldição que
vivi. O pirata sentia prazer em nos apresentar o islã; ele me tratava como um agraciado por dar fim à
tormenta quando me dedicava a uma de nossas rezas. Mesmo como um cativo, me sentia diferente de
meus antigos captores por, agora, ter a piedade de Alá.
Em um alvorecer nublado, eu e meus antigos captores fomos retirados do cativeiro e levados ao
convés de Al-Haqq, que nos mostrou as estrelas que dissipavam com o dia. A sua posição no céu
indicava a direção sagrada de Meca, coisa que nunca deveríamos esquecer. O imame se ajoelhou para
rezar a fajr, nosso terceiro salah diário, e, em sua oração, nos explicou que, naquela manhã, teríamos
que começar a jejuar até o pôr do sol devido ao Ramadã, porém teríamos que trabalhar como todos
os outros dias. A inquietação foi instantânea. Os zanjes não se conformavam com a condição de cativo
e muito menos com a conversão forçada ao islã. Eu já estava bem habituado ao jejum e ao cativeiro,
desde pequeno fui forçado pelos bantus a viver como uma besta. Agora, ao menos, estaríamos todos
na mesma condição sob as graças do meu bom Alá. Trabalhar de barriga vazia foi a gota que
estremeceu de vez a insubordinação dos bantos aos ensinamentos de Maomé e, indignados com o
jejum, levantaram de seus joelhos, desrespeitando a salah sagrada.
O tempo se fechou numa brava trovoada em reflexo a fúria do imame, que começou a nos chicotear
sem perdão; até eu, que me mantive ajoelhado em reza, não fui poupado. A chuva caiu em turbulência,
como se Alá quisesse nos punir por tanta blasfêmia, e logo o mar passou a chibatar nosso navio

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também. Os zanjes, em desespero, corriam a fugir da fúria de Al-Haqq e seus tripulantes: uns
desfaleciam no chão pelas pancadas de porretes, outros se jogavam no mar revoltoso, e eu continuava
a ser açoitado esperando que o mar se acalmasse.
Podia me jogar no emaranhado de águas que engolia aqueles corpos negros, a agitação das marés
me clamava, como um convite, uma mensagem que apenas eu poderia traduzir, mas como o seu vem
e vai, o mar me repelia à firmeza da vida, o sustento embaixo de meus pés. Continuei imóvel,
abaixado, observando em deleite o sofrimento de meus algozes. Ser agredido nunca despertou meu
choro, mas, ao ver o estivador velho que atirou minha semente no mar ser perfurado pelo sabre de
Al-Haqq, chorei de emoção. As palavras de Alá, transpostas pelos ensinamentos do imame, eram
verdadeiras. Alá é um deus clemente. Me deu a recompensa com a merecida vingança depois de anos
de cativeiro.

Quatorze de al-Muharram de 868: Grande Mesquita Imame Ali de Baçorá

O único lugar de quatro paredes que gostava de dividir com alguém eram as mesquitas, no sexto
dia da semana. É um requisito que nós, muçulmanos homens, nos congreguemos para rezar o salah
al-jumu’ah, reza que precede ou toma o lugar da zhur, o salah após o sol atingir seu ponto máximo
ao meio-dia. Recordo de quando Al-Haqq me permitiu participar de uma dessas rezas coletivas,
quando conquistei a idade para ser considerado maduro o suficiente. O pirata somali fazia jus ao seu
renome e não me poupava quando precisava que agraciasse sua embarcação: me torturou, quebrando
ossos que nem sabia da existência, só para me fazer rezar em prantos, como bem se espera de um
pirata. Porém, com o tempo, percebeu que não precisava da força física para me quebrar em lágrimas:
por minha fé em Alá, conseguia me emocionar com seus discursos, ou, então, ao questionar meu amor
pelo islã quando eu demorava para chorar e colocava sua tripulação em risco. A vida tem dessas
controvérsias: Al-Haqq era tão bom como um imame, quando pregava sua palavra, como também era
exímio como um pirata, ao demonstrar sua perversidade.
Já Alsharu era pura maldade. Fui tomado dos somalis quando estávamos levando uma carga para
o porto de Baçorá e, mais uma vez, despertei a ânsia por riqueza com minha maldição. Enfeitiçado
pela lenda que me perseguia, o capitão persa organizou uma emboscada disfarçada de negócio e
afundou a nossa embarcação com sua grande frota financiada pelo califado abássida. Poucos foram
os sobreviventes e o capitão, enfeitiçado com a promessa de riqueza marcada em minhas cicatrizes,
tomou poucos tripulantes para o trabalho escravo; entre eles estavam eu e al-Haqq. Percebendo o
vínculo que tinha com o imame, e sabendo que seria julgado por escravizar um sacerdote, Alsharu
degolou o somali na primeira tempestade que passamos, o que me fez derramar um dilúvio de
lágrimas e o céu foi inundado pelos raios de sol em segundos.
Perdi uma parte de mim com aquela fatalidade, me tornei ainda mais desgostoso com a vida; nem
o alento de Alá poderia me sustentar na penitência que era meu viver. Para meu maior azar, Alsharu
teve que se superar em suas crueldades para me levar ao choro; não que tal feito fosse uma
dificuldade, pois aquele homem conseguia se superar de maneiras incríveis a cada nova atrocidade
que cometia. Pelos abássidas dominarem o comércio do oceano persa, as demonstrações das suas
ruindades tomavam proporções desumanas.
Era tanta riqueza que o lucro parecia não mais importar tanto ao capitão; cheguei a presenciar a
descarga do porão inteiro de cativos da costa dos zanjes para provar, a vizires e califas, que ele detinha
o poder de acabar com uma tempestade com o estalar dos dedos. Nos primeiros anos que passamos
juntos, a minha danação garantiu a sua soberania sobre os mares que dominava, mas, por sua
presunção, aquele asqueroso não contava que Alá nunca falha: um dia a minha desgraça seria a sua
tormenta.

Dois de Safar de 869: Depois do ponto sem retorno na ilha de Waqwaq

O ciclo lunar do Al-Muharram, o primeiro mês do calendário mulçumano, custava a passar, o que
deixava os homens de Alsharu tensos. O admirável Ali ibn Muhammad reunia homens, sobretudo

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zanjes do Zambeze escravizados, para uma rebelião. O califado abássida temia que a revolta tomasse
o território persa de seus domínios e desequilibrasse sua economia escravocrata. Devido aos
impedimentos bélicos do Al-Muharram, mês das tréguas, o califado impedia Alsharu de navegar, pois
sabia que o capitão não conseguiria adentrar o oceano sem se exibir militarmente.
O que me permitiu um sossego maior, pois não precisava olhar o seu rosto demoníaco nem encarar
o semblante do mar que me enfeitiçava, mesmo em terra firme. O seu chamado, como maresia,
sussurrava em meus ouvidos toda a noite, o que me incomodava. Tentei me concentrar em minhas
orações diárias no pequeno cubículo que vivia isolado, evitando qualquer tipo de contato com outras
pessoas, pois sabia que podia custar a elas a minha afeição. O que acabei não conseguindo, a distância
do mar acalmava minhas precauções.
Uma criança e mães zanjes me pediam comida todos os dias, pois nem alimentadas eram em sua
rotina de cativas; como não podia negar caridade a ninguém, passei a ajudá-las. Também era um
escravizado, mas vivia num certo conforto: alguns humildes tripulantes das frotas do capitão persa se
sentiam no dever de me presentear por salvar suas vidas em alto mar. Eles me consideravam uma
benção de Alá por meus feitos, mas mal podiam saber o peso que era carregar tal fardo por toda a
vida.
A calmaria do mês proibido era tão reconfortante que quase me sentia vivo plenamente: ficar
distante da brisa salobra me fez respirar um ar potável que nunca havia degustado antes. Amoleci o
coração e me aproximei da criança e sua mãe; dividíamos refeições no segredo de minha cabana, sem
maiores contatos. Trocávamos apenas as saudações do assalamu alaikum: eu permanecia em silêncio
e ela respeitava minha discrição. Pela minha fé, e pela segurança deles, eu não podia ser visto sozinho
com uma mulher; só queria ver bem aquelas duas pobres criaturas que, de tão pálidas, nem pareciam
ter vindo das terras do Zambeze. Em um tom baixo, a mãe e o filho conversavam alguma língua banta
das regiões de Sofala que reconheci depois de anos de convivência: ouvia com ternura a conversa
materna dos dois, me fingindo não entender.
Um dia, a criança chegou muito febril; a mãe tentava encorpar a magreza do pequeno com uma
sopa grossa que cozinhei, mas ele resistia ao alimento feito tivesse perdido a vontade de viver. A mãe
embalava uma canção que narrava a história dos dois desde quando ela, Fakiha, teve seu fruto sagrado
tomado por um destemido marinheiro que desbravou uma terra desconhecida e semeou vida em suas
águas íntimas. Agora era dever dela guiar seu filho, Shabazz, o escolhido para plantar uma nova
árvore da vida em uma terra nova além dos mares. Fakiha acalentava aos prantos o filho, dando fim
à canção jurando proteger o filho, mesmo que bastardo, até que ele cumprisse o destino de ser o
arquiteto de sua terra fértil e desconhecida.
Fiquei intrigado com a canção, as palavras sublimes de Fakiha pareciam traduzir o encantamento
que o mar tentava me proporcionar a tempos. A vida infelizmente sempre foi ingrata e, quando os
dois tentaram sair da minha barraca, Alsharu e seu capangas entraram. A crescente da lua cortava a
escuridão nebulosa do céu marcando o mês de Safar, permitindo que a iminente guerra acontecesse.
O capitão persa riu com gosto e deboche ao ver a criança e a mãe em minha companhia e nos
tomou em fuga para sua embarcação. A cidade de Baçorá havia se tornado um mar de sangue, os
zanjes exterminavam os persas como uma onda negra toma um porto em noite de tempestade. Como
o mar que se encrespa em fúria, os homens de Ali ibn Muhammad tomavam abaixo a cidade de bronze
de Baçorá. Até o bravo Alsharu viu que não teria chances com os homens em rebelião e planejava
deixar a cidade a qualquer custo, o que o mar implacável e instigado pela revolta em terra não deixaria,
pois uma derradeira tempestade se aproximava.
Os homens de Alsharu caiam um a um até a chegada no seu grande navio: todos foram ordenados
a se sacrificar para garantir a minha sobrevivência e de meus dois afetos recentes, o que supostamente
garantiria a segurança do capitão. Nós dois já sabíamos qual seria o desfecho daquela história, Fakiha
e Shabazz não. Quando tomamos o mar praticamente só o capitão controlava o navio. Os homens que
restavam não estavam em condições de garantir a partida do barco naquela tempestade, então,
desgovernado, ele escolheu a vítima que iria despertar meu terror. Entre a mãe e o filho, Fakiha foi o
alvo escolhido. Com um facão, o capitão tomou a vida da mãe e, num estalo, olhou para mim,

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esperando a sua redenção. Não derramei uma única lágrima, o que o fez vir loucamente para cima de
mim, me derrubando de joelho em murros na posição dos rakats do salah.
Sem que uma lágrima caísse do meu rosto, como o suspiro que se extinguiu da mãe desfalecida, a
lua crescente se abriu no céu. Shabazz, o prometido, estava de cabeça ao chão orando aos soluços
como se faz no salah. A atitude do menino me fez tomar coragem e apunhalei, com o mesmo facão,
o capitão Alsharu. Reagia com fúria e tirei a vida do monstro que me fez ser cúmplice de centenas de
assassinatos. Peguei a criança no colo e deixei a brisa fresca da calmaria guiar nosso barco. O mar
chamava por nós dois com a clareza de um sussurro, íamos, enfim, agora enfrentar o nosso destino.
No dia seguinte, quando o ensinava a rezar o alá-sari, última salah de nosso ciclo de orações, nos
deparávamos com uma pequena ilha que tinha, bem no centro, uma estranha árvore onde mulheres
tão semelhantes a Fakiha pareciam descansar nos galhos e nas pontas dos ramos, como se fossem
frutos. Na praia, uma senhora com as mãos em concha nos recebeu me oferecendo a mesma semente
lisa do meu antigo cordão; Shabazz tirou de dentro de sua camisa a mesma semente e, juntos, nos
ajoelhamos para rezar com nossas sementes ao chão. O dia entardecia com uma leve garoa regando a
árvore de mulheres que regozijavam em alegria, agradecendo. A senhora, agora de braços abertos,
nos acolhia com suas confortantes palavras: sejam bem-vindos de volta à ilha de Waqwaq: aqui, a
penitência de vocês se transforma em um refresco para nossas frutas. Filhos inglórios de audazes
marinheiros como vocês, que fecundaram essa terra fértil dando origem à fertilidade que povoa a
nossa terra. Agora que já conhecem os frutos que lhe deram vida, precisam, de vez, abandonar suas
raízes para semear outras terras sagradas como essas. Vão, meus netos, conheçam as ilhas e as terras
do novo mundo, é direito de vocês projetarem vida, apesar de todo o sofrimento que viveram até aqui.
Sejam vivos e nunca esqueçam das histórias que os mares têm para nos contar: o coração dos
navegantes precisa ser apaixonado pelo grande mistério que a vida é.

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Entre Laços e Desejos

Thaywan Benigno

Tunes, Tunísia

O céu completamente azulado e sem nuvens, o clima quente e as pegadas dos camelos,
demarcadas na areia amarelada do deserto, se mantiveram presentes durante a longa
jornada sem cessar daqueles homens; todos de aparência jovial, vestidos com túnicas
brancas e chéchias — uma espécie de boina característica do povo da Tunísia — sobre a cabeça.
A viagem pareceu, finalmente, chegar ao seu objetivo: ao se encontrarem com um outro homem,
um tanto quanto mais velho que os demais — sua barba branca entregava isso —, mas vestido de
maneira parecida. Ele tinha algo em mãos, coberto por um tecido de algodão colorido.
— Foi difícil encontrá-lo — disse o homem à frente dos outros. — Espero que tenha valho a
pena.
Ele esticou o braço para agarrar o objeto das mãos do mais velho, que esquivou. O homem
lançou-lhe um olhar penetrante.
— Garanto que valerá a sua vinda até aqui, mas, por se tratar de negócios, quero ver primeiro
o pagamento —, o senhor abriu um sorriso simpático.
O homem assentiu com a cabeça e estalou os dedos, recebendo um saquinho de pano de um
de seus acompanhantes. O mais velho recebeu, tratando logo de abrir o saquinho e conferir o
pagamento em dinar tunisino, a moeda do país. Após, avaliado e aprovado, o idoso estendeu a
mão direita para entregar o tecido nas mãos do mais jovem.
Quando o tecido foi retirado, todos foram tomados por um sentimento de admiração para com
o objeto dourado que reluzia ainda mais que o próprio sol: a incrível lâmpada mágica dos famosos
contos árabes.
— Finalmente, depois de tantos anos à procura, ela finalmente me pertence. Como você a
conseguiu?
— Não vou dizer que foi fácil, ela estava muito bem escondida — o velho alisou a sua barba.
— Mas ofereci uma boa recompensa para quem a conseguisse para mim. Claro, não tanto quanto
cobrei de você. Contudo, recomendo que tome bastante cuidado, você se tornará um alvo graças
a essa lâmpada.
— Você poderia tê-la usado, por que não o fez?
Ao ouvir a pergunta, o velho deu um leve sorriso sem mostrar os dentes. Aproximou-se ainda
mais do jovem e encarou-o friamente nos olhos. Então disse:
— Escute, meu rapaz, pareço apenas um velho bobo, mas já vi de tudo nessa vida. Djinns são
criaturas antigas e muito cruéis, qualquer um que ouse chamá-los, estará amaldiçoado para
sempre. Acredite, eu já vi isso acontecer.
Dito isso, o velho despediu-se: “bisalama”, que soava como um “adeus”.
A caminhada dos homens continuou. O líder andava em seu camelo, um tanto quanto distante
dos demais, levando consigo a lâmpada coberta pelo pano. Ele percebia alguns olhares maliciosos
sendo lançados à sua pessoa, mas não se preocupou: sabia que a lâmpada lhe proporcionaria
fortuna, respeito e, principalmente, poder. O que ele não sabia é que, em algum ponto específico
daquele deserto, todos eles estavam sendo observados.

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Houve uma parada próximo a um rio para matar a sede dos camelos, e até de si próprios,
quando uma movimentação um tanto quanto estranha pareceu aproximar-se dos homens. Todos
escutaram e mantiveram-se atentos.
— Ladrões! Homens, preparem-se.
Tão logo terminou de gritar, um grupo de ladrões, montados em cavalos e munidos de espadas,
avançou contra aqueles homens, que trataram de puxar as suas espadas também. Uma grande
batalha iniciou-se entre os dois lados.
O homem observador continuava visualizando toda aquela situação, com tamanha atenção e,
até mesmo, um toque de prazer. Sua aparência era bastante próxima dos demais, mas ele tinha
algo de muito especial e, estranhamente, a sua presença ali ainda não havia sido notada. Ele se
divertiu com o derramamento de sangue que assistia.
Um último homem sobrou em pé, seus olhos brilharam ao colocar as mãos naquela lâmpada
tão majestosa. Entretanto, antes mesmo que pudesse ter tempo de realizar qualquer ato, sentiu
uma pontada trespassar por suas costas. Baixou a cabeça, confirmando, assim, aquela espada
afiada saindo por entre seu peito. Seu corpo estirou-se no chão, completamente sem vida.
O homem escondido, o verdadeiro último homem a sobrar em pé, tomou o objeto para si.
Possuía um sorriso um tanto quanto tenebroso em seu rosto. Então, como um passe de mágica, e
de fato se tratava de magia, as suas vestes comuns foram trocadas por um colete de ouro, assim
como surgiu pulseiras, anéis, brincos e colares. A chéchia em sua cabeça deu lugar a cabelos
escuros presos em um rabo de cavalo. Porém, a mudança mais evidente se deu na cor de sua pele,
que passou a assumir uma coloração em um tom de verde-água. Claramente, tratava-se de um
djinn.
Sem perder mais tempo, o djinn esfregou a lâmpada. Não demorou para que o objeto brilhasse
de maneira ainda mais reluzente e uma fumaça vermelha se manifestasse da mesma. Pouco a
pouco, a fumaça começou a criar forma e uma criatura muito parecida ao outro deu presença ali.
— Olá, meu antigo amigo Youssef — o djinn sorriu ao pronunciar o nome do outro, que, por
sua vez, demonstrava confusão com o que estava acontecendo enquanto encarava toda a areia do
deserto à sua volta. — Não nos vemos desde o século passado. Foi deveras difícil encontrá-lo,
meu amigo.
— O que aconteceu, Said? — o outro questionou. — Só me lembro de… gritos. Foi tudo tão
rápido, não consegui entender o que estava acontecendo, e, de repente, tudo ficou frio e escuro.
Onde estão os outros?
— São duas ótimas perguntas. Primeiramente, restaram poucos de nós. Os humanos decidiram
que podiam usar nossos poderes melhor do que nós mesmos. Alguns foram presos, como você,
outros fugiram, mas o restante… bem, não tiveram um fim lá tão agradável.
Said deixou que Youssef processasse aquela informação. O djinn focou a sua atenção nos
corpos estirados no chão, buscando vestígio do que ele sabia que teria acontecido: uma batalha
sangrenta.
— O que houve com esses homens? — indagou, talvez já sabendo a resposta de sua própria
pergunta.
Said olhou ao seu redor.
— Oh, isso? A ambição humana falou mais alto, como sempre. Eles se mataram por causa de
uma lâmpada, acredita?
— Você os induziu a isso, não foi? Você atraiu os ladrões até aqui, controlou-os para que
acreditassem que precisavam atacar. Eles nem sequer sabiam o que estavam procurando.
— Isso é meio verdade, mas, contrariando os fatos, eles eram ladrões: atacariam na primeira
oportunidade se soubessem que esses homens carregavam a lâmpada. Não tenha tanta pena deles,
meu querido Youssef. Sabe, um velho, há algumas horas, nos chamou de criaturas cruéis, disse
que amaldiçoávamos pessoas. Imagine, amaldiçoar! Não sei você, mas eu me senti muito
ofendido, devia ter matado aquele velho também — Said observou o amigo lhe lançar um olhar

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de julgamento, mas continuou: — Lembra da antiga Tunísia, antes da conquista pela França? Lá
atrás, na época dos Bei? Lembra como éramos adorados? Como éramos considerados quase
deuses? Não amaldiçoávamos os humanos, nós concedíamos desejos a eles.
— Eu me lembro. Eles construíram templos em nossa homenagem. Realizávamos seus pedidos
por amar a humanidade.
— Exatamente! Mas eles nunca mereceram ser amados. Tudo começou a dar errado quando o
egoísmo tomou conta do coração deles. Eles começaram a fazer pedidos absurdos, a desejar que
tivessem mais do que os outros, que fossem mais beneficiados… desejaram a morte a um igual.
O que Alá acharia disso? Então, houve a revolta. Quando os humanos plantaram uma ideia em
suas mentes de que não precisavam de nós, apenas dos nossos poderes. Salomão foi abençoado
com o direito de nos aprisionar e os humanos tomaram proveito disso. Nos prenderam em
garrafas, vasos, lâmpadas! Lâmpadas, Youssef!!! Aqueles ingratos malditos. Fizeram seres tão
extraordinariamente poderosos sentirem medo e fugirem para se esconderem. E sabe qual a pior
parte? Mesmo após tudo isso, mesmo a nossa fama ser vinculada à espíritos ruins, eles acreditam
que, ao encontrar um djinn preso em um objeto mágico, eles terão direito a três desejos realizados.
Não é irônico?
— Você fala com muita raiva em seu coração, meu querido Said. Eu já entendi o seu objetivo,
você quer vingança contra a humanidade, não é?!
— Eu quero libertação. Libertação para todos nós. Você permaneceu mais de um século dentro
daquela lâmpada, eu precisei viver invisível por todos esses anos, longe do olhar deles, e mesmo
assim, quando eles passam o olhar em minha direção, eu sinto um arrepio, é como se pudessem
me ver. Se acha que estou exagerando, venha comigo. Talvez mude de ideia.
— Para onde vamos?
— Você já sabe o nosso passado, quero que entenda como é o nosso presente e como pode ser
o futuro.
Youssef fitou o amigo, analisando a oferta, e assentiu levemente com a cabeça. Said
desapareceu, deixando para trás uma nuvem de fumaça. Youssef pegou a lâmpada na areia quente,
guardando-a consigo. Então o corpo do djinn transformou-se em uma nuvem de fumaça e ele
também sumiu.

Almedina de Tunes.

Os dois djinns logo se encontraram naquela antiga cidade, que, graças a seus mercados —
chamados de souqs —, não se tratava apenas de um marco histórico da Tunísia, mas também de
um importante ponto turístico. Ambos permaneceram invisíveis e caminharam pelas vielas do
lugar, que, apesar da antiguidade, se mantinha inegavelmente muito conservada.
— Então, você me trouxe aqui apenas para mostrar como os souqs mudaram em um século?
— perguntou Youssef em um tom um tanto quanto irônico.
— Você terá a eternidade para realizar quantas compras tiver vontade, meu querido amigo —
Said respondeu. — E não se esqueça de tirar um tempinho para visitar o Museu do Bardo, aquele
lugar continua maravilhoso.
— Lembro-me bem de suas estátuas, é sempre espetacular admirar ‘O Triunfo de Netuno’ e o
‘Busto de Afrodite’ — Youssef concluiu.
É difícil dizer o que mais atrai a atenção no incrível Museu do Bardo, ponto turístico
obrigatório para os visitantes do país e que já até foi um palácio, antigamente, antes da conquista
pela França em 1881. O seu aspecto vetusto é convidativo a entrar e conferir o maravilhoso
mundo que guarda dentro de si: a arquitetura de suas paredes conta histórias sobre o país, os
pilares que remetem à época do palácio, as estátuas de deuses romanos e gregos, os retratos de
importantes figuras históricas…
— Chegamos — disse Said, fazendo Youssef sair de seus pensamentos sobre o museu.

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— Não há nada para ver aqui. Apenas turistas, povos e comerciantes, como sempre foi.
— Quero que olhe atentamente para aquela moça de azul.
Said indicou com o dedo uma bela moça de aparência jovial que dançava alegre junto a outras
moças. O grupo era admirado pelos turistas que passavam pelo local, e cada uma delas trajava
um melaya listrado com uma echarpe presa à cintura. Youssef achou cômico os turistas
confundindo a dança típica delas com a famosa dança do ventre.
— Eu ainda não entendi a que ponto quer chegar, é apenas uma moça dançando.
— Quero que olhe para ela novamente e veja além de sua aparência.
Youssef revirou os olhos, mas acatou o pedido de seu amigo. Ao olhar bem para a moça,
conseguiu ver a sua real aparência, sem qualquer ilusão cobrindo seu corpo.
— Ela também é uma djinn.
— Agora sim você está entendendo — Said soltou um leve sorriso. — Ela é uma djinn, assim
como nós. A diferença é que ela está disfarçada como um deles. Você deve imaginar o motivo,
não é? Porque ela cansou de ser perseguida pelos humanos, cansou de se defender deles, cansou
de correr o risco de se tornar um escravo realizador de desejos ou ter a sua existência extinguida
por eles. A escolha dela foi viver com eles e como eles.
— Mas foi escolha dela.
— Porque ela foi obrigada a fazer uma escolha, meu querido amigo. Está vendo aquele gato-
do-deserto no colo do senhor? — Said apontou novamente. — Ele também é um djinn. Para ele,
ficou mais fácil assumir a forma de um gato, afinal, quem faria mal a ele? Oh, eu conheci um na
semana passada que passou a vida transformado em um pente de cabelo, e outra que morava
invisível dentro de um armário. Esse é o nosso presente, Youssef. De deuses a súditos.
— E quanto ao futuro? Você disse que me mostraria.
— Que bom que lembrou, essa é a melhor parte — o sorriso que se formou no rosto de Said
não animou Youssef nem um pouquinho. — É hora de visitarmos uma velha amiga nossa.
E, como da outra vez, uma nuvem de fumaça foi deixada para trás no lugar de Said. Antes de
Youssef seguir seu amigo, ele admirou mais uma vez, depois de tanto tempo, a Mesquita de
Zitouna, o principal centro religioso da cidade. Ele sabia que podia contar com Alá. Então,
desapareceu.

Palácio de Cartago.
— Não acha lindo todo o mar que rodeia o palácio? — questionou Said a seu amigo.
— Não compreendo, o último lugar que achei que me traria seria aqui. O que o presidente tem
a ver com tudo isso?
— Ah, não viemos ver o presidente. Outra pessoa está nos esperando.
As portas do palácio se abriram tão facilmente, ainda que se estivesse tratando de dois djinns
invisíveis para os humanos. Mas foi ao fim da longa escadaria que Youssef encontrou o que o
trouxera até ali: uma mulher.
Uma mulher vestida com uma túnica de seda azul cintilante, totalmente decorada com folhas
de louro douradas, regada de joias e, sobre a cabeça, uma tiara bordada com renda. Ela
encontrava-se deitada no sofá, alisando seus longos e negros cabelos compridos.
— Núbia — Youssef sussurrou para si mesmo, estava surpreso demais para dizer qualquer
outra coisa.
— Bom, acho que deixarei vocês a sós — disse o outro, saindo: “Bisalama” que, aqui, significa
um “até logo”.
— Olá, Youssef — a mulher ajeitou-se no sofá. — Parece estar surpreso em me ver, não
deveria ser eu a chocada?

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— É só que… faz muito tempo. No dia que fui aprisionado, quando os humanos nos atacaram,
você não estava lá. Achei que tivesse tido um fim. No tempo que fiquei preso na lâmpada, só
consegui pensar em como você estava.
A mulher levantou-se delicadamente do sofá e caminhou em direção ao djinn. Chegou perto o
suficiente para entrelaça-lo em meio a um abraço.
— Até parece que não me conhece — ela sorriu. — Sempre estou bem. Quer alguma coisa?
Posso pedir para lhe trazer pão com harissa, aquela pasta de pimenta vermelha e azeite, para
começar.
— Não, eu só quero matar a saudade de você.
Dito isso, os dois djinns se uniram em um beijo profundo e apaixonado. Youssef não se
lembrava como era bom poder tocar alguém, principalmente alguém que ele tanto desejava e que
sentia que o desejava também.
Porém, algumas ideias começaram a vagar pela sua mente. Ele separou o beijo.
— Espera. Said me trouxe aqui dizendo que eu encontraria o futuro dos djinns, e o que
encontrei foi você morando neste palácio. O que está acontecendo?
— Bem, Said me procurou há alguns anos, concordamos que a nossa espécie foi muito
injustiçada pelos humanos. Ele me apresentou argumentos bastante irrefutáveis, antes de eu pedir
para que fosse atrás de você.
— Espera, então você concorda com ele? — mas não precisou que ela respondesse. — Eu acho
que entendi, você não está vivendo escondida nesse palácio, você está controlando a mente de
todos, inclusive do presidente. Eles não têm vontade própria, não é? Vocês querem governar os
humanos contra a vontade deles.
— Você sabe que não é tão fácil manter um controle mental sobre muitas pessoas, mas se
todos nós nos juntarmos, seríamos a espécie dominante. Poderíamos viver livres, sem precisarmos
nos esconder.
— Vocês não veem que isso é errado? Não percebem que desta forma nós nos tornamos aquilo
que eles contam em suas histórias? Seres maldosos, ruins, cruéis. Não precisamos ser assim
— É claro que precisamos. Eles fizeram pior com a gente, mantê-los controlados seria um ato
de piedade da nossa parte.
Youssef afastou-se da mulher, desviando o olhar de seu rosto, e andou até a janela. Núbia
aproximou-se sem pressa, abraçando as costas do homem.
— É o único jeito, Youssef — disse em sua voz doce e delicada. — Você me ama?
— Nunca deixei de amá-la — respondeu, virando-se para encarar novamente os seus olhos
negros. — E você, me ama?
— Para sempre.
— Então por que você me abandonou no dia do ataque? — Youssef notou que a mulher havia
ficado sem resposta. — Você estava comigo, mas sumiu minutos antes do ataque. Você percebeu
que eles atacariam e não quis ficar, achou que teria mais chances de sobreviver assim.
— Eu voltei depois para te procurar, mas você havia sido aprisionado numa lâmpada. Eu
busquei por você, perdoe-me por não conseguir encontrá-lo. Mas eu sempre te amei e ainda o
amo.
— Então prove. Tire todas essas pessoas do palácio de seu controle e vamos embora daqui,
vamos começar a vida em outro lugar, outro país que seja.
— Não posso fazer isso. É aqui que eu quero estar.
— Então não poderemos ficar juntos.
O djinn deu as costas à mulher, deixando-a para trás à medida que se aproximava da porta. No
entanto, ele sentiu algo o atingindo por trás, tão forte que foi o bastante para empurrá-lo contra a
parede.

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— Não vou te perder de novo, Youssef. Você há de entender que eu sei o que é o melhor para
nós dois.
Youssef levantou-se, encarando o olhar de sua amada.
— Não quero lutar com você, Núbia. Mas, neste momento, você não me deixa escolha.
A mulher lançou raios contra o seu grande amor, que rapidamente se teletransportou, fugindo
do local atingido. Ele apareceu próximo à Núbia, lançando-a contra o chão e pondo-se acima
dela. A mulher sorriu maliciosamente, atraindo um vaso contra o djinn apenas com um leve
movimento das mãos.
Youssef esquivou do vaso, mas deu brecha para receber um segundo golpe de Núbia. A djinn
acendeu chamas nas palmas de suas mãos e atirou-as contra o amado, que voou para esquivar-se
do ataque. Youssef materializou uma enorme quantidade de espadas e atirou contra a mulher.
Núbia desviou duas vezes, mas acabou sendo atingida pelas espadas restantes, que foram
desaparecendo à medida em que acertavam seu corpo.
Ela fuzilou Youssef com o seu olhar.
Apesar da batalha que acontecia dentro daquele quarto, o local não apresentava qualquer sinal
de destruição. Era como se os djinns estivessem existindo em um plano próprio.
Núbia lançou-se ao ar, em direção ao outro que, por sua vez, criou uma barreira de pedras em
sua frente. Mas a djinn atravessou-a como se não fosse nada, agarrando o pescoço do seu
adversário. Youssef também a segurou. A mulher afastou-se dele e, no mesmo instante, criou
clones de si mesma.
O djinn lançou bolas de fogo aleatoriamente, descartando da batalha os clones atingidos. Mal
sabia ele que aquilo não passava de uma armadilha da poderosa mulher, que tratou de materializar
um chicote, o qual usou para prendê-lo e, em seguida, lançá-lo agressivamente contra o chão.
Núbia desceu ao encontro de Youssef, sendo surpreendida com um forte jato de água que a
atingiu e a lançou para trás. O djinn não podia mais vê-la, mas conhecia muito bem aquela mulher
e sabia o quão astuciosa ela podia ser. Então abriu seus sentidos, buscando estar preparado para
qualquer ataque surpresa.
De repente, uma macrovipera surgiu dando o bote, assustando o djinn, que precisou jogar o
corpo para trás para fugir de seu ataque. No mesmo instante, a serpente retornou em um impulso,
enrolando seu corpo no de Youssef e esmagando-o.
Todavia, a sombra de Youssef segurou a serpente pela cabeça e jogou-a contra a parede. A
macrovipera retornou à forma de Núbia, que também liberou a sua sombra.
As duas sombras se atracaram e entraram em um embate. Era muito confuso saber exatamente
o que estava acontecendo, apenas que Núbia e Youssef se concentravam totalmente naquela
batalha e ambos gastavam muita de sua energia.
A sombra de Núbia possuía muita vantagem e, a cada golpe que a mesma proferia contra a
sombra de Youssef, o djinn sentia as dores. A batalha estava ganha para ela.
No momento do último golpe, a mulher foi surpreendida com um golpe efetivo da sombra de
Youssef, “cortando” o pescoço da sombra oponente, que se despedaçou por completo. Aquilo
causou um enorme estrago na própria djinn que, pela primeira vez naquela luta, urrou de dor.
A mulher sustentou-se nos braços para que seu corpo não caísse por inteiro no chão. Youssef
cambaleou na direção dela.
— Acabou, meu amor — ele proferiu as palavras com certa dificuldade.
— Em toda a minha eternidade, eu sempre tive medo de ouvi-lo dizer essas palavras — ela
levantou o olhar para encará-lo. — Você é um djinn bom, Youssef. Se hoje os humanos acreditam
em histórias de djinns bondosos, fico feliz que seja por sua causa.
— Fazer escolhas ruins não te torna má, apenas mais parecida com os humanos do que imagina
— ele respondeu. — Você também pode escolher ser diferente disso.
Núbia soltou um leve sorriso de lado.

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— Às vezes, é mais fácil escolher ser o que os outros acreditam que você, de fato, é, do que
viver para tentar provar o contrário.
O silêncio pairou no ar, adiando o que ambos sabiam que era inevitável, mas o destino sabia
que eles precisavam daquele momento. Foi Núbia quem quebrou o silêncio:
— Nunca mais vamos nos ver, não é?
— Temos toda a eternidade, talvez possamos nos reencontrar no século que vem.
A mulher riu, fitando profundamente os olhos do amado.
— Eu te amo, Youssef.
— Eu também te amo, Núbia.
Então Núbia deixou que seu corpo se transformasse em uma nuvem de fumaça e desapareceu
imediatamente do palácio. O djinn sabia que havia feito o correto, aquelas pessoas estavam livres,
mas ele ainda precisava resolver uma última pendência.

— Poxa, que demora — falou Said, risonho. — Bom, eu estava pensando: e se cada um de nós
três governar uma parte de Tunes? E depois iríamos expandindo o nosso império. E aí…
— Você é meu melhor amigo, sabia disso? — indagou Youssef.
— Na verdade, eu diria que sou seu único amigo, analisando a nossa atual situação.
Youssef não conseguiu segurar a risada e trouxe Said para um abraço, que foi retribuído.
— Nossa, que sensação estranha — relatou o djinn para o amigo.
Said sentia como se estivesse sendo sugado por uma força maior, uma força que não podia
conter. E estava certo. Pouco tempo o djinn teve para perceber estava sendo aprisionado dentro
da mesma lâmpada da qual libertou Youssef há algumas horas; então olhou assustado para seu
amigo.
— Me desculpe, me desculpe mesmo — Youssef disse, mas não recebeu uma resposta.
Não sabia o que faria a seguir, e também não se preocupou: estava livre, teria a eternidade para
pensar nos próximos passos de suas ações. “Bisalama, meu querido amigo”, que, aqui, queria
dizer “adeus”.

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Livreiros de Bagdá

Marcelo Laserra

K halil se posicionava sempre contra o vento ao espreitar o lobo de olhos amarelos. O animal
deveria seguir seu curso sem perceber a presença do menino que o rastreava. Khalil seguira o
lobo a partir de restos de sangue de cabra, evidências deixadas por seu predador. Avançaram
em silêncio, cobertos pela madrugada ao sul da cidade de Damasco, atravessando quilômetros de
areias e vegetação baixa até que o lobo sentiu a proximidade mágica das ruínas de um templo,
construído na época em que os egípcios ocuparam a região, e ali estancou por alguns minutos. Neste
momento, suas orelhas ficaram em pé e o focinho tornou-se ávido por captar tudo ao seu redor. A
atmosfera ali era mais pesada, e quem chegasse perto se obrigava a inalar e exalar de forma profunda,
como se o tempo ali transcorresse em outra velocidade.
O lobo quase descobriu que estava sendo seguido, mas o descendente dos orgulhosos partas e
candidato a magus sabia disfarçar seu cheiro e se tornar um com a natureza. Seguiram por mais uma
centena de metros até que o lobo correu em direção a algo que se mexia na noite, revelando finalmente
sua caça. Khalil os seguiu, ainda com discrição, e se espantou quando viu o lobo atacar uma mulher
que ostentava diversos símbolos tatuados pelos braços desnudos, símbolos que o menino vira em
tomos mágicos e que eram usados por criaturas sobrenaturais. Tais símbolos davam-lhe a certeza de
que a moça era mais do que aparentava. A certeza de que ela era quem ele precisava encontrar.
Khalil saltou, saindo da proteção de um arbusto que escondia sua presença, e, com o cabo de sua
lança, golpeou uma das patas do lobo. A fera, em um uivo de dor, decidiu se afastar, mancando e se
vendo em desvantagem. Já em segurança, a moça de pele morena disse algumas palavras de
agradecimento.
— Foi um prazer ajudá-la, o lobo não irá nos incomodar mais, ele é esperto.
Os olhos escuros da moça brilharam como a lua cheia por um instante, e ela falou, desta vez, em
uma antiga linguagem que Khalil apenas ouvira nos lábios de sua avó.
— Poucos hoje saberiam estas palavras, moça, se ouvi bem ou temos parentes em comum ou você
é uma acadêmica?
— Ora, meu jovem salvador, creio que sabes exatamente quem sou — a moça sorriu com malícia
e aqueles olhos novamente resplandeceram com um brilho que não era natural.
— Era pálavi arsácida, o idioma antigo da Pártia. Mas, sim, pude perceber que você é a djinn que
veio para me testar, pois só um ser mágico pode reconhecer a magia. Você veio para julgar se serei
merecedor de ingressar na Ordem dos Magi ou, de ingressar no além-vida ainda jovem.
— Se o lobo é esperto, você é mais. Djinn significa “que não se pode ver” em árabe, a não ser
pelos lobos, único animal que tememos. Você sabia que eu viria para o seu ritual de passagem e
seguiu o lobo para me encontrar. Você sabia que sempre há um lobo buscando caçar um djinn, nossa
rixa é atemporal. Com isso, você passou pelo primeiro teste com louvor e terá direito a prosseguir
para a segunda provação.
— Percorri o caminho, sofri, mas aprendi muito com uma grande mestra, estou pronto.
— Magi conhecem os astros, as plantas, a matemática e outros conhecimentos que são adequados
ao mundo dos homens conscientes. Mas eu habito em mais de um mundo e, para ser um magus, você
também deve provar que será capaz de lidar bem com o mundo dos sonhos. Mostre-me se consegue
separar seu espírito de seu corpo e depois me contate no mundo dos que sonham.
Khalil passou anos buscando interagir com o mundo dos sonhos e sabia que precisava proteger
seu corpo físico enquanto dormia. Para isso, traçou um círculo ao redor de si e recitou um
encantamento de proteção. Sentando embaixo de uma árvore, conseguiu, em pouco tempo, fazer sua

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consciência cruzar o véu dos sonhos, onde fez contato com a djinn. Ela provavelmente também havia
se protegido antes de ingressar em seu sonho.
— Tudo tem um início, um meio e um fim. A tríade, a trindade, a perfeição do triângulo, assim
como deve ser a perfeição deste ritual que testa se você é merecedor de continuar trilhando a senda
mágica árabe. Eis o seu terceiro e último teste: conte-me uma história, se for uma boa história, te
tornarei um magus.
— Uma história? Sobre algo específico, longa, curta?
— Não importa, desde que me entretenha, que me ensine, desperte emoções e faça o meu tempo
valer a pena. Nada que uma boa história não faça. Um magus estuda os mundos, conhece e tece
histórias.
Khalil contou a história da menina de Bagdá, uma menina que queria conhecer o mundo, mas não
conhecia ninguém em sua família que já tivesse saído dali.

Sendo mulher, então, não havia nem perspectiva de ser convocada a guerrear, saindo para morrer
ou obter glórias em alguma terra distante. A menina tinha sonhos conturbados, pesadelos, e era
comum ficar horas acordada durante a noite. Em uma destas noites difíceis de encontrar o sono, a
menina foi para a janela de seu quarto observar Bagdá quando todos dormiam, menos ela. O tédio
logo foi aplacado com a constatação de que estava errada, havia mais alguém ali que estava
acordado.
Sua residência era vizinha a uma livraria, cujo livreiro estava retornando na calada da noite.
Estaria ele bebendo e perdeu a hora? Era o que ela pensara, pois vira o livreiro deixar um de seus
livros cair na rua, próximo à sua porta. Sem hesitar, a menina abriu a janela com cuidado e se
esgueirou para a noite de Bagdá, apanhando o livro caído. Considerou devolver o objeto para o
dono, mas ela tinha uma curiosidade extraordinária e aquela seria a oportunidade de ler algo
interessante, algo que não a deixaria deitar os olhos.
Durante as noites de insônia da menina, o livro a fazia companhia e a fascinava, pois continha
histórias diversas, contos de aventuras com criaturas espetaculares e mágicas. Ali havia histórias
sobre exploradores, sobre batalhas famosas, mas também sobre djinns e sobre ghouls — devoradores
de homens que habitam desertos e terras devastadas e aparecem para viajantes solitários,
especialmente nas horas entre o crepúsculo e o amanhecer. O conto preferido da menina era sobre
a Zarqa’ Al-Yamama, uma profeta de olhos azuis que tinha a habilidade de ver seus inimigos mesmo
que estivessem a uma distância de três dias. O texto trazia, no final, algumas inscrições que a menina
não conseguia entender; apenas em determinada hora da noite as inscrições pareciam se traduzir
sozinhas, para, em seguida, voltarem a ser símbolos misteriosos. Ao longo das noites, ela se lembrou
de observar aquela mudança, sempre no mesmo horário. As palavras traduzidas tinham a métrica e
sonoridade de um poema, e a menina as decorou e não conseguia mais tirá-las da mente. Também
não podia recitar em voz alta, pois a família faria perguntas e ela não poderia mostrar o livro que,
afinal, não era dela. Um grande castigo certamente recairia sobre ela se alguém soubesse de sua
nova leitura.
Assim como a maioria das pessoas daquela parte de Bagdá, a família da menina era pobre. Com
a barriga emitindo roncos dolorosos e entediada que estava, já que a noite ainda estava longe, a
menina sentiu um odor adocicado e fresco vindo de uma banca de frutas armada quase em frente à
livraria. Ela sabia que o mercador vivia da venda dos produtos, mas certamente ele tinha condições
melhores que a família dela e, principalmente, não passava fome. A menina, mesmo sabendo que
furtar era errado, também sabia que não teria como pagar pelo pêssego que a hipnotizava ante a
fraqueza que vinha com a fome. Esperou que o vendedor se distraísse e passou a mão no pêssego,
correndo logo em seguida.
Ouviu gritos acusadores, alguém havia presenciado seu crime e agora ela seria punida. O
desespero fez que ela recitasse as palavras que não saíam da memória enquanto continuava a fuga.
Quando chegou a um beco sem saída, olhou para trás e percebeu que o vendedor e mais dois homens
estavam em seu encalço, e um deles era o livreiro. Teria ele descoberto também que seu livro estava
com ela?

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A menina continuou a recitar o poema quando, de repente, percebeu que seus perseguidores não
olhavam mais diretamente para ela. Era como se não conseguissem vê-la, mesmo estando a alguns
metros à sua frente. Então aproveitou para fugir do local, mas não sem antes perceber que o livreiro
tinha um sorriso estranho nos lábios. O homem falava algumas palavras baixinho até que conseguiu
focar o olhar na menina que fugia; mesmo assim, não desfez o sorriso ou voltou a persegui-la.
Mais tarde, o livreiro bateu na porta da casa da menina, sendo recebido com chá pelo pai da
mesma. Ela não sabia se prestava atenção ao seu coração explodindo ou a fragmentos da conversa
entre seu pai e o visitante, já prevendo um castigo exemplar. O que seu pai ouviu do livreiro foi que
o homem estava disposto a pagar uma boa quantia por semana para alguém que o ajudasse na
limpeza e conservação de seus livros e da livraria. Ofereceu a vaga para a filha de seu anfitrião, já
que morava perto e sabia da educação da menina. O pai tinha certo receio de sua filha trabalhar em
uma livraria e arranjar confusão, mas o dinheiro era muito bem-vindo e, como o livreiro falara, era
perto e seria fácil vigiar seus passos.
O alívio da menina só não foi maior do que a satisfação nas semanas que se seguiram. O livreiro
nada exigia quanto a serviços de limpeza, mas sim apresentou a ela uma lista de livros que deveria
ler; sem dúvida, ela achou estranha a recomendação de que não deveria contar a seus pais que era
paga para estudar. Após aplicar uma prova sobre os conhecimentos recém adquiridos pela menina,
o livreiro tocou no assunto do roubo do pêssego e que sabia que o livro perdido estava em sua posse.
Ela chorou, no mesmo instante, enquanto o pânico tomava conta, mas ele a acalmou e a perdoou,
desde que devolvesse o livro.
Acrescentou que, agora, ela teria acesso a livros e a um pouco de dinheiro, não precisando mais
roubar para alimentar seu corpo e sua mente. Apresentando o mesmo sorriso enigmático do dia da
perseguição, disse saber como ela tinha feito aquilo, mas que talvez ela mesma não soubesse. Nada
podia ser mais verdadeiro. Ele contou que era um magus, um integrante de uma ordem de estudiosos
com conhecimentos tanto do mundo físico quanto da magia que ainda se fazia presente. A ordem dos
Magi precisava de novos membros e ele a presenciara desencadeando um feitiço de ocultação,
mesmo sem treinamento adequado, o que era um sólido indício de que teria sucesso em trabalhos
com magia.
A menina iniciou formalmente seu treinamento para ser aceita como magus quando tivesse idade
suficiente. Estudou filosofia, matemática, astronomia e alquimia. Aprendeu sobre: marids, ifrits e
outros djinns; encantamentos de proteção, de ataque, de sugestão da mente e de viagem ao mundo
dos sonhos. Mas o destino quis que, em um dia especialmente atribulado, ela esquecesse de realizar
um dos primeiros rituais de proteção ao entrar na livraria.
A Ordem de Magi e seus membros trabalham com a maioria dos djinns, mas existe uma facção
destes seres que vê os magi como seres inferiores e inimigos. Devido a esta ameaça, uma forte
barreira de proteção mágica foi levantada em locais importantes para os magi, e aquela livraria
certamente era um daqueles locais. O esquecimento da menina permitiu que um ifrit, um djinn
associado ao elemento fogo, iniciasse um incêndio na livraria e queimasse registros inestimáveis de
conhecimentos acumulados por mestres gregos, egípcios e fenícios. Mesmo com a vergonha de ter
permitido aquela destruição, a menina ainda viu o livreiro, seu mestre, dar seu último suspiro ao
salvá-la do ifrit. Juntando o que restava de sua dignidade e recursos mágicos, a menina conseguiu
sair de Bagdá com os livros que não queimaram, alterando magicamente sua aparência para a de
um jovem mercador.

— Dizem que ela se estabeleceu em Damasco, talvez seja perto de onde estamos! — fez uma pausa
um tanto longa, que fez com que a djinn levantasse as sobrancelhas.
— E como termina a história? — questionou com certa ansiedade.
— Termina como começou, com a tríade. Eu sou o terceiro elemento e força aqui, e você a sentirá!
— uma voz rouca feminina foi ouvida e tudo que a djinn e Khalil viram foi o ambiente de sonhos
ruir, levando-os a acordar.
A viagem ao mundo dos sonhos enfraqueceu a percepção da djinn no mundo desperto e, tarde
demais, sentiu que alguém quebrou o círculo mágico de proteção que ela havia desenhado. Uma dor

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excruciante fazia com que todas as partes do seu corpo queimassem sem que houvesse qualquer
chama. No mundo desperto não havia dois, mas três seres ali, assim como a reflexão da djinn sobre
a tríade.
— A história de Khalil é sobre mim, eu sou a menina, sou Shanti. A história é nossa! Foi você que
queimou a livraria e só não eliminou Khalil porque ele a salvou do lobo. As leis impedem que você
o prejudique antes que retribua na mesma medida. Completar o ritual e torná-lo um magus a liberaria
para atacá-lo — uma beduína, com um dos olhos pálido, alvo, e o outro escuro, gesticulava ao falar,
parecendo que suas mãos controlavam uma marionete invisível.
Mesmo se contorcendo com a dor infligida, a djinn conseguiu desenhar no ar um grande círculo
entre ela e sua atacante. Shanti correu para se posicionar em um ângulo que pudesse evitar a proteção
daquele escudo mágico e voltar ao ataque, mas a djinn aproveitou que a lei que protegia Khalil havia
se rompido, já que ele a trouxe para uma armadilha, e dirigiu um ataque mágico com um clarão para
cegá-lo e equilibrar o jogo.
Nisso, Shanti correu em direção a djinn e apostou em um combate corporal, anulando a capacidade
de sua adversária de realizar gestos de invocação e lançar magias de combate à distância, que eram
mais poderosas que as dela. A djinn teve tempo apenas de conjurar uma cimitarra, usando-a para
bloquear o ataque da espada de duas mãos de Shanti. O combate foi rápido, pois Shanti havia treinado
com um mestre espadachim italiano e buscou usar técnicas que imaginava serem desconhecidas pela
djinn.
A vingança de Shanti havia sido cuidadosamente planejada, terminando em uma Posta di Bicorno,
uma manobra a princípio excêntrica e desajeitada, mas inesperada e, talvez por isso, efetiva em fazer
a ponta da espada encontrar o corpo da criatura mágica. Dentes de lobo, aplicados na lâmina serrilhada
de Shanti, fustigaram e colocaram a djinn às portas da morte. Mesmo em estado de cegueira, Khalil
recitou as palavras de um ritual que transformava o ser sobrenatural em uma espiral de fumaça azul
e a obrigou a ocupar o interior de uma lâmpada árabe. Khalil vingara o mestre de sua mestra e
condenara aquela djinn a servi-lo. Os olhos de Khalil não percebiam mais o mundo terreno, mas seu
sacrifício destravou uma percepção inigualável da mágica que flui por todas as coisas.

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A gema de Hórus

Felipe Fernandes Feital

N as areias do deserto egípcio, próximo ao rio Nilo, adoradores e sacerdotes veneravam uma
mulher ornamentada em joias de pedras preciosas. Sua figura era resplandecente e todos ao
seu redor gritavam seu nome em coro.
Em um segundo, a imagem da mulher venerada pela multidão devota se transformou em mobílias
de apartamento. Uma jovem mulher se esticava pelos lençóis revirados de sua cama, e apalpava a
cômoda, para desligar o despertador.
— Que sonho mais esquisito… — murmurou a jovem.
Quinze minutos depois, no lugar de uma jovem sonolenta e descabelada, saíra uma elegante moça
do banheiro com os cabelos molhados e escova nos dentes enquanto procurava suas chaves,
passaporte e outros objetos importantes. Sentou-se na cama e vestira sua bota verde musgo, sem
deixar de olhar, umas duas ou três vezes, para o seu relógio de pulso.
Após conferir se tudo estava em ordem, a jovem elegante e apressada se precipitou pelos
corredores de seu prédio e entrou no elevador em direção ao térreo. Enquanto esperava a lenta descida,
escreveu uma mensagem de texto para alguém dizendo o seguinte: “Já estou saindo de casa, te
encontro no aeroporto. Beijos, mano!”
— Amirah! Que bom rever-te! — disse alegremente um homem magro e bem vestido que segurava
um monte de malas. Parecia ser o destinatário da mensagem de texto enviada por Amirah quando
estava no elevador.
Amirah, sorridente, abraçou o irmão enquanto largava as malas no chão.
— Agora vamos, Omar, não queremos perder nosso voo!
Amirah e Omar estavam a caminho de uma expedição pelo Egito e outras regiões do Oriente
Médio. Ambos eram arqueólogos e estavam em busca de artefatos perdidos há milênios.
Na plataforma de embarque, apresentaram seus passaportes e despacharam seus itens pessoais.
Foram, então, para seus respectivos assentos e se acomodaram bem, pois a viagem dos Estados
Unidos até o Egito era longa.
Cerca de doze horas depois, Amirah e Omar estavam debaixo do sol escaldante do Oriente Médio,
a caminho da sua jornada arqueológica até o Egito. Mas antes de chegarem lá, passariam por um
roteiro através do Iraque.
— Estamos procurando o que afinal, Amirah? — indagou Omar, incrédulo.
— Já ouviu falar do tesouro de Ninrude? — respondeu, ao que Omar assentiu. — Acredita-se que
há um sítio arqueológico, localizado na cidade de Ninrude, no Iraque. Talvez lá possamos achar
algumas dessas peças do tesouro, mas tem um problema.
— Qual?
— O local é dominado por mercenários. É possível que sejamos surpreendidos por uma de suas
milícias. Mas, se formos discretos e rápidos, não teremos problemas para entrarmos ou sairmos —
explicou Amirah, observando bem a reação de espanto do irmão.
Eles saíram em sua expedição arqueológica, em direção a cidade de Ninrude. Possuíam muitos
instrumentos e bugigangas de escavação, mas, naquele momento, Amirah estava mais preocupada em
fotografar os lugares que passavam, enquanto Omar se confundia com o mapa enorme em suas mãos.
Quando chegaram em Ninrude, foram o mais depressa possível atrás do que procuravam, sem
distrações ou balbúrdia. O lugar estava em ruínas e tudo parecia estar abandonado há séculos. Teias
de aranha eram facilmente vistas pelas paredes do templo antigo, que era iluminado por pequenos
buracos onde os raios solares se infiltravam.

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Havia uma antessala por onde se estampavam enormes esculturas de seres alados e reis que
poderiam ter reinado naquelas terras há milhares de anos. Mais em direção ao centro, havia uma
câmara com um portal lacrado.
— Acho que é aqui, Omar. Talvez este seja o lugar que diz nas especificações — sussurrou
Amirah, excitada.
Após alguns momentos quebrando a cabeça, os irmãos conseguiram adentrar na câmara. O lugar
era ainda mais escura do que o restante do templo, exceto por um brilho ao centro que indicava ser
algo feito de um metal reluzente. Ouro, é claro.
Se tratava de um jarro de ouro com hieróglifos esquisitos e alguns desenhos de uma figura forte e
imponente bem no centro do objeto.
— Será que saquearam tudo e só o que sobrou foi esse jarrinho aí? — indagou Omar, olhando à
sua volta à procura de algo que refutasse sua teoria.
Porém, antes que Amirah pudesse responder, uma voz atrás deles gritou em uma língua distinta.
Então, uma dúzia de homens armados com metralhadoras entraram, um a um, apontando suas armas
em direção a Omar e Amirah.
A mulher se assustara quando um dos mercenários vociferou alguma ordem direta a eles,
derrubando o jarro de ouro no chão ao vacilar seu corpo para trás. Repentinamente, uma fumaça
cobriu todo o ambiente em que eles estavam, fazendo alguns homens tossirem.
Para o espanto de todos, surgira mais um homem na câmara, reluzente como o jarro, com suas
peças de ouro em brincos, pulseiras, anéis, braceletes e colares. Um impressionante e corpulento
físico atlético ostentava adornos e tecidos de seda e linho, acompanhado de tatuagens de símbolos
estranhos e um avantajado turbante cor de anil bem amarrado na cabeça. Sua barba era longa, negra
e bem alinhada, e, em seus olhos, uma faísca azul queimava como em uma lareira.
Um aroma de incenso e framboesa impregnara o ar, enquanto o homem fitava os corpos presentes
naquela câmara. Ele parecia confuso e ao mesmo tempo desconfiado. Disse algumas coisas em uma
língua que ninguém pôde entender — sendo assim, ninguém o obedeceu.
Os mercenários ameaçaram atirar no homem forte de turbante que, com um gesto breve usando
uma das mãos, atirou todos eles para longe do templo. Girou então nos calcanhares e uma densa
fumaça preencheu a câmara com ainda mais intensidade, fazendo todos desaparecerem.
No momento seguinte, Amirah, Omar e esse homem misterioso se encontraram no meio do
deserto. Tudo ainda estava muito confuso para todos.
— Desculpe, senhor, mas quem é o senhor? Onde eu estou? Por qual motivo viemos parar aqui,
no meio do nada? — perguntou Amirah, um pouco ofegante e confusa.
O homem a encarava fixamente. Disse mais algumas palavras estranhas e voltara a sua atenção
para o deserto à sua volta, como se estivesse em vigília contra algum perigo iminente.
— Dá pra me escutar? Eu quero saber onde estou, você não consegue me entender? Você fala a
minha língua? Ei! Eu estou falando com você… — exclamou Amirah impaciente e puxando o homem
pelo braço, que voltou sua atenção para ela.
“Muito bem, meu nome é Mustafah Kahram, eu não sei como vim parar aqui e nem em que época
estou, mas estive preso em um jarro de ouro. Gostaria de saber se foi você quem me libertou”. Sua
voz era diferente de tudo o que já haviam ouvido. Ao mesmo tempo que era feroz e intimidadora,
conseguia ser serena e acolhedora.
— Eu derrubei o jarro quando me assustei com aqueles mercenários, eu acho — disse Amirah.
“Serei grato a você até o fim de minha vida.”
— Tá, mas agora, ô senhor Mustafah, diga-nos onde estamos. E o que é você? algum tipo de
mágico ou ilusionista? — indagou Omar, incomodado com as areias entrando em seu sapato.
“Oh sim, muito bem observado, nobre humano. Estive preso por tanto tempo que não pude
perceber minha falta de atenção. Não sou mágico, muito menos um ilusionista. Só o que precisam
saber é que muitos temem minha presença quando, na verdade, não precisam temer, exceto os que
praticam a maldade. As pessoas por aqui costumam me chamar de djinn. Acho que é isso, mas podem
me chamar de Mustafah”.

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— E o que um djinn exatamente faz? Eu devo estar sonhando acordada! — disse Amirah.
“Isso não é um sonho, eu sou de uma raça de seres mágicos responsáveis pela proteção deste
mundo. Servimos ao grande mestre Ahura Mazda, o deus da criação de todo o universo que
conhecemos. Nós djinns possuímos níveis diferentes de habilidades. Sou pertencente a uma classe
distinta no meio dos djinns, conhecida como marids. Infelizmente eu fui o único da minha raça que
sobreviveu. Houve uma guerra que explodiu e quase destruiu toda a mãe Mesopotâmia, o berço da
humanidade. E o precursor desta tão destrutiva guerra foi o nosso inimigo, Angro Mainyush, o deus
do caos e da destruição e seus lacaios ifrits, uma raça maléfica de nós djinns”.
— Opa! Peraí, seu maluco, você não tá falando coisa alguma e isso não faz sentido pra gente. O
que nossa busca aqui tem a ver com esse folclore de zoroastrismo que você está nos dizendo? —
interrompeu Omar.
“Não está acreditando, não é? Olhe para trás então, você vai entender já!”.
Omar e Amirah obedeceram ao pedido de Mustafah. Atrás deles havia um grupo de homens de
vestes pretas e vermelhas e espadas embainhadas no cinto. Todos eles cobriam o rosto e pareciam ser
guerreiros árabes bastante habilidosos, diferentes dos mercenários lançados por Mustafah.
— Quem são eles, Mustafah? — indagou Amirah, apreensiva.
“Ifrits, nossos inimigos. Estão à procura do Olho de Hórus”.
— Olho de quem? — perguntaram Amirah e Omar juntos.
“O olho de Hórus ou gema de Hórus. É uma joia também conhecida como Udyat, que representa
o olho arrancado do deus egípcio do céu, Hórus. Foi filho do deus Osíris com a deusa Ísis. Dizem que
quem obtiver essa joia possuirá todo o conhecimento dos deuses e todo o poder para dominar o
universo”.
— Isso, pra mim, parece fantasia — debochou Omar, incrédulo.
De repente os ifrits desapareceram e reapareceram bem próximos a eles, formando um cerco ao
seu redor. Neste momento, Omar e Amirah creram nas palavras de Mustafah, ainda que só na parte
que dizia sobre os ifrits, e se refugiaram atrás de sua estatura musculosa de um metro e noventa.
— Você pode dar conta deles? Você é apenas um e eles, uns quinze! — sibilou Amirah, em pânico.
“Esqueceu que eles são apenas ifrits e eu um marid?”
Ao dizer isso, os ifrits desembainharam suas cimitarras e partiram em direção a Mustafah,
enquanto este desafivelava suas duas lâminas banhadas a ouro em forma de meia lua. Uma intensa
batalha se sucedeu a partir dali. Mustafah era habilidoso com suas armas, mostrando que o tempo não
o envelhecera nem um pouco no que tange a destreza de batalha.
Cinco ifrits caíram rapidamente perante suas espadas. Alguns apelaram para o uso desleal da
magia, disparando esferas flamejantes contra o seu adversário. Porém Mustafah fazia jus à sua
lendária classe de marid.
“Amirah, embora eu consiga dar conta facilmente deles, não pretendo continuar essa luta aqui e
agora. Isso é uma distração do nosso inimigo, tentando nublar nossa mente. Rápido! Apalpe meu
bolso direito e retire dele uma pequena ampulheta de ouro. Jogue-a para o alto, faça com que a
ampulheta gire cinco vezes no ar!”.
Amirah, com um pouco de dificuldade, enfiou a mão no bolso da calça de Mustafah e ao apalpar
algo semelhante a uma ampulheta, agarrou-a bem firme em sua mão. Sacou o objeto e jogou para o
alto. A ampulheta girou algumas vezes no ar e, ao tocar as areias do deserto a seus pés, fez com que
tudo à sua volta sumisse e, surgisse no lugar, um outro deserto. Não como antes, vazio e sem vida.
Mas agora com vários palácios e pessoas, rios e animais.
— O que houve, Mustafah? Onde estamos? — murmurou Amirah.
“Uma pergunta, quantas vezes você fez a ampulheta girar no ar quando a atirou para o alto?”.
— Eu vou saber? Umas três ou quatro voltas e meia, talvez! — reclamou Amirah, inconformada
com o teor da pergunta.
“A cada volta dada, a ampulheta volta mil anos no tempo, só para deixar vocês informados”.
— COMO É QUE É? — exclamaram Amirah e Omar, em coro.

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“Se a ampulheta completou quatro voltas e meia no ar, então voltamos quatro mil e quinhentos
anos no tempo. Em que ano estávamos antes de chegarmos aqui?”.
— Dois mil e vinte e três — respondeu Omar, sem esperanças.
“Isso tudo? Estive preso por muito tempo! Devemos então estar no ano dois mil e quatrocentos
antes de Cristo, aproximadamente. Se não me falha a memória, o Egito já enfrentava uma significativa
decadência em seu império, nessa época. Os deuses foram derrotados e capturados pelo nosso
inimigo, Mainyush.
“Também experimentaram a ruína: Ahura Mazda e seus Amesa Espenta, espíritos do Sagrado
Imortal. Espenta Mainiu, Espírito Sagrado; Axa Vaista, Suprema Retidão e Ordem; Vohu Mana, Bons
Pensamentos; Espenta Armaiti, Sagrada Piedade; Quexatra Vairia, Ideal Governo; Haurvatate e
Ameretate, Perfeição e Imortalidade.”
— Isso, pra mim, parece uma tremenda maluquice — caçoou Omar, tapando a boca para que
Mustafah não ouvisse.
“Espectros da grandeza de Ahura Mazda que integram seus aspectos divinos. Todos eles
compuseram o Garothman, o templo dos céus, que hoje, é claro, está em ruínas. Mainyush destruiu
tijolo por tijolo, pilar por pilar”.
— E onde vocês djinns, ou nós, entramos nisso? — indagou Amirah, agora curiosa em querer
saber mais.
Mustafah respirou fundo e continuou.
“Nosso papel nessa história é obviamente derrotar nosso inimigo. Não será uma tarefa fácil.
Precisaremos da ajuda dos deuses egípcios, pelo menos os que sobraram. Não são muitos, mas toda
a ajuda é bem-vinda”.
— Deuses egípcios… — murmurou Omar, um tanto incrédulo.
“Sim, talvez sejam a nossa única esperança contra Mainyush. O problema talvez seja convencê-
los. Nunca foram muito amistosos. Principalmente agora, que Amirah possui algo muito importante
para os egípcios. Algo que eles prezam muito”. Nesse momento, Mustafah mostrou seriedade em
cada palavra.
— E o que eu tenho? — perguntou Amirah, confusa.
“Você não é quem pensa que é Amirah, sua linhagem é pertencente à deusa Ísis. Há muitas eras,
no império, você representou sua divindade aqui na Terra como rainha e porta-voz entre a deusa e o
povo. Você foi adorada por longas gerações de faraós”.
Tudo se encaixava na cabeça de Amirah agora: sua descendência árabe, os sonhos na sua cabeça…
“Graças a essa árvore genealógica que liga você aos deuses egípcios, confiaram-na o Udyat, a joia
que pode decidir o destino da humanidade, agora e para todo o sempre. Precisamos que se posicione
como a rainha que nasceu para ser e governe o povo egípcio. Você representa Ísis e só você pode
preservar o conhecimento que Hórus confinou em seu olho. Devemos impedir que ele caia em mãos
erradas”.
— Então temos que escondê-lo, aqui ele pode cair facilmente nas mãos dos ifrits! — exclamou
Amirah.
“Com a minha magia, eu posso enganá-los, distraí-los, atrasá-los. Mas meu maior temor é o seu
general, um shaytan, uma raça ainda mais maléfica e poderosa. Meu arqui-inimigo, Azhi Dahak, o
único que pode contra as minhas artes mágicas. Ele é muito poderoso e possui um dragão de três
cabeças.”
— Mas você pode detê-lo, não pode? Eu vi você lutar e você colocou aqueles ifrits pra correr! —
encorajou Omar, como quem faz um elogio.
Mustafah sorriu pelo comentário otimista.
“Agradeço pela sua bondade, meu amigo. Mas acho que fomos nós quem corremos deles, de volta
para o passado. Pode não parecer, mas já estou velho. Surgi há cerca de cinco mil anos, forjado no
fogo mágico. Não sou muito páreo para os ifrits jovens do novo milênio. Além disso, nós djinns,
embora vivamos por milhares de anos, não somos imortais”.
— Mesmo assim, você se saiu muito bem, Mustafah! — disse Amirah, orgulhosa.

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“Suas palavras brilham como as estrelas. Precisamos ir agora, antes que anoiteça. Vou acomodar
vocês no palácio de um sultão que conheço aqui por perto, lá você estará segura por enquanto”.
— Palácio? Preciso me acostumar com a realidade de rainha — caçoou Amirah.
Juntos, então, partiram para esse tal palácio. Mustafah os tornara invisíveis no deserto, ele possuía
um talento para truques mágicos. Chegando lá, fora muito bem recebido pelo sultão. Mustafah sabia
como chegar nos lugares, possuía um carisma hipnotizante.
Amirah e Omar se acomodaram em seus aposentos e devoraram um delicioso banquete, digno de
deuses. Mustafah não se deu ao luxo de deleitar-se em tais prazeres, montou guarda ao redor do
palácio e lançou encantamentos de proteção nas propriedades do sultão.
Rapidamente o anoitecer chegou e trouxe consigo o brilho ofuscante da lua cheia. Sob a luz lunar,
nas pirâmides de Gizé, Osíris, deus dos mortos, contemplava o deserto, com os olhos fixos e
melancólicos. Usava suas vestes reais, opulentas em ouro e pedras preciosas. Anúbis o acompanhava,
com seus chacais ao redor do templo, montando guarda contra qualquer investida inimiga de atacá-
los.
— Nós perdemos, meu filho — lamentou Osíris com a voz arrastada.
— Sobraram só nós e os escorpiões de Serket — informou Anúbis.
— E o maldito Seth, que nos traiu e se voltou para Angro Mainyush. Eu ainda ponho as minhas
mãos nele! Aquela cobra! — praguejou Osíris, com os lábios tremeluzentes.
— Ele vai ter o que merece, mestre Osíris. Por falar em cobra, Apófis se juntou a Falak na
campanha dos persas — disse Anúbis.
— E quem não perdemos? — questionou Osíris, enquanto uma lágrima escorria de seu rosto —
Mas ainda temos a garota que dizem ser a reencarnação de minha esposa Ísis e representante dela ao
meu povo. Ela guarda a única coisa que restou de meu filho Hórus. Precisamos ir buscá-la!
— Mestre Osíris, eu respeito muito sua vontade e compreendo o seu luto, mas acha prudente
abandonarmos o Egito por causa de uma humana só porque os rumores apontam que sangue divino
corre em suas veias? Os ifrits estão em nossas terras e, por mais que sejamos deuses, sua magia é
poderosa contra nós! — relutou Anúbis.
Neste momento, Osíris pôs-se de pé e alguns raios lunares revelaram sua maldição. Não havia
mais pele em seu corpo, ele era apenas um pútrido e deplorável cadáver, expondo sua natureza morta
e fantasmagórica. Há tempos, Osíris não exalava mais sua vida abundante de eras remotas em que era
um deus da agricultura. Agora governava o Tuat, o submundo egípcio, juntamente com Anúbis, seu
filho.
— Não tirarei meu pé de nossas terras, nem por um centímetro! Aqui é nossa casa, nosso lar, nosso
povo! — vociferou Osíris. — Sou leal ao meu povo e é hora de mostrarem sua lealdade a mim, meus
faraós!
Osíris estendeu sua mão e ordenou, com uma voz que ecoou por todo o templo: “ERGAM-SE,
MEUS FIÉIS IRMÃOS!”.
Como plantas brotando das areias, múmias esqueléticas e vestidas de ouro puro ergueram-se
empunhando espadas e lanças igualmente douradas. Marcharam em fileiras, cambaleantes e trôpegos.
Faraós que viveram numa era em que o Egito ainda era o berço da civilização.
— Eles serão apenas uma distração — pontuou Osíris. — Meu verdadeiro interesse está em
recuperar o Udyat. Para isso, enviarei um escorpião Serket e o grifo do meu filho Hórus.
Anúbis pressionou a parte inferior de sua língua com os dedos indicadores ao mesmo tempo que
soprou um assobio longo e ensurdecedor. Imediatamente, uma enorme criatura com asas douradas e
olhos cor de brasa ardente surgiu nos céus. Era nada menos que o grifo de Hórus, uma criatura
fascinante com o corpo felino e partes de falcão.
— Convoque seus chacais, Anúbis! — ordenou Osíris. — Faça-os guiarem meus faraós até a
humana que guarda o olho de meu filho.
Anúbis obedeceu, e enormes chacais negros com dentes afiados e olhos de rubis partiram à frente
das hordas de faraós mumificados.
— Irei convocar os Obeliscos do Sol da Meia-Noite de Amon-Rá! — anunciou Osíris.

63
— Isso é mesmo necessário, mestre Osíris? Está usando muitos tipos de artes para ir atrás desse
olho — retrucou Anúbis.
— Estamos lidando com forças poderosas, Anúbis. Sem a nossa magia, seremos devastados e não
teremos a menor chance! — suplicou Osíris que, em seguida, proferiu algumas ordens em egípcio
aos ventos.
Vinte e oito soldados, da maior elite egípcia dos tempos de glória do deus Amon-Rá, surgiram nas
sombras, em posição de reverência perante Osíris. Uma armada poderosa de implacáveis semideuses,
magos e guerreiros que serviam aos deuses egípcios. Pertenciam à Heliópolis, cidade do deus-sol.
Suas roupas e peças eram negras como a noite, assim como suas lâminas de batalha, possuindo alguns
traços de ouro e rubi. Seus olhos, cor de ouro, fitavam as areias do templo à espera de uma ordem dos
deuses ali presentes.
— Irei acompanhá-los, mestre, para assegurar que tudo correrá conforme o plano — sugeriu
Anúbis.
— Faça isso, meu filho.
Osíris ordenou que os Obeliscos seguissem Anúbis, que se transformara em um enorme chacal
negro e feroz. Osíris acompanhou-os com seu olhar sombrio, implorando internamente para que tudo
conspirasse a favor de seu povo.
Enquanto isso, no palácio real, onde Amirah e Omar estavam hospedados, Mustafah, o djinn marid,
lançava suas magias de proteção em volta dos terrenos do sultão.
“Os soldados estão a postos em suas áreas de sentinela. Meus feitiços irão nublar os ifrits, assim
não nos encontrarão tão facilmente, o que nos dá uma certa vantagem. Peço que descanse esta noite,
estarei vigilante caso algo apareça”. Amirah sorriu em gratidão pelas cuidadosas instruções de
Mustafah e logo pegou no sono. Omar já fizera o mesmo, há horas.
A noite parecia tranquila. Mustafah fitava o horizonte como um cão vigilante, quase sem piscar.
Ele sabia que os limites da magia eram desconhecidos, por isso mantinha os olhos bem abertos,
temendo a possibilidade de seus feitiços protetores serem insuficientemente eficazes contra as artes
mágicas do inimigo.
Seu temor se confirmou ao romper da madrugada, quando uma imensa bola de fogo caiu sobre os
terrenos arredores. Dezenas de ifrits, com rostos cobertos e lâminas afiadas nos punhos, brotaram das
chamas como borboletas em arbustos. A princípio, não enxergaram o palácio — Mustafah era bom
com feitiços. Vagaram zonzos, sentindo a magia e a presença do palácio, porém sem conseguir vê-
lo.
Mustafah franziu a testa quando as chamas aumentaram e delas surgira uma criatura ainda mais
temível. Azhi Dahak, montado em seu dragão de três cabeças que exalava enxofre e chamas. Suas
escamas pareciam carvões em brasa, seus olhos eram como abismos profundos e suas garras e dentes
pareciam fumaças em formato pontiagudo.
Amirah acordou com uma mão tapando sua boca, isso fez seu coração pular no peito. Era Mustafah
cobrindo-a para que não ouvissem seu grito de pânico. Seu dedo indicador tocou os próprios lábios,
sugerindo uma ordem para que ela fizesse silêncio.
“Estão aqui!”.
Amirah quase não ouviu o sussurro de Mustafah, mas, sem compreender muita coisa, o seguiu
para onde quer que ele a estava levando. Os dois subiram algumas escadas e se depararam com um
quarto vazio de portas fechadas.
“Fique aí, e não saia enquanto eu não mandar, está bem?”.
Depois da ordem de Mustafah ter se tornado clara, a porta do quarto se fechou diante da mulher.
Seja lá o que havia lá fora, tirara toda a paz de Amirah e ela sentia que algo de muito ruim estava para
acontecer. Infelizmente, só o que podia fazer era acatar a ordem do djinn e permanecer, de forma
estática e silenciosa, dentro daquele quarto até segunda ordem.
Mustafah surgiu em um piscar de olhos perante Dahak e os ifrits, assumindo todo o fardo da luta
para si.
— Ora, ora, ora… se não é o grande Mustafah Kahram… — a voz de Azhi Dahak era como de
trovão e ecoava por todo o palácio.

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— Eu voltei pra deter você, Dahak! Não permitirei que roubem o olho. Receio que vieram, em
vão, procurar por ele!
Subitamente, Mustafah desembainhara suas espadas douradas com lâminas em meia-lua.
— Voltou para sofrer ou ser preso novamente naquele vaso: um belíssimo desperdício! Detenham-
no!
Uma explosão de espadas irrompeu contra Mustafah. Faíscas e clarões saltitavam para todo o lado.
Os soldados do sultão tentaram intervir, mas Mustafah os impediu.
— Magia só se vence com magia, não são páreos nessa luta. Eu dou conta deles!
Mustafah era ótimo manuseando espadas. Nenhum ifrit sequer o tocava. Mas sua real preocupação
era com o shaytan. Dahak ordenou que seu dragão cuspisse uma labareda de fogo contra o palácio.
Antes que o atingisse, Mustafah conjurou um escudo de diamante na direção em que as chamas
lambiam.
— DAHAK, SEU COVARDE!
Mustafah tornou líquida como lama a areia embaixo dos pés do dragão de Dahak, o que fez a
criatura cessar as chamas e anular seu ataque ao palácio. Libertando, então, a fúria de Dahak contra
o marid.
Uma massa corpórea de quase dois metros e meio de altura, com suas roupas negras e vermelhas
e os olhos faiscando em chamas, agora caminhava na direção de Mustafah. Seu corpo parecia feito
inteiramente de fogo coberto por roupas que não se queimavam. Dahak era uma criatura
amedrontadora.
De seu cinto, sacou duas espadas de meia-lua como as de Mustafah. Riscara a garra do dedo
polegar sobre a superfície da lâmina como se risca palitos de fósforo e, automaticamente, suas espadas
arderam em chamas escarlates.
Mustafah sentiu uma gota de suor escorrer por sua têmpora. Porém, antes que a luta pudesse
começar, os egípcios marcaram presença naquela noite. Mil homens mortos invadiram o campo de
batalha com suas lanças e espadas, tornando a paisagem um caos desordenado. Afinal, estavam ali
para isso: distrair com o caos que poderiam causar.
A luta de Mustafah e Dahak não foi impedida por uma desordem feita por múmias e o djinn estava
tendo sérios problemas para enfrentar seu inimigo maligno. Cabeças faraônicas voavam e renasciam
no lugar em que foram arrancadas, assim como braços e pernas. Os Obeliscos travavam uma fervorosa
batalha contra as espadas afiadas dos ifrits e o dragão de Dahak, agora, tornara a lançar seu inferno
ardente contra o palácio.
No meio do tilintar das espadas e lanças, ou do ruído de ossos se quebrando, ou do baque de corpos
caindo sobre a areia, ou dos infindáveis brados de homens em contenda, um grito de Mustafah
chamando por Amirah se sobressaiu. O palácio agora estava em chamas, o que fez Omar se levantar
de um salto. Amirah correu para longe, acompanhada pelos homens do sultão. Entretanto, Anúbis
parara em sua frente, na forma de um enorme chacal; seus outros chacais atacaram os soldados que a
acompanhavam.
Amirah, assustada, pôde jurar que um escorpião saíra da boca daquele chacal. Uma picada daquele
bicho poderia acabar com tudo. Seu fôlego havia desaparecido dos pulmões e agora suas pernas
bambeavam. Por todo o seu corpo, o escorpião escalou e, com sua cauda, espetou de forma astral o
olho direito de Amirah, extraindo uma pequena esfera cor de safira, muito brilhante e oval.
Assim que capturou seu prêmio, o escorpião desceu do corpo de Amirah e seguiu em direção ao
chacal, do qual saíra anteriormente. Porém, para seu espanto, a lâmina dourada de Mustafah surgiu
de repente, esperando o corpo do escorpião e fazendo-o virar pó, enquanto a esfera azul-safira ainda
jazia na areia.
Segurando firme sua espada, como uma espátula, Mustafah cutucou a esfera e catapultou-a em
direção às mãos da mulher: “Pegue, Amirah!”.
De chacal, Anúbis se transformou em um homem forte e de roupas pretas, fazendo Amirah
desconcertar-se um pouco, enquanto a esfera, no ar, vinha em sua direção. Porém, antes que a pequena
e azulada joia pudesse repousar sobre as mãos macias e estendidas de Amirah, um farfalhar de asas
batendo golpeou o ar, bruscamente, e garras afiadas agarraram-na pelos ombros, lançando-a para

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longe das areias, em direção às nuvens. Era o grifo e este levava Amirah cada vez mais para longe,
fortemente, enquanto a esfera cor de safira rolava sobre a areia disforme.
Mustafah, inconformado, tentou atacar Anúbis, mas, antes que a lâmina o atingisse, sentiu em suas
costas uma dor queimar cada fibra de seu músculo dorsal. Dahak o acertou com sua espada de chamas
escarlates. Uma enorme ferida em diagonal se abriu, da lombar até o ombro, e Mustafah desabou com
o rosto sobre as areias.
Dahak avistou o brilho azul da esfera e apanhou a joia, tomando-a para si. Anúbis tentou atacá-lo,
mas foi lançado para longe com apenas um golpe. Então o shaytan se voltou para Mustafah, que agora
se encontrava abatido sobre a areia, sem forças.
— Suas últimas palavras, infame traidor…
Mustafah sentia em seu rosto o calor das lâminas flamejantes de Dahak. Este ergueu sua espada,
uma última vez perante o silêncio de Mustafah, no mesmo instante que um som metálico o desarmou,
imediatamente, com rapidez e força. Sua espada de chamas escarlates caíra, fincada na areia. Dahak,
por sua vez, virou-se em busca do autor daquele ataque.
Outra criatura alada surgiu no céu. Seria o grifo que levou Amirah para longe?
Em vez dele, uma outra criatura com asas enormes rasgava os céus. Seu corpo parecia ser de uma
raposa e sua cauda lembrava a de um pavão. Suas cores vibrantes eram destacadas pelas luzes
fumegantes do palácio em chamas e pelo fogo da batalha. Seu canto era ensurdecedor e insuportável
para Dahak e seus ifrits. Os que caíam eram consumidos pelas ondas esmagadoras do canto do pássaro
gigante, ou seja, lá o que aquela criatura era.
Tratava-se de um simurgh e, sobre ele, um homem atirava flechas contra os inimigos. Enquanto o
enorme pássaro pousava, Dahak e os ifrits remanescentes fugiram pela mesma fenda ardente da qual
vieram.
O homem saltou das costas da ave. Esta, por sua vez, era grande até mesmo sentada.
Os olhos alaranjados do homem pousaram sobre a imagem inerte de Mustafah sobre a areia.
Retirou de seu turbante cor de abóbora — revelando a cabeça calva —, um pequeno frasco com um
líquido igualmente alaranjado. Desarrolhou-o com o polegar e derramou o líquido do recipiente sobre
as costas de Mustafah que, por sua vez, berrou quase que instantaneamente. Um segundo depois, não
havia nada além de uma tênue e sutil cicatriz em suas costas onde houvera uma fenda sangrenta.
Simurgh soltou um pio alegre.
— Jaan!
O homem, que parecia ser o proprietário do nome proferido por Mustafah, sorriu ao vê-lo
esbracejar-se sobre a areia fofa.
— Fico feliz de ver que está entre nós, Mustafah; quase perdemos você. Sorte que cheguei a tempo.
Eu sempre chego a tempo, não é verdade? O que seria de você sem mim? Eu não sei. — Jaan estendeu
o braço para que Mustafah pudesse agarrar-se e pôr-se de pé.
— Agradeço pelo seu socorro, meu nobre amigo Jaan. Seus domínios sobre a arte do curandeirismo
são realmente fascinantes. De fato, minha vida está em eterno débito à sua. Mas agora temos um
grande e urgente problema. Dahak levou a gema de Hórus. Com ela nas mãos deles, nosso mundo
estará perdido. Agora, mais do que nunca, necessitamos da ajuda dos egípcios. Temos de nos unir
como um só povo para derrotarmos um inimigo em comum: Angro Mainyush.
— Disponha, Mustafah. Só que vocês fizeram uma ligeira bagunça por aqui, certo?
Jaan tinha razão, não havia nada ao redor a não ser ruínas e fogo, misturados a esqueletos,
ornamentos e lâminas. Os Obeliscos ainda permaneciam ali, com espadas a punho. Na ponta de suas
lâminas, uma chama escarlate ardia simbolizando o sangue ifrit derramado. Um segundo depois,
desapareceram nas sombras.
Mustafah avistou Omar, com o rosto imundo e os olhos arregalados de pavor.
“Pelas margens do rio Tigre! Você tem mais fibras do que um cardume de bahamuts!”.
Omar sentou-se em uma rocha, desanimado, franzindo a testa.
— O que seria um baha... ah, deixa pra lá! Eu estava louco para experimentar o café da manhã
daquele palácio! — murmurou Omar, desapontado.

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“Tenho certeza de que experimentará comidas melhores em breve, meu nobre Omar. Agora
precisamos partir e ir até os deuses egípcios para resgatar Amirah. Dizer a eles que houve um terrível
engano, já que a joia não se encontra mais nela. Precisamos convencê-los de se juntarem a nós nessa
batalha. Só eles podem decidir nossa vitória agora”.
Antes de partir, Mustafah, com sua magia, reconstruiu todo o palácio e as suas imediações. Jaan,
por sua vez, recuperou a saúde dos soldados e do sultão, curando-lhes de suas feridas. No instante em
que seguiram rumo ao Egito, uma figura de vestes negras os interrompeu.
— Esperem, precisarão de mim, irei guiá-los e convencer o mestre Osíris a unir-se à vossa causa.
Era Anúbis, em sua forma humana. Seus olhos cor de rubi cintilavam no escuro.
Assim partiram, a caminho do Egito. Um deus egípcio, dois djinns e um humano, sobre as costas
do simurgh, pelas alturas dos céus do Oriente Médio.
Mustafah rezava para que Amirah estivesse bem e para que ainda houvesse tempo de deter
Mainyush, Dahak e os ifrits. O poder oculto da gema de Hórus poderia destruir tudo o que havia,
principalmente estando em mãos erradas, cujos planos maléficos eram irrefreáveis.
Mustafah pretendia unir Mesopotâmia e Egito em um só propósito, uma vez que eram inimigos
desde o início da crise criada por Mainyush. Só tinham uma chance e o tempo estava se esgotando.
O destino do bem triunfar sobre o mal estava nas mãos dele, Mustafah Kahram, o djinn da classe dos
marids. Um guardião das areias.

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68
O Artefato

R.A.Tsuchiya

A
khopesh cortou o frio ar da noite do deserto indo de encontro ao pescoço da criatura. Cabeça
e corpo foram separados, caindo de lados opostos. Da lâmina curva em forma de foice, o
sangue negro e grosso escorria, pingando e se aglutinando na areia. A arma que Anke’poth
portava, que estava em sua família há gerações, nunca falhara em batalha. Até o momento, a
habilidade de manusear a espada de seus ancestrais o mantivera vivo, mas, ao olhar para a horda de
inimigos que se aproximava, a dúvida crescia em seu peito.
As criaturas, pútridos cadáveres reanimados, erguiam-se furiosas das areias, invocadas por uma
voz que ecoava pelo deserto. O necromante Solot-Nuhem gritava o encantamento que tirava as almas
atormentadas de Tuat, o submundo, e as incitava contra o guerreiro. E, para cada criatura abatida,
duas se erguiam.
Anke’poth olhou para Solot-Nuhem que brandia seu cajado negro enquanto o vento aumentava,
agitando o manto ritualístico. O necromante estava sobre um pilar das ruínas da Cidade Esquecida,
local onde sacerdotes malignos se reuniam para estudar artes obscuras e guardar artefatos sagrados.
E um destes artefatos, talvez o mais poderoso deles, estava em posse do guerreiro.
O pesado colar que Anke’poth carregava era o que trouxera ele e seu pequeno grupo de
aventureiros às ruínas da Cidade Esquecida. Foram contratados por um mercador de uma terra
distante, a pedido de seu governante. Lhes ofereceu uma quantia inimaginável de riquezas, algo que
poderia “suprir suas necessidades para o resto de suas vidas”.
O trabalho parecia fácil. Entrar nas ruínas, pegar o artefato e sair. Naquela noite em particular,
apenas um sacerdote estaria meditando no local. Uma oportunidade boa como aquela talvez nunca
mais se apresentasse. Se necessário, eliminariam o clérigo. Porém não imaginavam que encontrariam
Solot-Nuhem, o necromante.
O artefato era feito com metal estelar, tirado de uma rocha que caiu dos céus, enviada pelo próprio
Hórus. Tinha incrustado uma joia vermelha que emitia um fraco brilho. Um a um, seus companheiros
morreram pelas mãos do necromante ou das criaturas por ele conjuradas, durante a pilhagem.
— Guerreiro! Ladrão! Entregue o que roubou ou terá um destino infinitamente pior que o de seus
companheiros! Eu pessoalmente entregarei sua alma ao submundo, mas não antes de mantê-lo vivo
enquanto minhas criaturas devoram cada parte de seu corpo! — o necromante salivava sua fúria.
— Escute-me, senhor dos mortos! Nos disseram do que este colar é capaz e eu não deixarei que
sua perversidade ganhe novos poderes! Eu garantirei que esta maldição não volte para suas mãos! —
Anke’poth ergueu a espada: ia golpear o centro do colar com o pomo de ferro da khopesh. Porém foi
impedido. Alguma coisa segurou seu braço e o ergueu do chão.
Um enorme golem, feito de areia e pedaços das criaturas-cadáver, foi conjurado pelo sacerdote e
segurava o homem com uma das mãos. Solot-Nuhem, com um sutil gesto de seus dedos, atraiu o colar
que foi arrancado de Anke’poth. O necromante gargalhava seu triunfo enquanto o artefato voava em
sua direção. Quando o segurou, o brilho do objeto aumentou. Sem desviar o olhar, disse em tom
apático:
— Mate-o.
O golem segurou o corpo de Anke’poth com as duas mãos e o espremeu. O homem sentiu seus
ossos quebrando enquanto seus órgãos eram comprimidos, mas não emitiu nenhum som.
Era um guerreiro, e como um guerreiro, ele morreria.
***
Momentos antes.

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A suave luz da lua cheia refletia na areia dourada. O céu estrelado do deserto brilhava e era como
se os próprios deuses estivessem observando o pequeno grupo de guerreiros, oculto por uma alta
duna. As ruínas da Cidade Esquecida lutavam contra o vento que tentava enterrá-las na areia. De
dentro desta construção, emanava uma fraca iluminação e não se via movimento. Aparentemente,
tudo estava ocorrendo conforme as informações de seu contratante.
— Ele disse que, esta noite, apenas um sacerdote estará no templo, realizando seus rituais, ou seja,
lá o que eles fazem lá dentro. Essa vai ser fácil — Ranafer estava animado com as chances de sucesso
e sua confiança contagiava seus companheiros.
Pentu deu dois tapas no ombro de Ranafer e pediu silêncio, levando o dedo indicador para os
lábios. Meryeh estudava o local, pensativa, enquanto apertava o pingente com a figura de Bastet em
seu pescoço. Havia apenas um acesso, a entrada principal, então teriam que ser eficientes na invasão,
ágeis na identificação e obtenção do item e rápidos em sua fuga. Como já haviam combinado, só
matariam o sacerdote em último caso, afinal, matar um religioso poderia trazer a eles má sorte.
Anke’poth olhava seu grupo com orgulho. Perdera a conta de quantos trabalhos já haviam aceitado
e o sucesso de suas incursões já se espalhara por diversas regiões. Essa mesma fama levou um
mercador a procurá-los. Segundo este homem, um abastado benfeitor oferecera uma riqueza
admirável que iria suprir suas necessidades pelo resto de suas vidas. A garantia, se não recebessem o
combinado, seria o próprio item a ser roubado: um colar que supostamente fora criado para se tornar
uma arma. Algo nunca visto, um poder digno dos Deuses, e que apenas algumas pessoas poderiam
utilizá-lo.
— Prontos? — Anke’poth perguntou para os companheiros e todos confirmaram com a cabeça.
Levantaram-se e desceram silenciosamente a duna enquanto areia escorria a cada passo. Pentu
estava por último, mais afastado e com uma flecha em seu arco, dando cobertura. Meryeh ia na frente,
portando sua lança e andando curvada, atenta a qualquer imprevisto. Era seguida por Anke’poth, seu
irmão mais velho, e Ranafer, que empunhava sua espada curta. Todos entraram no templo
desguardado. A sorte estava realmente sorrindo para eles.
Seguiram por um corredor que descia suavemente. Guiavam-se pelas esparsas tochas presas nas
paredes e pelo som abafado de uma voz que recitava palavras em uma língua que não conheciam. A
voz foi ficando cada vez mais nítida, indicando que o sacerdote estava próximo.
Chegaram a um amplo salão com paredes que exibiam hieróglifos narrando histórias ocultas.
Quatro estátuas do deus Anúbis estavam dispostas nos cantos e, por toda a volta, pequenos pilares de
granito exibiam objetos variados, enaltecendo a importância destes artefatos. No meio da sala
cerimonial estava o sacerdote, de olhos fechados e entoando seus encantamentos. Trajava um manto
negro incrustrado de pedras verdes. Braceletes de metal e um cinturão dourado compunham sua
vestimenta. Ele segurava, na mão esquerda, um cajado negro adornado por runas e, na mão direita,
erguia um formidável colar.
Pentu não teve dúvidas: esticou seu arco e disparou contra o colar. A flecha arrancou o objeto da
mão do sacerdote e cravou-se na parede oposta. Meryeh circundou o salão e resgatou o item.
O sacerdote assustou-se quando viu aquelas pessoas no salão. Parecia não acreditar que estava
realmente sendo roubado.
— Mas que tipo de insolência é essa? O que pensam que estão fazendo? — a voz saiu por entre os
dentes, carregada de ódio.
— Não se preocupe, não lhe faremos nenhum mal. Apenas esqueça que estivemos aqui. —
Anke’poth terminou de falar e fez um sinal para a irmã. Ela jogou o colar para que Ranafer o
guardasse em sua bolsa de tecido. Sairiam tão rápido quanto entraram.
Assim pensavam.
— Um momento, guerreiros. Se é que posso chamar meros ladrões de guerreiros. Sabem o que
vocês têm em mãos?
— Sim, sabemos. E isso estará melhor em nossa posse que nas mãos de magos malignos. Está
pensando em nos causar problemas, sacerdote? — Pentu já havia tirado mais uma flecha de sua aljava
e a encaixara no arco.

70
— Deixe-me ao menos me apresentar. Meu nome é Solot-Nuhem — a menção daquele nome fez
o sangue de Anke’poth e Pentu congelarem em suas veias.
— Solot-Nuhem, o… necromante? — Anke’poth hesitou em dizer a última palavra e Pentu nem
ousou repetir seu nome. — O mesmo Solot-Nuhem que matou um vilarejo inteiro e os trouxe de volta
à vida como monstros?
A risada do necromante ecoou nas paredes de pedra.
— Sim, eu mesmo. Fico feliz de saber que alguém entre vocês me conhece. Assim será mais fácil
convencê-los de que cometeram o pior erro de suas vidas. Me devolvam o que é meu e eu serei
clemente em sua morte.
Ranafer olhou para o colar que segurava. A energia que sentia ao olhar a joia vermelha era quase
hipnótica. Sorriu e falou para o necromante:
— Desculpe, mas nunca ouvi falar. E não acho que devamos devolver isso, sabe? Se o quer tanto
assim, acho mesmo que isto deve ter um grande valor. E é para isso que viemos. Agora!
Pentu disparou a flecha enquanto os outros três avançaram na direção do necromante. Solot-
Nuhem bateu a base de seu cajado no chão e uma força desconhecida desviou a seta disparada,
empurrando todos os atacantes para longe de si. Ergueu o cajado e gritou um feitiço. Neste momento,
criaturas esqueléticas começaram a sair do chão, quebrando as pedras do piso. Duas criaturas subiram
em Pentu, desferindo pesados e repetidos golpes em sua cabeça. Ranafer tentou ajudar o amigo, mas
foi impedido por outra criatura que segurou seu pescoço.
Meryeh pulou sobre o necromante, que a rechaçou com um golpe do cajado em sua cabeça,
fazendo-a cair no chão. Anke’poth gritou quando viu a irmã sendo atingida, levantou sua khopesh e
começou a cortar as criaturas que se aproximavam.
— Anke’poth… saia daqui! — antes de sentir o estalo que quebraria seu pescoço, Ranafer
arremessou o artefato.
Anke’poth o pegou no ar e olhou os companheiros caídos. Para a irmã. Mas se o que disseram
sobre o colar fosse verdade, aquele poder nas mãos do necromante seria um perigo para o próprio
mundo. Bufou e correu para o corredor.
***
Meryeh sentiu a cabeça latejar. A garota levou a mão à têmpora e sentiu algo úmido. Sangue. O
contato com o ferimento que pulsava a fez lembrar-se de onde estava. Imediatamente se levantou em
um pulo. Apoiou-se em uma das paredes do templo, sentindo uma forte tontura, quando viu um
cenário terrível. No salão iluminado por tochas, muitas criaturas-cadáver estavam caídas no chão,
fruto da investida de seu grupo. Pentu e Ranafer também estavam ali. Haviam morrido no combate
com as criaturas.
— Anke’poth! — falou, lembrando-se do irmão.
Encontrou sua lança em meio aos corpos. Correu em direção ao corredor, que a levaria para fora
das ruínas, quando três figuras bloquearam seu caminho.
Três seres, claramente criações do necromante, avançavam em sua direção. Eram maiores e mais
fortes que as criaturas anteriores. Ataduras velhas e rasgadas estavam enroladas em algumas partes
de seus corpos ressecados, e todos tinham, em suas testas, diademas com a cabeça de Anúbis
entalhada. Dois portavam espadas e um segurava uma pesada clava de espetos.
Meryeh sacou sua adaga e assumiu posição de combate. A primeira criatura a atacar a garota foi o
que empunhava a clava de espetos. Ele avançou em um pulo, atacando com a clava em um arco mortal
de cima para baixo. Meryeh girou seu corpo um passo para trás, fazendo com que o golpe passasse a
poucos centímetros de suas costas, batendo violentamente no chão.
Antes que o som produzido pelo choque da arma contra a pedra desaparecesse, Meryeh, sem olhar
para o adversário, girou sua lança diagonalmente para cima, passando a ponta pelo pescoço da
criatura, decapitando-a. Mantendo a posição final, com o braço da lança erguido, virou a cabeça e
fixou seu olhar entre os outros inimigos que esperavam para atacá-la. Estes pareciam surpresos com
a facilidade na qual seu companheiro fora derrotado e hesitavam em lançar o próximo ataque.

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As tochas bruxuleavam, refletindo sua luz em alguns dos artefatos, e aumentavam a sensação de
imponência da pequena garota parada no meio do salão de pedra. As criaturas gritaram sua fúria em
ameaça e correram para ela.
A investida simultânea foi recebida por Meryeh: uma das espadas vinha em direção a seu peito e
a outra contra seu abdômen; ela aparou o golpe mais alto com a lança enquanto a adaga desviava a
estocada mais baixa. Em sua vez de contra-atacar, impulsionou-se à esquerda, em direção à criatura
que parecia mais desequilibrada, e deferiu um golpe reto com sua adaga. A força foi tamanha que a
lâmina entrou por inteira na testa do ser, quebrando a diadema no movimento.
O combatente restante a encarava, aguardando uma chance de atacar. Meryeh atirou sua lança, que
cravou no chão, e fez a criatura pular para o lado oposto, caindo na armadilha e indo em direção a
adaga que o esperava. A lâmina entrou no tórax da monstruosidade, que emitiu um guincho de
surpresa antes de cair morto.
Sem perder tempo, Meryeh correu pelo corredor, rezando para seus deuses, pedindo para que ainda
tivesse tempo de ajudar o irmão.
***
Ao sair do templo da Cidade Esquecida, Meryeh se deparou com um cenário aterrador: as calmas
areias douradas do deserto estavam repletas de criaturas-cadáver. Quase no alto da duna, que
anteriormente serviu de esconderijo ao quarteto de guerreiros, Anke’poth era jogado ao chão.
Meryeh arregalou os olhos. Um grito estava prestes a sair de sua garganta. Ouviu o homem em
cima do pilar retomar seu encantamento. Colocou o colar no pescoço e abriu os braços, recebendo
uma energia que apenas ele sentia. A garota apertou firme o cabo da lança e a arremessou ao mesmo
tempo que liberou o grito de desafogo.
Solot-Nuhem sentiu o violento golpe em suas costas e viu horrorizado a ponta de metal brotar em
seu peito. Ele ainda segurou a lança e a puxou, tentando retirar a arma que transfixava seu corpo.
Desabou de cima do pilar, caindo nas pedras das ruínas. As criaturas-cadáver e o golem foram
lentamente se desfazendo em areia com a morte de seu mestre. A jovem correu até o corpo de seu
irmão. Ajoelhou-se a seu lado e deixou as lágrimas livres.
Após alguns momentos, escutou passos atrás de si. Estava cansada e desconsolada, não aguentaria
outra luta. Olhou para quem se aproximava e sentiu o corpo arrepiar. A entidade era alta, seu corpo
humanoide estava envolto em uma capa negra e uma máscara de chacal cobria parcialmente seu rosto.
Os olhos que transbordavam soberba pareciam enxergar a alma de Meryeh. Ele carregava o artefato
que ainda pingava sangue de Solot-Nuhem. Eles se olharam por alguns instantes e uma voz grave
soou por trás da máscara.
— A magia do necromante é uma afronta ao meu reino. Esta arma daria a ele meios de se opor a
mim, e seu ego certamente o guiaria neste caminho. Você, além de cumprir o objetivo que lhes foi
dado, eliminou um perigo que ameaçava o seu mundo e o meu.
— Você mesmo não poderia ter pegado o artefato? — Meryeh falou com a voz trêmula e uma
areia fina grudava no caminho que as lágrimas deixavam em seu rosto. Ela apertava o pingente em
seu pescoço.
— Talvez. Mas, então, eu não conheceria seu valor. Vamos, eu a levarei até a recompensa
prometida — estendeu a mão para a garota, que aceitou e se levantou, olhando uma última vez para
o irmão. — Não se preocupe. Ele e os outros também serão recompensados. E, agora, fazem parte do
Grande Mar de Areia.
Aos poucos, as ruínas da cidade e o corpo de Anke’poth foram cobertos pela areia do deserto.

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Os Espíritos do Deserto

Giuliano Andreoli

O
sol declinou, flamejando de vermelho no horizonte. O ar imóvel, morno e ardente do dia deu
lugar a um vento fresco enquanto a cor azul do céu se dissolvia em cinza. Mesmo depois de
começar a escurecer, a caravana prosseguiu em sua jornada.
O deserto se descortinava à frente deles, amplo e aberto. Trechos de terra ressecada pelo sol e
polida pelo vento. Desfiladeiros de calcário alternados por imensas dunas. Um cenário que parecia
ter sido criado especialmente para ajudar alguma narrativa permeada por emoções que habitavam a
periferia da consciência
Em pouco tempo, a lua se ergueu, iluminando os passos daquelas pessoas que haviam deixado a
segurança para trás e se aventurado naquela arriscada travessia. O guia, que conhecia todas as rotas e
onde havia água, era capaz de encontrar o caminho até mesmo à noite, guiado pelas estrelas ou pelo
cheiro e textura da vegetação. No entanto, qualquer desvio na rota, por não seguirem atentamente as
suas orientações, poderia implicar na perda do próximo oásis por ele conhecido. E a água era sempre
a questão mais importante em qualquer viagem através do deserto.
Seguindo bem à frente do comboio, no alto de suas montarias, estava Imbal, um rico comerciante,
a sua filha, Alaai, o seu consorte e financiador de toda a empreitada, um lorde chamado Ayub, além
de muitos servos e de uma escolta de segurança pessoal e outra composta por mercenários contratados
para proteger toda a caravana. Pois, além da falta de água, das tempestades de areia, das serpentes
venenosas e dos escorpiões, a coisa mais perigosa em uma travessia como aquela eram os ladrões do
deserto.
— Quantos sacos de placas de sal-do-deserto nós coletamos hoje? — perguntou Imbal para um de
seus servos, ansioso por contabilizar os lucros que teria ao trocar aquele mineral tão abundante
naquele ambiente hostil e tão escasso nas cidades.
Depois de receber os informes de seus servos, Imbal voltou-se para fitar Ayub por sobre o ombro.
Este último seguia logo atrás, ao lado de Alaai, sua prometida esposa e mulher com quem ele
contrairia matrimônio tão logo aquela caravana chegasse ao seu destino: a fulgurante Ofir, a famosa
capital do país de mesmo nome.
— Ei, é verdade que Ofir é toda feita de ouro maciço, desde os alicerces e paredes de suas casas
até o topo dos telhados?
— Oh, sim! — respondeu Ayub, que havia nascido em Ofir, com tom de ironia. — E é toda
habitada por gigantes, devs e djinns que cospem fogo pelos olhos!
Imbal riu daquela resposta. E continuou a conversar com Ayub sobre os lucros que eles poderiam
obter com aquela viagem, negociando os produtos que haviam trazido para as tribos do deserto que
controlavam o território do próximo oásis.
Alaai, silenciosa, tentava ao máximo se distanciar daquela conversa. Ela apenas relembrava a vida
que deixara para trás. A vida que ela havia sido forçada a abandonar por causa daquele casamento
arranjado por seu pai, sem a sua concordância ou consentimento. Pois, como era comum naquele
mundo, ela havia sido vendida como uma mercadoria, como parte de um acordo comercial. E de nada
havia adiantado os protestos enfurecidos ou as lágrimas e os pedidos desesperados por clemência.
Nem para seu pai, nem para sua mãe e tampouco para suas irmãs, que só disseram que ela tivera sorte
por ter despertado o interesse de um homem tão rico como Ayub.
Mesmo assim, Alaai guardava lembranças saudosas da sua mãe. Raja era o seu nome. Ela crescera
em uma aldeia atrasada, onde não era permitido às mulheres estudar e nem sequer frequentar os
mesmos ambientes que os homens para reverenciar os seus deuses. Esperava-se apenas que elas
cozinhassem e servissem seus irmãos e esposos. E as meninas que, porventura, fossem sequestradas

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e tomadas à força, quando engravidavam, acabavam depois sendo acusadas de adultério. Neste tipo
de mundo, jamais estaria no horizonte do possível escolher livremente um marido.
O quanto sua mãe se sentiria decepcionada se soubesse que Alaai aprendera as danças de sua aldeia
com as suas amigas! Ela que considerava que dançar não era adequado para as mulheres. Ou que
aprendera a ler e a escrever com o seu avô, o erudito Qais Zyad, em segredo! Definitivamente, elas
tinham muito pouco em comum… No entanto, Alaai a amava. E agora, talvez nunca mais a veria de
novo…
Então, com a alma torturada e tomada por todas essas lembranças, Alaai vagou com os olhos pela
imensa vastidão do deserto. Procurava por qualquer outra coisa que não fosse a imagem do rosto de
seu futuro marido, que, àquela altura da viagem, já estava começando, lentamente, a tornar-se odiosa.
Foi quando se deteve, casualmente, na figura de um jovem com longos cabelos negros esvoaçando
ao vento e olhos profundos e penetrantes, que portava uma formidável espada com punho e guarda
dourada.
Era a primeira vez que ela reparava naquele mercenário. E, naquele momento, Alaai pareceu
identificar algo diferente em seu olhar. Era como se, ao fitá-lo, se lembrasse de algo importante,
antigo e que já havia esquecido. Algo que, em algum momento da sua vida, havia sido muito
importante. Ela não sabia dizer o que era. Mas estava ali.
Quando a noite avançou, a caravana parou formando um círculo no meio do deserto.
Sentados ao redor da fogueira, em um dos cantos, os mercenários consumiram a pouca ração que
lhes era permitida, passando de mão em mão um odre de pele de cabra contendo alguma bebida.
Alguns falavam sobre as aventuras amorosas que pretendiam ter nos bordéis de Ofir, quando lá
chegassem. Outros gargalhavam enquanto contavam piadas obscenas. E outros, ainda, contavam
vantagens sobre si, narrando, da forma que lhes era mais apropriada, os seus triunfos pessoais em
antigas batalhas.
Um pouco afastado dali, estava o jovem que despertara o interesse de Alaai. Embora ele também
houvesse sido contratado para fazer a segurança daquela caravana, não sentia ter nada em comum
com aqueles homens. Eles eram todos ex-soldados de antigos exércitos já dissolvidos ou derrotados.
Ou então eram criminosos que haviam sido perdoados de seus crimes em troca do juramento de
fidelidade a algum lorde. E, para dizer a verdade, não havia muita diferença entre ambos os tipos.
Quando Alaai aproximou-se, ele ergueu o rosto tomado pela surpresa. Olhou para a tenda de seu
marido e constatou que ele e seu pai não estavam visíveis.
Alaai vestia uma túnica de lã xadrez âmbar e marrom por cima de um vestido branco e calçava
botas com bordas ovais de pelica amarradas com tiras de couro nos pés. Os cabelos dela estavam
soltos ao vento, como ele nunca os vira antes.
— Eu ouvi os outros seguranças dessa caravana dizendo que você não se junta a eles porque é
meio perturbado! Porque tem algum trauma profundo de uma antiga guerra!
— A segunda afirmativa não está de todo errada. Apenas a primeira.
Alaai ficou olhando para ele pensativa, depois de ouvir aquilo.
— Então você já passou por muita coisa, mesmo sendo jovem! Qual é o seu nome?
— Eu me chamo Daritu — ele respondeu.
— Que nome estranho — ela exclamou. — E de onde você é?
— Eu nasci em um país distante chamado Dilmun.
— Eu não conheço. E esse idioma estranho é de lá? — ela apontou.
Daritu deu-se por conta que ela se referia às palavras inscritas na lâmina da sua espada, que ele
havia desembainhado naquele momento para limpar.
— Não! Essa é uma espada do reino de Alberdi. O homem que me adotou e que me criou como
filho deixou-a como herança ao morrer. É o único bem de valor que eu carrego nesta vida! Mas, para
mim, o seu valor não pode ser medido em moedas.
— Eu também não conheço este reino! Mas o que está escrito aí?
Daritu deteve-se por um instante. Como se, ao ouvir aquela pergunta, houvesse sido subitamente
despertado de outra dimensão. Era o estado de introspecção melancólica no qual estivera mergulhado

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desde o início daquela viagem. Pois era a primeira vez que alguém vinha lhe dirigir a palavra e falar
sobre qualquer coisa com ele.
— Aqui diz que o seu portador deverá desembainhá-la sempre para evitar injustiças e para defender
os oprimidos, além de nunca temer a face de nenhum inimigo.
— E você realmente acredita nisso? — Alaai perguntou. — Do fundo do seu coração?
Daritu não soube o que lhe responder. Ficaram os dois, mudos e estáticos, olhando um para o
outro, enquanto soava a música sutil composta pelo vento do deserto.
— Seu marido está olhando para cá — disse Daritu, olhando para além dela, em direção às tendas.
— Creio que seria mais adequado que você retornasse agora!
Alaai olhou para cima, soltando um longo suspiro. E naquele único gesto, deixou transparecer
todos os seus sentimentos por Ayub.
— Ele ainda não é meu marido! — ela murmurou, enquanto se preparava para se retirar; mas antes
de sair, deteve-se, ainda, um por um instante: — Até mais, guerreiro de Dilmun!
Depois que Alaai se retirou, Daritu ficou avaliando o que havia acontecido ali. Tentava entender
por que a filha do dono da caravana havia se aproximado daquela forma e puxado conversa. Ele sabia
que as mulheres daquela terra não faziam aquilo e já vira, por muito menos, ocorrerem duelos
desnecessários entre estrangeiros incautos e maridos inseguros, possessivos e exageradamente
ciumentos.
Naquela noite, o guia da caravana, um homem franzino chamado Zayin, tocou o ud, um
instrumento de madeira e de cordas que produzia admiráveis sons. Aos poucos, os servos, que
estavam em volta de outra fogueira, começaram a se agrupar em torno dele.
Os mercenários também cessaram o seu comportamento ruidoso habitual e ficaram em silêncio,
bebendo, enquanto a canção do velho Zayin ecoava. E até mesmo Daritu, ouvindo de longe o som
maravilhoso da melodia que o experiente guia do deserto entoava, aproximou-se pela primeira vez
do grande grupo.
Dali a algum tempo, um dos servos apareceu com um pequeno tambor e começou a acompanhá-
lo. E as notas do ud começaram a pulsar de uma maneira mais poderosa sob o acompanhamento
daquelas batidas ritmadas.
Alaai logo veio se juntar ao grupo. Como se tomada por alguma força exterior que ela era incapaz
de conter, por uma urgente pulsão de vida, seu corpo todo começou a se mover. E a sua dança foi tão
admirada por todos quanto a melodia do velho Zayin.
Quando tudo parecia perfeito naquela noite, sob o céu estrelado do deserto, algo inesperado
aconteceu. Com um único golpe de espada, Ayud destroçou o ud, partindo-o em dois diante do olhar
espantado de Zayin, que ficou segurando os seus dois pedaços, um em cada mão. Tudo havia acabado
repentinamente: o instrumento de corda estava destruído, e o percussionista também havia parado de
tocar; estava paralisado como se houvesse se transformado em uma estátua.
Instintivamente, os guerreiros haviam levado as suas mãos até as suas espadas, mas as soltaram ao
perceberem que quem desferiu o golpe fora o seu próprio patrão. Depois, sem nenhuma explicação
para aquele ato, Ayub embainhou a espada. O motivo porque fizera aquilo só se tornou compreensível
para todos quando ele foi até Alaai e, sem nenhum aviso, lhe desferiu um violento tapa no rosto.
— Pare de exibir seu corpo diante de todos como uma vagabunda!
Sem perceber, Daritu ainda estava com a mão cerrada sobre o punho da sua espada. E, naquele
momento, ele a teria desembainhado se Benom, um dos mercenários, não o houvesse impedido
colocando a mão sobre o seu pulso.
— Vá para dentro! — ordenou Ayub para Alaai.
E, sem nenhuma outra escolha, entre lágrimas e com o rosto ainda ardendo pelo ato de violência,
Alaai retirou-se para sua tenda. Ainda antes de se retirar, Ayub ainda lançou um olhar de soslaio para
Daritu.
Depois daquilo, o grupo inteiro se dispersou. Um por um, todos foram saindo, em silêncio, do
entorno daquela fogueira. E o silêncio absoluto do deserto voltou a imperar onde antes espíritos
enlevados sentiam-se reconfortados de todas as dores e dificuldades de suas vidas através de um único
instante de transcendência.

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Naquela noite, Daritu foi dormir tomado por inconformidade.
Fazia cinco anos que Daritu havia chegado naquela terra. Ele já havia entendido que aquele podia
ser um mundo brutal, em muitos sentidos, para aqueles que, assim como ele, possuíam poucos bens
ou riquezas. No seu caso, no entanto, a habilidade marcial que adquirira desde a mais remota infância
o mantinha em uma zona de grande segurança. Sempre haveria príncipes ou lordes que lhe pagariam
muito bem para que a utilizasse.
Antes de trabalhar fazendo a segurança das caravanas através do deserto, ele recebera outras
oportunidades, algumas das quais tivera que recusar para benefício da sua consciência. E, de uma
maneira geral, ele sempre havia conseguido manter um equilíbrio entre os seus valores morais e as
tarefas que tinha que executar.
Porém, naquela noite, ele compreendeu que existiam diferentes tipos de brutalidade. E que, em
alguns casos, o desembainhar de sua espada não poderia resolver nada. Não quando havia toda uma
cultura e um conjunto de valores que precisavam, antes, ser mudados. A constatação de tal realidade
lhe despertou um sentimento de impotência.
No dia seguinte, Daritu aprendeu uma lição: que nem todos naquele mundo concordavam com
tudo o que já estava instituído como hábito ou regra. Pois, ao despertar, ele percebeu uma intensa
agitação no acampamento e, quando foi ver o que estava acontecendo, alguém logo lhe respondeu:
— Zayin, com dois servos que eram seus amigos, foram embora.
— O quê? — Daritu perguntou, julgando não ter ouvido muito bem.
— É isso mesmo! A caravana está sem um guia. Zayin nos abandonou.
— Foi por causa do ud — falou alguém.
— O instrumento musical? — perguntou outra voz.
— Era herança do tataravô de Zayin! — respondeu uma terceira.
Outras teorias e especulações começaram a ser elaboradas na tentativa de explicar porque um guia
havia abandonado a sua caravana. Alguns não acreditavam que havia sido apenas por causa da
destruição de uma herança familiar. Houve quem sugerisse que Zayin estava em conluio com os
bandidos do deserto e queria que eles vagassem perdidos, sem conseguir encontrar o próximo oásis,
até que se tornassem tão sedentos, fracos e cansados que não conseguiriam resistir a nenhum ataque.
Daritu não estava interessado naquelas teorias; não quando percebeu que havia uma discussão, no
interior de uma tenda, entre Ayub, Alaai e seu pai, Imbal. Aproximando-se, começou a ouvir algumas
falas:
— Não é permitido que mulheres estudem! — gritava Ayub. — Você sabe disso!
— Mas isso agora é o que pode nos salvar da morte! — Alaai elevou a sua voz.
— É mentira que você consegue ler esses mapas! — bradou seu pai. — Nenhuma mulher
conseguiria! E é isso que você é! Você é apenas uma mulher!
Daritu hesitou na entrada da tenda por longos instantes. Por fim, afastou-se dali, sem que ninguém
percebesse que lá esteve.
— Zayin deixou os mapas! E a filha de Imbal, que é uma pessoa estudada, acha que consegue lê-
los! — anunciou Daritu no círculo onde estavam reunidos servos e guardas de forma indistinta. —
Mas o marido não quer que ela os leia, apenas porque ela é uma mulher e ele diz que não convém a
uma mulher estudar!
Depois que ele anunciou isso, um sentimento de indignação coletiva começou a se formar entre
todos. Um sentimento formado pelo desespero e pelo medo da morte. Em determinado momento,
alguém exclamou:
— Um mapa não vai ajudar! Pois as rotas mudam, conforme as areias do deserto!
— Mas não os locais dos oásis! — atalhou outro.
— Se ela sabe ler os mapas, é a nossa única chance! Eu não vejo outra! — falou, ainda, um terceiro.
— Ou alguém tem uma solução melhor?
Em pouco tempo, o assunto não era mais porque o guia Zayin havia abandonado a caravana, mas
sim sobre a única solução para a sobrevivência de todos ali. E, assim, iniciou-se uma acalorada
discussão.

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Quando Imbal e Ayub se deram por conta, uma turba revoltada se dirigia até a tenda deles bradando
para que saíssem. Imediatamente, os soldados da guarda pessoal de Ayub fizeram uma parede, com
as mãos prontamente posicionadas sob os cabos de suas cimitarras. Até que, por fim, o próprio Ayub
surgiu, saindo de dentro da tenda.
— O guia nos abandonou por sua culpa! Mas ele deixou os mapas! E Alaai tem capacidade para
lê-los! Então deixe-a tornar-se a guia desta caravana! — bradou um dos mercenários, dando dois
passos à frente e desembainhando a sua espada.
— Alaai não pode ler os mapas! — bradou Ayub, em resposta.
— Então, deixe-a dizer isso para nós! — falou Dartitu.
— Sim! Queremos vê-la pessoalmente! — falou outro.
— Eu consigo ler os mapas! — Alaai ergueu a voz, saindo da tenda.
Logo atrás dela vinha caminhando seu pai. Andava com atitude envergonhada, olhando mais para
o chão do que para frente. Como se, no fundo, ele quisesse pedir desculpas para todos por tudo o que
estava acontecendo ali.
— Eu sei ler desde os dez anos! — disse Alaai, olhando para Ayub e depois para todos os outros.
— E passei muito tempo na biblioteca do velho Naronda, onde havia muitos papiros sobre os códigos
usados pelos viajantes do deserto!
Ayub lançou um olhar fulminante em direção a ela. Ele não poderia estar preparado para o que
acontecia ali. O deserto levava as pessoas a confrontar-se com a morte e isto conduzia ao âmago da
mais antiga condição humana: o desejo pela sobrevivência; algo que estava acima de qualquer regra
ou norma social.
No entanto, Ayub, um nobre educado na firme crença de que a obediência e a submissão dos servos
aos seus senhores era uma lei da natureza, fora condicionado a sua vida inteira a mandar e nunca a
obedecer. Além disso, ele acreditava que uma mulher nunca deveria confrontar o seu noivo como
Alaai agora fazia. Assim, ignorando as reivindicações, ele ordenou que sua guarda desembainhasse
as cimitarras e, aos mercenários, que todos eles entregassem as armas.
Até aquele momento, alguns daqueles mercenários ainda não haviam tomado partido de nenhum
dos lados daquela contenda, embora houvesse caminhado até ali com a turba inquieta. Porém, quando
Ayub, com medo de que eles se rebelassem, deu aquela ordem, foi como se subitamente declarasse a
todos eles seus inimigos.
Então Daritu deu um passo à frente e falou para Ayub:
— Nós aceitamos esse trabalho arriscado quando ninguém mais o quis! E fizemos isso porque
confiamos em nossa habilidade em manejar nossas espadas! Mas toda a nossa habilidade e a nossa
coragem de nada adiantarão se você nos deixar morrer de sede neste deserto! Esta não é uma morte
honrada para nenhum guerreiro! — e, voltando-se para os mercenários atrás dele, bradou: — E se nós
permitirmos que ele faça isso, com a solução bem diante de nós, então, meus companheiros, onde
está a nossa coragem?
Os mercenários ergueram as suas espadas, um por um, depois da fala de Daritu. O confronto que
teria se seguido, entre a guarda pessoal de Ayub e os mercenários que ele próprio havia contratado
para a segurança da caravana, teria sido brutal se algo inesperado não se sucedesse. Pois, eis que,
subitamente, uma grande nuvem de areia começou a se fazer visível logo depois de uma grande duna.
— Vejam! — apontou um dos servos. — É uma tempestade de areia!
O homem estava correto. Era uma tempestade gigantesca que estivera invisível até o último
instante, oculta pela duna. E que em breve estaria em cima deles.
Por um momento que pareceu congelado no tempo, todos ficaram paralisados, olhando para o alto
da duna. Em um segundo, eles estavam prestes a degladiarem-se e a trucidarem-se e, no instante
seguinte, deparavam-se com uma ameaça comum a todos eles. Era como se a natureza estivesse
querendo lhes dizer que não deveriam ir até o fim com aquela contenda. E, de fato, essa foi a
interpretação de Benom:
— Os espíritos do deserto se manifestam! Este confronto é um erro!
— Sim! — bradou outro homem. — Vamos! Precisamos nos proteger!

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Imediatamente, todos embainharam novamente as espadas; até a guarda pessoal de Ayub, mesmo
que ele não lhes houvesse dado essa ordem. No instante seguinte, todos estavam correndo. Alguns
retiravam tecidos da bagagem que aquela caravana transportava para proteger as montarias e,
agachados ao lado delas, protegerem-se. Outros apenas pensavam em se salvar e corriam para as
tendas.
No meio a toda aquela confusão, Daritu percebeu que Alaai correu na sua direção. Por algum
motivo, o instinto de sobrevivência daquela garota a levara a fazer aquilo, naquele momento crucial
no qual todos lutavam pela sobrevivência.
Ayub, percebendo aquilo, desembainhou a espada e avançou na direção de Daritu. Tudo o que
houve em seguida aconteceu muito rápido.
Com uma sequência muito bem coordenada de passos e movimentos, Daritu sacou a sua espada
de cabo dourado e salvou a vida de Alaai daquilo que teria sido um golpe fatal. Porém, para conseguir
isso, ele teve que dar cabo da vida de Ayub.
Quando tudo terminou, o mercenário olhava para o homem caído de joelhos diante dele, com a
lâmina da sua espada gotejando sangue. E, ao seu lado, o rosto assustado de Alaai a fita-lo. Ela olhou
para Daritu e depois para Ayub.
Contra todas as leis que julgava regerem o mundo, naquele dia, seus servos haviam se rebelado
contra o seu senhor. E ele, em seu momento de ira irrefletida contra aquela que deseja como sua futura
esposa, havia sido punido como se fosse um mero servo. Assim, a última coisa que eles viram nos
olhos de Ayub foi a confusão misturada com a dor e a descrença. E depois disso, ele tombou sob a
areia, inconsciente.
— Você salvou a minha vida! — Alaai murmurou para Daritu.
Daritu assentiu em resposta. Sabia que aquela ação teria suas consequências.
— Vamos! Precisamos nos proteger!
Depois disso, a nuvem de areia os alcançou. Os grãos de areia arremessados feriam como
minúsculas lâminas cortantes. E eles tiveram que fechar os olhos enquanto corriam para o interior da
tenda onde, horrorizado, o pai de Alaai a aguardava, depois de ter presenciado a breve contenda.
O mundo inteiro mergulhou em um turbulento caos. E, depois de algum tempo, tudo cessou.
Com o vento inclemente, todas as tendas haviam sido derrubadas. Então, quando as pessoas
começaram a sair de dentro delas, foi como se surgissem debaixo da terra. O mesmo se deu com quem
havia se protegido debaixo dos tecidos. E todos, pouco a pouco, brindaram a superfície como se um
novo dia houvesse começado.
Agora, todos fitavam o corpo sem vida de Ayub, agrupando-se, um por um, em um grande círculo
ao seu redor. Poucas partes dele eram visíveis, pois estava quase totalmente encoberto pela areia. Mas
a cor da túnica roxa, amarela e escarlate, cujos pedaços apareciam aqui e ali, era inconfundível.
Para Alaai, aquele momento era estranho. Sentia como se houvesse praticado algum tipo de crime.
Como se ela mesma, ao desobedecer às normas tradicionais nas quais havia sido educada, houvesse
desferido a estocada fatal em Ayub. Mas, ao mesmo tempo, sentia como se, por toda a sua existência,
ela houvesse estado fora do movimento da vida e somente naquele instante, depois daquele trágico
desfecho, tivesse começado a viver de verdade.
Ao seu lado, o seu pai, uma vez mais, apenas fitava o chão, sem dizer nada. Todos sabiam
exatamente o que havia acontecido ali, mas ninguém disse nenhuma palavra. Ao invés disso, olhavam
com respeito para Daritu. Até que Benom finalmente perguntou a Alaai:
— Você tem certeza de que consegue mesmo nos tirar daqui e nos levar para o próximo oásis,
onde poderemos procurar por um novo guia?
Ela assentiu vagamente com a cabeça.
— Mas agora as areias mudaram! — falou alguém.
Então Alaai, como se desperta de um sonho, olhou para os olhos de todos ao seu redor. E, com
energia renovada na voz, ela lhes explicou:
— Eu não sou uma guia! Mas eu lhes prometo que farei de tudo! Além de entender os sinais
grafados nos mapas, o velho Naronda também me ensinou como um nômade do deserto usa a
inclinação do sol e da lua, a configuração da terra, das montanhas e do horizonte, as sombras das

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dunas, a direção do vento, o borrifo de areia soprado dos picos das dunas e a distribuição de rochas e
seixos, para buscar a orientação para a jornada! Então, eu lhes peço que tenham paciência e confiança!
Benom sorriu ao ouvir aquilo e fez-lhe uma espécie de reverência, dizendo:
— Então Al-Qaum, o guardião das caravanas, com os demais deuses antigos que vivem no deserto,
zela por todos nós!
— E o que diremos que aconteceu aqui? — um dos soldados da guarda pessoal de Ayub apontou
para o seu corpo e olhou para o pai de Alaai.
Naquele momento, todos os olhares se voltaram para Imbal. Erguendo o olhar, ele fitou Daritu, o
jovem guerreiro que dera cabo de Ayub e a quem, em condições normais, o peso da lei recairia por
ter assassinado o seu senhor. Depois, fitou demoradamente a sua filha.
Se não fosse pela habilidade de Daritu com a espada, Alaai não estaria mais ali. Ela teria sido
apenas mais uma dentre tantas mulheres assassinadas por seus pretendentes ou pelos seus maridos
ciumentos e descontrolados, como já acontecia há gerações. Então foi o seu coração de pai que deu a
resposta para todos:
— Quando chegarmos na cidade de Ofir, todos vocês responderão que ele foi seduzido por Ahuar,
o demônio dos desejos, que atrai os viajantes incautos no deserto para devorá-los! Que a cobiça subiu
à sua cabeça e, assim, Ayub sucumbiu à tentação, acreditando que poderia ir atrás de um grande
tesouro! E que, então, afastando-se da caravana e da rota, ele desapareceu para sempre! E nunca mais
foi visto!
Depois que Imbal falou aquilo, todos ficaram se entreolhando. Daritu chegou a acreditar que
ninguém aceitaria contar aquela versão da história, especialmente os soldados da guarda pessoal de
Ayub. No entanto, ao olhar para eles, percebeu, pelos seus semblantes, que pareciam ser os primeiros
a concordar.
— Sim! — concordou Benom. — Foi isso o que aconteceu! Ayub partiu atrás do tesouro e
sucumbiu! Foi vítima do guardião do tesouro que habita este deserto! — e, voltando o seu olhar para
todos, não encontrou nenhuma objeção.
Daritu respirou fundo, aliviado por sua vida ter sido salva pelo inesperado pacto. Então, pensou
ele, era assim que as lendas do deserto eram inventadas.

80
81
O Último Desejo

Renato Laserra

A
o entardecer daquele dia, o décimo segundo dia do Novo Ano, de acordo com o calendário
da tribo de Kedar, um garoto fugia de outros três jovens pelas dunas do deserto. O horizonte
tinha as cores do fogo e nuvens escuras e densas como a fumaça encobriam os últimos raios
de Sol.
— Desta vez você não escapa, Tarkan!
— Eu juro que só peguei as maçãs que estavam estragando. Vocês iriam jogar fora mesmo!
— Pare de correr! Devia ter esperado para procurar comida no lixo, seu verme!
Tarkan nunca perderia uma corrida para os filhos de Hamal, mas a fome que estava sentindo
tornava a fuga uma tortura. Respirar era difícil e suas pernas já não obedeciam mais a sua vontade de
correr tão rápido. Subir mais uma duna parecia impossível para ele, mas seus perseguidores também
mostravam os primeiros sinais de cansaço. E ele não podia desistir.
Ao chegar no topo da duna, a fisgada no músculo da perna o fez gritar de dor e cair rolando na
areia. Ele ainda conseguiu ouvir risadas antes de parar de rolar. Mas as risadas cessaram de repente.
Um bando de hienas surgiu no alto da próxima duna e agora o medo deu lugar ao desespero.
— Shayan, sua espada! Eu preciso de uma espada! — Tarkan gritou suplicando por ajuda.
As hienas estavam ofegantes e mantinham os olhares fixos em Tarkan.
— Vou jogar minha faca para que você tenha uma chance. Não sou tão cruel quanto pensa!
Shayan jogou a faca, mas fez questão de arremessá-la para longe do jovem. Tarkan tentou se
arrastar na areia para pegá-la, mas uma hiena se colocou entre ele e a lâmina. Seu rosnado era uma
mistura de latido com uma gargalhada sinistra. Logo haviam oito hienas rindo e descendo a duna para
cercá-lo.
— Adeus, Tarkan! Mais sorte na próxima vida! — Shayan e seus irmãos riram e fugiram.
— Alguém me ajude! Eu não quero morrer!
Tarkan começou a chorar e cobriu sua cabeça com as mãos. Uma outra hiena surgira correndo, ao
que as outras silenciaram e se afastaram assustadas. Tarkan abriu seus olhos diante do estranho
silêncio. A hiena tinha um olhar mais brilhante e imponente do que as outras, que haviam
desaparecido. O medo fez o garoto desmaiar.
A luz do sol já estava sumindo no horizonte, mas uma luz forte despertou Tarkan. Ao abrir os
olhos, ele viu uma garota e sentiu o toque de seus dedos em seu rosto. Com cuidado, ela limpava a
areia da testa e ao redor dos lábios de Tarkan.
— O que aconteceu? Onde estão as hienas? — Tarkan tentava se levantar assustado.
— Calma, elas foram embora. Acho que ficaram com pena de você. Ou não estavam com fome.
Ela conhecia o idioma de Kedar, mas tinha um sotaque diferente. Ou melhor, não tinha nenhum
sotaque. Como se fosse uma estrangeira que tivesse aprendido aquelas palavras recém.
— Quem é você? — ele perguntou com dificuldade, pois estava muito ofegante.
— Alguém que pode te ajudar a levantar. Venha! — ela disse estendendo sua mão a ele.
— Eu não consigo levantar. Eu…
A dor tinha desaparecido. De alguma forma, a lesão também havia sumido. Ele levantou com a
ajuda da garota, e ela era uma bela garota. Seus trajes de seda branca e detalhes em rosa claro sugeriam
que era uma forasteira. As joias douradas indicavam que devia ser muito rica e muito inconsequente
por estar sozinha com todos aqueles colares, pulseiras e finas correntes de ouro decorando seus trajes.
— Qual o seu nome?

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— Você pode me chamar de Hadali.
— Meu nome é Tarkan. Obrigado, acho que você salvou a minha vida.
— Você pediu ajuda e eu ouvi, qualquer um faria o mesmo. Você precisa se acalmar, respire
fundo!
— Não, não conheço ninguém que se arriscaria por mim. Sou um artista de rua que nunca
conseguiu ganhar mais do que três moedas de cobre por dia. E eu pagaria dez dinares por uma garrafa
de água agora. Se eu tivesse dez dinares, é claro!
— Não se preocupe, tem um oásis aqui perto. Fica a apenas cinco dunas naquela direção.
Ela estendeu a mão novamente para ele, algo incomum para os costumes locais. Certamente era
uma forasteira. Ela parecia com as dançarinas do palácio de Bagdá, era charmosa e desinibida. Talvez
fosse uma espiã ou uma assassina, mas Tarkan não tinha outra escolha a não ser confiar nela. E ele
estava gostando disso.
Caminharam de mãos dadas na direção indicada por ela. O rosto de Tarkan estava corado pelo
sol, mas agora estava ainda mais vermelho: as garotas de sua tribo nunca caminhariam de mãos dadas
com um desconhecido. Ele se perguntava porque aquela jovem estava agindo assim, talvez ela
pensasse que Tarkan estivesse em choque por causa do ataque das hienas, talvez fosse uma enfermeira
acostumada a cuidar de soldados feridos.
Ou talvez ela fosse uma vigarista, tentando seduzi-lo com seu charme… não, ele não queria pensar
isso dela. Ele era um ladrão, mas tinha seu código de honra, só roubava quando não havia outra opção
para não morrer de fome. E, mesmo assim, procurava não causar prejuízos aos mercadores, roubava
apenas pães secos ou frutas maduras demais. Mas tudo aquilo era muito estranho, até agora ele ainda
não tinha entendido porque as hienas fugiram e de onde aquela garota tinha vindo.
— De onde você veio? Por que está andando sozinha no deserto?
— Eu nasci aqui. E não estou mais sozinha agora — ela disse com um pequeno sorriso.
Tarkan tentava decifrá-la sem sucesso. Ela dizia aquelas palavras com uma naturalidade
desconcertante, mas não havia malícia no seu jeito de falar. Ela parecia tão misteriosa que Tarkan
não podia ter certeza de nada.
Ele arrastava seus pés na areia com dificuldade, seu cansaço era visível. Ela, por sua vez,
caminhava como se estivesse se aquecendo para uma longa jornada, e nunca ficava ofegante nem
mesmo ao subir as dunas mais íngremes. Logo conseguiram avistar um oásis com muitas palmeiras
e um pequeno lago cercado por formações rochosas.
Ao chegar perto da água, ele se jogou no lago. Era um alívio poder limpar toda aquela areia de
seus cabelos e de seu rosto. Ela sorria de um jeito diferente. Algo nela fazia Tarkan recordar de sua
infância, quando percebeu que ela sorria do mesmo jeito que sua irmã mais nova sorria quando
adotaram um filhote de gato.
— Um gatinho? — ela murmurou.
— O quê? Você ouviu meus pensamentos? — ele gritou assustado.
— O quê? — ela tentou disfarçar. — Não, eu achei que tivesse visto um filhote de gato naquelas
pedras.
Ela caminhou em direção às rochas, dando a volta pela beira do lago. Então um gatinho surgiu de
trás de uma pedra.
— Viu? Eu sabia que tinha visto você, gatinho! — ela ajoelhou na areia e acolheu o filhote no
colo. — Ah!, desculpe, você é uma gatinha! Como vamos chamá-la? Já sei! Mia! É um bom nome!
Tarkan estava confuso. Aquela jovem era muito estranha, assim como tudo o que acontecia ao
redor dela.
— Eu preciso voltar para a cidade. Minha irmã deve estar preocupada.
Hadali virou seu rosto em direção ao horizonte, como se estivesse esperando alguém. Uma garota
de cabelos negros como os de Tarkan surgiu no alto de uma duna, entre algumas palmeiras. Ela sorriu
ao avistar Tarkan saindo do lago e então desceu correndo pela areia.
— Irmão! Você me deixou preocupada!
— Está tudo bem agora, Thabda.

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— Onde estão os filhos de Hamal?
— Eles fugiram quando as hienas apareceram.
— Hienas? Tarkan, você está machucado? — ela disse enquanto procurava qualquer vestígio de
ferimento no irmão.
— Não, eu estou bem. Esta é Hadali, ela salvou a minha vida.
Hadali inclinou sua cabeça em reverência.
— Muito obrigada! Meu irmão vive se metendo em confusões. De onde esse filhote apareceu?
— Esta é a Mia! Ela deve ter se perdido de alguma caravana. Não podemos deixá-la aqui. Você
pode tomar conta dela? — Hadali ofereceu a gatinha para Thabda pegar no colo.
— Sim, eu adoro gatos!
— Antes de voltar, precisamos combinar uma coisa. As pessoas deverão perguntar como você
conseguiu se salvar das hienas. Eu tenho um plano — Hadali sorriu para eles.

Os três caminharam de volta para a cidade. Os mercadores já estavam recolhendo suas coisas de
volta para as carroças e desmontando suas tendas. Os moradores de Kanthara observavam Hadali com
curiosidade e desconfiança, sua beleza chamava a atenção e suas joias e cabelos castanhos brilhavam
com a luz do Sol.
Tarkan também começou a chamar a atenção. Ele estava coberto de manchas vermelhas pelo traje
de cor clara, mas não parecia estar ferido gravemente. Sua boca e pescoço estavam manchados de
sangue e areia., suas mãos e a faca que carregava com firmeza também estavam vermelhas. Os filhos
de Hamal estavam incrédulos. O olhar fixo de Tarkan estava voltado para eles. Hakin, o mais novo,
até deixou um martelo cair em seu próprio pé.
— Tarkan, você está vivo! — Shayan tentou disfarçar o medo.
— Mas como você conseguiu? — perguntou Zihar, o outro irmão.
— Hienas riem demais e eu não gosto que riam de mim. Eu sei como usar uma faca, e também
tenho dentes. Obrigado pela faca, Shayan, você a quer de volta? — Tarkan estendeu a faca para o
jovem mercador, que tentou não gaguejar ao responder.
— Não, não. Pode ficar com ela. E para compensar o seu… o seu infortúnio… vamos doar uma
cesta de frutas para vocês… Escute, Tarkan, eu prometo que vocês nunca mais passarão fome!
Os irmãos recolheram maçãs, pêssegos e tâmaras em uma cesta.
— Levem também este manjar de Miski e este creme de Ashta! Foram feitos por nossas primas!
— disse Zihar.
O manjar de Miski, uma resina vegetal em forma de pequenas pedras transparentes, era um dos
pratos mais caros da feira de Kanthara. Assim como o creme de Ashta, o manjar de Miski era feito
com leite de cabra e açúcar.
— Creme de Ashta? Com flor de laranjeira? — Thabda perguntou, lambendo os lábios.
— Sim! — Zihar afirmou.
— Eu aceito! — Thabda começou a recolher as tigelas, para surpresa de seu irmão — O que foi?
A Mia está com fome!
Tarkan guardou a faca em seu cinto de tecido cinzento e levou a cesta de frutas.
— Agora eu não tenho mais medo de hienas, Shayan. Lembre-se disso!
A praça central do mercado estava em silêncio; há pouco tempo atrás, todos estavam comentando
que Tarkan teria sido devorado por um bando de hienas ferozes. Tarkan e Thabda convidaram Hadali
para jantar em sua humilde casa: um pequeno sótão que ficava em cima da casa de um pobre artesão
que emprestava o cômodo em troca de pequenos serviços braçais como trançar fios de linho para a
confecção de cortinas e toalhas de mesa.
Quando não estavam trabalhando para pagar o aluguel, costumavam sair à procura de pequenas
pedras arredondadas e cortar fios de cobre para a fabricação de joias artesanais. Vender pulseiras e
anéis em Kanthara não era muito rentável. Com a chegada de caravanas de outras cidades, havia cada
vez mais concorrentes trazendo joias exóticas para todos os gostos.

84
Todas as casas ao redor eram parecidas, casebres aconchegantes empilhados uns sobre os outros
em pequenos prédios de dois ou três andares. As quadras estreitas eram separadas por ruas de areia
batida.
Eles subiram uma estreita escada de pedra para chegar a um pequeno terraço que fazia parte dos
aposentos dos irmãos. Thabda acomodou Mia em um tapete e trouxe algumas almofadas de linho
para que se sentassem no terraço, entre dois grandes vasos de plantas, possivelmente os itens mais
valiosos da casa.
Thabda despejou um pouco do creme em uma tigela menor para Mia e depois começou a arrumar
uma pequena mesa de madeira no terraço. Tarkan tentou ajudá-la, mas ela fez um discreto sinal para
que ele ficasse conversando com Hadali enquanto ela cuidava do jantar. Então entrou para acender o
fogo e preparar alguma comida.
— Seu plano deu certo. As frutinhas vermelhas parecem sangue quando espremidas — ele disse
enquanto limpava seu rosto com um pano umedecido.
— E elas têm um gosto inesquecível! — Hadali virou-se para ele e o beijou, segurando sua nuca
com suas mãos macias.
A boca tingida de vermelho de Tarkan agora deixava marcas nos lábios de Hadali.
Ele ouviu uma música distante. Seria alguma música deste mundo ou seriam harpas celestes?
Duvidou que algum mortal fosse capaz de tocar algo tão sublime.
— Quem é você? Você não pode ser deste mundo!
Ela riu.
— Este mundo… é muito maior do que imagina.
O jantar improvisado saiu melhor do que Tarkan esperava, e parabenizou sua irmã pelo esforço.
Após comerem, Tarkan cortava alguns fios de cobre enquanto envolvia uma pedra transparente e
rosada entre fios trançados que formavam arabescos; aquela seria uma joia artesanal especial. A lua
surgiu brilhante entre nuvens enevoadas que eram sopradas pela brisa da noite e deslizavam pelo
horizonte das dunas. Quando o colar ficou pronto, ele colocou a corrente em Hadali.
— Não tenho pedras preciosas, mas esta é a mais bonita que já encontrei.
— É linda! Muito obrigada! Eu preciso ir embora agora.
— Agora? Eu estava com medo de perguntar, mas talvez você seja uma espiã.
Ela riu, um sorriso tão encantador que deixava Tarkan sem palavras. Algo que naquele momento
parecia terrível, ele sabia que precisava dizer alguma coisa para que ela ficasse.
— Eu não quero perder você.
Thabda virou sua taça de vinho e levantou de sua almofada.
— Este é o momento em que eu devo dizer que está tarde, que eu vou dormir e deixar vocês
conversando! Boa noite! Vamos, Mia!
Ela beijou o rosto de Tarkan e depois o de Hadali. Depois, aproveitou para piscar para o irmão
sem que Hadali visse. Antes de entrar, ainda gesticulou um “não deixa ela ir” para ele.
— Boa noite, Thabda! — eles disseram.
Hadali levantou-se e repetiu que precisava ir agora.
— Eu vou ver você de novo?
— É o que você deseja?
— Sim!
— Seu desejo é uma ordem!
Ele se virou para pegar outra jarra de vinho e quando voltou para servir a taça de Hadali, ela havia
desaparecido.
— Hadali?
Ele correu para o parapeito de pedra. Para seu espanto, não havia nenhum sinal dela.

Os dias seguintes foram longos para Tarkan, sua tristeza só não era maior porque Hadali disse que
ele a veria de novo. Sua irmã tentava consolá-lo ou, pelo menos, não rir de sua angústia. Mia também

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desapareceu um dia depois de Hadali, para desespero de Thabda, que já havia se apegado à gata. Por
mais que procurasse, ela não conseguia encontrá-la.
Ao entardecer de um certo dia, Thabda subiu na escada de madeira que levava ao pequeno terraço
que servia como telhado de sua casa. Pretendia recolher a roupa que havia secado no varal quando
viu uma gata que parecia ser Mia andando sobre as casas do outro lado da rua.
— Mia!
Thabda desceu pela escada de madeira, saltou do terraço para a estreita escadaria de pedra e depois
para a rua. Correu para alcançar a gata, tentando não a perder de vista. Ao chegar a um longo beco
estreito que ficava na sombra entre dois prédios, ela viu a gata no colo de uma mulher encoberta pelas
sombras.
— Olá! Acho que você encontrou a minha gata. O nome dela é Mia!
Ao caminhar mais alguns passos em direção a ela, Thabda a reconheceu.
— Hadali, é você!
— Olá, amiguinha! — Hadali entregou a gata para ela.
— Por que você sumiu? Por onde andava?
— Eu tenho meus deveres. Você não entenderia. Vamos! Eu vou te levar para casa.
Um bando de homens mal-encarados surgiu na entrada do beco e barrou o caminho delas de
repente. Eles se vestiam como os mercadores, mas não se pareciam com nenhum mercador da cidade.
Certamente eram roupas furtadas.
— Este beco pertence aos Chacais do Deserto, vocês deveriam saber que não podem… Ora, o
que temos aqui? Lindas garotas e… joias ainda mais lindas — o homem forte de barba espessa
encarava as joias de Hadali.
— Nos deixem em paz! — Thabda gritou.
— Thabda, quero que cubra seus olhos com as mãos — Hadali ordenou com firmeza.
— O quê?
— Agora!
Assim que Thabda tapou os olhos, um clarão de luz branca e cegante surgiu dos olhos de Hadali,
deixando os homens atordoados.
— Argh! Peguem elas! — os homens cambaleavam e tentavam sacar seus punhais.
Um deles tentou apunhalar Hadali. O braço com a arma ficou paralisado antes de conseguir atingir
o rosto dela, para logo todo o corpo do homem tornar-se imóvel. Somente seus olhos podiam se mexer
agora, enquanto ele tentava gritar sem sucesso. Hadali moveu o dorso de sua mão para o lado, como
se estivesse dando um tapa no ar, e um vento fortíssimo surgiu, levantando a areia do chão e
derrubando os demais contra a parede. Outros bandidos escutaram o barulho e correram para ajudar
os comparsas.
— Segure minha mão! — Hadali falou para uma Thabda que ainda estava cobria os olhos, mas
espiava tudo por uma pequena fresta entre os dedos da outra mão.
Elas desapareceram no ar, deixando um breve redemoinho de vento no lugar onde estavam. O
homem que estava paralisado voltou a se mexer e cambaleou para a frente, golpeando nada além de
areia e vento. Num piscar de olhos, Thabda estava de volta ao terraço de casa. Ela abraçou Hadali
com medo.
— O que aconteceu? Você é uma djinn?
— Você acreditaria se eu dissesse que sim? Sabe o que é um djinn?
— Eu não tenho certeza. Mas eu acredito em você.
Tarkan estava atrás da porta e escutava a conversa.
— Quando seu irmão pediu ajuda no deserto, eu fiquei livre para voltar ao mundo dos mortais.
Sim, eu sou uma djinn. Uma Guardiã da Areia. Sua tribo nos chama de Espíritos do Vento.
— Eu pensava que os djinns protegiam tesouros.
— Eu existo para proteger o tesouro mais precioso que existe no mundo dos mortais.
— A vida!
— Você é esperta! Mas agora algo me impede de permanecer muito tempo no mundo invisível.

86
— O quê? — Thabda franziu a testa, preocupada.
— Eu fiquei tempo demais aqui, foi um descuido de minha parte. Eu aprendi a sentir o que os
mortais sentem e agora preciso tomar uma decisão. A decisão mais importante de toda minha
existência.
— Que decisão?
Tarkan ouvia tudo. Sua vontade era aparecer de súbito, mas teve controle para esperar mais um
pouco.
— Eu amo Tarkan e sei que ele também me ama. Enquanto estou invisível, eu posso vê-lo todas
as noites. Ele espera você dormir para deitar-se neste terraço e chorar olhando para as estrelas.
Tarkan estava de costas para a porta fechada. Abaixando-se, abraçou seus joelhos com os olhos
marejados.
— Por que você não fica aqui? Eu sei que ele te ama!
— Se eu ficar mais tempo aqui, nunca mais poderei voltar para o meu mundo.
O jovem então abre a porta e caminha até elas.
— Não existe o meu mundo ou o seu mundo. Nosso mundo é onde podemos ficar juntos!
— Vou deixá-los a sós! —Thabda sorri enquanto entra na casa.
— Eu tentei me afastar de você. Afastar esses sentimentos, mas ficar aqui será o meu último
desejo — Hadali olhava nos olhos de Tarkan.
— O que quer dizer?
— Meus poderes estão mais fracos. O cansaço, a fome e a sede incomodam cada vez mais. Minha
forma física não foi feita para ficar muito tempo aqui. Mas já tomei a minha decisão. Eu quero viver
uma vida mortal.
— Você perderia a sua imortalidade por mim? Eu não posso permitir isso!
Ela ri com o dorso da palma da mão encostando nos lábios.
— Viver uma vida mortal não é o fim. Eu vou contar um segredo… Todas as almas são imortais.
Vocês, mortais, não imaginam a energia necessária para mantê-los nesta dimensão. Mesmo usando
todo o meu poder para um último desejo, meu corpo não viverá muito tempo. Mas ainda assim, este
não será o fim de nossa história.
— Você tem todo esse poder?
— O verdadeiro poder está aqui — ela toca o peito de Tarkan. — A força vital que pulsa no
coração de um mortal vem de um poder mais antigo que as estrelas.
— Eu juro que estou tentando, mas não sei se consigo entender suas palavras.
— Só o que precisa entender é que o amor é a força mais poderosa que existe. E o amor será o
meu último desejo.
As estrelas daquela noite na Arábia foram testemunhas de um longo beijo. Uma prova de amor
entre duas almas imortais que escolheram viver juntos uma vida mortal.

87
Sobre os[

autores
Yara Tertuliano

Natural de Peruíbe/SP, Yara teve a sorte de


crescer rodeada de livros. Encontrou na
ficção um espaço criativo para refletir não
apenas sobre o futuro da humanidade, como
também sobre seu passado. Atualmente,
mora em Recife e estuda Serviço Social na
UFPE. Possuí contos publicados por
editoras independentes e revistas gratuitas.

Contato:
@madeinvirgo_
yaratertuliano.livros@gmail.com
Ash A. Orlowska

Ash nasceu em Nova Friburgo – RJ e


atualmente mora em Maceió- Alagoas. É
Escritor, Roteirista, Desenhista e Pintor.
Tem cinco livros publicados pelos títulos:
Faênäróc, a Floresta; Os Imortais, os
Quatro Príncipes; Anjo: a Redenção, Caos e
Ordem; Choro de Christian, Maldição do
Palliun e Tranca Ruas, o Amor Vem das
Encruzilhadas. Todos os livros podem ser
encontrados na Amazon, na Uiclap e o
forno já está assando novos títulos que estão
para chegar!
Fellip Marcondes

Fellip é natural de Curitiba/PR. Biólogo


graduado pela UFPR, adora todo tipo de
bicho (principalmente gatos), ler (livros,
mangás, HQs, light novels) e gosta de
escrever histórias, em diferentes estilos, nas
horas vagas. Possui alguns contos
publicados por outras editoras, com um
foco mais voltado para ação e/ou infanto-
juvenil.
Érlon Ziquinatti

Érlon Marques Ziquinatti é filho de Leonel


Moscato Ziquinatti e Mariza Marques da
Silva, irmão de Franciele Marques
Ziquinatti. Nascido em Santiago e criado em
Bossoroca, as duas cidades no Rio Grande
do Sul, formado em Ciência da
Computação, trabalhando na área de Redes
de Computadores. Gosta de ler e escrever
como hobby, escreve alguns poemas e
contos no tempo livre.
Marco Aurélio

Marco Aurélio da Conceição Correa é


pedagogo, escritor e pesquisador. Professor
da rede municipal do Rio de Janeiro,
doutorando em educação (ProPed-UERJ) e
pósgraduado em ensino de história da
África (PROPGPEC-CP2). Autor dos livros
Cinemas afro-atlânticos e Necropoéticas e
outras histórias.
Thaywan Benigno

Thaywan Benigno mora em São Paulo, é


pisciano e desde jovem se aventura no
mundo da leitura, sendo um dos autores
selecionados para compor a Antologia Breu,
também de 2023. Gosta de todos os gêneros,
mas tem uma paixão a mais por fantasia,
além disso também é amante de cinema,
música e céus.
Marcelo Laserra

Marcelo Laserra tem formação em


Tecnologia da Informação, Gerência de
Projetos e História. É autor de Sob a Égide,
romance de espionagem e mistério. Pai,
arqueiro e adepto do Role Playing Game, o
escritor possui contos publicados em
diversas coletâneas de Literatura Fantástica.
Marcelo busca o insólito e seu objetivo é
contar histórias fascinantes. Mais
informações em www.marcelolaserra.com.
Felipe Feital

Nascido em Campo Grande, Zona Oeste do


Rio De Janeiro, mas viveu quase toda a sua
vida em Belo Horizonte, capital de Minas
Gerais, onde atualmente reside. Felipe é
apaixonado desde muito novo pela
literatura, mas foi aos 28 anos que resolveu
se aventurar neste universo das letras
participando então de algumas antologias.
Atualmente é autor colaborador de dois
livros, Crônicas da Alvorada, da editora
Palavra e Verso e À Flor da Pele, da editora
Lontra.
R.A.Tsuchiya
A sede por tramas elaboradas, cenários
fantásticos e obscuros, o bizarro, o gore e o
perturbador, inclusos nas mais diversas
aventuras são fatores presentes no cotidiano
de Rafael. Nascido em São Bernardo do
Campo - SP, é biomédico por formação e
publicou contos em diversas antologias e de
forma independente pela Amazon, em sua
grande maioria, voltadas para o terror e
suspense. É vencedor do prêmio Reflexo
Literário de 2021 na categoria “melhor e-
book”, vencedor do 2° WBR Awards na
categoria “livro do ano 2022” e é integrante
da Academia Independente de Letras e
Academia Intercontinental Sênior de
Literatura e Arte.
Giuliano Andreoli

Giuliano Souza Andreoli nasceu em 20 de


março de 1979, em Porto Alegre. É
professor universitário de Dança, autor do
livro “Dança, Gênero e Sexualidade:
narrativas e performances”, com mestrado
em Educação e doutorando em Sociologia.
Pesquisa sobre temas da História,
Antropologia e Ciências Sociais aplicados às
artes do corpo. Também se dedica aos
estudos das filosofias oriental, indígena e
africana, esoterismo e artes marciais.
Sempre gostou de literatura de alta fantasia
e de ficção científica. Tem como referencia
autores como Robert E. Howard, J. R. R.
Tolkien e George Martin.
Renato Laserra
Renato nasceu em Porto Alegre, começou a escrever
ainda adolescente. Contos, poemas e letras de músicas
começavam a tomar forma nos intervalos entre as
aulas do colégio. Sempre participou de oficinas e
eventos literários e acredita que os escritores podem
aprender muito uns com os outros. Participa de
grupos de escrita criativa com escritores do Brasil,
Portugal e Angola e não faz distinção entre autores
premiados e ilustres desconhecidos.
Seu livro de estreia, A Turma B - Jovens Contra o
Bullying, foi um dos vencedores do PIC 2014
(Programa de Incentivo à Cultura) organizado pela
Prefeitura de Canoas, Rio Grande do Sul, e foi
contemplado com a publicação de 2 mil exemplares da
obra. Mais de 400 livros foram encaminhados para
bibliotecas de dezenas de escolas como contrapartida.
Renato é o criador do Clube de Leitura Casa da
Árvore, projeto de incentivo à leitura para
jovens e adultos. O clube de leitura divulga contos e
crônicas e realiza entrevistas com escritores
consagrados e iniciantes.

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