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FRIEDMAN, Milton – A Metodologia da Economia Positiva. In: Edições Multiplic, v.

1,
n.3, fevereiro, 1981.

Original: “The Methodology of Positive Economics”. Reprinted from Essay in Positive


Economics by Milton Friedman by permission of The University of Chicago Press. Copyright
1953 by the University of Chicago.
Tradução: Leonidas Hegenberg

A METODOLOGIA DA ECONOMIA POSITIVA‫٭‬

Milton Friedman

John Neville Keynes, em seu admirável The Scope and Method of Political
Economy, distingue “uma ciência positiva […,] corpo sistematizado de conhecimentos
relativos ao que é, de uma ciência normativa, ou reguladora […,] corpo sistematizado de
conhecimentos em que se analisam critérios acerca do que deveria ser e de uma arte […,]
sistema de regras para a consecução de um determinado objetivo”; observa que “a confusão
entre elas é comum e tem sido a fonte de numerosos erros sérios” e lembra a importância de
“reconhecer uma ciência positiva autônoma da economia política”1.
O presente artigo volta-se principalmente para certos problemas de caráter
metodológico, manifestos quando se constrói a “ciência positiva autônoma” reclamada por
Keynes, e focaliza, em particular, a questão de como proceder a fim de decidir se uma
hipótese ou uma teoria deve ser aceita, ainda que provisoriamente, como parte do “corpo
sistematizado de conhecimentos relativos ao que é”. Todavia, a confusão deplorada por
Keynes ainda se manifesta com freqüência e impede de notar que a economia pode ser – e
em parte é – uma ciência positiva, de modo que parece oportuno prefaciar o artigo,
juntando-lhe algumas observações a propósito da relação que vige entre economia positiva
e economia normativa.

I - A RELAÇÃO ENTRE ECONOMIA POSITIVA E ECONOMIA NORMATIVA

Confundir economia positiva e economia normativa é, até certo ponto, inevitável.


Quase todos consideram os temas centrais da economia como algo de importância vital e
como algo que se coloca no âmbito de sua própria experiência e competência; esses temas
dão origem a amplas controvérsias e são objeto de legislação freqüente. Pessoas que se
dizem “peritos” na matéria formulam opiniões divergentes e dificilmente poderíamos
considerá-las, todas, como pessoas desinteressadas, ou imparciais. De qualquer forma, em
assuntos de tal monta, a opinião abalizada não seria endossada, por ato de fé, ainda que os
“peritos” concordassem entre si e fossem claramente imparciais2. As conclusões da

‫ ٭‬Acrescentei, no presente artigo, sem alusões especificas, a maior parte de meu breve “Comentário”, que apareceu
em Survey of Contemporary Economics, Vol. II (B.F. Haley, edit.) (Chicago, Richard D. Irwin, Inc., 1952), pp.
455-57. Agradeço aos comentários e críticas feitos por Dorothy S. Brady, Arthur F. Burns e George J. Stigler.
1
(Londres, Macmillan & Co., 1891), pp. 34-35 e 46.
2
Quanto a isso, nada há de peculiar nas ciências sociais ou na Economia, como se poderá constatar pensando
na importância que adquirirem, em geral, as crenças pessoais ou, na Medicina, os remédios caseiros, sempre
2

economia positiva parecem relevantes e são, de fato, de relevância imediata para diversos
problemas normativos importantes, para questões relativas ao que deveria ser feito e
relativas ao modo pelo qual se pode atingir um determinado objetivo. Leigos e peritos,
indiferentemente, tendem a acomodar as conclusões positivas aos preconceitos normativos
fortemente aceitos e tendem a rejeitar essas conclusões positivas quando as suas
conseqüências normativas (ou aquilo que se presume sejam suas conseqüências normativas)
se mostram desagradáveis.
A economia positiva independe, em tese, de qualquer posição ética especial ou de
juízos normativos. No dizer de Keynes, ela trata “do que é” e não “do que deveria ser”. A
tarefa dessa economia positiva é a de provar um sistema de generalizações passível de ser
utilizado para fazer previsões corretas acerca das conseqüências de qualquer alteração das
circunstâncias. O desempenho de uma tal economia será ajuizado em termos da precisão e
do alcance das previsões e em termos do ajuste que haja entre tais previsões e a
experiência. Em suma, a economia positiva é ou pode vir a ser uma ciência “objetiva”,
exatamente como qualquer das ciências físicas. O fato de a economia considerar inter-
relações entre seres humanos e de o pesquisador ser ele mesmo (de modo muito mais claro
do que acontece nas ciências físicas), parte do assunto investigado, geram, como é óbvio,
dificuldades especiais quando se cogita de alcançar objetividade; entretanto, esses fatos
também dão, aos cientistas sociais, certas classes de dados que não estão ao dispor dos
estudiosos que se voltam para as ciências físicas. Nem um nem outro desses dois itens,
porém, permite, no meu entender, que se faça uma distinção básica entre os dois grupos de
ciências3.
A economia normativa e a arte da economia, por sua vez, não podem ser
independentes da economia positiva. Qualquer conclusão relativa a diretrizes apóia-se
obrigatoriamente, em uma previsão em torno das conseqüências de proceder-se de uma
forma e não de outra, previsão essa que precisa assentar-se – explicita ou implicitamente –
na economia positiva. Não existe, é claro, uma relação um-a-um entre as conclusões
relativas a diretrizes a seguir e as conclusões da economia positiva; se uma tal relação
biunívoca existisse, não haveria lugar para uma ciência normativa autônoma. Duas pessoas
podem concordar a respeito das conseqüências de legislação especifica qualquer. Contudo,
uma dessas pessoas pode achar que tais conseqüências são desejáveis, inclinando-se, pois, a

que falte a evidência obviamente convincente da opinião dos “peritos”. O prestigio e aceitação de que gozam,
nos dias de hoje, as concepções dos estudiosos da Física (seja quando se manifestam a respeito de temas de
sua própria área de especialização, seja – como aliás, ocorre muito freqüentemente – quando se pronunciam
sobre temas de outras áreas) derivam não apenas da fé, mas da evidência que as apóia, do êxito de suas
previsões e das dramáticas conquistas feitas com base nos resultados que propiciam. Quando a Economia
pareceu garantir a sua valia, na Grã-Bretanha da primeira metade do século XIX, com evidência do mesmo
naipe, o prestígio e a aceitação da “Economia científica” puderam rivalizar com o atual prestígio das ciências
físicas.
3
A interação entre o observador e o processo observado, que é tão marcante característica das ciências sociais,
possui, a par de um paralelo óbvio, nas ciências físicas, uma contraparte mais sutil no princípio da indeterminação,
que resulta da interação entre o processo de mensuração e o fenômeno que se procura medir. Esses dois elementos
possuem, ainda, uma contraparte na lógica, a saber, o teorema de Godel, segundo o qual é impossível construir uma
lógica abrangente e auto-suficiente. Está em aberto a questão de saber se todos os três elementos podem ser vistos
como formulações diversas de um princípio de generalidade ainda maior.
3

aceitar a lei, ao passo que a outra, julgando inaceitáveis aquelas conseqüências, pode
deliberar opor-se a ela.
Atrevo-me a dizer, entretanto, que, presentemente, no mundo ocidental e, de modo
específico, nos Estados Unidos da América, as divergências, entre cidadãos imparciais,
sobre as diretrizes econômicas, derivam muito mais das diferenças nas previsões relativas
às conseqüências econômicas de uma ação – diferenças que serão eliminadas pelo processo
da economia positiva – do que de diferenças fundamentais nos valores básicos – diferenças
em torno da quais os homens, em última análise, só podem lutar. Exemplo claro e não
destituído de importância é o da legislação a propósito dos salários mínimos. Sob a ampla
quantidade de argumentos em favor e contra essa legislação estão a idéia geral de fixar um
“salário vital” para todos – segundo a terminologia ambígua que freqüentemente se usa ao
discutir a questão. As diversas opiniões assentam-se largamente em uma diferença,
explícita ou implícita, no que concerne às previsões relativas à eficácia desse particular
modo de alcançar o objetivo desejado. Quem apóia a lei acredita (prevê) que os salários
mínimos legais diminuem a pobreza pois elevam os vencimentos de pessoas que recebem
menos do que o salário mínimo, assim como os vencimentos de algumas pessoas que
recebem mais do que esse mínimo, sem provocar aumento do número de pessoas
desempregadas ou com empregos piores do que os empregos que teriam sem a lei. Quem se
opõe à lei acredita (prevê) que os salários mínimos legais aumentam a pobreza, pois elevam
o número de pessoas desempregadas ou com empregos piores e isso contrabalança, e muito,
qualquer efeito favorável que a lei poderia ter sobre os salários de pessoas que viessem a
manter seus empregos. Acordo quanto às conseqüências econômicas de uma lei não
precisa, obrigatoriamente, corresponder a completo acordo a respeito da sua desejabilidade,
pois é perfeitamente possível haver diferenças remanescentes no que concerne às suas
conseqüências políticas ou sociais. Todavia, existindo acordo em torno dos objetivos, ter-
se-á dado um largo passo em direção ao consenso.
Diferenças intimamente associadas, na análise positiva, estão nos alicerces de
concepções divergentes a propósito do papel e da posição dos sindicatos e a propósito da
desejabilidade dos controles diretos de preços e salários e das tarifas. Diferentes previsões
acerca da importância das assim chamadas “economias de escala” explicam, amplamente,
as concepções divergentes a respeito da desejabilidade ou da necessidade de haver
pormenorizada regulamentação governamental da indústria e de haver preferência pelo
socialismo em vez da ação das empresas privadas. Essa lista poderia ser indefinidamente
prolongada4. Meu juízo de que as principais diferenças em torno de práticas econômicas, no
4
Exemplo de maior complexidade é o das diretrizes de estabilização. A um primeiro olhar, concepções divergentes
a respeito desse problema parecem refletir diferenças nos objetivos colimados. Acredito, porém, que essa primeira
impressão é desnorteadora e que, fundamentalmente, as concepções divergentes refletem, principalmente, juízos
diversificados a propósito da fonte de flutuações, na atividade econômica, e do efeito de uma ação alternativa,
contracíclica. Para examinai uma importante consideração que explica boa parte da controvérsia, ver "The Effects
of a Full-Employment Policy on Economic Stabilitiy. A Formal Analysis", infra, pp. 117-32. Um sumário da atual
posição das concepções dos profissionais que examinam o assunto se encontra em "The Problem of Economic
Instability", relatório de subcomissão do "Committee on Public Issues", da American Economic Association,
American Economic Review, XI (setembro de 1950), 501-38.
N.T.: nesta e em outras notas, quando o Autor diz infra, refere-se a trechos que figuram nas demais partes (II. III e
IV) de seu livro ESSAYS IN POSITIVE ECONOMICS (Chicago Press, 1953, edição Phoenix, de 1966), cuja
parte I, Introdução, pp.3-43, está aqui traduzida.
4

mundo ocidental, são desse gênero, é, naturalmente, ele mesmo, um enunciado “positivo”, a
ser aceito ou rejeitado com base na evidência empírica.
Se meu juízo é válido, isso quer dizer que um consenso acerca de diretrizes
“corretas”, no campo Econômico, depende muito menos do progresso da Economia
normativa, propriamente dita, do que do progresso de uma Economia positiva capaz de
conduzir a conclusões que são e merecem ser amplamente acolhidas. Quer dizer, também,
que uma razão ponderável para distinguir nitidamente a Economia positiva da normativa é,
justamente, a contribuição que por essa via se poderá dar ao acordo sobre diretrizes.

II - ECONOMIA POSITIVA

O objetivo último de uma ciência positiva é o desenvolvimento de uma “teoria” ou


de uma “hipótese” capaz de produzir previsões válidas e significativas (ou seja, não banais)
acerca de fenômenos ainda não observados. Uma tal teoria é, via de regra, uma complexa
mistura de dois elementos. Em parte, é uma “linguagem”, destinada a fomentar “métodos
sistemáticos e organizados de raciocínio”.5 Em parte, é um corpo de hipóteses substantivas,
elaboradas com o objetivo de colher, por abstração, aspectos essenciais da realidade
complexa.
Vista como linguagem, a teoria não possui conteúdo substantivo; é um conjunto de
tautologias. Sua função é a de servir como sistema de arquivamento para organizar material
empírico e simplificar a compreensão desse material; os critérios pelos quais será julgada
são os que se mostram adequados para avaliar um sistema de arquivamento. Estão as
categorias definidas de modo claro e preciso? São elas exaustivas? Sabemos onde colocar
cada qual dos itens individuais ou há certa ambigüidade? Está o sistema de títulos e
subtítulos projetado de tal maneira que se torna fácil encontrar um desejado item ou é
preciso “caçá-lo”, correndo de um lado para outro? Os itens que desejaríamos considerar
conjuntamente acham-se arquivados uns ao lado dos outros? O sistema de armazenamento
contorna as elaboradas referências cruzadas?
As respostas dadas a tais perguntas dependem, em parte, de considerações lógicas;
e, em parte, de considerações factuais. Somente os cânones da lógica formal podem revelar
se uma linguagem específica é completa e coerente, ou seja, se as proposições da
linguagem são “certas” ou “erradas”. Somente a evidência factual, por seu turno, pode
revelar se as categorias do “sistema analítico de arquivamento” possuem uma contraparte
empírica significativa, ou seja, se elas são úteis para a análise de particulares classes de
problemas concretos6. O exemplo simples da “oferta” e da “procura” ilustra tanto esse
último ponto, quanto a lista precedente de questões analógicas. Vistas como elementos da
linguagem da teoria econômica, oferta e procura são as duas principais categorias em que
se distribuem os fatores que afetam os preços relativos dos produtos ou os fatores de
produção. A utilidade da dicotomia depende da “generalização empírica segundo a qual
uma enumeração das forças que influem sobre a demanda, em qualquer problema, e das

5
A frase final é do artigo "The Present Position of Economics" (1885), de Alfred Marshall, que aparece no
livro organizado por A.C. Pigou, MEMORIALS OF ALFRED MARSHALL (Londres: Macmillan Co,
1925), p.164. Ver, ainda, "The Marshallian Demand Curve", infra, pp.56-57, 90-91.
6
Ver "Lange on Price Flexibitity and Employment: A Methodological Criticism", infra, pp.282-89.
5

forças que afetam a oferta, conduz a duas listas que têm poucos itens em comum”.7 Ora,
essa generalização é legítima para mercados como o mercado final para um bem de
consumo. Em tal mercado há clara e precisa diferença entre as unidades econômicas
passíveis de se verem contempladas como relativas à demanda do produto e as passíveis de
se verem contempladas como relativas à oferta desse produto. Raramente paira dúvida
sobre se um fator específico deve ser classificado como fator que, de um lado, afeta a oferta
ou como fator que, de outro lado, afeta a demanda; e raramente há necessidade de
considerar efeitos cruzados (referências cruzadas) entre as duas categorias. Em tais casos, o
simples e mesmo óbvio arquivamento dos fatores relevantes sob os títulos “oferta” e
“demanda” representa grande simplificação do problema e se torna maneira efetiva de
contornar falácias que, de outra forma, tenderiam a manifestar-se. Mas a generalização não
é sempre legítima. Não vale, por exemplo, para as flutuações diárias dos preços, em um
mercado primacialmente especulativo. Pode um boato a respeito de aumento de imposto
sobre lucros excessivos, por exemplo, ser visto como fator que opera primordialmente na
oferta de ações das empresas, no mercado do dia? Ou será visto como fator que opera na
procura? Quase todos os fatores, aliás, podem ser colocados sob o título “oferta” ou, com
justificativa similar, sob o título “procura”. Os conceitos, porém, ainda são passíveis de uso
e não se mostram inteiramente despropositados; ainda são “certos”, embora, é claro, menos
úteis do que o seriam no primeiro exemplo – porque lhes falta, agora, uma contraparte
empírica significativa.
Vista como corpo de hipóteses substantivas, a teoria será julgada pelo seu poder
preditivo, relativamente à classe de fenômenos que ela pretende “explicar”. Tão-somente a
evidência factual poderá mostrar se a teoria é “certa” ou “errada”, isto é, se ela será
provisoriamente “aceita” como válida ou “rejeitada”. O único teste relevante para a
validade de uma hipótese – ponto em que me deterei mais longamente abaixo – é a
comparação das suas previsões com a experiência. A hipótese é rejeitada quando suas
previsões são contraditadas (“com freqüência” ou mais assiduamente do que as previsões
oriundas de hipótese alternativa). É aceita quando suas previsões não são contraditadas e
tanto maior confiança desperta quanto maior o número de oportunidades em que poderia
ter-se visto contraditada. A evidência factual jamais “prova” uma hipótese; pode, apenas,
deixar de refutá-la e é isso, justamente, o que se entende ao dizer, de maneira um tanto
inexata, que uma hipótese foi “confirmada” pela experiência.
A fim de evitar confusões, cabe notar, explicitamente, que as “previsões” pelas
quais se submete a teste a validade de uma hipótese não precisam dizer respeito a
fenômenos que ainda não ocorreram, ou seja, não precisam ser vaticínios a propósito de
eventos futuros. Podem dizer respeito a fenômenos já ocorridos, mas sem que observações
acerca deles tivessem sido registradas, ou a fenômenos desconhecidos para a pessoa que faz
as previsões. Exemplificando, uma hipótese pode implicar que tal ou qual evento – face a
certas outras circunstâncias – deve ter ocorrido em 1906. Se uma pesquisa de registros
históricos revela que o evento ocorreu, de fato, a previsão está confirmada; se revela, ao
contrário, que o evento não ocorreu, a previsão está contraditada.
A validade de uma hipótese, no sentido agora elucidado, não é, por si mesma, um
critério suficiente para a escolha de uma dentre várias hipóteses viáveis. O número de fatos

7
"The Marshallian Detnand Curve", infra, p.57.
6

observados é invariavelmente finito, ao passo que o número de hipóteses possíveis é


infinito. Se há urna hipótese compatível com a evidência disponível, então haverá sempre
um número infinito de hipóteses igualmente compatíveis com essa evidência8. Imagine-se,
para exemplificar, que um imposto de consumo de um artigo acarrete aumento de preço
desse mesmo artigo – e que o aumento seja igual ao imposto. Isso é compatível com as
condições competitivas, uma curva estável de demanda e uma curva estável e horizontal de
oferta. Mas também é compatível com as condições competitivas e uma curva de oferta de
declividade positiva ou negativa, com o exigido deslocamento de compensação efetuado
seja na curva de demanda, seja na curva de oferta. Também é compatível com as condições
monopolísticas, os custos marginais constantes e uma curva estável de demanda, com a
configuração específica requerida para produzir esse resultado. E assim por diante,
indefinidamente. Novas evidências, com as quais a hipótese deverá mostrar-se compatível,
poderão, é certo, eliminar algumas das possibilidades; mas não poderão eliminá-las todas e
delimitar uma única possibilidade, capaz de revelar-se compatível com a evidência finita. A
escolha de uma das hipóteses possíveis – todas igualmente compatíveis com a evidência
disponível – há de ser, até certo ponto, arbitrária, embora se reconheça, em geral, que entre
as considerações relevantes a ter em conta estejam os critérios de “simplicidade” e de
“fecundidade” – noções que, todavia, desafiam caracterização completamente objetiva.
Diz-se que uma teoria é tanto mais “simples” quanto menor o número de conhecimentos
iniciais que requer para permitir previsões, num dado campo de fenômenos; diz-se que é
mais “fecunda” se as previsões resultantes são mais precisas, se a área em que a teoria
permite as previsões é mais ampla e se o número de linhas de investigação sugeridas é
maior. A completude lógica e a coerência lógica são relevantes, mas desempenham papel
subsidiário, assegurando que a hipótese afirma o que se pretende seja por ela afirmado e o
afirme de maneira análoga para todos os seus usuários. Completude e coerência atuam,
aqui, exatamente como atuam, nas computações estatísticas, as verificações de acuidade
aritmética.
Infelizmente, porém, é raro podermos submeter a teste as previsões particulares, nas
ciências sociais, valendo-nos de experimentos especificamente projetados com o fito de
eliminar as influências perturbadoras consideradas de maior importância. Em geral,
precisamos confiar na evidência recolhida em “experimentos” que, simplesmente, ocorrem.
A dificuldade de realizar os chamados “experimentos controlados” não corresponde, no
meu entender, a uma distinção que se deva estabelecer entre ciências sociais e ciências
físicas; com efeito, não só a dificuldade é comum às duas áreas (cogite-se da Astronomia,
por exemplo) como, a par disso, uma presumível diferença entre experimentos controlados
e experiências não-controladas é, quando muito, uma diferença de grau. Nenhum
experimento pode ser completamente controlado e qualquer experiência é parcialmente
controlada – no sentido de que algumas influências perturbadoras se mantêm relativamente
constantes na experiência.
A evidência oferecida pela experiência é abundante e, muitas vezes, tão concludente
como o seria a evidência recolhida por meio de experimentos planejados. Segue-se que a
impossibilidade de realizar experimentos não é obstáculo fundamental para submeter a teste

8
A restrição é necessária porque a "evidência" pode mostrar-se internamente contraditória, de modo a inexistir
hipótese compatível com ela. Ver, ainda, "Lange on Price Flexibility and Employment", infra, pp.282-83.
7

uma hipótese, empregando, para isso, o êxito de suas previsões. Todavia, essa evidência
fornecida pela experiência é bem mais difícil de interpretar do que a recolhida em
experimentos, porque sempre se mostra indireta e incompleta e, em geral, se revela
complexa. A coleta dessa evidência é, via de regra, muito árdua e sua interpretação exige
análises sutis e cadeias de complicados raciocínios, que poucas vezes são efetivamente
convincentes. À Economia se nega a evidência dramática e direta do experimento “crucial”,
o que gera entraves para o adequado teste de hipóteses; isso, porém, é menos importante do
que o obstáculo posto à tentativa de alcançar rápido e amplo consenso a respeito das
conclusões justificadas pela evidência acessível. Assim, torna-se lento e difícil o processo
de eliminação de hipóteses malogradas, que raramente desaparecem e sempre voltam a ser
contempladas.
Há, é certo, muita variação no que concerne a esses temas. Ocasionalmente, a
experiência nos fornece evidências tão diretas, dramáticas e convincentes quanto as que nos
poderiam ser apresentadas pelos experimentos controlados. O exemplo mais obviamente
importante seria, talvez, o da evidência que a inflação nos dá a respeito da hipótese de que
um apreciável aumento da quantidade de moeda, em um período relativamente breve,
corresponde a um substancial aumento dos preços dos gêneros. A evidência, nesse caso, é
dramática e a cadeia de raciocínio exigida para interpretá-la é relativamente breve. Sem
embargo, apesar dos numerosos casos de aumento substancial dos preços, de sua
correspondência um-a-um com o aumento das quantias de moeda e da ampla variação de
outras circunstâncias que possam parecer relevantes, cada nova experiência da inflação
levanta controvérsias calorosas (não apenas junto aos leigos, cumpre frisar), afirmando-se
ou que o aumento da quantidade de moeda é efeito acidental de uma elevação de preços,
decorrente de outros fatores, ou que esse aumento do estoque de moeda não passa de
fortuito e desnecessário fenômeno, concomitante ao do aumento de preços.
Uma conseqüência da dificuldade que cerca o teste de hipóteses econômicas
substantivas tem sido a fuga para o terreno das análises puramente formais e tautológicas 9.
Como já foi observado, as tautologias ocupam um importante lugar na Economia e em
outras ciências, pois são parte de uma linguagem especializada, ou seja, constituem um
“sistema analítico de armazenamento”. A par disso, a lógica e a matemática, também
tautológicas, são recursos essenciais para a verificação da correção dos raciocínios, para a
descoberta das implicações das hipóteses e para a análise de hipóteses supostamente
diferentes – com o fito de saber se, afinal, não passam de hipóteses equivalentes ou se são
realmente diversas, com a correspondente determinação das diferenças.
Mas a teoria econômica deve ser mais do que uma estrutura de tautologias – se
pretende predizer as conseqüências de nossas ações, sem limitar-se a descrever tais
conseqüências, ou seja, se pretende ser mais do que matemática disfarçada10. A utilidade
das tautologias depende, em última instância, como já se ressaltou acima, da aceitabilidade
de hipóteses substantivas, capazes de sugerir as particulares categorias em que se
distribuem os refratários fenômenos empíricos.

9
Ver o mesmo artigo, nota anterior, passim.
10
Ver, também, Milton Friedman e L. J. Savage, "The Expected Utility Hypothesis and the Measurability of
Utility", Journal of Political Economy, LX (Dezembro, 1952), 463-94, esp. pp.565-67.
8

Efeito mais sério, provocado pela dificuldade de submeter a teste as hipóteses


econômicas através de suas previsões, é o de ela facultar o surgimento de mal-entendidos
acerca do papel da evidência empírica no trabalho teórico. A evidência empírica é vital em
duas fases diversas, embora intimamente associadas: na fase de elaboração das hipóteses e
na do teste de sua validade. Ampla e abrangente evidência acerca dos fenômenos de uma
hipótese tratará de generalizar e “explicar”, além de possuir uma importância óbvia, como
veículo para formulação de novas hipóteses, é indispensável para assegurar que a hipótese
explica o que pretende explicar - ou seja, para garantir que suas implicações, no que
concerne a tais fenômenos, não estejam de antemão contraditadas pela experiência
anterior11. Supondo que a hipótese é compatível com a evidência existente, os testes
ulteriores dessa hipótese envolverão deduzir, tomando-a como premissa, fatos novos,
passíveis de observação, mas não previamente conhecidos, e comparar tais fatos deduzidos
com evidência empírica adicional. Para que um tal teste se mostre relevante, os fatos
deduzidos devem dizer respeito à classe de fenômenos que a hipótese procura explanar; a
par disso, eles devem estar suficientemente bem definidos de modo a possibilitar que a
observação possa revelar-lhes a falsidade.
As duas fases (de elaboração de hipóteses e de teste de sua validade) relacionam-se
por duas vias diversas. Em primeiro lugar, os fatos particulares considerados em cada fase,
são, em parte, uma acidental conseqüência da maneira de coligir dados e dos
conhecimentos de cada investigador. Os fatos que servirão para submeter a teste a hipótese,
por meio de suas implicações, poderiam, perfeitamente, situar-se no material bruto

11
Nos últimos anos, alguns economistas, particularmente os do grupo ligado à "Cowles Commission for Research in
Economics", da Universidade de Chicago; enfatizaram a divisão desse passo (de seleção de hipótese compatível com a
evidência conhecida) em duas fases: em primeiro lugar, a seleção de um conjunto de hipóteses admissíveis, retiradas da
classe de todas as hipóteses possíveis (o que corresponde à escolha de um "modelo", de acordo com a terminologia
adotada); e, em segundo lugar, a escolha de uma hipótese, dentre as admissíveis (a escolha de uma "estrutura"). Essa
repartição pode ser heuristicamente valiosa em alguns tipos de trabalho, especialmente quando se trata de aperfeiçoar o uso
sistemático de teorias e de evidências estatísticas já existentes. De um ângulo metodológico, porém, temos uma divisão
inteiramente arbitrária do processo de seleção de uma específica hipótese, divisão que está em pé de igualdade com várias
outras divisões igualmente convenientes para este ou aquele propósito ou que satisfazem certas necessidades psicológicas dos
investigadores.
Uma conseqüência dessa particular divisão foi a de que deu origem ao chamado problema "da identificação". Como se
observou acima, se uma hipótese é compatível com a evidência existente, há um número infinito de hipóteses que
também se mostrarão compatíveis com a mesma evidência. Embora, contudo, isso valha para a classe de hipóteses, como
um todo, pode não valer para a subclasse obtida pela primeira das duas fases acima descritas – a da escolha do "modelo".
É possível que a evidência a empregar com o fito de selecionar a hipótese final (partindo da subclasse) seja compatível
com uma das hipóteses (da subclasse), caso em que o modelo está "identificado"; de outra forma, diz-se que o modelo
"não foi identificado". Depreende-se dessa maneira de descrever o conceito de "identificação" que estamos diante de um
caso especial do problema geral de escolha de hipóteses igualmente compatíveis com a evidência – um problema que será
resolvido por meio de algum princípio arbitrário como, digamos, o da navalha de Ocam. A consideração de duas fases, na
seleção de uma hipótese, faz com que esse problema geral se manifeste duplamente, em cada qual dessas fases, dando-lhe
uma configuração especial. Embora a classe de todas as hipóteses permaneça, invariavelmente, não identificada, a
subclasse do "modelo" talvez possa ser identificada, de modo que se apresenta a questão de conhecer as condições a que o
"modelo" deve satisfazer para ver-se identificado. Conquanto a consideração das duas fases seja muito útil, em alguns
contextos, ela gera o perigo de haver dois critérios diferentes, inadvertidamente empregados para realizar o mesmo tipo de
escolha de hipóteses, cada qual deles utilizado numa das fases em que se desdobra o passo genérico de seleção.
A respeito desse enfoque metodológico geral, discutido na presente nota, ver Tryvge Haavelmo, "The Probability
Approach in Econometrics", Econométrica, Vol, XII (1944), Suplemento; Jacob Marschak, "Economic Structure, Path,
Policy, and Predication", American Economk Review, XXXVII (Maio, 1947), 81-84, e "Statistical Inference in
Economics: An Introduction", em T.C. Koopmans (organizador), STATISTlCAL INFERENCE IN DYNAMIC
ECONOMIC MODELS.
9

empregado para formular a hipótese – e reciprocamente. Em segundo lugar, o processo


jamais tem início na estaca zero; a chamada “fase inicial” envolve, sempre, comparação da
observação com as implicações de um prévio conjunto de hipóteses. Contradições que aí se
apresentam são um estímulo para a elaboração de novas hipóteses ou para a revisão das
mais antigas. Segue-se que as duas fases, metodologicamente distintas, andam, em verdade,
lado a lado.
Mal-entendidos a propósito desse processo aparentemente simples devem-se à frase
“classe de fenômenos que a hipótese pretende explicar”. A dificuldade, nas ciências sociais,
de obter evidência nova para essa classe de fenômenos e de avaliar sua adequação (com
respeito às implicações da hipótese) torna tentadora a idéia de que outra evidência, de
acesso mais direto, se mostre igualmente relevante para a validade da hipótese. Toma, em
outras palavras, tentadora a idéia de que as hipóteses admitem não apenas “implicações”,
mas, ainda, “pressupostos” e de que a adequação destes à “realidade” é um teste de
validade da hipótese, que difere do teste pelas implicações ou a ele se adiciona. Essa
concepção, amplamente advogada, é fundamentalmente errônea e causa de numerosos
danos. Longe de fornecer meio mais fácil para joeirar as hipóteses, separando as válidas das
não-válidas, a concepção apenas obscurece a questão, provoca o surgimento de mal-
entendidos em torno do significado da evidência empírica para a teoria econômica, desvia
boa parte do esforço intelectual dos que desejam o desenvolvimento de uma Economia
positiva e bloqueia um consenso quanto às hipóteses preliminares que devam figurar nessa
disciplina.
Na medida em que se possa dizer existirem “pressupostos” de uma teoria e na
medida em que seu “realismo” seja passível de julgamento, independentemente da validade
de previsões, a relação entre a importância de uma teoria e o “realismo” de seus
“pressupostos” é praticamente o oposto do que sugere a concepção sob crítica. Hipóteses
verdadeiramente importantes têm “pressupostos” que não passam de extravagantes e não-
acuradas representações descritivas da realidade. Via de regra, quanto mais significativa
uma teoria, tanto mais não-realistas (neste sentido) os seus pressupostos12. A razão é
simples. Uma hipótese é importante quando “explica” muito com base em pouco, ou seja,
quando está em condições de delimitar, por abstração, partindo da massa de circunstâncias
complexas e pormenorizadas que cercam o fenômeno a explicar, uma classe de elementos
comuns e fundamentais, formulando previsões válidas cujo alicerce é, justamente, apenas
essa classe de elementos cruciais. Conseqüentemente, para que seja importante, uma
hipótese deve ser descritivamente falsa em seus pressupostos. Ignora e deixa de explanar
várias circunstâncias presentes, cuja irrelevância para o fenômeno em tela decorre do
próprio êxito da teoria.
A fim de apresentar esse ponto de maneira menos paradoxal, note-se que a pergunta
relevante a fazer, ao cogitar dos “pressupostos” de uma teoria, não diz respeito ao seu
“realismo” descritivo (já que os pressupostos jamais são descritivamente “realistas”), mas
ao fato de se mostrarem ou não aproximações suficientemente boas, tendo em conta os
objetivos colimados. E essa pergunta só poderá ser respondida verificando se a teoria

12
Não vale, é claro, a recíproca dessa proposição: pressupostos não-realistas (neste sentido) não garantem que a teoria
seja significativa.
10

“funciona”, ou seja, se conduz a previsões bastante acuradas. Os dois testes, supostamente


independentes, reduzem-se, portanto, a um teste único.
A teoria da competição monopolista e imperfeita é um exemplo do descaso com que
são tratadas essas proposições, na teoria econômica. O desenvolvimento desse tipo de
análise foi explicitamente estimulado – e a aceitação e a aprovação que recebeu também
são amplamente explicadas – pelo fato de acreditar-se que os pressupostos da “concorrência
perfeita” ou do “monopólio perfeito”, subjacentes, segundo se diz, à teoria econômica
neoclássica, nos oferecem uma falsa imagem da realidade. Essa crença assentava-se, por
sua vez, quase inteiramente, na inocuidade descritiva dos pressupostos, diretamente
percebida, em vez de assentar-se em qualquer reconhecida contradição em previsões
deduzidas da teoria econômica neoclássica. Exemplo ainda mais claro do ponto em tela,
embora muito menos importante, é fornecido pela prolixa discussão em torno da análise
marginal, publicada, há alguns anos, na American Economic Review. Os artigos, de
defensores ou de oponentes, olvidam o que me parece a clara questão principal – a
concordância das implicações da análise marginal com a experiência – e debatem pontos
irrelevantes, procurando saber se os homens de negócios chegam às suas decisões
consultando programas, ou curvas ou funções multivariadas que exibam custo marginal e
receita marginal13. Espero que esses dois exemplos (e outros que eles prontamente
sugerem) se prestem para justificar a idéia de fazer-se, aqui, uma discussão ampla dos
princípios metodológicos pertinentes – uma discussão que, de outra forma, poderia parecer
descabida.

III – PODE UMA HIPÓTESE SUBMETER-SE A TESTE PELO REALISMO DE SEUS


PRESSUPOSTOS?

Principiemos com um exemplo físico simples, o da lei da queda dos corpos. Aceita-
se a hipótese de acordo com a qual a aceleração g, de um corpo que cai no vácuo, é

13
Ver R. A. Lester, "Shortcomings of Marginal Analysis for Wage Employment Problems", American Economic
Review, XXXVI (Março, 1946), 62-82; Fritz Machlup, "Marginal Analysis and Empirical Research", American
Economic Review, XXXVI (Setembro, 1946), 519-54; R. A. Lester, "Marginalism, Minimum Wages, and Labor
Markets", American Economic Review, XXXVII (Março, 1947), 135-48; Fritz Machlup, "Rejoider to an
Antimarginalist", American Economic Review, XXXVII (Março, 1947), 148-54; G. J. Stigler, "Professor Lester and the
Marginalist", American Economic Review, XXXVII (Março, 1947), 154-57; H. M. Oliver, Jr., "Marginal Theory and
Business Behavior", American Economic Review, XXXVII (Junho, 1947), 375-83; R. A. Gordon, "Short-Period Price
Determination in Theory and Practice", American Economic Review, XXXVIII (Junho, 1948), 265-88.
Cabe notar que Lester, atém de referir-se a vários assuntos que se relacionam à validade dos "pressupostos", na teoria
marginal, também se refere à evidência que diz respeito à conformidade da experiência com as implicações da teoria.
Cita, aliás, como exemplos em que falta essa conformidade, o modo pelo qual o emprego reagiu, na Alemanha, ao plano
Papen e, nos Estados Unidos da América, às alterações havidas na legislação a respeito dos salários mínimos. Contudo,
o breve comentário de Stigler é o único, dentre os demais artigos, em que há alusão a tal evidência. Cumpre notar, ainda,
que não deve ser ignorada a completa e cuidadosa exposição de Machlup, relativa à estrutura lógica e ao significado da
teoria marginal, porque o artigo de Lester, ao debater o tema, está sensivelmente prejudicado por vários mal-entendidos
que quase chegam a ocultar a evidência ali apresentada, relevante para o assunto examinado. Entretanto, Machlup,
enfatizando a estrutura lógica, chega perigosamente perto do ponto de apresentar a teoria como se fosse mera tautologia
– embora esteja claro, em vários pontos, que ele tem consciência do perigo e está ansioso por evitá-lo. Os artigos de
Oliver e de Gordon são extremados, concentrando-se exclusivamente na questão da conformidade do comportamento
de homens de negócios com os "pressupostos" da teoria.
11

constante, na Terra, com valor aproximado de trinta e dois pés por segundo (ou seja, 9,8
metros por segundo), e independe da forma do corpo, da maneira pela qual tomba, etc. Isso
acarreta que a distância percorrida por um corpo, em queda livre, em qualquer intervalo
especificado de tempo, será dada pela fórmula s = (1/2) gt², onde s é a distância percorrida
(em pés ou em metros) e t é o tempo (em segundos). Aplicar a fórmula ao caso de uma
esfera compacta, deixada cair do telhado de um edifício, equivale a dizer que a esfera se
comporta como se estivesse caindo no vácuo. Submeter a teste a hipótese por meio de
pressupostos significaria, presumivelmente, medir a pressão real do ar para decidir se seu
valor está ou não próximo de zero. Ao nível do mar, a pressão do ar é de aproximadamente
15 libras por centímetro quadrado (ou seja, de 6,75 kgf por cm²). Estaria esse número
suficientemente próximo de zero para que a diferença fosse julgada destituída de
importância? Aparentemente sim, pois o tempo real que a esfera sólida leva para atingir o
solo está bem próximo do tempo indicado pela fórmula. Imagine-se, porém, que em vez da
esfera compacta se lance, do alto do edifício, uma pena. A fórmula conduz, então, a
resultados exageradamente inacurados. Assim, aquele número (15, no caso de libras, ou
6,75, no caso dos kgf) é significativamente diferente de zero para a pena, mas não para a
esfera compacta. Suponha-se que a fórmula se veja aplicada a uma esfera deixada cair de
um avião, a trinta mil pés (ou seja, a quase dez mil metros) de altitude. A pressão do ar,
nessa altura, é decididamente menor do que 6,75 kgf por centímetro quadrado. Sem
embargo, o tempo real de queda, de dez para sete mil metros de altitude (quando a pressão
do ar ainda é muito menor do que a pressão ao nível do mar), difere consideravelmente do
tempo dado pela fórmula - muito mais apreciavelmente do que o tempo gasto pela esfera
em sua queda do alto do edifício para o solo. De acordo com a fórmula, a velocidade da
esfera deveria ser gt e deveria, pois, crescer continuadamente. Na verdade, porém, uma
esfera deixada cair de dez mil metros de altura atinge a sua velocidade máxima bem antes
de chegar ao solo. O mesmo acontece com respeito a outras conseqüências da fórmula.
A questão inicial – a de saber se quinze está ou não suficientemente próximo de
zero para que a diferença possa ver-se desprezada – é, portanto, uma questão meio tola.
Quinze libras por centímetro quadrado equiparam-se a 2.160 libras por pé quadrado ou a
0.0075 toneladas por polegada quadrada. Não dispomos de meios que autorizem considerar
tais números “pequenos” ou “grandes”, se nos falta um padrão exterior de comparação. E o
único padrão relevante de comparação é a pressão do ar, relativamente à qual a fórmula
“funciona” ou não, em um dado conjunto de circunstâncias. Isso, porém, levanta a mesma
questão, em um segundo nível. Que significaria “funciona ou não”? Ainda que pudéssemos
eliminar os erros de mensuração, o tempo de queda, efetivamente medido, dificilmente (ou
nunca) se igualaria ao tempo fornecido pela fórmula. Quão grande deveria ser a diferença
entre esses dois valores para ver-se justificada a afirmação de que “a teoria não funciona”?
Para responder a esta pergunta há dois importantes padrões exteriores de comparação. Um
deles seria a acuidade passível de ser alcançada por uma teoria alternativa, igualmente
aceitável, com a qual a teoria em pauta fosse confrontada. O outro padrão manifesta-se
quando existe uma teoria que sabidamente conduz a previsões mais satisfatórias, mas com
maior custo. Os ganhos decorrentes da maior acuidade (e que dependem dos objetivos
perseguidos) precisam, nesse caso, ver-se comparados com os mais elevados custos de sua
obtenção.
12

O exemplo ilustra, a um tempo, a impossibilidade de submeter a teste uma teoria


pelos seus pressupostos e a ambigüidade do conceito de “pressupostos de uma teoria”. A
fórmula s = (1/2) gt² vale para corpos que caem no vácuo e se deriva da análise do
comportamento de corpos que caem no vácuo. Cabe dizer, então, que, em variada gama de
circunstâncias, os corpos que tombam na atmosfera real se comportam como se estivessem
caindo no vácuo. Em linguagem muito usada na Economia, isso traduzir-se-ia, de imediato
em: a fórmula pressupõe o vácuo. Mas é claro que assim não acontece. O que ela
verdadeiramente assevera é isto: em muitos casos, a existência da pressão atmosférica, a
forma do corpo, o nome da pessoa que o deixa cair, o tipo de mecanismo pelo qual se
provoca a sua queda e variadas outras circunstâncias presentes deixam de ter efeito
apreciável sobre a distância que o corpo, em sua queda, percorre durante um especificado
intervalo de tempo. A hipótese pode ser facilmente refraseada, de maneira a omitir qualquer
alusão ao vácuo: em ampla gama de condições, a distância percorrida por um corpo, em
queda livre, num especificado intervalo de tempo, é dado pela fórmula s = (1/2) gt².
Deixando de lado a história dessa fórmula e a teoria física à qual se acha associada, tem
sentido afirmar que ela pressupõe o vácuo? Até onde me é dado saber, há vários outros
conjuntos de circunstâncias que poderiam conduzir à mesma fórmula. Ela é acolhida
porque funciona e não porque vivamos em um vácuo aproximado – seja qual for o
significado disso.
O problema importante, em conexão com a hipótese, é o de especificar as
circunstâncias em que a fórmula funciona; mais precisamente, é o de indicar a magnitude
geral dos erros que se apresentam em suas previsões, sob variadas condições. Em verdade –
como está implícito no refraseamento da hipótese, linhas acima – não se tem essa indicação
da magnitude dos erros, de um lado, e a própria hipótese, de outro lado, como coisas
diversas. A indicação é parte essencial da hipótese, uma parte que tenderá a sofrer revisões
e a ampliar-se, na medida em que a experiência vier a acumular-se.
No caso específico da queda dos corpos, há uma teoria mais geral, embora ainda
incompleta, esboçada em função de tentativas de explicar os erros da teoria simples. Essa
teoria geral permite avaliar a influência de alguns fatores de perturbação e dela se deduz,
como caso particular, a teoria simplificada. Entretanto, não convém usar sempre a teoria
generalizada, pois a acuidade adicional que permite não justifica, via de regra, o custo
adicional de seu emprego. Permanece, pois, como questão importante, a de saber em que
condições a teoria simples funciona “suficientemente bem”. A pressão do ar é uma – e
somente uma – das variáveis que definem tais condições; ao lado de outras, são, também,
relevantes a forma do corpo e a velocidade atingida. Uma das maneiras de interpretar essas
variáveis – diversas da pressão do ar – consiste em encará-las como fatores que determinam
se é significativo ou não um particular afastamento com respeito ao “pressuposto” do
vácuo. Exemplificando, pode-se dizer que a diferença de formas dos corpos torna as quinze
libras por polegada quadrada significativamente distantes de zero, no caso da pena, mas não
significativamente distantes de zero, no caso da esfera compacta, deixada cair de moderada
altura. Esse enunciado, porém, deve ser nitidamente distinguido de outro, muito diverso,
segundo o qual a teoria não vige, no caso da pena, porque seus pressupostos são falsos. A
relação relevante é exatamente a oposta: os pressupostos são falsos, no caso da pena,
porque a teoria não funciona. Este ponto deve ser enfatizado pois os “pressupostos” são
usados, de maneira perfeitamente correta, a fim de especificar as circunstâncias em que a
13

teoria não vige, mas não, como erroneamente se admite, com freqüência, a fim de
determinar aquelas circunstâncias – o que tem sido, importante fonte de crença em que uma
teoria possa ver-se submetida a testes pelos seus pressupostos.
Consideremos, agora, outro exemplo, concebido com o fito de apresentar-se como
análogo de muitas hipóteses que surgem em ciências sociais. Cogitemos da densidade das
folhas em uma árvore. Sugiro, como hipótese, que as folhas se posicionam como se cada
qual delas procurasse, deliberadamente, maximizar a quantidade de luz solar que recebe,
tendo em conta o posicionamento de folhas vizinhas; como se cada qual delas conhecesse
as leis físicas responsáveis pela quantidade de luz incidente em vários pontos e pudesse
mover-se rápida ou instantaneamente de um ponto dado para qualquer outro ponto não
ocupado14. Ora, algumas das mais óbvias implicações dessa hipótese mostram-se
perfeitamente compatíveis com a experiência. Exemplificativamente (considerando, é claro,
o que ocorre nos Estados Unidos da América), a densidade das folhas é maior no lado sul
do que no lado norte das árvores, embora isso não ocorra ou ocorra de modo menos patente,
como a hipótese implica, em encostas de montes, voltadas para o norte, ou quando o lado
sul das árvores, por alguma razão, esteja na sombra. Deve a hipótese tornar-se inaceitável
porque, até onde sabemos, as folhas não “deliberam” nem exibem comportamento
consciente, não freqüentaram escolas para aprender as relevantes leis científicas ou as
técnicas matemáticas necessárias para a determinação de posições “ótimas” e não são
capazes de mover-se de um ponto para outro? Nenhuma dessas formas de contraditar a
hipótese é vitalmente relevante; os fenômenos envolvidos não se acham na “classe de
fenômenos que a hipótese pretende explanar”. A hipótese não afirma que as folhas façam
tudo aquilo que foi mencionado acima; limita-se a asseverar que a densidade se apresenta
como se as folhas fizessem o que foi dito. Em que pese a aparente falsidade dos seus
“pressupostos”, a hipótese é muito plausível, dado o acordo entre suas implicações e o
observado. Tendemos a “explicar” a sua validade com base em que a luz solar contribui
para o desenvolvimento das folhas e que, por conseguinte, elas se acumulam ou se mantêm,
em maior número, nos locais em que há mais sol. Assim, o resultado decorrente de
adaptação puramente passiva às circunstâncias exteriores coincide com o resultado que
decorreria de acomodação deliberada a tais circunstâncias. A hipótese alternativa é mais
atraente do que a concebida, mas não porque seus “pressupostos” sejam “realistas” e sim
porque ela é parte de uma teoria de maior generalidade, aplicável a uma variedade maior de
fenômenos, de que o posicionamento de folhas, numa árvore, é apenas um caso particular,
teoria que admite maior número de implicações passíveis de se verem refutadas e que não
foi contraditada, em ampla gama de condições. A evidência direta para o crescimento das
folhas está, pois, reforçada pela evidência indireta que deflui de outros fenômenos a que
essa teoria geral se aplica.
A hipótese concebida só é presumivelmente válida (ou seja: conduz a previsões
“suficientemente” acuradas, relativas à densidade das folhas) para uma classe restrita de
circunstâncias. Não sei quais seriam estas circunstâncias e nem como defini-las. Parece

14
Embora este exemplo tenha origem independente, é similar a um exemplo usado por Armen A. Alchian, em
"Uncertainty, Evolution, and Economic Theory", Journal of Political Economy, LVIII (Junho, 1950), pp.211-21.
Boa porção da discussão subseqüente, embora também tenha origem independente, acompanha as linhas da
discussão de Alchian.
14

óbvio, entretanto, que os “pressupostos” da teoria, neste exemplo, não têm qualquer papel
na sua determinação. O tipo da árvore, as características do solo, etc., são as variáveis que,
provavelmente, definirão o âmbito de validade da teoria – validade que não dependerá da
capacidade matemática das folhas, nem da possibilidade de elas se moverem de um para
outro ponto.
Savage e eu discutimos, em outro local15, um exemplo similar, porém relativo ao
comportamento humano. Consideremos o problema de determinar (prever) os pontos feitos
por um exímio jogador de bilhar. Não parece descabido supor que excelentes previsões
seriam obtidas a partir da hipótese de que o jogador executa as tacadas como se conhecesse
as complicadas fórmulas matemáticas pelas quais ficariam fixadas as trajetórias ótimas,
fosse capaz, de relance, de fazer estimativas acuradas sobre os ângulos e demais elementos
que descrevem as posições relativas das bolas, estivesse apto, usando as fórmulas, a realizar
cálculos em frações de segundos; e como se pudesse fazer com que as bolas se movessem
ao longo das trajetórias indicadas pelas fórmulas. A confiança que depositamos em tal
hipótese não provém da crença em que jogadores de bilhar, ainda que exímios, possam
atravessar ou atravessem, de fato, as fases do processo descrito; provém, ao contrário, da
crença em que as pessoas, se não atingissem, de alguma forma, os mesmos resultados
práticos, deixariam de ser exímios jogadores de bilhar.
Um pequeno passo nos leva do afirmado nos exemplos ao que se afirma na hipótese
da Economia segundo a qual, em ampla gama de circunstâncias, as firmas (individualmente
consideradas), atuam como se estivessem tratando, racionalmente, de maximizar seus
esperados rendimentos (ou “lucros”, segundo a terminologia usual, um tanto
desnorteadora)16 e tivessem cabal conhecimento dos dados indispensáveis para alcançar
êxito nessa empreitada; como se – dito de outro modo – conhecessem as relevantes funções
de demanda e de custo, calculassem custos marginais e rendimentos marginais associados a
todas as opções possíveis, relativas às ações a tomar, e considerassem cada qual dessas
linhas de ação, prolongando-as até fazer com que os custos marginais se identificassem aos
rendimentos marginais. Ora, é claro que os homens de negócios não resolvem, na realidade,
literalmente falando o sistema de equações em que o economista-matemático condensa
aquela hipótese – exatamente como as folhas e os jogadores de bilhar também não
executam complicados cálculos matemáticos; ou os corpos em queda não decidem criar o
15
Milton Friedman e L. J. Savage, "The Utility Analysis of Choices Involving Risk", Journal of Political Economy,
LVI (Agosto, 1948), p.298. Reimpresso no livro READINGS IN PRICE THEORY, organizado pela American
Economic Association (Chicago, Richard D. Irwin, Inc., 1952), pp.57-96.
16
Parece apropriado o uso do termo "lucros" para aludir à diferença entre resultados reais e "esperados", entre
recebimentos ex-post e ex-ante. Como sublinha Alchian (op. cit., p.212), acompanhando Tintner, os "lucros"
são frutos de incerteza e não podem, portanto, ver-se, de modo deliberado, antecipadamente maximizados. Face à
incerteza, os indivíduos e as firmas escolhem uma dentre várias antecipadas distribuições de probabilidade, relativas
aos recebimentos ou rendas. O conteúdo específico de uma teoria da escolha de uma de tais distribuições depende
de critérios que permitam hierarquizá-las. Uma hipótese é a de que devam ser hierarquizadas segundo a expectativa
matemática da utilidade que a elas se associa (cf. Friedman e Savage, "The Expected-Utility Hypothesis and the
Measurability of Utility", op. cit.). Caso especial dessa hipótese, ou alternativa para ela, hierarquiza as
distribuições de probabilidades segundo a expectativa matemática das rendas em dinheiro associadas a elas. Esta
última alternativa é, possivelmente, mais fácil de aplicar (e mais freqüentemente aplicada) ao caso de firmas do que
ao caso de indivíduos. O termo "rendas esperadas" será entendido de modo suficientemente amplo para poder
abranger qualquer dessas opções.
Os temas a que se faz referência na presente nota não são fundamentais, cogitando-se das questões metodológicas em
tela, de modo que se vêm contornados, em geral, nas discussões subseqüentes.
15

vácuo. Se perguntarmos ao jogador de bilhar como escolhe o ponto da bola em que dá a


tacada, ele poderá responder que “simplesmente dá uma calculada”, embora não deixe de
apertar um pé de coelho, para ter sorte. O homem de negócios poderá dizer, por sua vez,
que fixa preços em termos de custos médios, permitindo, é claro, alguns desvios, quando o
mercado o exige. A resposta do jogador é tão “esclarecedora” quanto a do homem de
negócios e nenhuma das afirmações se constitui em teste relevante para a hipótese
correlata.
A confiança que possamos ter na hipótese da maximização dos rendimentos
justifica-se por evidência de gênero bem diverso. Essa evidência é, pelo menos, em parte,
semelhante à que se utiliza para apoiar a hipótese do jogador de bilhar: se o comportamento
dos homens de negócios não se assemelhasse, de algum modo, a um comportamento
compatível com a maximização dos rendimentos, parece improvável que esses homens
viessem a ficar por tempo longo no ramo dos negócios. Suponhamos haver um
determinante imediato aparente para o comportamento negociador – o hábito, o acaso ou
qualquer outro fator. Sempre que esse determinante conduz a um comportamento
compatível com a maximização bem informada e racional dos rendimentos, os negócios
prosperam e propiciam recursos para haver expansão; caso contrário, os negócios tendem a
produzir perda de recursos e só poderão manter-se com auxílio de reservas provenientes de
fora. O processo de “seleção natural” ajuda-nos, pois, a validar a hipótese; em outras
palavras, admitida a seleção natural, a aceitação da hipótese pode assentar-se, largamente,
na idéia de que ela sumaria, apropriadamente, as condições de sobrevivência.
Evidência de maior importância, em favor da hipótese da maximização dos
rendimentos, provém da experiência colhida em numerosas aplicações da hipótese a
problemas específicos – e a reiterada verificação de que suas implicações deixaram de se
ver contraditadas. Dificilmente se documentará uma tal evidência, que se acha espalhada
em numerosos memorandos, artigos e monografias cuja preocupação principal não era a de
submeter aquela hipótese a teste mas a de resolver específicos problemas concretos. Ainda
assim, a hipótese tem, a sustentá-la, um testemunho indireto e muito forte: o seu continuado
emprego e a constante acolhida que mereceu, por muitos anos – a que se associa a
inexistência de qualquer teoria rival coerente, não auto-contraditória, capaz de ver-se
desenvolvida e também amplamente aceita. A evidência em favor de uma hipótese resulta,
sempre, de falhas nas tentativas feitas no sentido de contraditá-la; essa evidência acumula-
se enquanto a hipótese é utilizada e, por sua própria natureza, não pode ser facilmente
documentada de maneira abrangente. Tende, pois, a tornar-se parte da tradição e do folclore
de uma ciência, revelada através da tenacidade com que as hipóteses são defendidas e não
través de listas explícitas de casos em que deixaram de ver-se contraditadas.

IV – SIGNIFICADO E PAPEL DOS “PRESSUPOSTOS” DE UMA TEORIA

Até aqui, nossas conclusões relativas ao significado dos “pressupostos” de uma


teoria foram quase todos negativos: vimos que uma teoria não pode ser submetida a teste
pelo “realismo” de seus “pressupostos” e que o próprio conceito de “pressuposto” de uma
teoria está cercado de ambigüidades. Se isso resumisse tudo, seria difícil explicar o amplo
uso desse conceito e a tendência que todos temos de falar dos pressupostos de uma teoria, e
16

de compará-los com os pressupostos de teorias alternativas. Há muita fumaça presente para


que inexista o fogo.
Na metodologia, tal como na ciência positiva, os enunciados negativos são
formulados, em geral, com maior confiança do que os enunciados afirmativos. Explica-se,
pois, porque tenho menos confiança em minhas próximas observações, relativas ao
significado e ao papel dos “pressupostos”, do que nas observações precedentes. Até onde
me é dado ver, os “pressupostos de uma teoria” desempenham três papéis positivos
diversos, embora relacionados: a) são, freqüentemente, modo econômico de descrever ou
de apresentar uma teoria; b) facilitam, algumas vezes, o teste indireto da hipótese e de suas
implicações; e c) são, algumas vezes, como se notou acima, um meio conveniente de
especificar as condições sob as quais se espera seja válida a teoria. Os dois primeiros itens
requerem discussão mais pormenorizada.

A. Uso de “Pressupostos” na Formulação de uma Teoria

O exemplo das folhas ilustra o primeiro papel dos pressupostos. Em vez de dizer
que as folhas tendem a maximizar a luz solar recebida, poderíamos formular uma hipótese
equivalente, destituída de pressupostos aparentes, sob a forma de uma lista de regras que
permitissem predizer a densidade das folhas: se uma árvore está em um plano, sem que
outras árvores ou outros objetos impeçam a chegada dos raios solares, então a densidade
das folhas tenderá a ter tais e quais peculiaridades; se uma árvore se acha na encosta de um
morro, cercada por diversas outras árvores similares, então...; e assim por diante. Esta é,
claramente, uma forma bem menos econômica de apresentação da hipótese do que o
enunciado simples segundo o qual as folhas tendem a maximizar os raios solares que cada
qual delas recebe. Este último enunciado é, na verdade, simples sumário das regras que
compõem a lista acima – mesmo que esta fosse indefinidamente prolongada – pois indica,
ao mesmo tempo, como determinar as características ambientais importantes para o
particular problema em tela e como avaliar seus efeitos. O enunciado é mais compacto e,
ainda, não menos abrangente do que a lista.
Do modo mais geral, uma hipótese, ou teoria, consiste de uma asserção de que
certas forças se mostram importantes – e, por implicação, de que certas forças não são
importantes – para uma particular classe de fenômenos e de uma especificação de como
atuam as forças declaradas importantes. Podemos encarar a hipótese como algo que
envolve dois elementos: o primeiro é um mundo conceptual, ou um modelo abstrato, mais
simples do que “o mundo real”, contendo apenas aquelas forças que a hipótese dá como
importantes; o segundo é um conjunto de regras que definem a classe de fenômenos
relativamente aos quais o “modelo” se torna adequada representação do “mundo real”, e
que, a par disso, especificam a correspondência entre variáveis ou entidades do modelo e
fatos observáveis.
Esses dois elementos têm características bem diversas. O modelo é abstrato e
completo; é uma “álgebra”, ou uma “lógica”. A matemática e a lógica formal aí
desempenham seus apropriados papéis e se prestam para verificar a completude e a
coerência do modelo e para explorar as suas conseqüências. No modelo não há espaço nem
papel a dar à vagüidade, aos “talvez” ou às aproximações. A pressão do ar no vácuo é igual
17

a zero, não “pequena”; a curva de demanda de um produto, relativamente a um produto


competitivo, é horizontal (tem declividade zero) e não “quase horizontal”.
As regras que governam o uso do modelo, de outra parte, nunca são abstratas e
completas. Precisam ser concretas e, conseqüentemente, incompletas – pois a completude
só é viável em um mundo conceptual, não no “mundo real”, seja qual for a maneira de
entendê-lo. O modelo é a corporificação lógica da meia-verdade “Nada há de novo sob o
sol”; as regras de aplicação do modelo não podem, por sua vez, ignorar a igualdade
significativa meia-verdade “A História jamais se repete”. Em apreciável margem, as regras
podem ser explicitamente formuladas – mais facilmente, mas, ainda assim, não de maneira
completa, quando a teoria é parte de outra teoria de maior generalidade (como acontece no
exemplo da queda dos corpos no vácuo). Tentando tornar “objetiva” uma ciência, nosso
alvo deve ser o de formular as regras explicitamente, na medida do possível, alargando,
continuadamente, o âmbito dos fenômenos para os quais essa possibilidade se apresente.
Seja qual for, porém, o êxito dessa tentativa, sempre sobra algum espaço para o bom senso,
no momento de aplicação das regras. Cada ocorrência tem traços típicos próprios, não
abrangidos pelas regras explicitadas. A capacidade de sopesar esses traços para saber se
devem ser desprezados ou não e saber se afetam ou não a forma de associar fenômenos
observáveis a certas entidades do modelo, é algo que não se ensina – algo que só se aprende
pela experiência e mediante contato com a “correta” atmosfera científica, mas nunca
adotando procedimentos rotineiros. Neste ponto é que o “amador” se separa do
“profissional”, em qualquer ciência; e por ele passa a linha divisória, muito fina, que separa
o “vigarista” do cientista.
Um exemplo simples servirá, talvez, para esclarecer a questão. A Geometria
Euclidiana é um modelo abstrato, logicamente completo e coerente. Suas entidades são
definidas de maneira precisa: uma reta não é uma figura cujo comprimento é “muito” maior
do que a largura ou a espessura; é uma figura geométrica de extensão zero e largura zero.
Uma figura que também é, obviamente, “não-realista”. Não há, na “realidade”, coisas como
os pontos, as retas ou as superfícies de Euclides. Apliquemos esse modelo abstrato a um
sinal deixado, no quadro negro, pelo giz. O sinal identifica-se a uma curva euclidiana, a
uma superfície euclidiana ou a um sólido euclidiano? Será apropriadamente equiparado a
uma linha se o empregamos para representar, digamos, uma curva de demanda. Mas poderá
ser assim entendido se o empregarmos para colorir um mapa, ao delimitar países, porque
jamais chegaríamos a cobrir de cores as regiões se o sinal fosse visto como curva. Para esse
fim, é preciso equiparar o sinal a uma superfície. Essa maneira de encará-lo, todavia, está
afastada das cogitações do fabricante de giz; de fato, isso acarretaria que o giz não chegaria
a ser usado porque, para esse novo fim, o sinal deve ser identificado a um volume. Neste
exemplo simples, os juízos emitidos despertam acordo generalizado. Entretanto, é claro que
tais juízos – em que pese a viável formulação de considerações ímpias que os norteiam –
nunca chegam a atingir cabal abrangência para dar conta de cada caso possível. Está-lhes
vedado o caráter de coerência e auto-suficiência que é típico da Geometria Euclidiana.
Discorrendo a respeito dos “pressupostos cruciais” de uma teoria, procura-nos,
segundo penso, enunciar os elementos-chave do modelo abstrato. Há, via de regra, muitos
modos diversos de descrever completamente o modelo – vários conjuntos de “postulados”
que tanto implicam quanto são implicados pelo modelo, contemplado como um todo. Os
modos são logicamente equivalentes: elementos que vemos como axiomas ou postulados de
18

um modelo, em uma perspectiva, podem surgir como teoremas, em outra perspectiva – e


reciprocamente. Os específicos “pressupostos” chamados “cruciais” são selecionados com
base em conveniências, tendo em conta questões como a da simplicidade ou da economia,
na descrição do modelo, da plausibilidade intuitiva e da capacidade de sugerir mesmo que
tão-somente por implicação) algumas considerações que se mostrem relevantes para julgar
ou aplicar o modelo.

B. O Uso de “Pressupostos” como Teste Indireto de uma Teoria

Quando se formula uma hipótese, parece óbvia, em geral, a tarefa de separar, nessa
formulação, os enunciados que correspondem aos pressupostos dos enunciados que aludem
às implicações. Entretanto, não é fácil distinguir, de modo rigoroso, esses dois tipos de
enunciados, pois a distinção, segundo penso, não é um traço da hipótese, como tal, mas da
maneira de empregá-la. Se assim acontece, a facilidade de classificação dos enunciados
deve refletir ausência de ambigüidade no alvo que a hipótese deve atingir. A possibilidade
de haver troca de axiomas por teoremas – e vice-versa – num modelo abstrato, acarreta a
possibilidade de troca de “pressupostos” por “implicações” – e vice-versa – em hipóteses
substantivas associadas ao modelo. Não significa isso que qualquer implicação possa ver-se
intercambiada com qualquer pressuposto; significa, apenas, que pode haver mais de um
conjunto de enunciados de que os demais decorram.
Exemplificando, considere-se uma proposição particular, na teoria do
comportamento oligopolista. Se admitirmos que (a) os empresários procuram maximizar
seus rendimentos por quaisquer vias, inclusive por meio de aquisição ou de ampliação do
poder monopolista, isso acarretará que (b) os empresários, quando a demanda por um
“produto” é geograficamente instável, os custos de transporte são apreciáveis, os acordos
quanto a preços são ilegais e o número de produtores do referido artigo é relativamente
pequeno, tenderão a fixar sistemas de preços de ponto-de-referência17. A afirmação (a) é
vista como pressuposto e (b) como implicação, pois, aceitamos que a análise tem por
objetivo a previsão do comportamento do mercado. O pressuposto será considerado
aceitável se concluirmos que as condições especificadas em (b) se associam, em geral, ao
apreçamento de ponto-de-referência e reciprocamente. Alteremos o objetivo; ele é o de
identificar aqueles casos em que vale a pena instaurar um processo judicial assentado na lei
antitruste, de Sherman, pela qual se proíbe “ajuste fraudulento para atentado ao livre
comércio”. Se admitirmos, então, que (c) o apreçamento de ponto-de-referência é artifício
deliberado, com o propósito de facilitar a colusão, nas condições indicadas em (b), isso
acarretará que (d) os empresários que participam de uma tática de apreçamento de ponto-
de-referência estarão ligados a um “ajuste fraudulento para atentado ao livre comércio”. O
que era um pressuposto, na versão anterior, passa a ser uma implicação, nesta segunda
versão – e reciprocamente. O pressuposto (c) será dado como válido se concluirmos que,
tendo os empresários adotado um sistema de apreçamento do ponto-de-referência, existe,
comumente, evidência adicional – sob a forma de cartas, memorandos, ou coisa análoga –

17 Ver George J. Stigler, “A Theory of Delivered Price Systems”, American Economic Review, XXXIX
(Dezembro, 1949), 1143-57.
19

de que estamos diante do que as cortes de justiça encarariam como “ajuste fraudulento para
atentado ao livre comércio”.
Imaginemos que a hipótese funciona, tendo em vista o primeiro objetivo, ou seja, o
da previsão do comportamento do mercado. Não deflui daí, claramente, que ela funciona
quando se tem em vista o segundo objetivo, ou seja, o de prever se existe ou deixa de existir
evidência da presença de um “ajuste fraudulento para atentado ao livre comércio” a
justificar uma ação judicial. Reciprocamente, se a hipótese funciona com respeito ao
segundo objetivo, não deflui, daí que há de funcionar com respeito ao primeiro. Todavia,
faltando evidência adicional, o êxito da hipótese em um caso – explicando uma classe de
fenômenos – torna maior a confiança que nela depositamos ao cogitar de outro caso –
explicando outra classe de fenômenos. É difícil, todavia, dosar esse aumento de confiança,
pois ele depende de quão intimamente julguemos estarem relacionadas as duas classes de
fenômenos o que, por sua vez, depende, em intricada maneira, de tipos análogos de
evidência indireta – ou seja, de experiência que possamos ter, em outras áreas, de como
uma dada teoria está em condições de explicar fenômenos que, em certo sentido, se
mostram “similarmente diversos”.
Apresentando o mesmo ponto em perspectiva mais geral, o que denominamos
pressupostos de uma hipótese presta-se para dar-nos alguma evidência indireta relativa à
aceitabilidade da hipótese, na medida em que os pressupostos possam ver-se, eles mesmos,
considerados como implicações da hipótese (de modo que seu acordo com a realidade seja
uma forma de não contraditar algumas implicações) ou na medida em que os pressupostos
lembrem outras implicações da mesma hipótese, susceptíveis de observação causal
empírica18. A razão que torna indireta essa evidência é a seguinte: os pressupostos ou as
implicações correspondentes referem-se, via de regra, a uma classe de fenômenos que
difere da classe que a hipótese pretende explanar; em verdade, como se deixou indicado
acima, aí está o principal critério de que lançamos mão ao decidir quais os enunciados que
consideraremos “pressupostos” e quais os que consideraremos “implicações”. O peso
associado a essa evidência indireta depende de quão intimamente julguemos estarem
relacionadas as duas classes de fenômenos.
Outro modo pelo qual os “pressupostos” facilitam o teste indireto de uma dada
hipótese resulta do fato deles trazerem à tona a similaridade que ela possa manter com
outras hipóteses, tornando, assim, relevante para a validade da hipótese em tela a evidencia
que corrobora as demais. Exemplificativamente, suponhamos ter uma hipótese relativa a
uma particular classe de comportamentos. Ela pode ser formulada, como de hábito, sem
fazer alusões a “pressupostos”. Imaginemos poder mostrar que ela, a par disso, equivale a
um conjunto de outros pressupostos, no qual se inclua a idéia de que os homens agem em
defesa de seus próprios interesses. A hipótese ganha, assim, plausibilidade indireta, em
virtude do êxito (em outras classes de fenômenos) de novas hipóteses em que aquela idéia
esteja presente. Na pior das situações, o procedimento aqui adotado não é totalmente
destituído de precedentes ou destituído de êxito, relativamente a todas as demais formas de
uso das hipóteses. Com efeito, enunciar os pressupostos de modo a explicar uma relação

18
Ver Friedman e Savage, "The Expected-Utility Hypothesis and the Measurability of Utility" op. cit., pp.466-67,
em que se acha outro exemplo especial desse tipo de teste.
20

entre hipóteses superficialmente diversas é dar um passo no sentido da formulação de


hipóteses de maior generalidade.
Esse gênero de evidência indireta, relativa a hipóteses correlatas, explica, em boa
medida, os variados graus de confiança que pessoas de formações diferentes associam a
uma particular hipótese. Consideremos, por exemplo, a hipótese de que a amplitude de
discriminação racial ou religiosa, na oferta de empregos, numa específica área ou numa
específica indústria, associa-se intimamente ao grau de monopólio, na área ou na indústria
em pauta; de que, sendo a indústria competitiva, a discriminação somente será significativa
se a raça ou a religião dos empregados afetar a disposição de outros empregadores
(dispostos a aceitar esses empregados) ou a aceitabilidade do produto (junto a
consumidores), mostrando-se, porém, não-correlacionada aos preconceitos dos próprios
empregadores19. Essa hipótese tende a ser muito mais aceitável para os economistas do que
para os sociólogos. Cabe dizer que ela “presume”, entre empregadores, nas indústrias
competitivas, o simples desejo dos benefícios pecuniários; esse “pressuposto” atua de
maneira adequada em uma ampla gama de hipóteses econômicas que dizem respeito a
vários fenômenos de massa de que trata a Economia. Há de parecer razoável, aos
economistas, que também aqui o pressuposto possa atuar adequadamente. De outro lado, as
hipóteses a que o sociólogo se habituou possuem um tipo muito diferente de modelo, ou de
mundo-ideal, em que o simples desejo de benefícios pecuniários desempenha papel bem
menos importante. A evidência indireta acessível ao sociólogo, no que concerne à essa
hipótese, é muito menos favorável para ela do que a evidência indireta acessível ao
economista. O sociólogo, por conseguinte, contempla a hipótese com maior suspeição.
É certo que a evidência do economista e a do sociólogo não se mostram
concludentes. O teste decisivo é o da atuação da hipótese junto aos fenômenos que ela
pretende explanar. É possível, entretanto, que, antes da realização de qualquer teste
satisfatório desse gênero (uma realização que talvez não possa ocorrer em futuro próximo),
alguma avaliação da hipótese venha a tornar-se indispensável. Em tal caso, a avaliação terá
de assentar-se na evidência inadequada já recolhida. A par disso, mesmo quando aquele
teste pode ser realizado, o “background” dos cientistas não é irrelevante para as conclusões
que eles obtém. Em ciência nunca existe certeza e o peso da evidência, pró ou contra uma
hipótese, jamais se avalia de maneira totalmente “objetiva”. O economista será mais
tolerante do que o sociólogo, ao julgar o acordo das implicações da hipótese com a
experiência, e tenderá, pois, a acolher a hipótese, ainda que provisoriamente, com base em
menor número de casos de “conformidade”.

V – ALGUMAS IMPLICAÇÕES DE INTERESSE PARA AS QUESTÕES


ECONÔMICAS

As questões metodológicas abstratas que discutem têm reflexos diretos sobre a


perene crítica dirigida contra a teoria econômica “ortodoxa”, tida como “não-realista” e
sobre as tentativas de reformulação dessa teoria, feitas com o objetivo de contornar aquela

19
Tratamento rigoroso dessa hipótese precisaria, é claro, especificar como entender "amplitude da discriminação
racial ou religiosa" e "grau de monopólio". Para os presentes objetivos, porém, é suficiente a formulação mais ou
menos vaga, encontrada no texto.
21

crítica. A Economia é uma ciência “desoladora” porque admite ser o homem egoísta e
ávido por dinheiro, um “inflamado calculador de prazeres e de dores que flutua, como se
fora homogêneo glóbulo desejoso de felicidade, sob o impulso de estímulos que o
empurram de um lado para outro mas o deixam intacto”.20 A Economia assenta-se em
Psicologia ultrapassada e precisa ver-se reconstruída, pondo-se em consonância com as
novas descobertas psicológicas. Admite que o homem ou, pelo menos, o homem de
negócios, está “em constante estado de 'alerta', preparado para alterar preços ou regras de
preço sempre que sua intuição... identifica variação das condições de oferta e de procura”;21
admite que os mercados são perfeitos, a competição é pura e as mercadorias, o trabalho e o
capital são homogêneos.
Como já vimos, as críticas desse tipo são mais ou menos inócuas, exceto quando se
vejam suplementadas por evidência de que outra hipótese, diferente da teoria criticada em
pelo menos um desses aspectos, conduz a previsões melhores, em um âmbito não menor de
fenômenos. Tais suplementações, porém, não aparecem nas críticas – que se assentam,
quase inteiramente, em discrepâncias supostamente percebidas de modo direto, entre os
“pressupostos” e o “mundo real”. Exemplo claro é dado pelas recentes críticas dirigidas
contra a hipótese da maximização dos rendimentos, assentada no fato de que os homens de
negócios não agem e nem podem agir como a teoria “presume” que o façam. A evidência
aduzida em apoio desta afirmação é, de hábito, colhida nas respostas oferecidas pelos
homens de negócios, quando lhes são feitas perguntas acerca dos fatores que afetam as suas
decisões (um procedimento de teste das teorias econômicas perfeitamente comparável ao
teste das teorias sobre longevidade que se resumisse em indagar, aos octogenários, de que
modo explicariam as suas vidas longas), ou colhida em estudos descritivos referentes às
atividades decisórias de firmas individuais22. Pouca ou nenhuma evidência se fornece,
relativa à conformidade do comportamento real dos homens de negócios, no mercado (o
que fazem, em vez do que dizem fazer), com as implicações da hipótese criticada, de um
lado, e com as implicações de uma hipótese alternativa, de outro lado.
Uma teoria ou os seus “pressupostos” não podem ser cabalmente “realistas”, no
sentido descritivo imediato, que tão freqüentemente se atribui ao termo. Uma teoria

20 Thorstein Veblen, “Why Is Economics Not an Evolutionary Science?” (1898), reimpresso em THE PLACE OF
SCIENCE IN MODERN CIVILIZATION (New York, 1919), p.73.
21 Oliver, op. cit., p.381.
22 Ver H. D. Henderson, "The Signíficance of the Rate of Interest", Oxford Economic Papers, nºl (Outubro, 1938),pp.
1-13; J. E. Meade e P. W. S. Andrews, "Summary of Replics to Questions on Effects of Interest Rates", mesmo local,
pp.14-31; R. F. Harrod, "Price and Cost in Entrepeneurs Policy", mesmo periódico, nº2 (Maio, 1939), pp.1-11; e R. J.
Hall e C. J. Hitch, "Price Theory and Business Behavior", mesmo local, pp.12-45. Ver, ainda, Lester, "Shortcomings
of Marginal Analysis for Wage-Employment Problems", op. cit.; Gordon, op. cit. E ver, enfim, Fritz Machlup,
"Marginal Analysis and Empirical Research", op. cit., particularmente Sec. II, onde se encontram críticas
pormenorizadas ao método dos questionários. Não pretendo insinuar que sejam inúteis, para todos os objetivos da
Economia, os estudos, com base em questionários, das motivações ou das crenças a respeito de forças que afetam o
comportamento de homens de negócios ou de outras pessoas. Tais estudos podem ser extremamente valiosos,
sugerindo linhas de pesquisa para a análise das divergências entre resultados esperados e observados, ou seja, para a
elaboração de novas hipóteses ou a revisão de hipóteses antigas. Entretanto, seja qual for o interesse de que se
revistam, nesse prisma, os citados estudos me parecem completamente inúteis como forma de submeter a teste a
validade de hipóteses econômicas. Ver, a propósito, meu comentário em torno do artigo de Albert C. Hart, "Liquidily
and Uncertainty", American Economic Review, XXXIX (Maio, 1949), 198-99.
22

completamente “realista” do mercado do trigo teria de incluir não apenas as condições


diretamente subjacentes à oferta e à demanda de trigo, como, ainda, indicações relativas à
moeda ou aos instrumentos de crédito usados nos pagamentos; teria de incluir dados a
respeito dos comerciantes de trigo, cor dos olhos e dos cabelos de cada comerciante, os
seus antepassados, a sua educação, as pessoas da família, seus respectivos antecedentes e
sua educação, e assim por diante; teria de incluir informes a respeito do tipo de solo em que
o cereal foi cultivado, de suas características físicas e químicas, do estado geral do tempo
na época de desenvolvimento das plantas, dos traços típicos do pessoal encarregado de
cuidar da fazenda e do consumidor que, afinal, utilizará os grãos; e assim por diante,
indefinidamente. Qualquer tentativa no sentido de contornar essa espécie de “realismo” está
fadada, por certo, a tornar inútil a teoria que se elabore.
A idéia de teoria completamente realista é, naturalmente, pelo menos em parte,
ilusória. Nenhum crítico de teorias aceitaria essa posição extremada como um objetivo a ser
perseguido. Diria que os “pressupostos” da teoria em pauta eram “exageradamente” não-
realistas e que seu desejo consistia em poder contar com um conjunto de pressupostos
“mais” realistas – sem, que chegassem a sê-lo de modo completo e escravizador. Contudo,
não haverá base para fazer distinções seguras, isto é, para fugir da ilusão a que se aludiu há
pouco, enquanto o teste de “realismo” for o da acuidade descritiva dos “pressupostos”,
diretamente percebida (exemplificando: a observação de que “os homens de negócios não
são tão avarentos, dinâmicos ou lógicos quanto se poderia prever com base nos seus
retratos, pintados pela teoria marginal”23 ou de que “seria inteiramente inútil, sob um ponto
de vista prático, nas condições atuais, que um administrador de fábricas de multi-processos
tentasse... calcular custos marginais e rendimentos marginais e procurasse igualá-los, tendo
em conta cada qual dos fatores de produção”)24. Qual o critério que permitiria avaliar os
desvios em relação ao realismo, assegurando que este ou aquele afastamento é ou deixa de
ser aceitável? Por que, ao analisar-se o comportamento, no campo dos negócios, o fato de
se ignorar a magnitude dos custos enfrentados por um comerciante haveria de ser mais
“não-realista” do que o fato de se ignorar a cor de seus olhos? A resposta óbvia é esta:
porque o primeiro fator tem mais influência do que o segundo, no estudo do
comportamento dos homens de negócios. Não há, porém, meios de saber se assim acontece,
tendo em conta apenas a simples constatação de que os homens de negócios enfrentam
custos de magnitude variadas e têm olhos de cores diversas. Só se pode saber que a
influência do primeiro fator é maior do que a influência do segundo comparando o efeito
que cada qual deles tem sobre as discrepâncias entre comportamento previsto e
comportamento real. Até os mais exagerados advogados dos pressupostos realistas são
obrigados, necessariamente, a rejeitar seus próprios critérios e a aceitar o teste de predição
– no momento em que se dispõem a classificar pressupostos alternativos para dizer que uns
são mais ou menos realistas do que outros25.

23
Oliver, op. cit., p.382.
24
Lester, "Shortcomings of Marginal Analysis for Wage Employment Problems", op. cit., p.75.
25
Gordon, por exemplo, em seu exame direto dos "pressupostos", reformula a hipótese alternativa
(geralmente preferida pelos críticos da hipótese da maximização dos rendimentos), para vazá-la
nestes termos: "Há uma irresistível tendência no sentido de fixar preços com base nos custos totais
médios, tendo em conta algum nível 'normal' de produção. Aí está o padrão de mensuração, a tática
de que se valem os peritos em contabilidade o os homens de negócios, cujo objetivo é antes o de
23

A confusão básica entre acuidade descritiva e relevância analítica – subjacente na


maioria das críticas dirigidas contra a teoria econômica e feitas com base no presumido
“não-realismo” de seus pressupostos – e a plausibilidade de certas concepções que tendem
a conduzir a tal confusão aparecem ilustradas, de maneira muito clara, em uma observação
aparentemente inócua, encontrada em um artigo a respeito da teoria dos ciclos-de-negócios;
eis a observação: “fenômenos econômicos são variados e complexos, de modo que uma
teoria abrangente dos ciclos de negócios, passível de ver-se aplicada à realidade, há de ser
muito complicada”.26 Hipótese fundamental, na ciência, é a de que as aparências enganam e
de que existe uma forma de contemplar, de interpretar ou de organizar a evidência que
revelará fenômenos diversificados, aparentemente desconexos, como sendo manifestações
de uma estrutura fundamenta, mais ou menos simples. O teste dessa hipótese – como, aliás,
de qualquer outra – são os seus frutos, um teste que até agora tem sido dramaticamente bem
sucedido. Se uma classe parece conter “fenômenos econômicos” variados e complexos, isso
acontece, devemos supô-lo, por faltar teoria adequada capaz de explicá-los. Não é possível
colocar, de um lado os fatos conhecidos e, de outro, uma teoria que esteja “próxima da
realidade”. A teoria é o modo pelo qual percebemos “fatos” e não podemos percebê-los
sem dispor de uma teoria. Qualquer declaração de que os fenômenos de Economia são
variados e complexos nada mais faz do que negar o estágio preliminar de conhecimento, o
único em condições de dar sentido à atividade científica. Uma tal declaração se assemelha
ao enunciado, muito justificadamente ridicularizado por John Stuart Mill, segundo o qual
“afortunadamente, nada mais existe, nas leis relativas ao valor, que os atuais (1848) e
futuros pensadores devam esclarecer; a teoria está completa”.27
A confusão entre acuidade descritiva e relevância analítica não conduziu apenas às
críticas mal fundamentadas, dirigidas contra as teorias econômicas; também levou a mal-
entendidos em torno de tais teorias e a uma orientação errônea dos esforços feitos no
sentido de escoimá-las de presumidos defeitos. Os “tipos ideais”, no modelo abstrato
desenvolvido por teorizadores, na Economia, têm sido vistos, estritamente, como categorias
descritivas que se tenciona estejam em correspondência direta e cabal com entidades do
mundo real, independentemente do objetivo que leva ao uso do modelo. As discrepâncias
óbvias conduziram a tentativas necessariamente mal sucedidas de elaborar teorias com base
em categorias que pretendem ser completamente descritivas.
Essa tendência tem sua mais clara ilustração, possivelmente, na interpretação dada
aos conceitos de “concorrência perfeita” e de “monopólio” e no desenvolvimento da teoria
da concorrência “monopolista”, ou “imperfeita”. Marshall, segundo se afirma, admitiu a

contar com lucros satisfatórios, agindo com segurança, do que o de maximizar lucros" (op. cit.,
p.275). Gordon, porém, abandona essa hipótese ou a converte em uma taut ologia; no processo de
assim transformá-la, aceita, implicitamente, o teste por meio de previsões, pois, adiante, assevera que
"Custo pleno e lucros satisfatórios podem continuar a ser os objetivos, mesmo quando os custos são
diminuídos, a fim de enfrentar a competição, ou aumentados, a fim de tirar vantagens do mercado de
vendas" (ibid., p.284). Onde ficou a "tendência irresistível"? E que tipo de evidência poderia refutar
a asserção?
26 )Sidney S. Alexander, "Issues of Business.Cycle Theory Raised by Mr. Hicks", American Eco -
nomic Review, XLI (Dezembro, 1951), p.872.
27 PRINCIPLES OF POLITICAL ECONOMY (Ashley, organizador; Longmans, Green & C o.,
1929), p.346.
24

“concorrência perfeita”; é possível que tal coisa tenha existido algum dia. Mas já não
existe, de modo que é preciso abandonar as suas teorias. O leitor procurará longa e
arduamente – e, segundo minhas previsões, sem êxito – se quiser achar, nos escritos de
Marshall, qualquer pressuposto explícito acerca da concorrência perfeita ou qualquer
afirmação em que se registre ser o mundo, em sentido descritivo, composto por firmas
isoladas envolvidas em uma concorrência perfeita. Ao contrário, o que se encontra nos
escritos de Marshall é isto: “Em uma extremidade estão os mercados mundiais, em que a
concorrência atua diretamente, vinda de todas as partes do globo; em outra estão os
mercados insulados, para os quais a concorrência vinda de longe está fora de cogitações,
embora a concorrência indireta e transmitida possa fazer-se sentida mesmo aí; de permeio,
entre as duas extremidades, estão quase todos os mercados que os economistas e os homens
de negócios tem de estudar”.28 Marshall encarou o mundo como ele é; pensou em construir
um “mecanismo” para analisá-lo, mas não em uma reprodução fotográfica do mundo.
Analisando o mundo como ele é, Marshall formulou a hipótese de que, para a
resolução de numerosos problemas, as firmas podiam ser agrupadas em “indústrias”, de tal
modo que as similaridades das firmas de um mesmo grupo superassem, em importância, as
diferenças que entre elas pudessem existir. Os problemas em tela são aqueles em que o
elemento notório a considerar é o de as firmas de um grupo se verem analogamente
afetadas por um dado estímulo; há, digamos, uma alteração comum na demanda pelos
artigos que as firmas produzem ou no fornecimento desses artigos. Todavia, a tática não se
aplica a todos os problemas, já que, em muitos casos, o elemento importante a considerar é,
justamente, o dos efeitos diferenciadores que demanda e oferta podem ter sobre firmas
particulares.
O modelo abstrato associado a essa hipótese de Marshall contém dois tipos “ideais”
de firmas: firmas competitivas atomizadas, agrupadas em indústrias, e firmas monopolistas.
Uma firma se diz competitiva quando a curva de demanda concernente à sua produção é
infinitamente elástica, relativamente ao seu próprio preço, para algum preço e toda a
produção, tendo em conta os preços cobrados por todas as demais firmas; a firma pertence a
uma “indústria” definida como um grupo de firmas que fabricam um único “produto”. Um
“produto” é definido como coleção de unidades que, aos olhos do consumidor, não se
distinguem umas das outras, de modo que a elasticidade da demanda, no que concerne à
produção de uma firma, com respeito ao preço de outra firma da mesma indústria, se torna
infinita, para algum preço e certas produções. Uma firma se diz monopolista quando a
curva de demanda, concernente à sua produção, não é infinitamente elástica, para um dado
preço, relativamente a todas as produções.29 Se a firma é monopolista, ela própria é uma
indústria.30
Como sempre, a hipótese, no seu todo, consiste não apenas desse modelo abstrato e
de seus tipos ideais, mas também de um conjunto de regras, quase sempre implícitas,

28 PRINCIPLES, p.329; ver, também, pp.35, 100, 341, 347, 375 e 546.
29 Esse tipo ideal pode ser dividido em dois: a firma oligopolista, se a curva de demanda para o
produto é infinitamente elástica, a um dado preço, para alguns, mas não todos os produtos; e a firma
propriamente monopolista, se a curva de demanda não é infinitamente elástica em qualquer de seus
pontos, exceto, possivelmente, no ponto que corresponda a uma produção nula.
30 Para o adepto do oligopolismo caracterizado na precedente nota, uma indústria será definida como
grupo de firmas que produzem um mesmo produto.
25

sugeridas por exemplificação, que permita identificar firmas reais a um ou outro de tais
tipos ideais e permita classificar as firmas, para situá-las em indústrias. Os tipos ideais não
tem a pretensão de ser descritivos; são concebidos a fim de isolar os traços que se mostrem
relevantes para a resolução de um particular problema. Ainda que pudéssemos fazer
estimativas diretas e acuradas da curva de demanda para um produto da firma, não nos seria
permitido dizer, de imediato, que ela é perfeitamente competitiva ou monopolista, segundo
a finitude ou não-finitude da elasticidade daquela curva. Nenhuma curva de demanda,
efetivamente observada, é perfeitamente horizontal, de modo que a elasticidade estimada
sempre será finita. A questão relevante, invariavelmente, é a de saber se a elasticidade toma
valores “suficientemente” grandes a ponto de poder ser vista como infinita. Essa questão,
entretanto, não admite resposta definitiva com base, apenas, no valor numérico da própria
elasticidade – exatamente como não podemos dizer, de uma vez por todas, que a pressão
atmosférica de quinze libras por polegada quadrada está “suficientemente” próxima de zero
a ponto de permitir o uso da fórmula s = (1/2) gt². Analogamente, não nos é dado calcular
as elasticidades-cruzadas da demanda para, em seguida, classificar as firmas, distribuindo-
as em indústrias, segundo a existência de “substancial hiato nas elasticidades-cruzadas da
demanda”. Como diz Marshall, “Saber onde traçar as linhas divisórias entre variadas
mercadorias ou seja, indústrias é uma questão que precisa ser resolvida em função de
conveniências, face a cada discussão específica”31. Tudo depende do problema em tela.
Não há qualquer incongruência quando a mesma firma se vê contemplada, num problema,
como competidora perfeita e, em outro problema, como entidade de caráter monopolista –
analogamente ao que se dá no caso de sinal de giz, onde também inexistem contradições se
ele é considerado em termos de curva euclidiana, em certa situação, em termos de
superfície euclidiana, em outra, e, em termos de superfície euclidiana, em uma terceira
situação. Mostram-se relevantes as dimensões da elasticidade e da elasticidade cruzada de
demanda, o número de firmas que produzem artigos fisicamente similares, etc., porque
todos esses elementos são (ou podem figurar entre as) variáveis utilizadas para definir a
correspondência que se estabelece entre entidades ideais e entidades reais, num particular
problema, assim como para especificar as circunstâncias em que a teoria vige
suficientemente bem. Mas esses elementos não conduzem, de uma vez por todas, a uma
divisão das firmas em monopolistas ou competitivas.
Um exemplo concreto permitirá esclarecer o ponto em tela. Imaginemos que o
problema seja o da determinação do efeito de um aumento (presumido permanente) dos
impostos sobre o preço de venda de cigarros no varejo. Posso prever que resultados
largamente corretos serão obtidos ao tratar as empresas fabricantes de cigarros como se
fossem firmas que produzem um mesmo produto e que estão em situação de concorrência
perfeita. Em casos desse tipo, naturalmente, “alguma convenção deve ser feita a respeito
‘de’ quantos cigarros de certa marca, A, digamos, hão de mostrar-se ‘equivalentes’ a um
cigarro de outra marca, B, por exemplo”32.
De outro lado, a hipótese de que as fábricas de cigarros agiriam como se fossem
perfeitamente concorrentes teria sido um falso guia para o estudo de suas reações ao
controle de preços, durante a Segunda Guerra Mundial – o que se reconheceria até mesmo

31
PRINCIPLES, p.100.
32
Os trechos citados são dos PRINCIPLES.
26

antes do evento. Os custos das fábricas de cigarros devem ter subido no período da guerra.
Em tais condições, competidores perfeitos teriam reduzido a quantidade oferecida para
venda a preços antigos. Todavia, cabe presumir que, mantidos os preços antigos, o aumento
da renda dos consumidores, na época do conflito, aumentaria a demanda. Em condições de
concorrência perfeita, a estrita adesão ao preço legal acarretaria não apenas “escassez”, (no
sentido de que a quantidade solicitada superaria a quantidade oferecida), como, ainda, um
declínio absoluto do número de cigarros produzidos. Os fatos contraditam essa particular
conseqüência: houve, na verdade, adesão razoavelmente boa aos preços máximos dos
cigarros e, no entanto, as quantidades produzidas aumentaram substancialmente. A força
comum dos custos aumentados agiu, presumivelmente, com menos intensidade do que a
força de ruptura, representada pelo desejo, em cada firma, de conservar sua porção do
mercado e de manter o valor e o prestígio do nome de seu produto – especialmente quando
os impostos sobre excesso de lucros desviou, para o governo, uma grande parte dos gastos
com a propaganda. No que concerne a este problema específico, as firmas fabricantes de
cigarros não podem ser tratadas como se fossem concorrentes perfeitos.
O cultivo de trigo é lembrado, freqüentemente, para ilustrar a concorrência perfeita.
Entretanto, assim como é legítimo, para alguns problemas, cogitar dos produtores de
cigarros como se formassem uma indústria perfeitamente competitiva, não é legitimo, para
outros problemas, cogitar dos produtores de trigo nesses termos. Exemplificativamente, não
é conveniente tratar os produtores de trigo como se constituíssem uma indústria
perfeitamente competitiva se a questão em foco é a dos preços diferenciados que os
operadores de máquinas da região pagam pelo trigo.
As idéias de Marshall mostraram-se muito úteis para a análise de problemas em que
um grupo de firmas é afetado por um estímulo comum e em que as firmas podem ser
tratadas como se fossem concorrentes perfeitos. Aí está a fonte do mal-entendido que levou
a admitir haver Marshall “presumido” a concorrência perfeita, em algum sentido descritivo.
Seria altamente conveniente dispor de uma teoria mais geral do que a proposta por
Marshall, uma teoria que englobasse, ao mesmo tempo, os casos em que tem e os casos em
que não tem importância essencial a diferenciação de produtos ou a redução de números.
Uma teoria desse gênero permitiria a abordagem de problemas hoje fora de nosso alcance e,
a par disso, simplificaria a questão de delimitar o âmbito de circunstâncias sob as quais a
teoria simplificada poderia apresentar-se como aproximação adequada. A fim de que essa
teoria desempenhe tais funções ela deve possuir conteúdo e substância; e deve admitir
implicações (de substantivo interesse e importância) passíveis de se verem contraditadas
pela experiência.
As idéias de Chamberlin e Robinson, relativas à concorrência monopolista, ou
imperfeita, constituem uma tentativa de elaboração de uma tal teoria generalizada.33
Infelizmente faltam-lhes os predicados que poderiam transformá-las em uma teoria geral
verdadeiramente útil. A sua contribuição limitou-se, em linhas amplas, ao campo do
aperfeiçoamento da apresentação da Economia das firmas individuais – permitindo a
dedução de implicações, a partir do modelo marshalliano; o refinamento da análise

33 E. H. Chamberlin, THE THEORY OF MONOPOLISTIC COMPETITION (sexta edição; Cambridge,


Harvard University Press, 1950); Joan Robinson, THE ECONOMICS OF IMPERFECT COMPETITION
(Londres, Macmillan & Co., 1933).
27

monopolista, efetuada por Marshall; e o enriquecimento do vocabulário utilizado para


descrever a experiência industrial.
As falhas da teoria se mostram claras quando ela é aplicada (ou quando se revela
incapaz de ser aplicada) aos problemas em que se considera grupos de firmas, ou seja, as
“indústrias” de Marshall. A definição de indústria (em termos de firmas que fabricam um
mesmo produto) não pode ser usada se houver insistência em que é essencial a
diferenciação dos produtos – e um traço característico da teoria está em que ela, de fato,
insiste nesse ponto. Em virtude da definição, cada qual das firmas é uma indústria isolada.
Definições formuladas em termos de substitutos “aproximados” ou de “hiatos substanciais”
nas elasticidades-cruzadas só contribuem para fugir da questão, para introduzir vagüidade e
termos indefiníveis no modelo abstrato (onde não devem ter guarida) e para tornar a teoria
analiticamente destituída de significado – recordando-se, a propósito, que “aproximados” e
“substanciais” são termos que se colocam na mesma categoria de “pequena” pressão
atmosférica.34 Em um contexto, Chamberlin define, implicitamente, a indústria como grupo
de firmas que tem as mesmas curvas de custos e de demanda.35 Isso também não tem
sentido, logicamente, na medida em que a diferenciação de produtos, é essencial, segundo
se afirma, e não pode ser deixada de lado. Que significado poderia ter a afirmação de que as
curvas de custo e de demanda são idênticas, tendo em conta uma fábrica de tratores e uma
fábrica de grampos?36 Se falta significado a uma tal afirmação, relativa a tratores e
grampos, também falta significado a uma afirmação análoga, relativa a duas diferentes
marcas de dentifrício – na medida em que se ponha como de fundamental importância a
diferença entre as duas marcas.
A teoria da competição monopolista não nos dá recursos para analisar uma indústria
e, portanto, não nos ajuda a determinar um ponto intermediário, entre a firma, num
extremo, e o equilíbrio geral, no outro.37 Ela é, por conseguinte, incapaz de prestar auxílio a
quem deseja analisar uma série de importantes problemas, já que nos coloca num extremo,
que é excessivamente estreito para despertar interesse, ou no outro, que é exageradamente
amplo para permitir a formulação de generalizações significativas.38

34
R. L. Bishop, em seu artigo "Elasticities. Cross-elasticities, and Market Relationships", American Economic
Review, XLII (Dezembro. 1952), pp.779-803, procura uma classificação rigorosa, nessas linhas, das relações
de mercado. Apesar da habilidade e da sofisticação com que age Bishop, o resultado por ele obtido me parece
inteiramente insatisfatório. Assenta-se, basicamente, no fato de alguns números poderem ser considerados
"grandes" ou "pequenos", sem que haja, no entanto, qualquer discussão em torno da maneira de decidir,
diante de um número específico, se ele é "grande" ou "pequeno" – algo, aliás, que não se decide em um nível
puramente abstrato.
35
Op. cit., p.82.
36
Sempre existe uma transformação de quantidades capaz de tornar idênticas as curvas de custo ou
as de demanda. Essa transformação não precisa, entretanto, ser linear, caso em que envolverá
unidades de tamanhos diferentes, para um produto, a níveis diversos de produção. Não precisa
existir, obrigatoriamente, uma transformação capaz de tornar idênticos os dois pares de curvas.
37
Ver Robert Triffïn, MONOPOLISTIC COMPETITTON AND GENERAL EQUILIBRIUM
THEORY (Cambridge, Harvard University Press, 1940), esp. pp.188 -89.
38
Crítica pormenorizada encontra-se em George J. Stigler, "Monopolistic Competition in
Retrospect" in FIVE LECTURES ON ECONOMIC PROBLEMS (Londres, Macmillan & Co.,
1949), pp.12-24.
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VI - CONCLUSÃO

A Economia, enquanto ciência positiva, é um corpo de generalizações,


provisoriamente acolhidas, referentes a fenômenos econômicos, passíveis de se verem
utilizadas para prever as conseqüências de alterações das circunstâncias. O progresso –
ampliação desse corpo de generalizações; aumento de nossa confiança em sua validade e
aperfeiçoamento da acuidade das previsões que permitem – está obstado não só pelas
limitações das capacidades humanas, que entravam todas as tentativas de obter
conhecimentos, como, ainda, por vários óbices que se mostram particularmente importante
no caso das ciências sociais e da Economia, em particular, embora não atinjam apenas essas
áreas. Familiarizações com os temas da Economia geram desprezo por conhecimento
especial desses temas. A importância de tais temas para vida cotidiana e para as decisivas
questões de fixação de diretrizes de interesse público bloqueia a objetividade e promove a
confusão entre análise científica e juízo normativo. A necessidade de confiar na experiência
não-controlada em vez de confiar no experimento controlado, torna difícil a apresentação
de evidência clara e concludente, capaz de justificar a aceitação de hipóteses provisórias. A
confiança na experiência não-controlada não afeta o princípio metodológico fundamental
de que uma hipótese só pode ser submetida a teste analisando o acordo de suas implicações,
ou previsões, com os fenômenos observados; mas torna mais complicada a tarefa de
submeter a teste as hipóteses e amplia a gama das confusões em tomo dos princípios
metodológicos em pauta. Os cientistas sociais, muito mais do que outros cientistas,
precisam ter consciência da metodologia que empregam.
Uma confusão particularmente comum e danosa é a que existe com respeito ao
papel dos “pressupostos”, na análise econômica. Uma hipótese ou uma teoria,
cientificamente significativa, assevera, de maneira típica, que certas forças são, ao passo
que outras não são importantes para a compreensão de uma classe específica de fenômenos.
Convém, muitas vezes, formular uma tal hipótese indicando que os fenômenos cuja
previsão ela almeja se comportam, no mundo das observações, como se ocorressem em um
mundo grandemente simplificado que só contém as forças dadas como importantes por
aquela hipótese. Via de regra, há mais de um modo de formular essa descrição – mais de
um conjunto de “pressupostos”, em termos dos quais a teoria se apresenta. A escolha de
pressupostos é feita com base em algumas considerações em que figuram, digamos, a
economia, a precisão e a clareza da resultante apresentação da hipótese; a possibilidade dos
pressupostos fornecerem evidência indireta para a validade da hipótese, apontando algumas
das suas implicações passíveis de se verem rapidamente confrontadas com a observação ou
trazendo à tona as conexões que ela possa manter com outras hipóteses, relativas a
fenômenos correlatos; e assim por diante.
Uma teoria desse gênero não se submete a teste por meio da comparação direta de
seus “pressupostos” com a “realidade”. Com efeito, não há maneira significava de efetuar
tal comparação. O “realismo” completo é obviamente inatingível e a questão de saber se
uma teoria é ou não “suficientemente” realista só pode ser enfrentada verificando se conduz
a previsões que sejam boas o bastante, à luz dos objetivos colimados, ou sejam melhores do
que previsões decorrentes de teorias alternativas. Contudo, a idéia de que uma teoria é
passível de teste através do realismo de seus pressupostos, independentemente da acuidade
de suas previsões, ganhou ampla aceitação e se tornou fulcro de boa parte da perene crítica
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dirigida contra a teoria econômica, acusando-a de falta de realismo. As críticas são, em


geral, irrelevantes e, conseqüentemente, não emprestaram êxito às sugeridas tentativas de
reformulação da Economia.
O fato das críticas, em boa parte, se mostraram irrelevantes não permite concluir, é
claro, que, a teoria econômica existente mereça um elevado grau de confiança. As críticas
não têm alcançado um alvo, mas isso não quer dizer que o alvo inexista. Aliás, em um
sentido trivial, ele obviamente existe, pois qualquer teoria assume, obrigatoriamente, uma
feição provisória e está sempre sujeita a modificações, na medida em que o conhecimento
avança. Para fugir desse lugar-comum é indispensável haver indicação específica do
conteúdo da “teoria econômica existente” e distinção clara entre seus diversos ramos, uma
vez que certas partes da Economia merecem mais confiança do que outras. Admitindo que
fosse possível fazer uma avaliação ampla do presente estado da Economia positiva, um
sumário em que se registrasse a evidência que diz respeito à sua validade e um julgamento
da confiança relativa que cada qual de suas partes tem merecido, isso exigiria,
naturalmente, um tratado ou uma série de tratados – não um breve artigo em que se focaliza
a metodologia.
O máximo que aqui se poderá oferecer é a expressão superficial de pontos de vista
pessoais. A teoria dos preços relativos que aí está, projetada para explanar a alocação de
recursos, face a objetivos diversos, e a divisão dos produtos entre as fontes cooperativas – e
que quase atingiu a sua presente forma nos Principies of Economics, de Marshall – parece-
me extremamente frutífera e merecedora de confiança quando se cogita do tipo de sistema
econômico adotado pelas nações do Ocidente. Em que pesem as controvérsias acaloradas, o
mesmo se pode dizer da teoria monetária estática hoje em voga, erigida para explanar o
nível estrutural ou secular dos preços absolutos, a produção agregada e algumas outras
variáveis que interessam à Economia, como um todo – uma teoria que teve, como núcleo
básico, em todas as suas variantes principais, de David Hume até John Maynard Keynes,
passando pela Escola de Cambridge e por Irving Fisher, uma forma da teoria quantitativa
de moeda. A mais fraca e menos satisfatória parte da atual teoria econômica, segundo creio,
é a da dinâmica monetária, preocupada com o processo de adaptação da Economia, como
um todo, às alterações das condições vigentes e, pois, com as flutuações, a curto prazo, no
nível de atividade agregada. Nesse campo não dispomos de uma teoria que,
apropriadamente, possa ver-se considerada como “a” teoria vigente da dinâmica monetária.
Existe considerável espaço, é claro, até mesmo no caso dos preços relativos e da
estática monetária, para ampliar o âmbito e aperfeiçoar a acuidade da teoria existente. Em
particular, a indevida ênfase dada ao realismo descritivo de “pressupostos” contribui para
que se deixasse de dar atenção ao crítico problema da determinação dos limites de validade
das múltiplas hipóteses que, em conjunto, constituem, nessas áreas, a teoria econômica
existente. Os modelos abstratos que se associam a tais hipóteses foram desenvolvidos
pormenorizadamente e tiveram grandemente aperfeiçoados o seu rigor e a sua precisão.
Material descritivo, ligado às características de nosso sistema econômico e de seu modo de
atuação, foi reunido em quantidades jamais antes alcançadas. Tudo isso é muito bom.
Todavia, se pretendemos empregar de modo efetivo esses modelos abstratos e esse material
descritivo, precisamos explorar igualmente bem os critérios que hão de determinar não
apenas o melhor modelo a empregar, em particulares tipos de problemas, como ainda, as
entidades do modelo abstrato e as correspondentes entidades observáveis a que serão
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associadas e os traços do problema ou das circunstâncias que exercem maior influência


sobre a acuidade das previsões a que possam conduzir um modelo ou uma teoria específica.
O programa da Economia positiva exigirá não apenas o teste e o aperfeiçoamento
das hipóteses existentes, mas, ainda, a elaboração de novas hipóteses. Quanto a isso, pouco
há por dizer, se permanecemos em um nível formal de discussões. A formulação de
hipóteses é um ato criativo, de inspiração, intuição, invenção; sua essência está na
descoberta de algo novo em material familiar. O processo deve ser discutido em termos
psicológicos, não lógicos; deve ser examinado à luz de biografias e de auto-biografias, não
à luz de tratados sobre o método científico; e deve ser promovido através da máxima e do
exemplo, não dos teoremas ou dos silogismos.

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