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A dieta vegetariana que abastece um ultramaratonista

A dieta vegetariana que abastece um ultramaratonista

Como um atleta abriu mão de qualquer produto de origem animal – incluindo ovos, leite e mel –
e se tornou um dos maiores ultramaratonistas do planeta

Por Scott Jurek, Steve Friedman

11 mar 2013, 12h16

São Paulo – Por quase duas décadas, o americano Scott Jurek tem sido uma potência na elite
da ultramaratona. E tão impressionante quanto suas inúmeras vitórias — incluindo sete
consecutivas na Western States, de 160 km, na Califórnia — talvez seja o fato de ele ter
alcançado esses feitos seguindo uma dieta totalmente à base de alimentos de origem vegetal.
Em seu livro de memórias, Eat & Run: My Unlikely Journey to Ultramarathon Greatness (em
tradução livre, “Comer e correr: minha improvável jornada em direção à excelência em
ultramaratonas”), Jurek conta como virar vegano — adepto do vegetarianismo radical, que risca
do cardápio alimentos de origem animal — transformou sua vida.
Conheça agora um pouco de sua história e da relação entre veganismo e performance:
Quando eu tinha 10 anos, meu pai me deu um rifle calibre 22 com cano de aço escovado. Suas
instruções foram simples: se eu ferisse um animal, era para matálo.
Se matasse, deveria esfolar, estripar e comer. Na 6ª série, eu já pescava vários peixes no lago
depois do almoço, que eu limpava, empanava em farinha de rosca, fritava na manteiga e
devorava antes do anoitecer. Eu sabia segurar um ovo entre os dedos indicador e mindinho
para quebrar com uma mão só.
Fazia carne assada, preparava uma gororoba de macarrão com atum e montava as lancheiras
de almoço para meu irmão e minha irmã caçula antes de irmos para a escola.
Minha mãe assava carne de porco, cozinhava frango e grelhava bife. Eu adorava a sopa de
frango com macarrão e nada me deixava mais feliz que o purê de batatas besuntado com
montes de manteiga.
Quanto aos vegetais — com exceção de milho em conserva —, eu nutria um sentimento
intenso e uniforme: detestava todos. Ninguém jamais poderia prever que eu cresceria para
divulgar os benefícios de uma dieta à base desses alimentos.
Nós vivíamos no fim de uma rua sem saída à beira da floresta, a 8 km de Proctor, em
Minnesota (EUA). Eu era magrelo e tinha pressão alta e escoliose. Tirava notas boas e minha
mãe me obrigava a vestir camisa social.
Eu gostava de esportes, mas evitei entrar para algum time no ginásio, pois a ideia de pegar um
ônibus com um monte de outros meninos me amedrontava. Em parte porque eles tiravam sarro
de mim, me empurravam e derrubavam. Uma vez um garoto cuspiu em mim.
Jamais apontariam para mim e diriam: “Ele vai se tornar um atleta profissional”. E como os
valentões do ônibus não faziam parte das equipes de esqui, e a prática envolvia muita técnica,
parecia o esporte ideal para mim.
Em pouco tempo, tornei-me um dos melhores esquiadores do Ensino Médio na minha categoria
em todo o estado. Nessa época começou minha lenta transformação de carnívoro inveterado
em vegetariano e, mais tarde, em vegano. Na verdade, prefiro o termo “baseado em vegetais” a
vegano, porque para muita gente vegano soa como “maluco”.
Quando fui para um acampamento de atletas, serviam lasanha de legumes, todo tipo de
saladas e pão integral. Eu não tinha outra opção, então comi. E mal pude acreditar em como
era gostoso.
No inverno do último ano de colégio, fui viajar para esquiar com meu amigo da equipe e seu
padrasto. Eles levaram isopores e sacolas cheios de macarrão integral, salada de espinafre e
feijão preto.
Paramos na casa de um amigo e sua mãe nos serviu granola caseira feita com farinha de soja,
germe de trigo e flocos de cevada. Pedi a receita e, quando cheguei em casa, eu mesmo
preparei.
Eu não estava comendo granola e salada porque queria um mundo melhor (isso viria mais
tarde) ou para ser legal com as vacas. Ainda hoje, se precisasse, eu mataria e comeria um
animal para sobreviver.
Eu só estava começando a perceber que, quanto mais comia “comida de hippie”, mais forte me
sentia. Pelas manhãs, antes das corridas do Ensino Médio, comecei a comer uma tigela grande
de arroz integral que eu preparava na noite anterior. Eu comia o arroz escondido, pois sabia as
provocações que sofreria se alguém visse.
Mas eu era um atleta e ainda comia carne — e, para dizer a verdade, não conseguia imaginar
ser um atleta sem comer carne. Ainda precisaria de várias pessoas para me ajudar a ver que
uma dieta à base de alimentos de origem vegetal não só poderia me sustentar como também
fazer de mim um atleta mais rápido e potente.
Plantando a semente
Uma das pessoas que me incentivaram a seguir o caminho do veganismo foi uma garota que
conheci no McDonald’s. Eu estava pedindo dois sanduíches. Ela queria um refrigerante. Ela
andava de bicicleta, sorria muito e usava sandálias. Estávamos em 1995, eu tinha 21 anos e
cursava o terceiro ano de fisioterapia. Ela era uma caloura de 18 anos, quase exclusivamente
vegetariana.
Eu havia parado de esquiar e começado a competir em corridas de longa distância. Havia
completado uma maratona e ficado em segundo lugar na Minnesota Voyageur, uma
ultramaratona de 80 km. Passei a primavera de 1995 treinando mais duro do que jamais havia
treinado.
Abri sulcos no chão, agredi colinas, ataquei trilhas — quanto mais mato, melhor. Eu corria na
chuva, na neve e no calor lancinante. Corria com um propósito: ganhar.
E também me alimentava com um propósito. Comecei a colocar queijo nos meus sanduíches,
em vez de salame. Diminuí (um pouco) o pão com linguiça no café da manhã. Contudo, para
correr e ganhar, eu precisava de muita proteína. E tudo que aprendi era que comer animais é a
forma mais eficiente de obter proteína.
Então continuei engolindo sanduíches e batatas fritas no McDonald’s pelo menos quatro vezes
por semana. Além disso, adorava fazer churrasco. Com bifes grelhados, linguiças ou
hambúrgueres nas mãos, devorava uma lata de salgadinhos. Meu apelido era o Mestre da
Grelha.
Querendo ou não, eu ainda era um caipira de Minnesota. Quando Leah — a loira de sandálias
— aparecia com maçãs ou leite orgânicoe eu via o preço na etiqueta, gritava: “Quanto você
pagou por isso? O que tem aí, ouro em pó?” Eu achava que estava sendo sensato. Pensava
que estava me alimentando de forma saudável.
Eu sabia que estava treinando feito um louco. E quando o dia da ultramaratona Minnesota
Voyageur finalmente chegou, em julho de 1995, disparei na largada. Engoli a pista. Ninguém
iria me superar. Mas alguém o fez. Terminei em segundo lugar — mais uma vez. De alguma
forma, eu tinha que correr mais rápido. Mas não dava para treinar mais pesado. Era impossível
correr mais. Qual seria o segredo?
Em busca do topo
No ano seguinte, no verão de 1996, um velhinho doente me contou parte do segredo. Ele tinha
acabado de sair de uma sessão de fisioterapia e voltou lentamente à sua cama. A cada passo
doloroso, eu via sua frustração, sentia sua raiva. Era meu último ano de faculdade e eu
estagiava naquele hospital.
Era para eu ajudá-lo e nós dois sabíamos que eu não estava me saindo muito bem. O senhor
subiu na cama e olhou para a bandeja de almoço que esperava por ele – um bolo de carne
encharcado em algo marrom e espesso, batatas empelotadas, ervilhas enlatadas com
aparência suspeita. Sua expressão dizia que uma bandeja de pedras daria na mesma. Ele não
falou nada, mas poderia muito bem estar gritando.
Como atleta, eu me dedicava ostensivamente à saúde em busca de um ótimo desempenho.
Como fisioterapeuta, eu deveria ajudar as pessoas a cuidar de seus corpos, mas não levava
suas dietas em consideração nem por um segundo.
Seria coincidência que pessoas doentes estivessem recebendo alimentos de baixa qualidade,
cheios de amido? Se uma dieta equilibrada pode tornar alguém mais veloz, poderia uma dieta
ruim nos fazer adoecer? O velho não falou nada, mas eu podia escutar o segredo que ele me
contava. Nossa alimentação é questão de vida e morte. Você é o que você come.
Pensei e li muito sobre dieta e desempenho naquele verão. No artigo “Cura espontânea”,
Andrew Weil dizia que o corpo humano possui uma enorme capacidade de se cuidar, desde
que ele mesmo seja cuidado, com boa alimentação e sem ingestão de toxinas.
Aprendi que a dieta ocidental padrão — por um longo tempo a minha dieta, rica em produtos de
origem animal e alimentos à base de farinha refinada — tem sido associada a três das causas
mais comuns de morte nos Estados Unidos: doenças cardíacas, câncer e derrames.
Um corte profundo
Eliminar os alimentos processados e carboidratos refinados não foi difícil. Carne e laticínios
eram outros quinhentos. Eu não queria consumir nenhum dos dois — por causa do estresse
para os rins, do possível aumento no risco de derrame e doenças cardíacas, sem contar as
substâncias químicas e os hormônios injetados nos alimentos e a degradação ambiental
causada pelas fazendas de gado —, mas eu estava levando a corrida mais a sério, imaginando
se eu tinha o necessário para competir em nível nacional.
E tinha consciência de que precisava de mais combustível para queimar. Eu sabia que uma
dieta baseada em vegetais significava mais fibras, que aceleravam os alimentos através do
trato digestivo, minimizando o impacto das toxinas.
A mesma dieta também significava mais vitaminas e minerais; mais substâncias como licopeno,
luteína e betacaroteno, que ajudam a proteger o organismo contra doenças. E menos
carboidratos refinados e gorduras trans, ambos relacionados a doenças cardíacas. Mas será
que uma dieta como essa poderia fornecer proteína suficiente para alguém que desejava ser
um atleta de elite?
Eu dividi minhas apostas. A porcentagem de alimentos de origem animal que eu comia caiu
muito, mas não os restringi completamente. E naquele verão de 1996, em minha terceira
tentativa, eu ganhei a Minnesota Voyageur.
Não precisei treinar mais para isso. Até porque era impossível. Apenas me alimentei com mais
inteligência. Sabia que podia continuar enquanto os outros paravam. Sabia que tinha boas
pernas e pulmões bons. Agora eu não era um mero corredor, era um atleta. E era alguém que
tinha consciência daquilo que comia.
Mas eu tinha vencido a Voyageur, uma competição estadual de 80 km. Como seria nas provas
grandes, de 160 km, que atraem corredores não só de outros estados, mas de outros países?
Tudo o que eu lia sobre alimentação e saúde dizia que uma dieta sem carne era saudável, mas
eu tinha que descobrir uma forma de obter proteína suficiente para unir minha alimentação
nutritiva à corrida de longa distância.
Combinar fontes vegetarianas de proteína, como legumes e grãos, a cada refeição parecia
muito trabalhoso. Mas aprendi que nosso organismo reúne os aminoácidos dos alimentos que
comemos ao longo do dia. Eu não precisaria sentar e fazer as contas a cada vez que comesse.
Descobri também que mesmo a conservadora Academia de Nutrição e Dietética, dos Estados
Unidos, afirmava que “dietas vegetarianas bem planejadas, incluindo as totalmente
vegetarianas ou veganas, são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem fornecer
benefícios à saúde na prevenção e no tratamento de certas doenças. Dietas vegetarianas bem
planejadas são adequadas para pessoas em todas as fases do ciclo de vida, incluindo a
gestação, lactação, infância e adolescência, e para atletas”. Essas duas últimas palavras
soaram como música para meus ouvidos de ultramaratonista semivegetariano.
Desde que eu comesse alimentos naturais variados, com ingestão calórica adequada, obteria
proteína completa em quantidade suficiente. Pelo menos em teoria.
Da teoria à prática
Passei os dois ou três anos seguintes testando a teoria. Na primavera de 1997, deixei de
comer carne. Venci a Voyageur novamente. Em seguida, cortei os peixes.
Ganhei a Voyageur uma terceira vez e cheguei em segundo lugar na minha primeira prova de
160 km, enfrentando as maiores feras mundiais. Quando finalmente virei vegano, em 1999,
perdi uma camada de gordura — a camada resultante de comer biscoitos, bolos e pizzas de
queijo que onívoros e até vegetarianos vivem devorando.
Aprendi que podia comer mais, apreciar mais os alimentos (as frutas pareciam mais doces, os
legumes, mais crocantes e saborosos) e ficar mais magro do que jamais fora na vida. Aumentei
a ingestão de grãos integrais e legumes. Músculos que eu nem conhecia apareceram.
Minha pressão arterial e o nível de triglicérides caíram como nunca, meu HDL, o chamado “bom
colesterol”, disparou para a maior taxa de todos os tempos. Eu não tinha praticamente
nenhuma inflamação nas articulações, nem após percorrer dezenas de quilômetros, e, nas
raras ocasiões em que torci o tornozelo ou caí e bati o cotovelo ou o joelho, a dor passou com
mais rapidez que nunca. Eu corria de manhã, trabalhava de 8 a 10 horas por dia, depois corria
16 km à noite — ainda assim, a cada dia despertava com mais energia.
Seria a comida que eu estava acrescentando — as vitaminas e minerais? Ou seria o que eu
não estava comendo — as proteínas em excesso, os carboidratos refinados, as gorduras
trans? Eu não conhecia a resposta, mas nunca havia me sentido tão bem.

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