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Valor Ético e Estético Do Kung-Fu: - em Busca Das Suas Potencialidades Educativas
Valor Ético e Estético Do Kung-Fu: - em Busca Das Suas Potencialidades Educativas
IV
A todos os meus antepassados,
com carinho e gratidão!
V
Agradecimentos
VII
ÍNDICE GERAL
Agradecimentos VII
Índice de Figuras IX
Índice de Quadros X
Resumo XI
Abstract XIII
1. Introdução Geral............................................................................................1
3. Estudos Teóricos
Estudo I – Valores ético e estético do Kung-Fu – uma revisão sistemática..... 49
Estudo II – Wu De – reflexão filosófica acerca do Código de Ética Marcial do
Kung-Fu.............................................................................................................69
Estudo III – Uma visão conceitual através dos tempos sobre o universo marcial
à luz da Ética e Estética – o caso do Kung-Fu..................................................89
4. Estudo Empírico
Estudo IV – Importância da Ética e da Estética no ensino do Kung-Fu
tradicional a partir de narrativas de mestres marciais.....................................121
7. Referências Bibliográficas........................................................................173
8. Anexos........................................................................................................XV
VIII
ÍNDICE DE FIGURAS
IX
ÍNDICE DE QUADROS
Introdução Geral
Quadro 1: Síntese das teses doutorais encontradas sobre artes marciais
realizadas em Portugal no campo das Ciências do Desporto (e afins)
ordenadas por ano de publicação........................................................................7
X
RESUMO
XI
Ethical and Aesthetic Value of Kung-Fu - In search of its educational
potential
ABSTRACT
Kung Fu is one of the best known and most practiced martial arts in the world
and has a significant shortage in academic research, especially in the West and
Lusophone. It should be noted that there were only six Portuguese doctoral
theses on martial arts in the field of sport and none studied Kung-Fu. The
general objective of this work was to seek to identify and understand the ethical
and aesthetic value of traditional Kung-Fu, highlighting the potential of this
martial art as an educational medium. The research, in a Scandinavian model,
had a qualitative nature and was structured in four studies (three theoretical
studies and one empirical study). In methodological terms, there was a
systematic review of the literature to map the state of knowledge on the subject
under study and semi-structured interviews were conducted with world-
renowned Kung-Fu Masters in order to know and integrate the enlightened
contribution of these experts about the theme under analysis. Thus, the
interviews were explored through content analysis, having been interpreted
from an organization in thematic categories. It was found that in the academic
field little is proficiently and profoundly addressed about ethics and even more
about aesthetics in Kung-Fu. The concept of martial art was understood as a
practice of pacifist education. In addition, Kung-Fu stood out as a Chinese
cultural symbol presenting several teachings immersed in ethical and aesthetic
issues. Through interviews with great world Masters, the objective of
transmitting and incorporating Confucian virtues into Kung-Fu education
became evident, such as: humility, respect, justice, trust, loyalty, will, resistance,
perseverance, patience and courage.
XIII
1. Introdução Geral
_______________________________________________________________
As práticas desportivas são das manifestações humanas mais antigas
de que há registro na história da humanidade, tendo integrado várias culturas
de povos ao redor do globo e em períodos de tempo diferentes, como os
egípcios, os gregos, os maias e os chineses (Mandell, 1986; Tubino, 1987).
Progressivamente, foram incorporadas às estruturas sociais das épocas
vigentes, adaptando-se aos costumes e necessidades dos povos através dos
séculos. Tubino (1993, p.12) assegura assim que o desporto se modificou
juntamente com as transformações da sociedade recebendo e gerando
influências culturais. Hoje, as práticas desportivas são perpetuadas e
difundidas como nunca na história humana, contribuindo para superar diversos
conflitos sociais, políticos, bélicos, econômicos e religiosos. Assim, o desporto
se perfaz como exemplo de zeitgeist, expressão alemã para “espírito de época”
(Murad, 2009).
Dentre as práticas tidas como das mais antigas, aponta-se a luta, que é
parte da história primitiva humana e animal. Para o ser humano, tal ato adveio
da contínua necessidade de se defender (Ferreira, 2005; Acevedo, Gutiérrez &
Cheung, 2011; Mocarzel & Columá, 2015). É expresso por Maia (1990, p.207)
que: “No antigo texto sagrado do Ramayana (cerca de 10.000 anos) existem
inúmeras referências à arte da guerra e à sua prática pela casta guerreira dos
Kshatriyas (aqueles que salvam os semelhantes da dor e do sofrimento)”. Sob
o prisma sociocultural, lutar é parte da identidade humana (Murad, 2007) ou
mesmo de qualquer ser vivo que busca defender a si, sua prole e território
(Pimenta, 2009; Pereira & Feron, 2010). Assim, procurou-se o aperfeiçoamento
de métodos e utensílios para autodefesa (Ferreira, 2008).
2
orientação para tal. Já a “luta técnica” surgiu depois, tendo sido percebida a
necessidade de melhoria e otimização das habilidades e valências físicas e
técnicas para o embate tão qual a preparação física do praticante. Técnicas
foram estudadas, estruturadas, difundidas e aperfeiçoadas em diversas
culturas. Finalmente, a “arte marcial” nasceu para combater os diversos
problemas de opressão, agressão e mortes de terceiros, pelo uso abusivo dos
conhecimentos técnicos e do aprimoramento no lutar para fins centrados no
interesse próprio, tornando-se necessária a inserção de aspectos disciplinares
rígidos que colaborassem não só com a ordem, mas com a formação do bom
caráter de cada praticante (Bäck & Kim, 1979; Iedwab & Standefer, 2001).
3
percebe um exalar de uma compleição que agrega elementos éticos e
estéticos. Nos movimentos firmes, leves e surpreendentemente impactantes do
Qigong1, nas expressões artísticas miméticas baseadas nas observações da
natureza, na plasticidade corporal no executar das posturas e saltos, na
marcialidade das formas desenhadas em coreografias tenazes e ritmadas.
1
O Qigong ou Chi-Kung é a manipulação da energia vital interna difundida na cultura oriental e
na medicina tradicional chinesa – MTC (Gouveia, 2009; Ramos et al., 2017). Resumidamente,
pode ser praticado para fins, marciais, meditativos e terapêuticos (Mocarzel & Columá, 2015).
2
As palavras que compõem o nome de Lao-Tsé de forma romanizada podem ser encontradas
com variações, como: Laozi, Lao Tzu, Lao Zi, Lao Tsé, Lao Tzi, Lao Tseu, Lao Tze, Lao
Tan e Li Erh. Especula-se que tenha vivido entre 604-517 a.C. e que segundo a tradição foi
arquivista na corte de Zhou (Bizerril, 2010; Mocarzel, 2011), embora ainda haja incerteza sobre
4
Kung-Fu-Tsé ou Confúcio (孔子)3, ambos ícones da história e filosofia da
China. Tanto o Taoísmo quanto Confucionismo baseiam-se na primazia do
comportamento moral, onde em ambas as filosofias orientais seriam dois
valorosos pilares edificadores da harmonia e consequentemente do bem
(Mocarzel, 2011).
tais datas ou mesmo sobre sua existência, sendo alvo de profunda discussão sinológica (Kohn,
2001). É considerado o pai do Taoísmo (道家).
3
As palavras que compõem o nome de Kung-Fu-Tsé de forma romanizada podem ser
encontradas com variações, como: Kǒng Zǐ, K'ung-tzu, Kǒng Fūzǐ, K'ung-fu-tzu. Viveu entre
551-479 a.C. (Oliveira, 2006; Mocarzel, 2011), sendo talvez o erudito mais importante de toda
história chinesa com suas políticas sociais reformadoras. É considerado o pai do
Confucionismo (儒家). Foi talvez na história o primeiro grande defensor da “Etocracia”;
ideologia que, segundo Murad (2009), busca a elevação do poder dos valores éticos, morais e
educacionais, fundamentalmente tendo os líderes do povo como exemplos para seus
subordinados.
5
algo superior e belo, atingindo o virtuosismo em suas ações, tocando e
contaminando quem o observa (Coelho & Lacerda, 2012; Lacerda, 2007).
Assim, a busca da união vívida e genuína dos princípios ético e estético na vida
do ser, tendo a alegria de se superar e vencer os desafios sejam eles
transitórios ou constantes (Monahan, 2007), ampliando também sua visão de
capacidades e possiblidades (Coelho & Lacerda, 2012), como expressado
abaixo no conceito “Homo Disciplinatus” (Mocarzel & Murad, 2012, p.94).
6
Quadro 1 – Síntese das dissertações doutorais encontradas sobre artes marciais realizadas em
Portugal no campo das Ciências do Desporto (e afins).
TÍTULO DA DISSERTAÇÃO AUTOR INSTITUIÇÃO (ANO)
A capoeira: a transformação de uma atividade Araújo, Paulo Coelho FADEUP (1995)
guerreira numa atividade lúdica. de.
Modelo(s) de ensino do judo em Portugal: para Veloso, Rui Jorge de UTAD (2015)
um conhecimento e compreensão do processo Abreu.
de formação desportiva na modalidade.
7
convergida aos princípios éticos em conjunto com os princípios estéticos do
Kung-Fu, pois a atuação mútua desses dois campos de valores legitimam a
preocupação educacional e deontológica, consubstanciada no pressuposto do
conceito de arte marcial, afastando-se, portanto, de atos de subversão e
violência.
8
posicionamento de fortalecimento e valorização do referido campo acadêmico
na lusofonia, decidiu-se produzir e publicar todos os estudos no idioma
português.
Valores ético e estético do Kung-Fu – uma Mocarzel, R.; Queirós, P. & Lacerda, T.
revisão sistemática (2020). Valores ético e estético do Kung-Fu –
uma revisão sistemática. Motrivivência,
32(62), 01-21.
Uma visão conceitual através dos tempos Mocarzel, R. C. S., Queirós, P., & Lacerda, T.
sobre o universo marcial à luz da Ética e O. (2019). Uma visão conceitual através dos
Estética – o caso do Kung-Fu tempos sobre o universo marcial à luz da ética
e estética – o caso do Kung-Fu. FairPlay,
Journal of Philosophy, Ethics and Sports Law,
15, 90-115.
Estudo Empírico
9
Estudo I – Valores ético e estético do Kung-Fu – uma revisão
sistemática
10
b) Diferenciar as práticas do universo marcial a partir de uma
categorização conceitual – esta diferenciação foi concretizada
através de uma taxonomia com definição de critérios relacionados
com as características e os princípios vertidos nas suas práticas.
11
traduziu, por um lado, num estímulo acrescido ao desenvolvimento da
pesquisa, por outro, não deixou de constituir uma limitação, já que o salutar e
instigador confronto com outras investigações no âmbito do Kung-Fu não pode
atingir o alcance desejado, sendo esta uma das suas limitações. Ainda assim,
pensamos que um certo pioneirismo pode ser atribuído a este estudo, o que se
traduz numa das suas forças, almejando-se que se possa vir a constituir como
referência para futuras investigações na área. Espera-se que o presente
trabalho possa servir às esferas acadêmica, desportiva e marcial, produzindo
outros estudos, enriquecendo o conhecimento sobre a ética, a estética, os
desportos de combate e o Kung-Fu.
12
2. Enquadramento Teórico e Metodológico
_______________________________________________________________
13
Este capítulo tem como propósito apresentar, aprofundar e assim por
sua vez também embasar elementos temáticos que serviram como eixos
teóricos onde esta pesquisa doutoral se alicerça. Aqui são trazidos à luz
tópicos como educação, desporto, axiologia, estética, ética, cultura oriental,
artes marciais e Kung-Fu. Tais tópicos são discutidos e refletidos, ora de modo
mais isolado ora de modo mais integrado, possibilitando o descortinar de novos
caminhos e reflexões no estudo dessas temáticas. Dessa forma, busca-se
suprir quaisquer possíveis lacunas de embasamento teórico que possam ter
surgido ou restado com as publicações dos estudos desta pesquisa doutoral
(que se deu em modelo escandinavo), fruto das limitações de paginação para
publicação, escopos dos periódicos e/ou eventos acadêmicos (dentre outros
possíveis limites encontrados).
14
humanidade pelos homens”. A premente necessidade de refletir e repensar
sobre os meios de educação e ensino junto à sua importância para a edificação
da sociedade e do ser humano, faz-se cada vez mais concreta e visível, sendo
foco da atenção de pessoas, governos e órgãos internacionais (Gadotti, 2005).
Para além das fronteiras culturais e étnicas onde se encontram os costumes e
hábitos idiossincráticos dos povos mundo afora, é na educação que repousa a
esperança de harmonização, evolução e conquista de dias melhores para o
indivíduo e para a sociedade. No século XVIII, Kant afirmava que “O homem
não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo
que a educação dele faz” (Kant, 1996, p. 15). Sob a luz dessas palavras, é
possível perceber a seriedade e importância desse assunto, pois se entende
que a carência de educação pode ser uma porta aberta para a subutilização
das capacidades do ser humano ou mesmo, algo pior, a utilização de forma
egoística e perniciosa, degradando o ser humano para algo ruim e menor. Faz-
se necessário, assim, discutir vigorosamente os problemas da educação para,
segundo Kant (1996), desvendarem-se os segredos da evolução da
humanidade. Mais: ao discutir a educação é necessário analisar o ser humano
de maneira holística, não desprezando a totalidade do ser e de sua conjuntura
sociocultural geral. Tudo que é humano não deve ser desprezado quando o
foco recai sobre a educação (Patrício, 1993).
15
XXI, Edgar Morin (2014) explicitou e apresentou o seu pensamento sobre este
assunto na obra “Os sete saberes necessários à educação do futuro”. Ali ele
ordena o que seriam saberes fundamentais para toda e qualquer sociedade e
cultura, afastando-se de exclusividades e rejeições. Alerta que tais saberes são
sim respaldados na ciência, contudo estes seriam efêmeros, pois além de
reconhecer o conhecimento como transitório e em processo eterno de
maturação, ainda tocam “em profundos mistérios referentes ao Universo, à
Vida, ao nascimento do ser humano. Aqui se abre um indecidível, no qual
intervêm opções filosóficas e crenças religiosas através de culturas e
civilizações” (Morin, 2014, p. 13). Esses “sete saberes” são: 1) as cegueiras do
conhecimento – o erro e a ilusão; 2) os princípios do conhecimento pertinente;
3) ensinar a condição humana; 4) ensinar a identidade terrena; 5) enfrentar as
incertezas; 6) ensinar a compreensão; e 7) a ética do gênero humano.
Entende-se que o autor principia seu raciocínio sobre educação abarcando a
necessidade do homem em reconhecer sua ignorância e suas falhas na busca
pelo conhecimento, de certa forma clamando assim pelo abaixar da guarda do
ego humano e pedindo um ato de humildade e de autorreflexão. Destarte,
progressivamente os discentes passariam a estudar e a compreender o mundo
de maneira externada, ou seja, de dentro (do eu) para fora (do mundo). Por fim,
compreenderiam suas inseguranças como algo comum e humano e não mais
como fraqueza, o que estimularia a fraternidade e cooperação entre os homens
em uma atitude coletiva profundamente ética. Sem dúvidas, um currículo
imerso em valores. Soma-se a tal reflexão a máxima de Merleau-Ponty (1989,
p. 136):
16
constituem o mundo que o cerca e o envolve dia a dia. Deste modo, quando
reflete sobre o mundo, o homem acaba por descortinar também novas auto
expressões, o que se dará até o findar da vida. Nasce então uma centelha
criativa através do corpo, que por sua vez materializa e dimensiona o que viu
traduzido à sua forma por meio de seus gestos. Dá-se aí a chamada “dialética
de visibilidade construída a partir do olhar corpóreo, do movimento e da
subjetividade” (Silva & Porpino, 2014, p. 67). Ter tal experiência vai além da
execução mecânica, ela pode dar início a um processo contínuo e frequente,
gerando um costume, uma tradição e, quando em coletivo, um habitus
(Raffaelli, 2013). Por conta disso, faz-se extremamente necessário a
humanidade ir muito além da visão. Como já enunciara o célebre poeta
português Fernando Pessoa4, “pensar é estar doente dos olhos”.
4
Fernando Pessoa teceu seus escritos fazendo uso de diversos heterônimos, dentre alguns
deles: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares. Por conta de tal fato,
Hass (2009) chegou a dizer que Pessoa inventava poetas inteiros e o coloca em um patamar
cimeiro dentre os escritores e poetas do mundo ocidental (e não somente da lusofonia).
17
fundamental a compreensão teórica profunda e extensa para que a prática
possa ser elevada e otimizada em prol do bem. Srour (2008) já deixa a
entender que o mais difícil não é fazer o que é certo, mas sim descobrir o que é
certo fazer. Logo, fica clara a necessidade da educação revestida de valores,
uma educação axiológica. Algo já preconizado por Aristóteles (ed. de 2015)
quando afirmava que apenas saber o que é a excelência moral ou mesmo
intelectual não se faz o suficiente. É necessário sim um esforço genuíno em
possuir e praticar tais excelências ou mesmo experimentar quaisquer outras
formas e meios para os homens se tornarem bons. Complementarmente,
Baptista (2005, p. 23) pontua que sensibilidade, prudência, solicitude ou
bondade, são marcas de uma ação ética investida e que requerem o exercício
pessoal de uma consciência crítica.
5
Importante esclarecer que a expressão “Educação Física” é utilizada no Brasil (país de origem
da autora citada) como sinônimo das expressões “Ciências do Desporto” e “Ciências da
Motricidade Humana” utilizadas em Portugal.
18
manifesta-se não apenas o ser humano como indivíduo, mas sim, como ser
coletivo descortinando as lógicas, obviedades e ambiguidades de sua
sociedade (Murad, 2009). Assim, elucida Tubino (1993, p.12): “a história do
desporto é íntima da cultura humana, pois por meio dela se compreendem
épocas e povos, já que certo período histórico tem o seu esporte e a essência
de cada povo nele se reflete”. Portanto, o desporto (ou esporte) é uma
representação microssociológica transcendental do coletivo humano sob o
prisma temporal que, por sua vez, também se divide em incontáveis esferas e
campos de estudos e práticas (Murad, 2009). Ainda é reforçado por Bento
(1995, p.231) que toda essa transformação histórica acarreta grande influência
nas mudanças de pensamento “(...) sobretudo no plano dos valores, dos
direitos, dos interesses, dos problemas e das necessidades”. Fica mais que
evidenciado então que o universo do desporto / motricidade humana /
educação física se contempla em múltiplas esferas não só anátomo-fisio-
lógicas, mas também bio-sócio-filosóficas (Darido, 2003).
19
histórica deste fato os Jogos Olímpicos da Antiguidade em aproximadamente
776 a.C. (Basso, 2012). Entende-se então que, ao menos já há mais de dois
milênios, o desporto, mesmo que ainda de forma incipiente e em um formato
diferente daquele que é conhecido hoje, já possuía alguma propriedade
civilizadora. Tais pensamentos somam-se às atuais reflexões de Elias (1994)
sobre sua conceituação do “processo civilizador”, onde o desporto pode (e
deve) ser um meio educativo, colaborando com o entendimento de questões
axiológicas e deontológicas de forma tanto teórica quanto prática. O desporto,
solidamente embasado em fundamentos educativos e axiológicos, pode
proporcionar a transmissão de princípios marcantes para a diminuição das
manifestações de violência na sociedade como um todo (Rosa, 2021), sejam
elas manifestações físicas ou mesmo, como enunciado por Bourdieu (2000),
manifestações simbólicas.
20
princípio da Inclusão, princípio da Participação, princípio da Superação,
princípio do Desenvolvimento do Espírito Esportivo, princípio do
Desenvolvimento Esportivo, princípio do Prazer, princípio do Esporte de
Desempenho, princípio do Esporte-Educação e princípio do Esporte-Lazer. É
possível dizer que hoje, o desporto tornou-se algo tão intrínseco do ser
humano, que talvez possa ser considerado como uma espécie de identidade
(Murad, 2007), algo já mesclado à cultura humana (Rosa, 2021). Reforça-se a
isso a existência da prática de educação física nas escolas e colégios mundo
afora. É no ministrar dessa disciplina curricular imersa no universo do desporto
que, ludicamente, as crianças desde cedo começam a compreender (teoria) e
exercitar (prática) princípios educacionais que suportam os fundamentos
civilizadores: respeitando regras e autoridades, reconhecendo limites físicos
próprios e dos colegas, desafiando e descobrindo suas capacidades
psicomotoras, desenvolvendo estratégias para vencer as adversidades, criando
o sentimento de cooperação e de coletivo social, experimentando e superando
a frustração das derrotas e o orgulho ególatra das vitórias; enfim, como parte
do processo de civilização do ser humano (Bento, 1995). Trata-se, portanto, do
espírito desportivo oriundo do caráter agonístico da vida humana já preceituado
pelos gregos (Reid & Evangeliou, 2008) em sua época clássica no século V
a.C. Pode-se dizer que se perfaz deste modo o Homo Sportivus (Tubino, 1990).
21
detalhadamente, respeitando interpretações diferentes de entendimento, por
conta da realidade humana ser multifacetária, peculiar e particular para cada
caso específico.
22
ou indiretamente o corpo, a mente e a alma do ser humano, como a ambrosia
as divindades do Olimpo.
23
é possível dar forma a uma ilustração exemplificativa (fig. 1) dos ditos de
Patrício (1993), onde se apresenta uma ordenação dos valores. Estes últimos
são ali dispostos em primeiro de forma mais basal os valores vitais, em
segundo os valores práticos, em terceiro os valores estéticos, em quarto os
valores lógicos, em quinto os valores éticos e por fim, na cumeeira da pirâmide
axiológica, os valores religiosos.
24
A ética (considerando todas as suas possibilidades de extensão) talvez
seja uma das temáticas mais discutidas, mesmo que informalmente, no século
XXI. A busca por um comportamento ético coletivo (e não somente individual)
nas diversas esferas da sociedade humana é algo desejado por praticamente
todos. Debatem-se hoje comportamentos éticos para com o amor, com a
amizade, com o trabalho, com o dinheiro, com a educação, com o meio
ambiente, com a saúde, com a religião, com a mídia, com o lazer, com o
animal, com a pesquisa, com o esporte, com o sexo, com a política e até com a
guerra. Para aludir sobre o tema, Cortella (2005a) expõe que a ética tem
relação direta com o coletivo, entretanto, enfatiza tal afirmação sendo
relacionada à liberdade do indivíduo, como é fundamental o ser humano
entender suas capacidades e fazer bom uso delas para um real bem coletivo
maior (Cortella, 2005b, p.5): “Daí, da liberdade, vêm as três grandes questões
éticas que orientam (mas também atormentam, instigam, provocam e
desafiam) as escolhas do indivíduo: Quero? Devo? Posso?”. Conclui-se a
existência de coisas que: pode se querer, mas não se deve; se deve, mas não
se pode; ou mesmo, se pode, mas não se quer. A reflexão sobre o crivo ético
do indivíduo se fará importantíssima para a determinação de suas ações
futuras. Afinal, como explanado na 1ª carta de Paulo aos Coríntios, no início do
primeiro milénio: “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” (1 Coríntios
6,12). De forma ainda mais conclusiva e profunda, Jesus diz “Pois, que adianta
ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8,36).
6
Apesar de diversos atritos históricos entre a religiosidade (fé) e a filosofia (ciência), não é raro
ver ambas coexistirem e concordarem em textos que se inserem em discussões educacionais
25
homens, afirmando que o indivíduo deve agir de tal maneira tratando a
humanidade sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio (tanto
para consigo mesmo como para com a pessoa de qualquer outro). Percebe-se
que o altruísmo possui também uma significativa vertente ética. Enfim, é por
meio dessas qualidades volitivas e do autodomínio que o ser humano faz suas
escolhas de ação, gerando consequências socioculturais, inclusive a
transformação de pensamento de todo um povo através dos tempos,
constituindo assim o que Bourdieu (1996, p.21) nomeia de habitus, um
importante “(...) princípio gerador e unificador que retraduz as características
intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é,
em conjunto unívoco de escolhas, de bens, de práticas”. Uma matriz cultural
(Murad, 2009) que não pode nem deve ser desprezada. A base da educação
de uma cultura é permeada desses princípios éticos e morais (Kant, 1996),
sendo útil ainda para a busca do bem e a preservação da civilização (Ribeiro &
Zancanaro, 2011). Para um resumido esclarecimento de diferenciação
conceitual, disse aqui “ética” para o entendimento e normatização do
comportamento coletivo e costumes de um grupo, nação, tribo e/ou povo. Já
“moral” por sua vez se alude à execução de tais comportamentos e costumes
da referida população. Ou seja, a ética como conceito teórico e a moral como
práxis de tal.
mais alargadas. Reforçando-se a isso, lembra-se ainda que a estrutura educacional ocidental
faz-se amplamente alicerçada no direito romano, na filosofia helênica e na fé do Deus de Israel.
Dão-se aí os 3 pilares da civilização ocidental (Bento & Bento, 2014).
26
superando seus instintos de frustração e egoísticos para tal façanha, tornando
o coletivo mais pacífico.
7
As palavras que compõem o nome romanizado do “Tao Te King” podem ser encontradas com
variações, como: Tao Te Ching ou Dao De Jing. Também conhecido como “Livro do caminho e
da virtude”. É um dos textos fundamentais dos princípios filosóficos, reflexivos e educacionais
do Taoísmo (Mocarzel, 2011), sendo ainda o livro mais traduzido do mundo após a Bíblia
(Cunha & Rego, 2007).
27
destaca-se a cultura (de forma geral) como uma “arte viva”, em constante
modificação, buscando se adaptar e superar as dificuldades que surjam em
todos os momentos em prol de uma harmonia maior. Esse pensamento soma-
se às colocações de Geertz (1989) sobre como a cultura da sociedade humana
também é dinâmica e muda a todo instante, algo também já preceituado por
Durkheim (1995, p.303) ao afirmar “(...) que a humanidade se faz, se desfaz e
se refaz sem parar (...)". Não diferentes tais transformações também ocorrem
na área de talvez maior influência do desporto em conjunto com a educação: a
educação física. É defendido por Daolio (2007) que é nessa conjuntura cultural
efêmera que o professor de educação física atua, influenciando e sendo
influenciado constantemente sob o prisma cultural:
28
humano em seu meio de atuação. Jorge (2014) afirma a necessidade de
institucionalizar a ética, fazendo parte dos princípios educacionais não só dos
indivíduos (pessoas físicas), mas também das instituições (pessoas jurídicas),
tendo sido tal pensamento cada vez mais aceite pela sociedade nas principais
áreas de manifestação humana. Acredita-se que é daí que se germinou com o
passar dos tempos a instauração de ações éticas no desporto, tendo seu cume
de propagação no esporte contemporâneo com o auxílio de instituições
mundialmente importantes no desporto (como, Comité Olímpico Internacional –
COI, Federação Internacional de Futebol – FIFA, Agência Mundial Antidoping –
WADA, dentre outras), recebendo as lentes da grande mídia internacional.
8
Infelizmente, Sócrates não escreveu seus ensinamentos. Foram Platão e Xenofonte, seus
discípulos, que difundiram suas filosofias e pensamentos após sua morte (Mocarzel & Columá,
2020).
29
Sintetizando os pensamentos dos ocidentais ícones da filosofia e
precursores da reflexão ética, pode-se observar que as premissas do desejo da
ética estão em alcançar uma transcendência ao sagrado e divino, repousado
na verdade oculta no espírito do ser, podendo ser descoberto através do
estudo reflexivo e do ato do bem. É na sabedoria que se encontram as virtudes
éticas, onde o homem virtuoso sabe discernir sobre a felicidade e o bem-estar
humanos por meio da Paideia (Monteiro et al., 2015). Exatamente neste prisma
que a ética no e do desporto passa a ser elevada no Ocidente, mais
especificamente na Inglaterra no século XIX, por meio do Associacionismo.
Com o advir dos Jogos Olímpicos da Modernidade à porta do século XX, é
agregado ao Associacionismo o princípio do Fair Play, este último base para a
ética do Movimento Olímpico (Tubino, Tubino & Garrido, 2007).
30
Passando agora a discorrer sobre a segunda categoria axiológica,
porém deixando muito claro sua relação quase que indissociável com a
categoria anterior, a ética tem uma profunda ligação com a estética (Bayer,
1993; Hermann, 2005). Para esclarecimento, a palavra estética é oriunda do
termo grego “aisthesis”, denotando sensibilidade, podendo ainda expressar
percepção ou sensação da afetividade humana (Bayer, 1993; Huisman, 1994).
Enfim, a estética busca sua existência no sentir, na emoção, na experiência
que aflora o prazer sensível (Perniola, 1998). “A estética nasce da tentativa de
explicitar o papel que as sensações e as emoções desempenham no
pensamento humano” (Townsend, 1997, p.10).
31
idade, doenças, acidentes ou problemas na formação congênita ou no
nascimento (Lacerda, 2007; Mocarzel, 2016). Por conta disso que o desporto
adaptado (seja para qual corpo for) é preciosíssimo e torna-se um campo áureo
para o campo da estética do desportivo. Metaforicamente, a estética sendo o
palco, tendo o desporto e a motricidade como peça teatral, constitui o pano de
fundo das ciências do desporto com os atletas como seus artistas principais.
32
visibilidade por meio de suas ações fantásticas. Ações essas que carregam
consigo a fruição estética da superação da realidade humana (Herrero, 1988).
Assim, esse fenômeno, o desporto, chama, atrai, cativa, une, surpreende,
apaixona, encanta. Indo além, pode-se dizer que é através desse despertar de
emoções advindas dos admiradores que ele perpetua sua magnitude, pois isso
alimenta sua celebração e mesmo seu imaginário, transfigurando a
humanidade em miríades de bardos que narram os feitos ali presenciados e
registrados na história humana. Ainda nesse espírito, Gumbrecht (2007) tece
uma verdadeira ode à estética do desporto onde descreve inclusive elogios à
beleza atlética de forma mais tangível através de elementos nomeados por ele
como “os sete fascínios do desporto”. São eles: corpos esculpidos, sofrimento
diante da morte, graça, instrumentos que aumentam o potencial do corpo,
formas personificadas, jogos como epifanias e timing.
33
em meio ao perigo de acidentes e atropelamentos, gerando assim catarses de
angústia, ansiedade, emoção, euforia. Os esportes radicais que criam um
profundo religar do homem com o meio ambiente e a natureza em práticas de
escalada que desafiam a gravidade e a vertigem. A maratona que jaz na
história do desporto há milênios, proporcionando uma díade de sofrimento e
glória aos poucos capazes de completá-la. Os desportos de combate que
majoritariamente têm em sua essência o contato direto do adversário contra
seu corpo, ocasionando impactos ou deslocamento forçados perigosos ao solo,
podendo propiciar grandes lesões e danos se em proporções desmedidas.
Outrossim, de forma metafórica sobre esse fascínio, o famoso filme “Rocky
Balboa” de 2006, ícone da chamada “cultura pop”, mostra o lutador de Boxe
outrora campeão mundial e agora já aposentado conversando com seu filho,
explicando a ele que o simples ato de viver já é um ato de superação de
obstáculos constante como era quando ele lutava no ringue:
34
diz-se de extensões do corpo dos atletas. Podem ser incluídos os animais e
máquinas (como em equitação e automobilismo). Além disso, ganham luz
outros instrumentos como armas e equipamentos peculiares que se “fundem”
com o corpo humano buscando uma simbiose. Lembra-se aqui a união de uma
amazona montando e guiando seu corcel, perfazendo assim dois corpos, duas
mentes, duas emoções, em busca de uma união graciosa de “um só espírito”.
A sutileza dos movimentos precisos do jogador de bilhar ao colidir o taco com a
bola em um ponto específico, com a força e sentido certeiros. As formas
coreografadas de artes marciais fazendo uso preciso de armas brancas, como
o facão, a espada, a lança ou o bastão no Kung-Fu.
35
forma que seus gestos se unissem à musica elencada. Inegavelmente pode-se
dizer que sua coreografia afastou-se do habitus (Bourdieu, 1996) do referido
esporte, que tem em sua essência histórica as coreografias e passos de ballet
(Gumbrecht, 2007). De fato críticas surgiram, no entanto não foram suficientes
para abafar ou sobrepujar os aplausos e ovações que se concretizaram com os
diversos títulos subsequentes da ginasta. O gosto de alguns mais ortodoxos
pode ter sido de certa forma afrontado (mesmo que não intencionalmente), mas
o ineditismo daquele ato gerou um momento estético singular e vanguardista.
36
e surpresa dos espectadores e jogadores que quebra o padrão organizado e
esperado da ordem, gerando assim um momento estético. Importante dizer que
de forma alguma as valências físicas são aqui desprezadas. Ou mesmo, quem
sabe, haja ainda até um pouco de sorte. Contudo, entende-se que esse
momento estético nasceu do somatório das valências físicas do jogador, seu
aprumo técnico-táctico conquistado arduamente em treinamentos, com a
conjuntura situacional ali ocorrida e, claro, a áurea criatividade ali demonstrada.
De forma a vislumbrar de maneira histórica basta relembrar no futebol a
plasticidade do chute de ponta-cabeça hoje mundialmente conhecido como
“bicicleta” de Leônidas da Silva (o “Diamante Negro” da Copa do Mundo de
1938), os chutes certeiros de “bate-pronto” de Cristiano Ronaldo (melhor
jogador do mundo por vários anos), a astúcia dos dribles de Mané Garrincha
(considerado por muitos um dos maiores dribladores da história). Enfim, nesses
raros instantes estéticos, a criatividade se fez presente de forma cumeeira,
gerando surpresa aos olhos e vociferando da boca um “mantra estético”: “uau!”.
9
Mais especificamente Senna fez 1’23:998, já Prost fez 1’25:425, uma diferença de 1:427 de
segundo.
37
fato do ocorrido se dar em Mônaco, onde muitos apontam ser uma das provas
mais difíceis (se não a mais difícil) do mundo automobilístico. Os técnicos da
McLaren (equipe em que Senna corria naquele ano) e da Honda (fabricante
dos motores da equipe na época) afirmaram ao piloto que em certo momento
da classificatória os computadores acusaram que Senna teria alcançado o
máximo de potência do carro gerando surpresa e espanto a todos. Contudo a
surpresa não teria se encerrado aí. Senna por sua vez, após ouvir o relato dos
técnicos, conta reservadamente aos seus companheiros de equipe e familiares
que em certo momento se sentiu em uma espécie de dimensão paralela, com
torpor físico, mas em alerta cognitivo, algo que nunca sentira antes, mas diz
ainda que teve uma sensação de aproximação com plano espiritual. Uma
espécie de experiência que deixara de ser imanente e passara a ser
transcendente.
38
intenção estética.
39
2.3 Das metodologias aplicadas
40
estruturação da pesquisa, foi necessário decidir inicialmente a concepção
fundamental da metodologia de investigação que seria empregada. Estava
claro que a mesma se faria real sob a égide de uma pesquisa qualitativa, pois o
tipo de abordagem às questões educacionais, comportamentais e
socioculturais, buscava a interpretação e compreensão dos fenómenos. Sob
um prisma histórico, a pesquisa qualitativa foi largamente utilizada em áreas de
estudo do campo humano, como história, sociologia, antropologia e afins
(Goellner, et al., 2010). Hoje, faz-se também presente de maneira sólida no
campo das ciências do desporto. Para fins de esclarecimento, Thomas, Nelson
e Silverman (2007) afirmam que a pesquisa qualitativa é um método
sistemático de investigação que tem por hábito seguir o método científico de
solução de problemas. Indo além, afirmam ainda que é comum, muito embora
não necessariamente obrigatório, não haver hipóteses do estudo, mas sim o
uso de questões mais gerais como forma de guia para nortear o estudo. Assim,
a pesquisa progride em um processo de forma indutiva de desenvolvimento de
teorias e hipóteses à medida que os dados são adquiridos e interpretados. Por
fim, destacam: “O pesquisador é o instrumento primário da coleta e análise de
dados” (Thomas, Nelson & Silverman, 2007, p. 31). Por sua vez, Flick (2009)
aponta a pesquisa qualitativa como de fundamental importância para a
humanidade, ao que tange a complexidade e pluralidade das esferas da vida,
principalmente quando repousadas em campos mais subjetivos do que
objetivos. Por isso o autor diz que os aspectos essenciais da pesquisa
qualitativa se materializam
41
tema maior. Os mesmos autores afirmam que habitualmente elenca-se o
modelo escandinavo em detrimento ao modelo clássico (ou tradicional) para
possibilitar uma maior produção científica com relação ao número de
publicações apresentando temas complementares.
42
modo como diferentes partes de um campo de pesquisa se podem interligar,
conduzindo, assim, a um entendimento mais global e articulado, pela
configuração das diferentes partes que perfazem o todo”. Assim, o
conhecimento passa a ser mais acessível e confraternizado, tornando-o mais
maduro e desenvolvido, tanto em âmbito teórico quanto prático. Importante
dizer, que não se tem aqui o intuito de descredenciar a relevância da revisão
de literatura mais tradicional (ou revisão narrativa) tais quais seus contributos
na história da pesquisa humana. Todavia, vem-se aqui destacar outra
possibilidade de execução de revisão de literatura, nomeadamente revisão
sistemática, que apresenta um maior rigor metodológico comparativamente e
que, por sua vez, pode elevar a fiabilidade do estudo (Gomes & Caminha,
2014) contribuindo ainda com sínteses e não somente levantamento de
literatura disponível (Medina & Pailaquilén, 2010). Indo além e
complementando o pensamento anterior, Sampaio e Mancini (2007) defendem
que a revisão sistemática norteia o desenvolvimento de pesquisas sobre uma
temática conglomerando estudos diversos, tornando-se um recurso importante
perante o crescimento acelerado da informação científica, ajudando a sintetizar
evidências disponíveis na literatura mesmo que escassas. Mais: seus
resultados passam a ser significativas referências para estudos futuros sobre
as temáticas abordadas.
43
milenar chinesa tida como símbolo da cultura sino). Sendo assim, foi
necessária uma imersão em aspectos e elementos culturais chineses mais
profundos. Nesse tocante, foram abordadas questões históricas, filosóficas,
socioantropológicas, contudo, a linguagem e escrita se faziam altamente
relevantes para as discussões e reflexões objetivadas. Destarte, foi realizada
uma interpretação hermenêutica de alguns ideogramas caros ao tema em
questão. Para Ricoeur (1989), autor ícone sobre a interpretação de narrativas,
a hermenêutica é um significativo caminho metodológico para o entendimento
mais profundo da literacia de fontes teóricas, tanto obras acadêmicas quanto
da poesia. Silva (2011) complementa que a hermenêutica é ainda um
instrumento e mesmo um guia para a compreensão de discursos de cunho
filosófico, político, pedagógico, dentre outros campos. Por tais razões, a
hermenêutica empregada de forma a ser instrumento de compreensão do
discurso ou da ação, torna-se um laço de compreensão com o “espírito
mimético ou alegórico” que um texto pode carregar. Por isso, Silva (2011, p.
20) afirma que “toda obra tem caráter simbólico, seja um discurso (uma
linguagem) ou uma palavra, e necessita da mediação simbólica do mito, da
poesia ou do símbolo”. E exatamente por conta de possíveis subjetividades
encontradas na linguagem humana (escritas, faladas, ilustradas e afins), tanto
Schmidt (2012) quanto Stein (2010), dois relevantes nomes no estudo
hermenêutico, são verticalmente categóricos quando descrevem a
hermenêutica como uma busca genuína pela mais pura interpretação do
sentido expressado na linguagem.
44
não se faz uma verdade única, havendo uma posição intermédia nesse
espectro, onde destacam a chamada entrevista semiestruturada 10, onde o
entrevistador segue seu guião (ou roteiro) de entrevista, mas a qualquer
instante pode tomar novos rumos desde que isso proporcione um melhor
andamento e coleta de dados da pesquisa. Evidentemente, a seleção do
modus operandi da entrevista também irá variar de acordo com o objetivo da
investigação em questão (Queirós & Lacerda, 2013). Por fim, tanto Thomas,
Nelson e Silverman (2007) quanto Queirós e Lacerda (2013) apontam que
mesmo que o entrevistador faça as mesmas perguntas aos entrevistados
participantes da pesquisa, não é raro haver variação da ordem, das palavras
exatas utilizadas nos questionamentos ou até do tipo de questões abordadas
pelo entrevistador. Logo, se faz cristalino que os baixos ou altos predicados
dos dados obtidos em uma entrevista de pesquisa qualitativa são altamente
dependentes da qualidade do desempenho do entrevistador. Segundo Queirós
e Lacerda (2013), as entrevistas qualitativas têm o poder de proporcionar
aberturas e caminhos aos investigadores, para assim acederem aos
pensamentos, opiniões, preocupações, ansiedades e valores dos
entrevistados, muito embora alertem também que tal método tem suas
limitações ao que tange o quesito prático, pois podem tocar em assuntos mais
sensíveis e caros aos entrevistados. As autoras ainda continuam a destacar
outra categorização de entrevista. Primeiro pontuam haver a entrevista clínica,
utilizada para diagnósticos em geral. Em segundo, citam a entrevista de
recrutamento que é comum para seleções diversas. Enfim, aludem sobre a
entrevista de investigação, que se perfaz “(...) um desejo de conhecimento e
por isso é uma entrevista orientada para a informação. O saber teórico do
investigador ocupa o pano de fundo da prática da entrevista e delimita o campo
de pesquisa” (Queirós & Lacerda, 2013, p. 183).
45
profundidade para o levantamento das informações qualitativas, onde, assim, o
entrevistador pôde questionar focado objetivamente no tema principal da
pesquisa e permitiu que os entrevistados respondessem de maneira não tão
formal, algo mais livre e espontâneo (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 2002),
possibilitando ainda “explorações não previstas, oferecendo liberdade ao
entrevistado para dissertar sobre o tema ou abordar aspectos que sejam
relevantes sobre o que pensa” (Negrine, 1999, p.74). Sobre o contexto de
participação, optou-se em realizar as entrevistas com apenas três participantes.
De fato, aparenta ao primeiro olhar configurar-se como um número baixo de
participantes, entretanto, tais participantes são sagrados como membros do
mais elevado patamar hierárquico dentro do Kung-Fu (Mestres/Grão-Mestre) e
que ainda capitaneiam estilos tradicionais largamente difundidos em âmbito
internacional. Dessa forma, planeou-se ter extrema profundidade e riqueza
informativa oriunda de membros que estão em posições cumeeiras,
objetivando alta relevância e credibilidade nos discursos produzidos e na
informação recolhida. As entrevistas ocorreram entre novembro de 2017 e
outubro de 2018. Procedimentalmente, uma entrevista se deu presencialmente
(sendo gravada por áudio) e duas entrevistas se deram via videoconferência
(sendo gravadas por áudio e vídeo), onde se deixou os participantes falarem
sem maiores interrupções, pois, como já foi referido por Queirós e Lacerda
(2013, p. 194): “Constitui um mau hábito os entrevistadores interromperem e
desviarem a conversa muitas vezes, já que num projeto de entrevista
qualitativa a informação é cumulativa, isto é, cada entrevista determina e liga-
se à seguinte”. Seguindo os alertas de Thomas, Nelson e Silverman (2007) e
Queirós e Lacerda (2013), todas as entrevistas foram realizadas em locais
considerados pelos entrevistados de ambiente cordial, para estimular respostas
francas e verdadeiras em seu inteiro teor, sem intimidar os participantes.
46
“checagem pelos participantes”, prática que repousa nos princípios éticos da
pesquisa e que consiste em transcrever tudo que foi dito e observado na
entrevista (de maneira integral) e devolver aos entrevistados para sua
corroboração e aprovação, proporcionando consequentemente maior
credibilidade nos dados adquiridos nas entrevistas (Negrine, 1999; Alves-
Mazzotti & Gewandsznadjer, 2002).
47
descoberta e o segundo com função comprobatória de natureza administrativa
dos dados e provas objetivando a corroboração de informações. Contudo, os
autores alertam que dentro do universo da investigação científica social e do
tratamento de dados, há a necessidade de ter em mente que apesar de
algumas aproximações e similaridades, o conceito de análise de conteúdo não
é uma tautologia para com outras expressões e conceitos, como linguística,
análise linguística, análise documental ou análise do discurso. Outrossim,
afirmam que “a finalidade da análise de conteúdo é pois efetuar inferência, com
base numa lógica explicitada, sobre as mensagens cujas características vão
ser inventariadas e sistematizadas, no fundo desocultar um pensamento”
(Queirós & Graça, 2013, p. 121). Por fim, os autores aludem ainda sobre os
modos indutivo e dedutivo da execução da análise de conteúdo. Ao salientar o
modo indutivo ressaltam que não se fazem presentes ideias teóricas ou
hipóteses ao início do estudo, afirmando que as considerações conceituais são
advindas e relacionadas com os dados adquiridos do tema estudado, sem
partir também de categorias analíticas predefinidas. Por outro viés, o modo
dedutivo é comumente utilizado quando a análise que é executada já possui
conhecimento prévio em um modelo pré-estabelecido, fazendo-se um modo
valioso para testar teorias ou ainda quando já existente um quadro conceitual.
Ou seja, entende-se que no modo indutivo, os processos de construção e
criação de categorizações habitualmente se dão a posteriori do seu início. Os
estudos desta tese doutoral se classificam no espectro do modo indutivo, tendo
sido construídos e direcionados com os resultados paulatinamente encontrados
no decorrer da pesquisa.
48
3. Estudos Teóricos – Estudo I
_______________________________________________________________
49
Resumo
Introdução
50
No universo desportivo, as artes marciais são popularmente
reconhecidas como práticas disciplinadoras e educativas, exigindo não só
dedicação no treino físico, mas ainda respeito e zelo no comportamento diário
para consigo mesmo e para com o próximo (LIMA, 2000; IEDWAB,
STANDEFER, 2001; MOCARZEL, COLUMÁ, 2015). Antes mais difundidas no
Oriente, hoje as artes marciais são propagadas mundo afora incluindo o
Ocidente. Dentre as artes marciais mais antigas e tradicionais destaca-se aqui
o Wushu, arte marcial chinesa mundialmente conhecida como Kung-Fu.
O Kung-Fu é uma arte marcial chinesa com registros datados de mais de
dois milênios antes de Cristo, correspondendo a um dos mais antigos métodos
de autodefesa da humanidade (TUBINO; TUBINO; GARRIDO, 2007;
MOCARZEL, 2011). Ao decorrer dos tempos, o Kung-Fu foi absorvendo e
enriqueceu seu conteúdo com diversos componentes da cultura chinesa,
conglomerando elementos históricos, marciais, terapêuticos, folclóricos e
filosóficos (LIMA, 2000; APOLLONI, 2004; ACEVEDO; GUTIÉRREZ; CHEUNG,
2011; MOCARZEL, 2011; CARNEIRO, 2013).
Ao que tange a compleição filosófica do Kung-Fu, pode-se afirmar que
boa parte de sua natureza adveio de influência direta de pensamentos taoístas
e confucionistas, filosofias extremamente presentes na história da China antiga
e que ajudaram a alicerçar princípios da medicina tradicional chinesa ou MTC
(MOCARZEL; COLUMÁ, 2015) e do budismo (APOLLONI, 2004; ILUNDÁIN-
AGURRUZA, 2014). Tais influências também se fazem sentir no valor
educativo do Kung-Fu, como pacifismo, harmonia, virtude e etocracia –
princípio que prega os superiores serem exemplo vivo aos seus subordinados
(MURAD, 2009).
Ao observar o Kung-Fu sob um espectro mais amplo, o mesmo não é
visto tão somente como um método de autodefesa, mas como prática de
transmissão de valores educacionais e que direciona seus praticantes até
mesmo para uma trajetória de busca espiritual e perpétua, em prol de uma
evolução do próprio ser (BÄCK; KIM, 1979; ALLEN, 2013). Tal fato é o que faz
o Kung-Fu ser reconhecido como arte marcial, pois este conceito denota
técnicas marciais que por sua vez são alicerçadas em princípios educacionais
sólidos e massivos, que pregam harmonia, qualidade de vida, mas acima de
tudo o pacifismo por seus praticantes (MOCARZEL; COLUMÁ, 2015). Dando
maior suporte a esse entendimento, Ilundáin-Agurruza (2014, p.464) traz sua
reflexão sobre o referido conceito, destacando que o mesmo está imerso em
valores, principalmente éticos e estéticos: “Estes caminhos [artes marciais] são
formas práticas e normativas notáveis que dão ética, estética e princípios
existenciais e valores”11.
Faz-se importante o seguinte esclarecimento. O entendimento ocidental
sobre a ética é maioritariamente convergido em seus primórdios principalmente
a Platão e Aristóteles, filósofos gregos que viveram no período clássico da
Grécia Antiga no século V a.C.; período esse extremamente próximo a
Confúcio, filósofo ícone do pensamento antigo chinês e oriental que viveu
poucas décadas antes na China antiga. Os aforismos e reflexões dos três
filósofos aqui citados bebem de fontes humanistas, onde enaltecem a virtude,
11
Tradução nossa.
51
uma meta a ser almejada pelo indivíduo. Contudo, Confúcio se posta de
maneira mais holística que seus colegas gregos. Enquanto Platão contemplava
mais o imaterial e Aristóteles mais o material, Confúcio se posicionava em um
patamar intermédio, afirmando que a busca pela harmonia e felicidade deveria
ser encontrada no equilíbrio da saúde e paz física, mental e espiritual e que
assim se perfazia o Tao – caminho de harmonia com o todo (BUENO, 2005) e
algo objetivado por praticantes de Kung-Fu.
Já numa visão contemporânea, a ética também tem sido utilizada como
lente temática para estudos sobre o universo da atividade física. Segundo
Meinberg (1990), a atividade física tornou-se popularmente um meio de buscar
uma “juventude prolongada”, todavia alerta que nem todas as formas práticas
de atividade física e do desporto são benéficas à saúde, pois limites podem ser
ultrapassados levando a mazelas e sequelas aos praticantes. Logo, constitui-se
assim um interessante e atual campo de estudo da ética. Reconhece-se que a
promoção da saúde do corpo e de sua beleza estético-cosmética sejam valores
e que devem ser levados em consideração. Todavia, as principais
preocupações de uma educação ético-estética vão para muito além da matéria
ou mesmo da carne, buscando assim servir ao desenvolvimento da natureza
humana em sua plenitude pura (ABE, 1986). É nessa guisa educativa filosófica
que nas artes marciais se constitui o Homo Disciplinatus (MOCARZEL;
MURAD, 2012).
Curiosamente, mesmo o Kung-Fu já sendo uma arte marcial milenar e
ser praticado mundo afora, apresenta no Ocidente poucas referências
bibliográficas que explanem de forma detalhada e profunda seus fundamentos
filosóficos, principalmente a ética e a estética. Tal fato agrava-se quando em
idioma português (MOCARZEL; QUEIRÓS; LACERDA, 2016). Boa parte dessa
carência se respalda em motivos histórico-culturais, onde Lima (2000) aponta
dois dos principais obstáculos que atrapalham o desenvolvimento de estudos
mais profundos sobre esse tema. O primeiro mais distante, onde ocorriam
ordens de destruição de registros culturais e documentais do povo vencido em
batalha. O segundo cita a subjetividade cultural chinesa, rica em metáforas,
filosofias, linguagens, dialetos, com ideogramas que podem ser traduzidos de
diferentes formas. Por tais problemáticas, a transmissão oral passou a ser
valorizada como forma de comunicação e perpetuação da informação na
cultura chinesa (GRANET, 1997), tornando escritos de fontes confiáveis mais
incomuns. No universo marcial, Ferreira (2005) diz que a transmissão oral
tornou-se comum, sendo o ato de falar a verdade uma demonstração de
nobreza e honradez. Contudo, não se pode deixar de ter o pensamento crítico,
pois a relação “mestre-discípulo” é passível de falha tratando-se de uma
comunicação entre seres humanos; ou seja, seres imperfeitos providos de ego,
podendo manifestar arrogância, soberba e vaidade, para além de equívocos e
desconhecimento de assuntos. Nesse entendimento, Luc Ferry (1997) já
alertava não ser incomum o narcisismo (mesmo velado) sobrepor-se à ética.
Traz-se também que o ego humano alimenta emoções tidas por filósofos
como menores e inferiores, ferindo valores éticos e estéticos. Apesar do termo
“estética” só ter sido cunhado por Alexander Baumgarten em 1750
(HERMANN, 2005), seu entendimento de busca da perfeição, dedicação
genuína e zelo já eram enaltecidos séculos antes de Cristo. Os gregos em
52
busca da Paidéia (NÓVOA, 1991) e povos orientais em busca da
transcendência e iluminação (LIMA, 2000; ALLEN, 2013). Cada um ao seu
modo, objetivando a aproximação do divino. Mais: soma-se a isso um famoso e
profundo lamento de Confúcio onde disse não ter visto alguém que ame a
virtude tanto quanto a beleza do corpo. Logo, demonstra-se aqui que a tensão
entre virtude e vício está inscrita na “matriz humana”, sendo comum a todos os
períodos da humanidade e locais do globo.
É importante aprofundar esta temática à luz do conhecimento produzido
nas últimas décadas, pelo que se torna necessário identificar, analisar e
compreender o aporte que a literatura (desde os anos de 1990 até dias atuais)
traz relativamente ao valor educativo do Kung-Fu. Neste sentido, o objetivo
deste estudo foi analisar os trabalhos publicados que incidem sobre os valores
éticos e estéticos no contexto do Kung-Fu, sinalizando o seu potencial
educativo. De forma específica, buscou-se destacar por meio das pesquisas
encontradas como e em que proporções surgem enunciados que convocam o
domínio da ética e da estética, convergindo para o valor educativo do Kung-Fu.
Justifica-se este estudo sob a argumentação que a maioria das
pesquisas em português no campo das artes marciais não recai sobre a
filosofia do desporto – que conglomera a ética e estética. Fato que se agrava
quando convergido ao Kung-Fu pela carência em referências (CORREIA;
FRANCHINI, 2010). Especificamente a estética ainda aparenta ser mais
esquecida mesmo em um campo de pesquisa mais abrangente como o da
educação física e desportos, supostamente a área mais indicada para
pesquisas nas artes marciais (GRAÇA; LACERDA, 2012). Assim, espera-se
que este estudo traga colaborações aos meios acadêmicos, desportivos e
marciais, enriquecendo o entendimento da ética e estética no Kung-Fu.
Método
53
éticas e estéticas. Dessa forma, foram efetuadas algumas buscas como ponto
de partida do estudo fazendo uso das seguintes palavras-chave (em português,
inglês e espanhol): "kung-fu" ou “kungfu” ou "kung fu" ou "wushu” e “estética” e
“ética”, tendo as variações da escrita do nome da referida arte marcial sido
alicerçadas pela pesquisa de Pérez-Gutiérrez, Gutiérrez-García e Escobar-
Molina (2011). Inesperadamente, resultados emergiram de maneira muito
discrepante e alternante, demonstrando muito ruído e excessos. Contudo,
tendo retirado as expressões “estética” e “ética” e refazendo a pesquisa
durante os primeiros dez dias de janeiro de 2018, objetivando, de tal modo,
observar uma constância de resultados homogêneos, os números que surgiram
foram concisos.
Dessa forma, a revisão sistemática foi realizada em etapas. Inicialmente,
o uso do motor de busca foi concretizado no mês de janeiro de 2018.
Elencaram-se as seguintes palavras: "kung-fu" ou “kungfu” ou "kung fu" ou
"wushu”. Determinou-se os campos de pesquisa nas áreas disciplinares de
“Antropologia”, “Artes Dramáticas e Teatro”, “Educação”, “Estudos Culturais
Étnicos”, “Cinema”, “Saúde e Medicina”, “História”, “Ciência e História Militar”,
“Nutrição e Dietética”, “Psicologia”, “Religião e Filosofia”, “Ciências Sociais e
Humanas”, “Sociologia”, “Esporte e Lazer”, “Medicina Esportiva”. Na primeira
etapa analisaram-se títulos, resumos e palavras-chave das publicações
encontradas tendo como expansores assuntos equivalentes e pesquisas
também no texto completo dos artigos. Como limitadores da pesquisa, definiu-
se a procura de textos completos nos idiomas português, inglês e espanhol,
que tenham sido publicados em periódicos com a avaliação de especialistas.
Não foi determinado qualquer período temporal.
Como segunda etapa, verificou-se cada um dos textos recolhidos,
retirando documentos destoantes da temática e parâmetros relatados que
porventura tenham transpassado os filtros selecionados, assim como textos
duplicados.
Por fim, como terceira e última etapa, efetuou-se a leitura completa dos
textos de todos os artigos para que de maneira mais segura fosse possível
trazer à luz através da análise de conteúdo de Bardin (2004) os trabalhos que
ao menos minimamente abordassem de forma mais específica questões éticas
e/ou estéticas do Kung-Fu, citando, por exemplo: superação, aprimoramento,
beleza, zelo, respeito, virtude, paz, socialização, harmonia e afins.
Resultados E Discussão
54
Quadro 1 – Síntese dos artigos encontrados ordenados por ano de publicação.
TÍTULO DOS ESTUDOS AUTOR(ES) REVISTA (ANO)
A history of physical activity, Domhnall MacAuley Journal of the Royal Society of
health and medicine Medicine (1994)
Kung Fu fighting - The cultural Ashley Carruthers The Australian Journal of
pedagogy of the body in the Anthropology (1998)
Vovinam Overseas Vietnamese
Martial Arts School
Kung fu: negotiating Siu Leung Li Cultural Studies (2001)
Nationalism and modernity
Muslim Martial Arts in China: Helena Hallenberg Journal of Muslim Minority
Tangping (Washing Cans) and Affairs (2002)
Self-defense
Crouching Tiger, Hidden John R. Eperjesi Asian Studies Review (2004)
Dragon: Kung Fu Diplomacy
and the Dream of Cultural
China
Martial arts – enactment of Viqui Rosenberg e Carlos Psychodynamic Practice (2005)
aggression or integrative Sapochnik
space?
Virtual bodies, flying objects: Vivian Lee Journal of Chinese Cinemas
the digital imaginary in (2006)
contemporary martial arts films
Goal profiles, mental toughness Garry Kuan e Jolly Roy Journal of Sports Science and
and its influence on Medicine (2007)
performance outcomes among
Wushu athletes
‘To Push the Actor-Training to Frank Camilleri Contemporary Theatre Review
its Extreme’: Training Process (2008)
in Ingemar Lindh's Practice of
Collective Improvisation
Health benefits of Kung Fu: A Tracey Wai Man Tsang, Journal of Sports Sciences
systematic review Michael Kohn, Chin Moi Chow (2008)
e Maria Fiatarone Singh
A randomized placebo-exercise Tracey W. Tsang, Michael Journal of Sports Science and
controlled trial of Kung Fu Kohn, Chin Moi Chow e Medicine (2009)
training for improvements in Fiatarone Singh M.
body composition in
overweight/obese adolescents:
the “Martial Fitness” study
Being Aggressive: An Roly Fletcher e Martin Milton Existential Analysis: Journal of
interpretative phenomenological the Society for Existential
analysis of kung fu Analysis (2009)
practitioners’ experience of
aggression
Literatura Wushia, Budismo, José Otávio Aguiar Antíteses (2009)
marcialidade e ascese - da arte
da guerra à historiografia sobre
o mosteiro de Shaolin
‘It can be a religion if you want’ George Jennings, David Brown Ethnography (2010)
- Wing Chun Kung Fu as a e Andrew C. Sparkes
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e Maria Fiatarone Singh
An Obsessive’s Guide to Tea Alexis Littlefield Southeast Review of Asian
55
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Illustration of Cultural Attributes Shiliang Yan Asian Social Science (2011)
in China Wushu Routine
Os primórdios da prática do wu- Tiago Oviedo Frosi, Wagner Revista da Educação
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Rio Grande do Sul (décadas de Mazo
1970-1990)
Walk in Balance: Training Crisis Brian A. Chopko Journal of Creativity in Mental
Intervention Team Police Health (2011)
Officers as Compassionate
Warriors
Wushu's Transformation from Zheng Shuai Journal of Asian Martial Arts
the Local Boxing Ring to the (2011)
World Stage
Chinese wushu texts: function Yongzhou Luo Perspectives: Studies in
and translation Translatology (2012)
Contribution to the study of Aleksandar Filipović e Srećko Physical Culture (2012)
religious and philosophical Jovanović
basis of the far east martial arts
Don’t think, feel: Mediatization Mie Hiramoto Language & Communication
of Chinese masculinities (2012)
through martial arts films
Traditional Asian martial arts Marc Theeboom, Zhu Dong e Archives of Budo (2012)
and youth: Experiences of Jikkemien Vertonghen
young Chinese wushu athletes
Self-Perception and Attitude Tracey W. Tsang, Michael R. Research in Sports Medicine
Toward Physical Activity in Kohn, Chin Moi Chow e Maria (2013)
Overweight / Obese Fiatarone Singh
Adolescents: The “Martial
Fitness” Study
The Martial Arts and Buddhist Graham Priest Royal Institute of Philosophy
Philosophy Supplement (2013)
I Am the Invincible Sword Mie Hiramoto e Cherise Shi Societies (2014)
Goddess: Mediatization of Ling Teo
Chinese Gender Ideology
through Female Kung-Fu
Practitioners in Films
Projecting the ‘Chineseness’: Lu Zhouxiang, Qi Zhang e Fan The International Journal of the
Nationalism, Identity and Hong History of Sport (2014)
Chinese Martial Arts Films
Tai Ji Quan: An overview of its Yucheng Guo, Pixiang Qiu e Journal of Sport and Health
history, health benefits, and Taoguang Liu Science (2014)
cultural value
Transmitting Health George Jennings Societies (2014)
Philosophies through the
Traditionalist Chinese Martial
Arts in the UK
A comparison of spectators’ Paweł Zembura IDO MOVEMENT FOR
motives at Wushu and amateur CULTURE. Journal of Martial
mixed martial arts events in Arts Anthropology (2015)
Poland
Mindful Fitness - Guidelines for Kimberlee Bethany Bonura, International Journal of
Prenatal Practice Nina Ida Marie Spadaro e Rives Childbirth Education (2016)
Whittle Thornton
Tradição no kung fu: mestres Marcio Antonio Tralci Filho Movimento (2016)
brasileiros entre permanências
e transformações
56
‘Wushu belongs to the world’ Marc Theeboom, Dong Zhu e International Review for the
But the gold goes to China Jikkemien Vertonghen Sociology of Sport (2017)
O wushu como uma ferramenta Everton de Souza da Silva, Revista de Artes Marciales
para o desenvolvimento motor, Diego Pereira Alves, Lucas Asiáticas (2017)
cognitivo e socioafetivo na Ribeiro dos Santos, Marcelo
escola – um estudo exploratório Augusto P. dos Santos,
Sumara Brito Soares e Bianca
Miarka
The journey to the cradle of Wojciech J. Cynarski e Pawel IDO MOVEMENT FOR
martial arts: a case study of Swider CULTURE. Journal of Martial
martial arts’ tourism Arts Anthropology (2017)
57
Figura 1 – Anos das publicações em linha temporal a partir do artigo mais antigo
relacionado na revisão sistemática até o ano de 2018.
58
somando-se aos pensamentos éticos e estéticos para sua incorporação no dia
a dia dos praticantes. Sabidamente, um tradicional método de treinamento e
busca de uma prática virtuosa se dá através da prática de rotinas coreográficas
do Kung-Fu chamadas taolus (MOCARZEL, 2011). Por meio delas os
praticantes buscam não apenas o ensaio, erro e repetição da técnica, mas em
muitas das vezes uma “incorporação mimética” da fonte inspiradora (como a
águia, o tigre, o dragão, a flor de cerejeira, dentre outros) (Lima, 2000;
ACEVEDO; GUTIÉRREZ; CHEUNG, 2011), objetivando criar uma execução
em uma área convergente à funcionalidade marcial, promoção da saúde e
qualidade de vida e beleza do movimento. Tal questão foi significativamente
abordada no estudo de Yan (2011), onde também detalhou descritivamente
algumas visões de cunho ético e estético da prática das rotinas no Kung-Fu,
gerando sensibilização não apenas em seus praticantes, mas também em seus
espectadores, característica essa singular e marcante da estética desportiva,
como: fluidez de movimento, harmonia, expressão corporal e ritmo
(MARQUES; LACERDA, 2012).
Contudo, de maneira em parte conflitante com tal abordagem histórico-
filosófica descrita anteriormente, vê-se a temática desportivo-competitiva
ganhando extrema atenção nas publicações, onde são majoritariamente
exploradas questões direcionadas ao universo competitivo que é por sua vez
apenas uma das faces de atuação das práticas marciais. Importante dizer que
essa situação é conflitante, pois tal face desportivo-competitiva não é explorada
ou mesmo é repudiada por alguns praticantes mais conservadores e rígidos.
Mesmo assim ela surge cada vez mais forte no universo das publicações
acadêmicas em uma crescente volumosa. Ao entrevistar vários Mestres
tradicionais do Kung-Fu no Brasil, Tralci Filho (2016) se deparou com algumas
questões aparentemente inesperadas. Em seu estudo ele abordaria questões
tradicionais da filosofia do Kung-Fu, contudo acabou explorando mais os
aspectos competitivos atuais da prática por conta da condução dos discursos
dos Mestres em suas entrevistas (instrumento utilizado em sua pesquisa). É
exatamente nessa guisa que é discorrido o estudo de Zheng Shuai (2011),
onde o pesquisador traça as transformações do Kung-Fu para pouco a pouco
ser adaptado e convergido de uma prática nacional para global (da China para
o mundo). Ali ele defende tópicos de cunho ético e estético, deixando claro que
estes podem ser parcialmente preservados quando o Kung-Fu deixa as mãos
da sua nação-mãe e ganha novos horizontes, incluindo sua difusão desportivo-
competitiva, tais como: beleza do movimento, superação, aprimoramento
técnico, respeito e hierarquia. Já Theeboom, Dong e Vertonghen (2012)
concordam com o pensamento anterior, contudo observam mesmo
modestamente um menor foco pedagógico na transmissão teórica de valores
(éticos e estéticos) para enfatizar treinos físicos ginásticos com foco
competitivo, objetivando veementemente premiações e títulos.
Destacam-se também os diversos estudos que exploraram temáticas
voltadas à promoção da saúde e qualidade de vida dos praticantes. Inclusive
as duas únicas revisões sistemáticas que surgiram nessa pesquisa abordam
pontualmente esse foco (TSANG ET AL., 2008; BU ET AL., 2010). As questões
discutidas nos estudos citam a prática do Kung-Fu em sua visão holística,
objetivando atingir para além de um corpo saudável, mas sim uma harmonia
59
maior que vai além do corpo material adentrando em campos sociais,
psicológicos, emocionais, alimentares e energéticos (SILVA ET AL., 2017),
todos já preconizados na milenar MTC (MACIOCIA, 1996; LIMA, 2000). Enfim,
uma prática de valor histórico, salutar, cultural, desportivo e marcial (GUO; QIU;
LIU, 2014).
Por fim, diversos estudos abordam a busca pela transformação da ação
do praticante para uma ação de não violência. Dentre eles, Fletcher e Milton
(2009) expõem a mudança comportamental do praticante tendo seu foco na
intenção das técnicas durante o treinamento, objetivando uma postura pacífica
no dia a dia do praticante. Já Kuan e Roy (2007) exploram a premissa da
autoconfiança, mostrando que desenvolvendo uma maior tenacidade mental os
praticantes expressam suas personalidades com mais coragem e iniciativa.
Essa mescla de uma personalidade de ação pacífica, determinada e confiante
é utilizada para instrução a policiais e militares como relata Chopko (2011),
usando os princípios educativos do Kung-Fu como exemplos.
Considerações finais
Referências
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68
3. Estudos Teóricos – Estudo II
_______________________________________________________________
69
Resumo: Ao Wu De está subjacente um quadro axiológico que norteia o
De
70
INTRODUÇÃO
Fu!” (20).
que o termo “expressa uma habilidade intuitiva obtida pela repetição intencional
(17)
de uma ação”. De forma mais generalista, Lima alude à busca constante da
71
(15, p.16)
perfeição, enquanto Jefremovas remete a significação do termo para
(16, p.22)
“trabalho duro”. Ainda, Koppe se posiciona afirmando que Kung-Fu é a
esquemática (fig. 1) que busca figurar essa visão holística da expressão “Kung-
(17)
Figura 1: Interpretação holística da expressão Kung-Fu .
72
Para melhor entendimento da figura 2, esclarece-se que o Kung-Fu em
sua vertente marcial possui uma divisão13 entre interno e externo. Esta
treino marcial com saltos, investidas velozes bem vigorosas e respirações mais
13
Essa temática é ampla, porém não é o cerne deste estudo. Recomendam-se aqui as leituras
(2) (20)
de Acevedo, Gutiérrez e Cheung e Mocarzel para maiores aprofundamentos.
14
A tradicional saudação de cortesia marcial do Kung-Fu pode ser chamada de “Kin Lai” (敬禮),
“Li Baoquan” (武术抱拳礼) e ainda “Jìng Lǐ” (敬礼).
15
A Dinastia Qing liderou o último período imperial da China nos anos de 1644 a 1911 quando
começou os processos de revolução contra a mesma, tendo sua derrocada final em 1912.
73
Figura 2: Saudação tradicional do Kung-Fu.
segura pela outra mão (esquerda) que está aberta, representando a cortesia e
74
designadamente de valores ético-morais, que serve como caminho norteador
militares do rei Zhuāng de Chǔ (楚莊王)16. Este código de ética marcial milenar
por Brownell (8) que afirma que o Barão de Coubertin declarou abertamente que
o que viria a ser a “pedagogia esportiva” defendida com tanto esmero pelo
16
Rei da Dinastia Zhou do período da Primavera e Outono (春秋時代) que provavelmente viveu
entre os anos de 613 a.C. a 591 a.C..
17
As palavras que compõem o nome de Lao-Tsé de forma romanizada podem ser encontradas
com variações, como: Laozi, Lao Tzu, Lao Zi, Lao Tsé, Lao Tzi, Lao Tseu, Lao Tze, Lao
(20)
Tan e Li Erh. Especula-se que tenha vivido entre 604-517 a.C. , embora ainda haja incerteza
sobre tais datas ou mesmo sobre sua existência. É considerado o pai do Taoísmo (道家).
18
As palavras que compõem o nome de Kung-Fu-Tsé de forma romanizada podem ser
encontradas com variações, como: Kǒng Zǐ, K'ung-tzu, Kǒng Fūzǐ, K'ung-fu-tzu. Viveu entre
(20)
551-479 a.C. . É considerado o pai do Confucionismo (儒家). Foi talvez na história o primeiro
grande defensor da “Etocracia”; ideologia que, segundo Murad (2009), busca a elevação do
poder dos valores éticos, morais e educacionais, fundamentalmente tendo os líderes do povo
como exemplos para seus subordinados.
Murad, M. (2009). Sociologia e educação física: diálogos, linguagens do corpo, esportes. Rio
de Janeiro: FGV.
75
fundador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. É expressado por Mocarzel,
(21)
Murad, Ferreira e Silva que a busca constante do aprimoramento e da
76
moral. Dessa forma, objetiva-se especificamente a tradução literal do texto do
METODOLOGIA
mapear-se esse território através de duas vias. A primeira por meio de uma
Utilizou-se o motor de busca “Descoberta”19, que faz uso das bases de dados
digitais.
19
Disponível em: http://eds.a.ebscohost.com/eds/search/basic?sid=a269ea5b-34f7-4f20-99dd-
cce7933f0981%40sessionmgr4005&vid=0&hid=4208.
77
expressão “wude” ou "wu de" ou "wu-de" ou “wute” ou "wu-te" ou "wu te" e
"kung fu" e "kung-fu" e “kungfu”. Não foi determinado campo de pesquisa para
em junho de 2016.
dados.
78
De guerreros adeportistas: cómo se
Revista de Artes
adaptaron las artes marciales chinas Filipiak, K. (2010)
Marciales Asiaticas
a la modernidad
Journal of Asian
Liu xiheng: memories of a taiji sage Mason, R. (2010)
Martial Arts
Kung-Fu. Pensa-se ser este o motivo que explica, pelo menos em parte, o seu
79
das artes e mídia, no entanto, surpreendentemente, não aparecendo qualquer
anos de 1998 a 2013, o que se nos afigura como um lapso de tempo muito
reflexões.
謙遜 尊敬 公正 信用 義氣
志氣 忍受 不屈 忍耐 勇氣
80
Deste modo, as virtudes destacadas no quadro 2, encontram-se vertidas
na postura marcial expressa nos sete preceitos que pontuam de maneira clara
determinado.
português foi realizada com a ajuda de uma Mestra de Kung-Fu chinesa nata,
6) Deve aprender com os ancestrais sobre todas as dificuldades e controlar sua raiva e
emoções;
81
Analisando cada um dos sete preceitos, somos conduzidos a afirmar que
se articulam num conjunto que vai para além do ideário simplesmente ético ou
capacidades essas que têm que ser úteis não apenas para o próprio, mas para
marcial.
(7)
Um artista marcial vai além das atitudes e posturas de um lutador .O
artista marcial não se preocupa apenas com sua técnica pela eficácia marcial
ou com seu preparo físico para ter mais capacidade de combate, mas sim,
aperfeiçoar seu bom caráter através de seu zelo e perseverança. Ainda que se
82
quaisquer conflitos, tentando ter uma postura harmônica e serena, honrando
CONSIDERAÇÕES FINAIS
um conjunto de princípios que não só podem como devem ser aspirados por
sua compleição filosófica não parece ter tido grandes difusões no universo dos
Fu e ao seu código de ética. Espera-se que este trabalho possa contribuir para
83
e marcial de forma significativa e que não só inspire novas buscas e estudos,
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86
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3. Estudos Teóricos – Estudo III
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através dos tempos sobre o universo marcial à luz da ética e estética - o caso do
Kung-Fu. FairPlay, Journal of Philosophy, Ethics and Sports Law, 15, 90-115.
89
Resumo: Diversas terminologias que vêm sendo usadas de maneira
generalizada no universo marcial causaram entendimentos dúbios (mesmo não
propositalmente) sobre características e peculiaridades das práticas
envolvidas. Isso abre margem para dificuldades de entendimento e estudo,
más interpretações sobre a temática e em situações mais radicais e alargadas
socialmente, instiga o preconceito por praticantes, estudiosos e simpatizantes.
Este estudo busca como objetivo realizar uma revisão e reinterpretação de
conceitos importantes do universo marcial sob análise filosófico-cultural focada
na ética e estética, pois são campos que mais influenciaram e que ainda
influenciam o universo marcial. Os termos conceituais serão observados sob as
lentes da hermenêutica. Especificamente, objetivou-se (i) diferenciar as
práticas do universo marcial a partir de uma categorização conceitual
(taxonomia) com critérios relacionados às características culturais e princípios
filosóficos vertidos nas práticas; (ii) destacar e respaldar a categoria “arte
marcial” como prática imersa em valores filosóficos pacifistas; e (iii) destacar e
contextualizar a posição do Kung-Fu nesta taxonomia como “arte marcial”
expondo suas idiossincrasias. Foram observadas transformações dos
pensamentos e nomenclaturas usadas no universo marcial juntamente com as
mudanças do pensamento humano. Defende-se ter ficado evidenciado a
existência de valores éticos e estéticos contidos no conceito “arte marcial” e
“Kung-Fu”.
Palavras-chave: 1. Lutas e artes marciais; 2. Kung-Fu; 3. Ética; 4. Estética.
1.Introdução
90
Contudo, o processo de desenvolvimento e evolução da humanidade, do
qual faz parte integrante o florescer e amadurecimento do pensamento crítico-
filosófico, conduziu ao surgimento da visão holística, que foi sendo adotada e
aprofundada pela antiga cultura chinesa ainda séculos antes de Cristo.
Segundo Lima (2000), o holismo pontua a visão do ser como um todo, não
devendo ser observado de forma avulsa e fragmentada, envolvendo assim seu
corpo, mente, relações sociais, emoções e afins. Mais: o holismo ainda carrega
consigo uma profunda natureza histórico-sociocultural, na qual o ser humano é
pensado não apenas como ser único e independente, mas sim como parte
integrante de todo um sistema complexo que o cerca, abrangendo o
ecossistema e a sociedade humana de forma una, ontem, hoje e amanhã
(Ilundáin-Agurruza, 2014a).
91
que o ato de lutar em si. Essa abordagem é respaldada pela colocação de
Bäck e Kim (1979) e Min (1979) que afirmam que esse seria o motivo de muitos
mestres e/ou praticantes dedicados de artes marciais tornarem-se também
guias espirituais (ou ao menos serem vistos desta forma pela sociedade leiga).
Aponta-se como um problema que nas últimas décadas até aos dias
atuais, diversas terminologias vêm sendo usadas de maneira generalizada no
universo marcial, causando entendimentos dúbios (mesmo que não
propositalmente) sobre características e peculiaridades das práticas que
envolvem tal universo (Rufino & Darido, 2011). Esse fato abre margem para
dificuldades de entendimento e estudo, más interpretações sobre a temática e
até mesmo em situações mais radicais e alargadas socialmente, instiga o
preconceito por praticantes, estudiosos e simpatizantes. É esclarecido por
Bowman (2017) que é comum e mesmo positivo haver diferentes pensamentos
dentro das áreas de estudo, onde se estruturam debates, reflexões e
contrapontos e que esses normalmente trazem colaborações à área científica,
fugindo de uma estruturação estagnada, unívoca e monoculturalista. Contudo,
o mesmo autor alerta que para que essa visão positiva ocorra são necessários
múltiplos estudos em diferentes áreas, realizando assim intercâmbios
coerentes e harmônicos, tanto comunitários quanto interdisciplinares,
oxigenando a área e ao mesmo tempo se resguardando da heterogeneidade
radical. No contexto das artes marciais, é ainda salientado por Bowman (2015)
que são possíveis estudos em uma vasta variedade de disciplinas: história,
antropologia, psicologia, esporte, sociologia, literatura, diplomacia, religião e
filosofia, mídia, arte, economia, política, saúde. Neste estudo elevam-se aqui
questões como: (i) da longevidade e antiguidade do universo marcial, fazendo
com que essa se permeie e se deixe permear em diversos âmbitos históricos e
socioculturais; (ii) pelo fato de ainda não haver uma estruturação acadêmica
amplamente consolidada mundialmente nessa área; e ainda (iii) pela pesquisa
acadêmica online (que possui alcance global compreendendo todas as culturas
e idiomas, e resguarda os registros históricos) ser uma realidade relativamente
recente, logo, só há proporcionalmente pouco tempo é que a comunidade
92
acadêmica teve a dimensão da amplitude e proporção que o universo marcial
pode atingir.
Assim sendo, este estudo busca como objetivo geral realizar uma revisão
e reinterpretação de alguns conceitos importantes do universo marcial sob
análise filosófico-cultural focada na ética e estética. Pensa-se que esses sejam
dos campos que mais influenciaram e que ainda influenciam o universo
marcial. Para tal, os termos conceituais aqui em questão serão observados sob
as lentes da hermenêutica, técnica que busca interpretar, compreender e
reinterpretar baseada na história e na filosofia, dentre outros conhecimentos já
pré-estabelecidos (Figueiredo, 2006). Definiu-se como objetivos específicos: (i)
diferenciar as práticas do universo marcial a partir de uma categorização
conceitual – esta diferenciação foi concretizada através de uma taxonomia com
definição de critérios relacionados com as características culturais e os
princípios filosóficos vertidos nas suas práticas; (ii) destacar e respaldar a
categoria “arte marcial” como uma prática imersa em valores filosóficos
pacifistas; e (iii) com base na categorização definida no ponto anterior, destacar
e contextualizar a posição do Kung-Fu nesta taxonomia como “arte marcial”
expondo suas idiossincrasias. É importante dizer aqui, como alertado por
Channon (2016), que a construção e definição de parâmetros e princípios deste
estudo não têm a intenção de gerar normativas ou mesmo exclusões, mas sim
de elevar e aclamar os valores atribuídos existentes. Indo além, vê-se aqui uma
importante possibilidade de apresentação, discussão, estudo e esclarecimento
sobre os conceitos que formam o universo marcial sob um olhar dos valores
filosóficos, pois se defende que a partir do momento que alguns desses
conceitos são perspectivados como sinônimos no entendimento comum (visão
reducionista), tal ato gera uma “amputação”, o que enfraquece a sua base
educacional profunda, na qual se alicerça sua compleição maior.
2. Metodologia
93
conceitos abordados. Fez-se uso da revisão narrativa de literatura que
conjuntamente com a narrativa oral, prática comum dentro do universo marcial
(Granet, 1997), sustentou teoricamente os dados sobre a temática das lutas e
artes marciais. Esclarece-se que se optou aqui pela revisão narrativa pois
defende-se que uma revisão sistemática limitada apenas à busca de conceitos
do universo marcial seria confusa pelo fato de em muitos casos as
terminologias serem utilizadas como sinônimos ou surgirem ambígua e
incompletamente diferenciadas. A bibliografia elencada abrangeu livros e
capítulos de livro, pesquisas acadêmicas de stricto sensu, artigos de
conceituados periódicos (em maioria da área do desporto em geral) que
tematizam o universo marcial.
94
claramente entendíveis, todos os seus níveis foram destacados e discorridos
de forma a aprofundar a razão de sua presença no estudo e determinar suas
bases e peculiaridades. Realça-se que apesar de o método de autodefesa que
está sendo destacado na referida taxonomia ser o Kung-Fu, objetivou-se deixar
aberta aqui a possibilidade de uso desta taxonomia para outras técnicas
marciais em estudos futuros.
95
entendimento da argumentação elaborada sobre a temática. Em nosso
entender, a organização gráfica desta representação traduz de forma muito
efetiva a taxonomia, pois busca proporcionar alguma ordem e até mesmo
classificação sobre o assunto em análise.
96
universo marcial: “briga”, “defesa pessoal” e “desporto de combate”. Segundo
Mocarzel e Columá (2015), o termo briga já carrega consigo (mesmo que
veladamente) um significativo ideário de negativismo ou ainda violência,
manifestando-se nos momentos de desavenças e desarmonias. Sendo este
estudo imerso em questões dos valores educacionais filosóficos, fica então de
fácil compreensão que tal terminologia não deva ser utilizada neste universo.
Além disso, os mesmos autores ainda acentuam que o termo defesa pessoal
traduz, de forma geral, um dos objetivos da prática de lutas e artes marciais, ou
seja, o ato de defesa pessoal está sempre contido nas lutas e artes marciais,
não constituindo uma categoria à parte. Sendo assim, esta terminologia
também não foi incluída separadamente na representação gráfica. Por fim, no
presente trabalho, o termo desporto de combate é tido como uma vertente
desportivo-competitiva das práticas de lutas e artes marciais, de acordo com a
compreensão do termo “esporte” (ou desporto) de Barbanti (2006, p.57):
97
em campos de estudo diversos (sociologia, antropologia, segurança pública,
psicologia, dentre outros), não sendo a partir de qualquer desses campos
diretamente que se desenvolve este estudo. Neste contexto, deixa-se claro que
as diferenças daqueles dois conceitos envolvem muito mais do que apenas
ações e posturas sob um prisma operativo (ou seja, com a realização das
próprias ações, com a prática), mas também a verdadeira intenção do indivíduo
com aquela atitude em si, tornando-se a “bússola moral direcionadora” para
entendimento e conceptualização neste estudo. Tal reflexão aproxima-se das
colocações de Fromm (1973) que diferencia a agressividade benigna e
agressividade maligna. A primeira abrange atos que muitas vezes são vistos
como bruscos e de muita aspereza, mas ocorrem para deter uma ação de
violência (autodefesa) ou por serem atos permitidos em regulamentos
desportivos – contudo, são estimulados pela competitividade e não pela
violência em si. Já a segunda é a manifestação de atitudes que vão claramente
contra a ética, a estética e a moral, sendo um ato cruel e violento, como por
exemplo, desprezar em uma competição desportiva a integridade e o bem-
estar do colega adversário (que neste caso é confundido e tratado como se
fosse inimigo). Conclusivamente sobre tal reflexão, Lima (2000, p.113)
esclarece que: “Sermos agressivos ao compreendermos algo significa termos
determinação e energia direcionada para uma tarefa específica (o que é
bastante diferente de sermos violentos ao cumprir essa mesma tarefa)”. Dessa
forma, como esclarece Calhoun (1987), é possível notar que uma prática
desportiva pode sim ser usada para evidenciar, mascarar, aumentar, mas
também diminuir as manifestações de violência de uma sociedade.
98
extremo, ou de algum modo excessivo, [que] implica uma pressão, uma
coação, uma força – resumindo, uma violência”. Claro que a conceituação
anterior sobre o fenômeno da violência é de certa forma elementar, pois como
afirmam Minayo e Souza (1998, p.522), a violência: “é um fenômeno histórico,
quantitativa e qualitativamente, seja qual for o ângulo pelo qual o examinemos
(conteúdo, estrutura, tipos e formas de manifestação)”. Neste sentido, Capez
(2003, p.XI) é categórico quando diz que “a violência constitui uma das
expressões primitivas do ser humano. Em todas as épocas e em todas as
sociedades sempre houve violência. No campo desportivo não poderia ser
diferente”. Sob esse prisma, Bento (2006) cita que é possível através da
educação, da atividade física disciplinada e regrada e do esporte o ser humano
afastar-se de sua animalidade primitiva. Sêneca, importante e famoso
intelectual da época de Cristo, já expunha o declínio da moral do império
romano durante seu tempo, ao ver vários nobres e ricos de seu povo investir
voluptuosas cifras em lutadores apenas por puro desfrute da violência em meio
aos gritos da multidão, símbolo este do baixo instinto que predominou na época
(Gumbrecht, 2007). É nessa perspectiva que Dadoun (1998) acusa o ser
humano de não ser verdadeiramente o homo sapiens (ser da sapiência), pois
este se permite abandonar seus dons intelectuais avançados em prol do
pacifismo para abraçar a animalidade da violência. Dessa forma, Kalina e
Barczyński (2008) afirmam que a autodefesa deve ser algo inserido no
conhecimento cotidiano da sociedade humana contemporânea e ainda
pontuam de maneira clara que esta é apenas uma das faces que a arte marcial
detém, pois a mesma ainda promove a saúde somática, a saúde mental, a
saúde social e a competência motora. Essa reflexão abre horizontes para o
próximo nível da taxonomia a seguir.
99
mais acentuada no reino animal. Exatamente por isso pode ser observada em
animais durante um confronto físico, assim como leigos ainda crianças e
idosos, devido suas condições de maior fragilidade e vulnerabilidade. Daí a
normativa de não ser técnica, pois é tida como inata.
Por fim, a “arte marcial” vai além das questões do preparo físico,
capacidades motoras e habilidades técnicas, objetivando o lapidar e o
consolidar do bom caráter do praticante durante as diversas situações do
cotidiano (Allen, 2013). Tal categorização embasa-se numa “filosofia da
educação” de cunho ético e estético, gerando um ciclo de práxis: estudo,
reflexão e fazer bem (Ilundáin-Agurruza, 2014b). Destaca-se que é exatamente
por este motivo que a arte marcial não se liga à violência, pois o ato de um
artista marcial deve sempre ser consubstanciado em intenções pacíficas ricas
de valores morais, éticos e estéticos (Bäck & Kim, 1979; Abe, 1986), ou seja,
ligado diretamente ao bem, à pureza do espírito e, assim, à beleza como já
enaltecido por Platão, o que Bäck e Kim (1979) chamam de “fruição artística”.
Porém, como apresentado na taxonomia por meio das linhas que fazem a
ligação entre os dois primeiros níveis, a “luta não técnica” e a “luta técnica”
podem ser utilizadas para realização de atos de violência. Talvez seja por tais
100
motivos que Cynarski, Sieber, Kudłacz e Telesz (2015) apontam que muitos
vêm a arte marcial como um caminho não apenas moral, mas sim espiritual e
ainda ressaltado por Bäck e Kim (1979) como algo de procura e prática perene.
O sentimento essencial do ato muda o valor da ação; se expressa valor aqui no
sentido axiológico do termo (Abbagnano, 2014), ou seja, “(...) é aquilo que é
estimado como tal através de um juízo” (Goergen, 2005, p. 987), representado
em uma visão oriental (taoísta e confucionista) a formação de um ser humano
bom e harmônico (Lima, 2000) e em uma visão ocidental (kantiana) a formação
de um ser humano que julga que atribui verdade, bondade e beleza às coisas
julgáveis (Goergen, 2005). A importância da educação imersa nos valores,
tanto no prisma oriental quanto ocidental, será imprescindível para a
capacidade volitiva do artista marcial em seu cotidiano, sendo provavelmente
um dos maiores norteadores de suas decisões no dia a dia (Bento, 199-; Bäck,
2009).
Além disso, outra questão de importância que é trazida à luz neste nível é
exatamente a riqueza de material utilizado, que pode ser analisado e refletido
sob cunho cultural, tendo em vista que as atividades físicas em geral possuem
largas raízes com vastas extensões sobre a sociedade humana, repercutindo-
se no decorrer da história. Dentro de tais aspectos tanto históricos quanto
socioculturais, repousam questões de natureza axiológica que podem ser
elevadas à reflexão de forma minuciosa. Há muitos séculos atrás, várias
práticas culturais da sociedade humana, entre as quais o desporto (lato sensu),
proporcionaram influências entre si, gerando assim uma permeabilidade mútua
101
frequente. Dessa forma, é possível notar influências que transitaram das
práticas do universo marcial para a sociedade tanto quanto da sociedade para
as práticas do universo marcial. Esse caso é um exemplo do fenômeno da
“bilateralidade socioesportiva” (Mocarzel, Murad, Ferreira & Silva, 2012, p.120).
É aqui que se faz clara a razão da presença de alguns aspectos peculiares de
diversas das práticas do universo marcial, embasando assim suas
idiossincrasias, como por exemplo: nome de movimentos e/ou posturas,
indumentárias, trejeitos e aspectos comportamentais, uso ou não uso de
determinados materiais específicos (por exemplo, as armas brancas20), dentre
outras.
20
Armas brancas são entendidas como “armas de uso manual que não sejam de fogo
utilizadas no cotidiano para ações diversas, como cortar, esmagar, contundir e aprisionar”
(Mocarzel & Columá, 2015, p.55). Sob tal nomenclatura Nasalski (2003), baseado em estudos
linguísticos, alude que a mesma é fruto de dois ideários: o brilho da lâmina metálica e o que o
autor chama de “simbolismo branco”, advindo da ética e pureza do caráter e do espírito, pois aí
repousariam a honra, inocência e morte honorável.
102
tradicional e mais conservadora, onde são expostas de maneira constante não
apenas questões como a eficácia da marcialidade de maneira mais firme e
incisiva, mas ainda conhecimentos profundos sobre a história e filosofia
humana almejando uma “iluminação” (Allen, 2013). A segunda inspira-se na
primeira, porém envereda progressivamente para uma visão adaptada ao meio
desportivo-competitivo, onde obviamente faz-se necessário afastar-se de
diversas das questões tradicionais mais enraizadas e ganha um formato parcial
e mais enxuto, porém ainda significativamente diferente e próprio (Theeboom &
De Knop, 1999; Bäck, 2009; Zheng, 2011). É dito por Cynarski e Litwiniuk
(2011) que essa adaptação foi vital para uma melhor difusão da prática às
crianças e adolescentes de hoje. Contudo, deixa-se claro aqui que a criação de
tal vertente desportivo-competitiva não exime a educação e prática de valores
éticos, morais e estéticos (Abe, 1986; Bäck, 2009; Allen, 2013). De fato,
Brownell (2008) afirma que o Barão de Coubertin21 declarou abertamente ter
consultado Confúcio, dentre outros pensadores, para então estruturar o que
viria a ser a pedagogia esportiva, hoje espinha dorsal da educação olímpica.
Talvez, poder-se-ia dizer aqui, que a busca constante do aprimoramento e da
perfeição, base da filosofia que tece a estrutura conceitual do Kung-Fu, é uma
“versão oriental” do Lema Olímpico, que por sua vez, também prega o
desenvolvimento humano.
O Lema Olímpico Citius, Altius, Fortius pode ser traduzido por “mais
veloz, mais alto, mais forte”. Significa uma mensagem de
aperfeiçoamento humano, expressando a conclamação do Comitê
Olímpico Internacional (COI) a todos os participantes do Movimento
Olímpico, convidando-os a uma superação pessoal, de acordo com o
Espírito Olímpico. (Tubino, Tubino & Garrido, 2007, p. 652)
103
educacionais não só podem como devem estar inseridos tanto nas práticas
marciais quanto competitivas. Em ambos os universos citados as questões
éticas, estéticas e morais permeiam os ensinamentos e treinamentos dos
praticantes, sendo eles adaptados para situações do cotidiano e
comportamento humano ou sobre o cumprimento de regulamentos desportivos
e normas éticas comportamentais. Novamente, frisa-se aqui que, a imersão,
absorção e incorporação dos valores de cunho filosófico aqui expostos dão-se
desde o primeiro dia ao iniciar o treinamento já em caráter físico, cognitivo e
afetivo-emocional. Enfim, uma busca da visão holística concreta e genuína
(Min, 1979; Lima, 2000; Yonezawa, 2010; Abe, 2013).
22
Em 1928 o governo chinês alterou por decreto de lei o nome Wushu (já conhecido
internacionalmente por Kung-Fu) para Kuoshu, que significa “arte nacional”. Isso se deu com a
intenção de incentivar o espírito nacionalista do país (Li, 1993). Em meados do século XX o
nome Wushu foi convergido para a prática desportivo-competitiva objetivando em longo prazo
conseguir torná-la olímpica (Mocarzel, Murad & Capinussú, 2013).
104
geral, são emanadas pelo mestre, sendo este o indivíduo líder por sua grande
experiência e amplo conhecimento reconhecidos popularmente. Esse
arquétipo, muito frequentemente perspectivado como conservador, lembra de
certa forma o comportamento dos clãs e patriarcados da história humana
(Figueiredo, 2006). Já na vertente desportivo-competitiva, as regências e
decisões são advindas de entidades jurídicas estatutárias (como institutos,
associações, federações, confederações, dentre outras), que instituem
princípios e regras para a população praticante. Como outro elemento distintivo
a ser apresentado, é importantíssimo destacar aqui que se constitui bem
diferente o ideário da relação mestre-discípulo com o da relação professor-
aluno. Sob um olhar sociológico, a relação de mestre-discípulo é comparada a
uma relação familiar, como pai-filho. Habitualmente, o discípulo segue as
orientações de seu mestre, pois tem nessa relação não apenas confiança em
seu superior, mas também uma sensível admiração pelo mesmo (Dalmaso,
2010). Claro que isso não exime ou mesmo elimina a importância do
pensamento crítico-reflexivo do discípulo sobre as colocações feitas pelo seu
mestre. De fato, cabe ao mestre a real posição de se colocar disponível às
críticas e questionamentos para não só ensinar seu discípulo com exemplos
práticos, mas também para ele mesmo continuar em seu caminho de
desenvolvimento pessoal. A relação professor-aluno se estabelece sob um
cunho mais profissional e menos pessoal, tendo na maioria dos casos uma
profundidade importante, porém não tão elevada na vida pessoal do praticante.
Entende-se que toda essa diferenciação de relacionamento vem do
entendimento sociocultural de cada tribo, comunidade, povo ou nação. Diz-se
isso, pois, muitas artes marciais possuem a relação mestre-discípulo não
apenas por tradição, mas também por entender que a experiência de vida e o
reconhecimento popular (título de mestre) podem até mesmo valer mais do que
uma certificação profissional (título de professor).
105
narrados, Bäck, (2009) e Mocarzel, Ferreira e Murad (2014) apontam ainda a
competição, o lazer, a estética-cosmética (beleza do corpo)23 e a socialização
como objetivos mais comumente citados por praticantes de Kung-Fu já no
século XXI. Sob um olhar estético filosófico, essa questão dá suporte ao
entendimento da arte marcial como arte em si; um meio de visão, criação e
expressão da sensibilidade e da cultura que se adapta às transformações
sazonais da sociedade humana, afinal Heráclito de Éfeso24 (535 a.C. – 475 a.
C.) já dizia “nada é permanente, exceto a mudança”, reflexão que Lao Tsè25
(604 a.C. – 517 a.C.) já apoiava alegando que a cultura de forma geral é uma
“arte viva” mudando a cada dia (Lao, 2001), como também Dürkheim (1995, p.
303) que afirmava “(...) que a humanidade se faz, se desfaz e se refaz sem
parar (...)”. Isso mais uma vez demonstra a presente compleição estética que
integra o Kung-Fu como é exposto por Veloso e Oliveira Junior (2015), onde a
referida prática é tida como uma possibilidade em busca da estética da
existência. Contudo, independentemente do foco e objetivo do praticante, os
princípios práticos devem sempre ser irrigados pelos ensinamentos pacifistas
derivados do taoísmo e confucionismo (Mocarzel, Queirós & Lacerda, 2016),
buscando manter-se como um exemplo vivo de arte marcial: um caminho
educativo para o corpo, mente e espírito (Abe, 1986; Allen, 2013).
23
Viu-se a necessidade de esclarecer que a colocação da expressão “estética-cosmética” se
relaciona apenas com a prática do Kung-Fu como meio de embelezamento corporal do
praticante, não sendo ali profundamente ligada à expressão “estética” como um dos eixos
principais da filosofia.
24
Filósofo pré-socrático considerado "Pai da dialética”.
25
Filósofo considerado fundador do taoísmo (ou daoísmo) e que dentre diversos escritos tem
como sua obra mais famosa o clássico Tao Te King, possivelmente a obra de maior
profundidade poética filosófica e de relevância de toda a cultura oriental.
106
principais ferramentas de transmissão de conhecimento da humanidade. Ao
analisar cuidadosamente a cultura oriental, com um foco especial na cultura
chinesa (uma das mais antigas da humanidade), é possível notar diversos
princípios educacionais de profundo teor filosófico sendo estes princípios
compostos de valores éticos, morais, deontológicos e estéticos (Lima, 2000).
Muitos dos referidos valores tiveram suas origens nos três grandes pilares do
pensamento chinês; o taoísmo, o confucionismo e o budismo e foram
absorvidos, espalhados e propagados pela cultura chinesa através dos tempos
(Acevedo, Gutiérrez & Cheung, 2011; Mocarzel, 2011). Interessante observar
que tais linhas de pensamento até hoje são discutidas como filosofias ou como
religiões (Monteiro, 2015). Porém, independentemente da natureza filosófica ou
religiosa do valor, a sabedoria e prática cotidiana do mesmo podem ser vistas
com grande importância no pensamento chinês (Granet, 1997). Nessa cultura,
os valores devem ser cultivados e propagados por todos, tanto um imperador
quando o chamado homem comum (Lao, 2001).
107
literárias (Green, 2003). De certa forma, os ideogramas chineses muitas vezes
buscam representações muito mais profundas do que sua interpretação literal
ou transliteração. Pode-se dizer que em diversas situações, tais símbolos
tocam o conceito de alegoria sob o prisma filosófico, onde assumem
representações que podem envolver mitos, contos, entidades, simbologias e
afins, não representando apenas fatos comuns, mas sim uma síntese elevada
à esfera poética (Abbagnano, 2014).
É nessa guisa que ao analisar alguns ideogramas tidos aqui como pilares
da temática deste estudo, os mesmos revelam algumas interpretações mais
profundas muito significativas para uma reflexão e entendimento de natureza
filosófica no universo marcial. Dando início pela expressão “arte marcial” por
108
Taylor (1994) ainda acrescentam que o eixo principal do pensamento
hermenêutico oriental aqui exposto não nasce ou tem relação com aspectos
geográficos (práticas orientais ou ocidentais). De fato, destacam que as
práticas tidas como arte marcial têm sim um alto senso de refino cultural e
estético, dando respaldo ainda à máxima de Sun Tzu que declara abertamente
que “o verdadeiro caminho da guerra é a vitoriosa paz” (2006, p. 16). Ou seja,
entende-se assim que a harmonia e paz são o fim maior e que o meio belicoso
deveria ser sim a última alternativa de alcance à harmonia. Para além disso,
Lao Tsè já caracterizava as armas como instrumentos nefastos dizendo que as
mesmas só deviam ser utilizadas em último caso. Se o corpo humano passar a
ser visto como arma após o adquirir de proficiência marcial então o
entendimento anterior passa a ser ampliado ao próprio ser humano em uma
visão pacifista ainda mais alargada.
109
Ideogramas que formam a expressão Kung-Fu.
110
ocidentais como conseguiam efetuar movimentos de grande plasticidade e
beleza, os atores/artistas marciais apenas respondiam: “Kung-Fu!” (Mocarzel,
2011). Sob um sentido interpretativo do significado pode ser entendido como:
“tempo e esforço desprendido numa atividade” ou “grau de perfeição alcançado
em qualquer área de atuação”, ou ainda, “conhecimento profundo de um
assunto” (Hirata & Del Vecchio, 2006, p.3). Já Apolloni (2004, p.74) coloca que
o termo “expressa uma habilidade intuitiva obtida pela repetição intencional de
uma ação”. De forma mais generalista, Lima (2000) alude ser a busca
constante da perfeição, mesmo que tal busca seja efêmera como cita Monahan
(2007). Alguns ainda conceituam resumidamente como “trabalho duro”
(Jefremovas, 2003, p.16). Mais recentemente, Koppe (2009, p.22) posicionou-
se dizendo que Kung-Fu seria “habilidade adquirida através de um longo
período de treino”. Portanto, conclui-se que, a expressão “Kung-Fu” denota:
qualquer grande conhecimento e/ou prática alcançados após muito esforço,
trabalho e treino árduo e que se aperfeiçoam com o tempo de prática,
incluindo-se aqui a caligrafia, pintura, escultura, e claro, arte marcial. É de se
observar novamente o entendimento holístico e a riqueza ética e estética do
sentido dessa prática, trazendo à luz a dedicação, o zelo e o empenho nas
práticas não apenas marciais, mas sim cotidianas do ser humano, indicando
assim para além de uma atividade física, um meio competitivo desportivo ou
tão somente uma forma de autodefesa, mas sim uma filosofia de vida, que
misturam práticas de delicadeza e rigidez, do físico e mente, de criação e
recriação constantes (Andraus, 2012; Ng 2016). Por meio dessa (re)educação
o ser humano se re(molda), pois como já aclarava Aristóteles (2015), somos o
que repetidamente fazemos, sendo a excelência um hábito a ser construído
com o aperfeiçoamento constante da prática.
5. Ao modo de conclusão
Este estudo buscou discutir sob uma análise hermenêutica alguns dos
mais importantes conceitos e respectivas designações do meio do universo
marcial que, não tão raramente, são tomados como sinônimos. Através de uma
111
desconstrução e reconstrução, a reestruturação da taxonomia proposta por
Mocarzel (2011) objetivou apresentar diferenciações e evidenciar valores de
natureza ética, moral e estética contidos principalmente no conceito “arte
marcial” e fazendo ligação com a essência conceitual filosófica do conceito
“Kung-Fu”.
Sob uma ótica histórica, entende-se que ficou exposto que com as
transformações e modificações do pensamento humano, fruto dos
desenvolvimentos histórico-socioculturais, as práticas do universo marcial
transformaram-se e, consequentemente, os temas que as designam hoje
reconfiguram o seu significado, o entendimento das próprias terminologias ou
ainda a própria prática em si, alterando-as significativamente em sua essência.
Fica claro que apenas será possível um entendimento unívoco dos conceitos
abordados no universo marcial caso os mesmos não sejam analisados em sua
base hermenêutica e essencialmente filosófica de maneira profunda. Por meio
da reestruturação da taxonomia aqui proposta, destacaram-se diversos
embasamentos filosóficos (tanto de natureza ocidental quanto oriental) e
designação do conceito de arte marcial como uma educação e prática pacifista,
aludindo como um exemplo da cultura chinesa o Kung-Fu, imerso em questões
filosóficas, nomeadamente a ética, a moral e a estética.
112
e reforçam a legitimação da importância do entendimento e compreensão das
raízes filosóficas que embasam o universo marcial, salientando suas bases
educativas.
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120
4. Estudo Empírico – Estudo IV
_______________________________________________________________
121
Resumo:
Kung-Fu é uma antiga prática chinesa que entronizou filosofias pacifistas em
sua essência, buscando assim proporcionar um processo de autorreflexão
constante do praticante em prol de uma elevação ética e estética. Este estudo
objetivou identificar as dimensões das práticas do Kung-Fu tradicional com
acentuado cunho ético e estético, e mais especificamente, indagar em que
medida o Kung-Fu tradicional pode colaborar com o processo educativo de
seus praticantes em seu cotidiano, designadamente no que se refere à
educação ética e estética. Foram entrevistados três Mestres de alto renome
mundial. Através de seus discursos, podem-se ver princípios éticos e estéticos,
como espírito familiar, respeito hierárquico, harmonia, perseverança, honra,
beleza, virtude, tradição humanização e pacifismo.
Palavras-chave: Kung-Fu. Ética. Estética. Filosofia do Desporto. Filosofia
oriental e ocidental.
1 INTRODUÇÃO
122
Quando analisada a estrutura do Kung-Fu tradicional observa-se que o
mesmo se divide em centenas de estilos – fontes de inspiração para criação e
prática das técnicas marciais imersas em cunho filosófico (LIMA, 2000;
MOCARZEL, 2011). Os estilos possuem também uma organização social que
se assemelha aos antigos clãs com suas hierarquias peculiares, havendo uma
divisão clara entre superior e subalterno, respectivamente nomeados Mestre e
discípulo. No meio marcial, tal relação é tida como mais valorosa que uma
relação de professor e aluno, adentrando em patamares de confiança bem
mais profundos, sendo esta relação comparada a vínculos familiares
consanguíneos (DALMASO, 2010). Os Mestres de Kung-Fu tradicional não são
só antigos praticantes, mas pessoas que dedicaram boa parte de suas vidas ao
estudo e incorporação das técnicas e ensinamentos filosófico-educacionais,
tendo notório saber e reconhecimento pela comunidade marcial, indo para além
da técnica, objetivando atingir um comportamento virtuoso. Tal elevação
virtuosa seria advinda de práticas constantes no dia a dia de um
comportamento ético e estético com tudo e com todos. Afinal, seguindo uma
interpretação hermenêutica, a expressão “Kung-Fu” significa resumidamente
“qualquer grande conhecimento e/ou prática alcançados após muito esforço,
trabalho e treino árduo e que se aperfeiçoam com o tempo de prática,
incluindo-se aqui a caligrafia, pintura, escultura, e, claro, arte marcial”
(MOCARZEL, 2011, p. 32). Outros autores reforçam tal conceito, como Hirata e
Del Vecchio (2006, p.3) dizendo que a expressão tem por significado: “tempo e
esforço desprendido numa atividade” ou “grau de perfeição alcançado em
qualquer área de atuação”, ou ainda, “conhecimento profundo de um assunto”.
Já Apolloni (2004b, p.74) coloca que o termo “expressa uma habilidade intuitiva
obtida pela repetição intencional de uma ação”. De forma mais generalista,
Lima (2000) alude ser a busca constante da perfeição. Logo, entende-se que
seu aperfeiçoamento não repousa apenas nos estudos bélicos e/ou marciais,
mas no zelo e respeito diário em prol de um bem maior e coletivo. Enfim, fazer
algo bem para o Bem. Aí repousa sucintamente o valor ético e estético do
Kung-Fu.
123
Sob esse prisma, os ensinos de tais Mestres são tidos como valorosos.
Porém, para a grande maioria dos ocidentais, há dificuldade de assimilação de
tais ensinamentos pelo desconhecimento dos dialetos chineses. Acresce-se a
isso a secular característica cultural chinesa de transmissão oral (GRANET,
1997) incorporada ao meio marcial até hoje (SHAHAR, 2011; FERREIRA;
MARCHI JÚNIOR; CAPRARO, 2014), atribuindo ainda mais valor ao que foi
narrado pelo Mestre (FERREIRA, 2005). Contudo, tal peculiaridade fez com
que se tenha hoje pouco material escrito credível sobre a temática do Kung-Fu
tradicional (LU, 2008), o que se torna mais escasso ainda em idioma português
(MOCARZEL; QUEIRÓS; LACERDA, 2016).
Assim, este estudo objetiva identificar as dimensões das práticas do
Kung-Fu tradicional com acentuado cunho ético e estético, e mais
especificamente, indagar em que medida o Kung-Fu tradicional pode colaborar
com o processo educativo de seus praticantes em seu cotidiano,
designadamente no que se refere à educação ética e estética.
2 METODOLOGIA
124
a credibilidade da pesquisa, efetuou-se a “checagem pelos participantes”
(NEGRINE, 1999, ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNADJER, 2002).
Elencaram-se como entrevistados três Mestres de Kung-Fu tradicional
reconhecidos mundialmente por seus méritos no universo marcial e que
capitaneiam estilos tradicionais largamente difundidos em âmbito internacional.
Espera-se que tal relevância dê suporte, valor e fidedignidade ao estudo. São
eles (nomes em negrito na ordem que as entrevistas ocorreram):
Lily Lau – Nascida em 12/12/1945 em Pequim (China). Maior
representante do estilo Garra de Águia no mundo. Fundou e comanda a Lily
Lau Eagle Claw Kung Fu Federation International. Atualmente a única mulher
no mundo a chefiar um estilo de Kung-Fu. Filha do já falecido Grão-Mestre Lau
Fat Mang, famoso artista marcial que ajudou a defender a China contra o
Japão na II Guerra Mundial. Foi Instrutora Chefe de Kung-Fu da Hong Kong
University Student Union. Atuou em diversos filmes culturais chineses sobre
Kung-Fu e ópera chinesa. Ajudou a fundar e gerenciar diversas entidades de
Kung-Fu pelo mundo. Laureada em 2013 com o Extraordinary Martial Artist of
the World, prêmio honorário por suas realizações e conquistas. Possui alunos
em 18 países e reside no estado da Califórnia (Estados Unidos da América).
Leo Imamura – Nascido em 18/03/1963 em São Paulo. Principal
representante do estilo Ving Tsun na América do Sul. Fundou e comanda o Clã
Moy Yat Sang de Ving Tsun. Único discípulo no Brasil do já falecido Mestre
Moy Yat. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo e em Educação
Física pela Faculdade de Educação Física de Santo André. Desenvolveu e
implantou em 2003 o Programa Moy Yat Ving Tsun de Inteligência Marcial,
onde tutela o que denomina “vida Kung-Fu”. Foi ainda professor na
Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Possui alunos em 12 países e
reside no estado de São Paulo (Brasil).
Thomaz Chan – Nascido em 01/12/1967 em São Paulo. Filho do Grão-
Mestre Chan Kwok Wai, uma das maiores autoridades do estilo Shaolin do
Norte no mundo (dentre outros estilos). Ocupa o posto de Diretor Técnico Geral
da Confederação Brasileira de Kung Fu/Wushu, tendo sido peça-chave para o
crescimento e reconhecimento da Seleção Brasileira de Kung-Fu no cenário
125
internacional. Iniciou sua formação em Wushu Moderno na Beijing University of
Physical Education (atualmente Beijing Sport University), tornando-se
referência no Ocidente como atleta e treinador. Colaborou na criação de
diversas entidades do Kung-Fu no Brasil. Converge sua docência ao Brasil e
reside no estado de São Paulo (Brasil).
As entrevistas buscaram captar a história oral narrada pelos Mestres.
Nunes (2011) diz que tal ferramenta de estudo ganha brilho na temática da arte
marcial no meio acadêmico, algo ainda reforçado por Ferreira (2013) quando
convergido ao Kung-Fu tradicional. Entretanto, apesar de reconhecer o valor ali
contido, tais narrativas carecem de contornos acadêmicos (MATOS, 2013).
As colocações dos Mestres sobre as manifestações éticas e estéticas no
Kung-Fu foram refletidas, analisadas e posteriormente dispostas através de
categorias temáticas do discurso (GADET; HAK; MARIANI, 1997). O método do
discurso da história oral já é preconizado por Ferreira, Marchi Junior e Capraro
(2014) como método de pesquisa pertinente no meio marcial por conta da
significância social e educativa da cultura da transmissão oral ali consolidada.
Seus discursos estão a seguir dispostos em itálico.
Como esta pesquisa se inscreve num âmbito marcadamente heurístico,
optou-se por deixar o entrevistado desenvolver o seu pensamento de forma
mais livre, permitindo considerações que, apesar de ausentes do guião da
entrevista, foram relevantes aos olhos dos entrevistados. Posteriormente os
dados foram analisados pelo pesquisador e os se mostraram pertinentes para o
estudo da temática em análise, foram considerados.
126
disso, parece exalar daí um sentimento de necessidade de máximo zelo pela
prática hoje, objetivando assim não manifestar desrespeito à memória dos
antepassados.
Expondo um segmento do discurso do Mestre Leo Imamura, ele coloca
criticamente que ser um praticante de estilo tradicional
é ser integrante de uma família que detém conhecimento do Kung-Fu
sendo aceito por ela. (...) Dessa forma, tudo que aquele estilo
tradicional proporciona passa a ser mais valorizado e praticado.
Contudo, o desejo do brasileiro (e mesmo do ocidental de maneira
geral) é ir logo ao aprendizado de modo pontual e específico, não
desejando obter o conhecimento de forma convivial e geral (como
acontece com o oriental habitualmente). No Oriente, isso se dá para
que você possa entender e absorver os costumes e valores daquele
grupo, para aí sim ter acesso às questões técnicas da prática marcial
do estilo.
Para Grã-Mestra Lily Lau sua visão se mistura com seu legado familiar,
pois a família Lau já é protagonista na difusão de um estilo tradicional há
gerações. Além disso, a referida Grã-Mestra fez um juramento no leito de morte
de seu pai que daria continuidade à propagação de seus conhecimentos
marciais. Apesar de este último caso soar como um relato poético atenta-se
aqui para o entendimento honroso que tal visão carrega. Tal continuidade é sob
um espectro amplo uma demonstração prática de respeito e gratidão aos
antepassados e antigos praticantes que colaboraram para que aquela prática
chegasse até ali através dos tempos. Já sob um espectro específico, a Grã-
Mestra relata que é uma forma de relembrar seu pai. Enfim, uma forma
particular carinhosa e íntima de memória filial. “Meu pai estava me ensinando e
me amava dessa maneira.” Relembra-se aqui que amor e piedade filial são
127
virtudes confucionistas (CONFÚCIO, 2012) e que tal filosofia alicerça a
educação comportamental perpetuada no Kung-Fu tradicional.
Em meio às afirmações acima, acredita-se ser importante trazer à luz
duas reflexões. A primeira é ressaltada por Lima (2000), onde enfatiza que o
entendimento do termo “marcial” para cultura oriental traz um conjunto de
significados diferente do entendimento ocidental. É uma luta interna consigo
mesmo. É a superação dos próprios sentimentos egoísticos (BÄCK; KIM,
1979). Assim, na prática cotidiana de um artista marcial tradicional, buscar a
demonstração de humildade ouvindo os mais experientes seria o natural. Em
uma segunda reflexão, observam-se com maior rigor acadêmico as possíveis
situações avaliando se seriam “tendenciosas”. Para tal questionamento poder-
se-ia criticar aqui a influência familiar do Mestre Thomaz Chan e da Grã-Mestra
Lily Lau, afinal suas famílias são profundamente enraizadas em tais práticas.
Contudo, observa-se que a narrativa do Mestre Leo Imamura faz tal crítica cair
por terra, já que vem respaldar as citações dos outros Mestres e o mesmo não
possui vínculo marcial familiar ascendente, demonstrando que a visão narrada
pelos Mestres é compartilhada pela comunidade tradicional. Segundo Tralci
Filho (2016), dá-se aí um exemplo de tradição no Kung-Fu, onde o sistema
educacional é salvaguardado pelas gerações seguintes.
Ao que tange a perpetuação desse sistema comportamental adotado no
Kung-Fu tradicional, vê-se como necessário um detalhamento e análise de
maior profundidade para melhor compreensão de sua natureza. Respaldando o
princípio educativo das artes marciais, Ilundáin-Agurruza (2014, p.464) defende
que as artes marciais: “são formas práticas e normativas notáveis que dão
ética, estética e princípios existenciais e valores”. Logo, faz-se evidente que os
valores éticos e estéticos são falanges de tal estrutura educacional e que
devem ser descortinados.
128
narrativas ao povo chinês e oriental. Apontam unanimemente que as bases
filosóficas do Kung-Fu têm suas raízes principalmente no confucionismo e que
dele absorveu-se as questões humanistas do que chamam Wu De (武德), o
código de ética marcial do Kung-Fu tradicional, onde se ressaltam as virtudes
almejadas pelo praticante (MOCARZEL; QUEIRÓS; LACERDA, 2016;
COCENZO, 2018).
A Grã-Mestra Lily Lau afirma: “o Kung-Fu tradicional faz parte da cultura
chinesa. E a cultura do Kung-Fu tem o foco no Wu De como sua filosofia. Eu
quero espalhar isso para outras pessoas através do Kung-Fu: saúde, paz,
aprendizado”. Contudo, é interessante apontar uma profunda reflexão tecida
pelo Mestre Leo Imamura que adentra criticamente os meandros dessa
temática, onde ele correlaciona a importância da prática diária não só do
praticante iniciante como do Mestre.
No Kung-Fu busca-se desenvolver uma ética através de uma prática
moral própria, aflorando valores muitas vezes não enfatizados na
sociedade convencional ou mesmo da sociedade que percebemos.
Isso vem como uma particularidade das artes marciais, que por sua
vez fazem parte de uma filosofia maior que seria o Kung-Fu. Esse
último, explicando de maneira mais simples, seria uma habilidade
incorporada e manifestada concretizando-se através da prática
constante. Essa prática é pessoal e singular, não sendo ensinada e
sim somente aprendida. Ou seja, aí reside um profundo pensamento
confucionista que a habilidade se adquire através do desenvolvimento
humano. Ele se aprende com a convivência com o próximo. Por isso
talvez não devêssemos chamar os locais de treinos de Kung-Fu de
“escolas” ou “academias”, mas sim de “recinto marcial”. O verdadeiro
Kung-Fu é aprendido através de um processo convivial. Você deve
conviver com pessoas que já têm esse processo mais desenvolvido e
aquilo evolui com a convivência e não por meio de cursos e
seminários. Se você está aprendendo Kung-Fu de maneira não
convivial, então você não está aprendendo Kung-Fu tradicionalmente.
129
Ainda sob uma visão ética, Mestre Thomaz Chan enfatiza que o
processo educativo no Kung-Fu tem seu início no Wu De, ressaltando ainda
que os ensinamentos combativos práticos só devem vir após esse processo.
Mais, ressalta que a prática de todos deve ser perpétua e que assim, pouco a
pouco, as mudanças acontecerão.
Tudo no Kung-Fu começa no Wu De. Qualquer técnica só deve ser
ensinada após a orientação do que vem a ser o Wu De. É por ele que
nos guiamos e nos pautamos para nosso comportamento dentro e
fora de um treino de Kung-Fu. É pra vida! Isso se dá todo dia. No
respeito aos compromissos e horários, no zelo com as coisas à volta,
na forma como tratamos os outros. Nos treinos, ao cumprimentar os
antepassados e os colegas de treino, em estar com o uniforme
adequado e limpo, é estar atento quando estiver recebendo
orientações, é ter paciência com os erros e dúvidas dos menores de
idade ou mesmo menos graduados. Enfim, com paciência e tempo o
Wu De vai se tornando nossa prática e não só teoria. Nesse meio
tempo, as mudanças comportamentais vão acontecendo pouco a
pouco. Em relação às técnicas marciais, elas são secundárias. São
ensinadas, porém o foco maior deve sempre ser o Wu De, seja qual o
objetivo que for do praticante.
130
e generosidade. A mão direita fica em punho cerrado representando a
agressividade, contudo a mão esquerda fica aberta abarcando a mão esquerda
representando a cortesia que se sobrepõe à agressividade. Logo, vê-se aí uma
representação do Tao, simbologia filosófica do caminho em busca da
harmonia.
131
Figura 2: Conhecer amigos através das artes marciais. (Fonte: vídeo demonstrativo da Grã-Mestra Lily
Lau apresentando a técnica em dupla “72 Joint Locks Eagle Claw Chin Na”).
132
do confucionismo. Enfim, a ética deve ser verdadeira nas atitudes e ainda mais
no íntimo do ser (CORTELLA, 2016).
133
aplicar a teoria à prática. Já o chinês vê aquilo como um processo
exploratório. Um momento de exploração de uma união. Por isso o
movimento de incorporação de animais (como por exemplo, uma
águia) busca as qualidades daquele animal inspirador. Ali se dá algo
além do gestual, algo estético! Contudo, executa-se de acordo com
as capacidades de cada praticante, respeitando suas limitações. Uma
educação de adaptação para ensiná-lo a se preparar para as técnicas
do sistema marcial que o mesmo pratica. Isso vai além do aspecto
bélico de autodefesa. Novamente exponho que a estética conduz ao
geral, pois só criando ligações entre as diferentes questões ali
envolvidas (o físico do praticante, as idiossincrasias culturais, a
poesia, a intenção da prática) haverá um aprofundamento sólido e
real na arte.
134
ali que há uma centelha, mas o verdadeiro Kung-Fu está muito além de esforço
físico”. Novamente reforça-se o pensamento do Kung-Fu possuir um lado
introspectivo profundo além do campo físico. Praticar apenas focando-se no
campo físico seria então subutilizar o potencial essencial do Kung-Fu. A
perseverança toca não apenas a paciência, mas também a serenidade e o
desapego de sofrimentos numa busca pela harmonia. Nesse ponto nota-se
uma aproximação dos pensamentos históricos da filosofia chinesa com a
grega. Em ambos os casos o praticante busca adquirir capacidades
magníficas, porém na cultura grega objetivavam ser sobre-humanos
(semideuses) e na chinesa transcenderem e alcançarem a iluminação (estado
uno ao plano material e espiritual). De fato, não parece ser difícil perceber a
singular proximidade desse entendimento chinês mais profundo do Kung-Fu
com o entendimento grego de Areté (RUBIO; CARVALHO, 2005). Mais: o
próprio significado da expressão “Kung-Fu” se harmoniza com o pensamento
de Aristóteles, onde a virtude humana não é algo inato, excepcional e heroico,
mas advém sim de uma dedicação constante.
Sendo mais enfático e assertivo, Mestre Thomaz Chan ainda esclarece
que as qualidades físicas e técnica têm importância menor quando comparadas
ao ensino ético e estético no Kung-Fu tradicional.
São secundárias. A amizade, o respeito, a fidelidade. Isso tudo deve
vir antes. Vêm com a confiança de quem está te ensinando, de quem
treina junto a você, de toda a história que está ali contida.
Naturalmente assim, desenvolvemos pouco a pouco a obediência, a
paciência, a perseverança. Daí é que vêm as conquistas, como: a
superação e a sensação de aperfeiçoamento, o espírito fraternal
familiar.
135
à hierarquia, à história. Além disso, na superação de adversidades, nessa
busca pela perfeição que devemos ter”. Por fim, ele ainda reforça a união do
pensamento ético-estético no Kung-Fu tradicional:
O Kung-Fu é uma prática para vida! Eu vejo o Wu De (e
consequentemente o Kung-Fu como um todo) sendo um meio
importante de ajuda na formação da pessoa. Um meio de formar o
carácter de forma boa. Enfim, não ser uma pessoa mesquinha, ser
uma pessoa confiável, respeitosa, dedicada. Isso influencia no meio
em que a pessoa vive; positivamente quero dizer. Uma forma de
colaboração à cidadania.
4 CONCLUSÔES
136
promoção da saúde, superação física e mental, numa perpétua procura pela
harmonia interna e externa do ser. Poder-se-ia dizer uma espécie de
transcendência ou iluminação; o Tao (LIMA, 2000).
Através tanto de autores de outrora quanto atuais, do Oriente e do
Ocidente, fica evidente que a virtude se perfaz como um axioma, uma verdade
indubitável necessária para a evolução do ser humano. Faz-se valioso e
valoroso haver práticas que buscam uma educação imersa em tais virtudes,
ainda mais quando esse ensino pensa além de exclusivamente um indivíduo,
mas sim no coletivo, na humanidade como um todo. De fato, não ser um ser de
ações solitárias, mas sim solidárias.
A interpretação dos discursos dos grandes Mestres aqui coletados
demonstra a importância da ética e da estética no estudo e prática do Kung-Fu
tradicional, deixando subentendido que sem tais valores em sua compleição o
mesmo não se tornaria um meio de busca de virtudes; o mesmo não seria o
“verdadeiro caminho da chamada vida Kung-Fu”.
De forma sucinta, os antigos gregos usavam o termo Paidéia para
expressar a formação do espírito e do caráter em prol de um educar cívico
(PATRÍCIO, 2008; MARINHO, 2013). No fundo, a Paidéia é uma pedagogia
que conduz a um ideal de beleza para uma vida bela, baseada na verdade e no
bem. Sob essa ótica, é compreensível a comparação feita por Oliveira (2006)
que reflete sobre o Kung-Fu tradicional ser uma espécie de “Paidéia à chinesa”.
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142
5. Buscando uma interpretação integrada dos estudos realizados – uma
reflexão final
_______________________________________________________________
143
Com o avançar do processo de pesquisa, alguns tópicos ganharam luz e
foram aos poucos sendo expostos de maneira mais direta e objetiva no
decorrer das publicações realizadas. Contudo, alguns outros temas figuraram
nos estudos que compõem o todo desta pesquisa doutoral de maneira
coadjuvante, sendo indiretamente abordados ou ainda citados não de forma tão
aprofundada, por conta das limitações de paginação para publicação, escopo
dos periódicos e/ou eventos acadêmicos, dentre outros possíveis limites
encontrados.
144
competitivista, não tendo maiores inclinações aos campos mais profundos das
humanidades. Apesar de o conceito de desporto já ter sido apresentado no
enquadramento teórico desta tese doutoral, viu-se aqui necessidade de
discorrer um pouco mais sobre o assunto para evitar conflito por conta das
diferenças culturais deparadas. Sobre isso, Tojal (2004) explica que existem
denominações diversas para esse campo científico, tais como: cinesiologia,
cultura física, atividades físicas, cultura corporal, ginásticas, atividades
corporais, dentre outras. Todavia, observam-se na lusofonia fundamentalmente
dois entendimentos diferentes; “desporto” (Bento, 1995)26 e “motricidade
humana” (Sérgio, 1989). É esclarecido por Lovisolo (2000) que a referida área
científica no Brasil recebe o nome de “educação física” sob uma cobertura mais
generalista, algo que acontece diferente em Portugal, pois o referido termo é ali
empregado e voltado especificamente para atuação no campo escolar, sendo a
Educação Física uma disciplina do currículo escolar. De forma a “apaziguar”
quaisquer possíveis ruídos e atritos conceituais, acolhe-se aqui a abordagem
conceitual de Tubino (2001) que enfatiza haver esporte educação, esporte
participação e esporte performance. Logo, ao observar tal tripé conceitual, de
certo o termo “esporte” apresenta-se sim como sinônimo de desporto
enaltecido por Bento e Bento (2014). Dessa forma, nota-se também maior
afinidade para com os estudos que transitem pelo campo da filosofia do
desporto, já que o referido conceito abarca de maneira clara e inequívoca as
humanidades, indo para além dos aspectos biológicos e competitivos. Na
verdade, a investigação em ciências do desporto, quando opta por uma
aproximação a partir das ciências humanas, como sucede neste trabalho, tem
sempre que extrapolar estes aspectos.
26
Aparentemente Bento compartilha do mesmo pensamento de João Lyra Filho, que em 1941
ao escrever a primeira lei (decreto-lei 3199) sobre esporte/desporto do Brasil preferiu utilizar a
expressão “desporto”.
145
tange tal configuração, o corpo se apresenta nos quatro estudos como um
veículo de aprendizado, representação e (auto)descoberta, tocando um
princípio educativo exploratório, imerso em valores que transitam pelas quatro
esferas citadas (o que nomeadamente chama-se aqui de “corpo-bio”, “corpo-
psico”, “corpo-socio”, “corpo-axiológico”). Neste sentido, o corpo esboça uma
trajetória dinâmica que decorre não apenas de aspectos biológicos, mas
também abarca aspectos cognitivos, socioculturais e filosóficos (Fensterseifer,
2001). Inicialmente sobre tal questão, Merleau-Ponty (2006, p. 136) esclarece
que o corpo não deve mais ser assim refletido “como objeto do mundo, mas
como meio de nossa comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de
objetos determinados, mas como horizonte latente de nossa experiência”. Sob
essa guisa, Cunha e Silva (1998) afirma que o corpo é uma estrutura
autopoiética e que por sua vez possui relações íntimas e cumplicidades com o
meio em que se apresenta e no qual interage. Contudo, para tal interação faz-
se necessária uma percepção apurada do ser para com o meio, a chamada
consciência corporal (ou do corpo). À primeira vista, tal expressão aparenta
findar-se no próprio corpo, todavia sua prática se dá na expansão da
percepção de todo o meio de forma inequívoca para uma otimização da
execução do movimento do corpo no ambiente (Merleau-Ponty, 2006). Assim,
Gil (2001, 9. 176) conclui que:
146
mas criação. Compreender a corporeidade é saber olhar sensivelmente o
próprio corpo e o do outro, em uma busca de consciência corporal, algo além
de uma disciplina imposta ou padronizada (Sérgio, 2005). Logo, não se deveria
dizer que se possui um corpo, mas que se é o corpo, que absorveu
experiências, conhecimentos, práticas, trejeitos, hábitos e afins, constituindo-se
como se encontra, indo além de uma objetiva visão biológica. Assim, o corpo
mereceria receber maior destaque do que se tem hoje como meio do processo
de ensino e aprendizagem. É de se observar que tais aforismos de Sérgio
(2005) dão alicerces para uma aproximação substancial do conceito mais
abstrato de “Kung-Fu”, onde o mesmo é tido como uma prática de
aprofundamento real e genuíno em um estudo ou exercício (algo já esclarecido
no estudo III). Importante dizer que tal interação ganha ainda mais valor
quando recaída sobre outro indivíduo (“corpo-socio”), consubstanciando
princípios altamente significativos para uma construção social e coletiva
harmônica (tópico já destacado no estudo IV). Dessa forma, essa relação
intercorpórea com o outro e o vínculo estabelecido nesse contato colocam o
corpo como universo aberto para todas as sensações da sensibilidade, numa
unicidade de existência que ensina sobre nós mesmos, sobre o outro e
expande ontologicamente o viver ético e estético para outra forma de existir
(Raffaelli, 2013; Silva & Porpino, 2014). É nesse posto que, de maneira
proeminente, emerge a importância do entendimento e prática da ética e da
estética de modo indissociável (Santin, 1995); a primeira para uma
compreensão do bem próprio e coletivo nas esferas da razão e a segunda para
sensibilização e humanização nas esferas da emoção (como consubstanciado
em âmbito teórico no estudo III e em âmbito prático no estudo IV). David Hume
(2009) buscou no século XVIII refletir o lado humano do homem (social e
emocional) através do raciocínio experimental que foi usado por Isaac Newton
para o entendimento da natureza física. Dessa forma, Hume concluiu que a
razão é um atributo humano privilegiado para permitir que as sensações sejam
as melhores possíveis. A razão permite ainda o encontrar de justificativas para
os afetos, sejam eles aceitáveis por você (moral) e/ou pelos outros (ética).
Entende-se então que a razão está a serviço dos afetos e de uma natureza
147
sociável humana. Afinal, a ética é a inteligência compartilhada a serviço da
convivência. E tais atos buscando uma pureza em sua intimidade essêntica
(ser) e em sua execução (fazer) a tornam também estética. Novamente vê-se
aí a união quase que indissociável da ética com a estética. Enfim, de forma
conclusiva, entende-se sob as palavras de Merleau-Ponty (2006), que o mover
do corpo não se faz simplesmente em uma atitude isolada naquele momento
do tempo, mas sim se configura como um ato consequente de uma sequência
de outros atos que construíram o amadurecimento de uma visão, da
experiência de vida, da educação de vida, dos valores experienciados e
absorvidos na vida. Dá-se aí então o gênesis de um “corpo-axiológico“. Em
uma visão entrelaçada das palavras de Merleau-Ponty para com os campos da
ética e da estética recaídas no corpo humano, entende-se que a existência de
um corpo ético-estético se faz na expressividade do e no espaço (Raffaelli,
2013). Assim se perfaz um corpo expressivo. Este se auto expressa e expressa
seu meio, sua história, sua cultura, suas emoções íntimas, seu eu. Este
entendimento mais holístico do corpo já começa a ser reconhecido hoje pelo
meio acadêmico ocidental das ciências do desporto como “corpo desportivo”
(Lacerda, 2016). Importante dizer, Cunha e Silva (1999b, p. 60) explica que
essa expressividade rica em estética sobre o corpo pode sim ser vista como
útopica, porém de forma alguma como atópica. Para o mesmo autor, o corpo
transforma-se, assim, em um “laboratório da utopia”, onde o movimento banha
o corpo desportivo de uma “mais-valia estética” por sua infinidade de
variabilidades potenciais.
148
interpretando-a como a educação de uma pessoa que conhecesse as artes, a
filosofia, ou tivesse uma vida ligada à ciência” (1992, p. 68). Sob olhares mais
historicistas, Ortega y Gasset (1999, pp. 98-99) aponta que a cultura vive e
pulsa em cada época de forma ímpar e singular de modo concomitante com as
ideias do tempo em questão, dizendo que: “o homem vive sempre a partir de
algumas ideias determinadas, que constituem o chão onde apoia sua
existência”. Sob um viés mais socioantropológico, Morin (2003, p.58) é mais
direto apontando que a cultura se caracteriza como um:
149
acompanhar as reflexões de Cunha e Silva (1998), o aprofundamento da
relação do homem com seu corpo propicia o vislumbrar de um conjunto de
potencialidades sensório-motoras, propiciando ao homem oportunidades de
descobrir suas capacidades e aprimorá-las pouco a pouco com o estudo e
treinamento devido. No entanto, tecendo aqui uma ligação com os treinos
técnico-práticos de Kung-Fu, não é raro a execução de técnicas inspiradas
poeticamente em movimentos corpóreos de outros animais ou ainda outros
sujeitos da natureza, como flores (lótus e cerejeira), os cinco elementos da
medicina tradicional chinesa (água, madeira, fogo, terra e metal), as estações
climáticas do ano, dentre outros. Dá-se aí uma profunda imersão mimética e
poética, onde ora o movimento se apresenta de maneira alegórica, ora se
apresenta de maneira aplicável. Entende-se assim que o corpo do praticante
kungfuista irá objetivar inicialmente um aprimoramento físico do próprio corpo.
Porém, não se deterá nesse certame, buscando animações corpóreas que, de
certa forma mimética, incorporarão outros sujeitos da natureza, construindo e
revelando assim novos caminhos práticos de exercícios outrora não
percebidos. Assim que os olhos do praticante recaídos sobre o exercício
deixam de ser “olhos humanos” e recebem novas ”lentes” (como por exemplo,
de uma águia, um tigre, uma serpente ou um dragão), um novo corpo também
se perfaz e se faz necessário. Esse ciclo de estudo de observação, prática,
reflexão, construção, reconstrução se engendrará perpetuamente. Sob olhos
fisio-metabólicos, o corpo humano juntamente com as vicissitudes da vida
estará sempre em mutação, engordando, emagrecendo, alongando,
encurtando, fortalecendo, enfraquecendo, machucando, curando, estressando,
relaxando, envelhecendo. Logo, com transformações tão constantes, o corpo
precisaria sempre se manter em prática para permanecer em um patamar
cumeeiro de primazia anatômica e técnica. Não obstante, o kungfuista busca,
de certa forma, uma transcendência em uma conjuntura com outros corpos da
natureza em uma conjuntura, por assim dizer, mimética-poética-holística em
uma experiência de estudo inter-multi-corpórea. Enfim, uma cultura corporal
profundamente ligada à ecologia, folclore e cultura chinesa, (pensamento já
150
abordado desde o estudo I). Pegando emprestadas as palavras de Merleau-
Ponty (2006, p. 202)
151
subjacente aos valores do espírito (Figueiredo, 1996), caso contrário, poderá
recair sobre o ego, sobre o preconceito e sobre atitudes hedonistas. A ação
cobra sempre a reflexão. A ética recai sobre o respeito e a estética sobre a
sensibilidade, dessa forma, os prazeres do corpo se perfazem em um prazer
inteligente (Hermann, 2005). Por isso, a necessidade de haver práticas regidas
por um profundo código educativo que estimulem um comportamento ético,
estético, deontológico e pacifista como o Wu De – o código de ética marcial do
Kung-Fu (destacado no estudo II). Afinal: “Refletir a ação, o movimento, é
significar a cultura” (Raffaelli, 2013, p. 43). Nessa esteira, Morris (1998) é
incisivo quando afirma que as artes marciais chinesas (o Kung-Fu) são a mais
famosa e autêntica manifestação de cultura física da China. Contudo, é
interessante esclarecer que o corpo que pratica Kung-Fu convoca o “lugar
oriental” e o transmuta em “lugar ocidental”, justamente pela prática. No fundo,
esse novo lugar habitado pelo movimento que decorre do Kung-Fu que hoje
praticamos é um “novo lugar”, já que é criado a partir da aproximação Oriente-
Ocidente.
27
Indo ao encontro do entendimento didático-pedagógico de Comênio, considerado pai da
didática moderna desde o séc. XVII, que preconizava que todos deveriam aprender, mesmo
que em velocidade e modos distintos. Nessa mesma guisa Bourdieu (2007) afirma que todos
os alunos devem ser vistos individualmente, respeitando suas singularidades e não tendo em
mente que os mesmos entenderam a transmissão de valores igualmente.
152
princípio técnico-pedagógico salutar e cultural. Para tal, faz-se necessário uma
consolidada prática pedagógica, onde a sensibilidade do como saber ensinar
se faz fundamental para perpetuação saudável da atividade e de seus
praticantes (Pillotto, 2006). O que Patrício (1993, p. 20) destaca como o “saber
fazer-ser”. Deste modo, inegavelmente: “Quando esse sentir se refere ao fazer
pedagógico, sabe-se que a prática pedagógica sempre envolve uma dimensão
ética” (Raffaelli, 2013, p. 47).
153
experiências e evolui a partir delas. Algo para além do físico, pois, como
ilumina Cunha e Silva (2004, s.p.): “Há exercícios, físicos, que podem
acontecer na intimidade dos corpos”.
154
proporções cumeeiras dos pensamentos citados. Acresce-se a isso a
lembrança de estar afastado do ego, postando-se harmoniosamente entre o
equilíbrio de emoção e razão.
28
A expressão “reptiliana” recaiu sobre a neurologia. Segundo MacLean (1990), uma parte do
cérebro humano conhecida como Cérebro Basal (ou Tronco Cerebral ou ainda R-complex
como MacLean assim chamava) tem sua formação da Medula Espinhal e porções basais do
Prosencéfalo. Ali se dão os reflexos simples, similar ao que acontece com répteis, dessa forma
justifica-se seu nome. Neurologicamente, dá-se nessa porção cerebral o processo instintivo,
atuando nas ações de sobrevivência, fome, sede, sono e afins. Muito embora a referida
expressão não seja mais usada na neurologia, ainda é bem presente em discussões de âmbito
sociocultural.
155
utilitária de dinâmica cortico-racional focada na utilidade da ação em si mesma.
Por fim, a “arte marcial” é apontada como uma luta ritualizada e de dinâmica
mais paleo-mamífera e racional com fins éticos e educativos, ou seja, como
meio de desenvolvimento ético do ser humano, agregando uma multivisão
integrante de técnica e arte. Enfim, algo atravessado por princípios éticos e
estéticos. Tal questão traz ainda a valorização das experiências (tanto teóricas
quanto práticas) para com sua educação e comportamento em âmbito social,
cívico e marcial29, como assinalam Silva e Porpino (2014, p. 68):
29
Relembra-se aqui, “marcial” no sentido oriental de ter a atitude de deter uma manifestação de
violência e não ocidental de ter uma atitude oriunda de uma divindade greco-romana belicosa.
Esclarece-se que não se tem aqui o intuito de elevar ou mesmo romantizar o contexto oriental
em detrimento do ocidental como já alertava Figueiredo (2006) sobre o orientalismo. Porém,
após as diversas explanações e demonstrações sobre as interpretações já ressaltadas, onde
principalmente o pacifismo se fez destaque, vê-se de suma importância novamente frisar tal
diferença.
156
agon e aretê (ou areté). Pode-se explicar o agon como competição tendo as
potencialidades de violência controladas sob a chancela de regras e
organizações regentes. Já a aretê implica em buscar a excelência de uma
atuação, alcançando o limite possível, individual ou coletivo. O mesmo autor
ainda dá a entender que se fosse necessário comparar ambos os princípios,
talvez a aretê devesse receber mais louvor, pois, exatamente por conta do
agon ter hoje mais atenção de um modo geral, o desporto competitivo parece
perder progressivamente seus predicados de nobreza e ganhando maiores
ares de disputas que se encerram em si mesmas. Para Lacerda (2016), o
desporto é justamente um fenômeno que agrega tais conceitos, encontrando-
se sempre neste estado transitório de aperfeiçoamento, presente na busca da
utopia antropológica que é a perfeição. Por sua vez, o viés “tradicional”
apresenta algumas diferenças. Chama-se a atenção que tal inclinação não
exime seus praticantes de participarem de competições desportivas. Contudo,
sua compleição está mais próxima e circunscrita em uma linha de estudo e
prática mais substancialmente ligada à história, aos métodos de autodefesa
mais vigorosos e contusivos que a maioria das práticas desportivo-
competitivas, aos ensinos reflexivos (inclusive muitos com fundo filosófico) que
podem até ter lugar em sessões teóricas e às práticas holísticas de promoção
da saúde. Algumas destas práticas, como por exemplo a meditação, não são
comuns no meio desportivo-competitivo. Entende-se que muito das
características do viés tradicional aqui apresentado se perpetua por conta de
fatores culturais. Sobre isso ser designado como algo tradicional, Cevasco
(2001, p. 72) discute sobre tal expressão dizendo que:
157
de suas famílias e amigos), estudando estratégias, praticando jogadas,
exercitando fundamentos, buscando assim ter maior foco em si e/ou na sua
equipe competitiva. Já em uma prática tradicional os aprendizados e
conhecimentos adquiridos devem ser maturados com as vivências e
convivências na sociedade em seus fins salutar, educativo e pacifista. Assim,
fazendo uma aproximação aos escritos de Paulo Cunha e Silva (1999b), poder-
se-ia dizer que o viés moderno apresenta um corpo centrípeto, voltado pra
dentro e para si. Por sua vez, o viés tradicional expõe um corpo centrífugo,
voltado não tão somente para si, mas para o mundo que o cerca e para quem
ali vive de forma harmônica e convivialmente pacífica. Sob uma ótica prática de
execução de uma técnica marcial, tanto o viés moderno quanto tradicional
podem proporcionar o surgimento do que Lacerda (2016) refere como gesto
oportuno, uma ação criadora que busca a harmonia da situação em um
momento necessário (nesse caso, como em uma competição ou uma ocasião
que se faz necessário defender-se), proporcionando uma adequação estética à
situação. Todavia, o viés tradicional, diferentemente do viés moderno, se
ramificará em questões mais profundas do processo educativo, abordando
ideários quase ritualísticos. Sob o ponto de vista confucionista (prática que
influenciou significativamente o habitus do Kung-Fu), as cerimônias são atos
importantes para a humanidade, para assim proporcionar o sentimento de
pertença e de virtude em um ato zeloso através da tradição – ato ético-estético.
Entende-se, assim, que o caminho do Kung-Fu tradicional não se faz sob um
perfil extremamente rígido, austero ou mesmo militarizado; de fato, esse
entendimento se faz bem equivocado.
158
imaginário reduzido de forma pontual como anteriormente citado; b) um esporte
competitivo mais amplamente estudado e complexificado; c) um modo ou
caminho de vida (Tao). Claro que a isso em algum momento se unem os
diferentes conceitos ali permeados (Wushu, Kung-Fu, Wude), como também
defendido por Dai e Lu (2019) em suas reflexões interpretativas da referida arte
marcial. Contudo, para enriquecer as discussões aqui abordadas, destaca-se
novamente a expressão “Kuoshu” (ou Guoshu), já apresentada no estudo III. O
surgimento de tal expressão adveio sob fins políticos, como um ato nacionalista
do governo da República da China (1912-1949), buscando afastar-se de
práticas tradicionais na época imperial. Relembra-se aqui que sua tradução
significa “arte nacional”. No estudo historiográfico de Morris (1998, p. xv) é
afirmado abertamente que:
159
submetendo-as ao governo, algo que a população praticante do Kung-Fu
quase que em uníssono não apoiou. Além disso, praticantes foram perseguidos
como formadores de quadrilha, com o receio do governo que os artistas
marciais se revoltassem contra ele. Neste contexto, propiciou-se um êxodo de
diversas pessoas perseguidas pelo governo ditador chinês nas décadas
medianas do século XX, incluindo aí mestres e praticantes de Kung-Fu (e em
muitos casos, foi por conta de tal fato histórico que o Kung-Fu começou a ser
tutelado por esses mesmos mestres e praticantes em diversos outros países
pelo mundo). Posteriormente, vendo que não conseguiria extinguir ou mesmo
"domar" o Kung-Fu, pois o mesmo é parte integrante e indissociável da cultura
chinesa, o governo então mudou sua estratégia, tornando o Kung-Fu em um
desporto competitivo, buscando abandonar práticas combativas mais
tradicionais e mais lesivas e, ainda, desvinculando as mesmas de suas origens
filosófico-religiosas, colocando sua tutela e organização centrada no próprio
governo. Assim objetivou uma “desfiguração” e ainda buscou usar o Kung-Fu
como ferramenta de marketing político, vendo sua prática tão somente como
uma prática ginástica de promoção da saúde e um desporto competitivo onde a
China é a principal potência mundial. Mais; em um texto sobre a Educação
Física de Mao Tsé-Tung escrito originalmente em 1917, logo no início refere-se
o seguinte:
160
nascitura. Novamente, é amplamente sabido da questão do movimento
comunista em se afastar das práticas filosóficas e religiosas. Afastar a nação
de tais práticas era (e ainda é) algo visto. Seguindo tal pensamento, faz sentido
o governo chinês querer dar maior visibilidade à fisiologia. Obviamente não se
tem aqui qualquer interesse em diminuir a importância da fisiologia para o
desenvolvimento e aprimoramento de qualquer exercício físico. Contudo, a
compleição das artes marciais se faz não só no prisma metabólico ou no
técnico, alcançando o tocante de valores mais íntimos e profundos, algo
conhecidamente semeado pelas filosofias e religiões na história humana e por
uma perspectiva unitária de corpo (como desenvolvido anteriormente).
Recaíram ainda diversos receios do governo chinês de o Kung-Fu não só se
apresentar como uma manifestação cultural que remonta a presença de
influencias filosófico-religiosas da China, mas também uma prática marcial
passível de ser utilizada pelo povo chinês como autodefesa contra
movimentações revolucionárias comunistas ditatoriais governamentais (ou seja,
um genuíno medo do povo insurgir-se contra o governo). Dessa forma, as
práticas que começaram a ser regidas e adaptadas para um viés desportivo-
competitivo não só recebiam regimentos e regulamentos de regras
competitivas, mas também significativa influência nas técnicas ministradas,
onde segundo Dai e Lu (2019, p. 332): “as a new ideal for combat, Chinese
Wushu also came up with a ‘touch is enough’ competitive orientation which is
the role prescription of superior Wushu competitors”. Ou seja, para o processo
de construção de exercícios de embate corporal como um combate formal e
regulamentado, foi-se iniciando um movimento de origem governamental que o
“tocar é suficiente”, dando-lhe assim um patamar de atitude superior. É, de fato,
quase que inegável que o processo de adaptação de práticas do universo
marcial necessite e careça de significativas adaptações técnico-marciais, para
que dentro de um espírito desportivo genuíno (ou seja, um espírito portador de
atitudes éticas e estéticas para si e para com seus colegas de competição –
incluindo adversários), tais práticas sejam possíveis de serem tuteladas e
praticadas. Caso contrário, provavelmente instaurar-se-ia a barbárie. Questão
essa amplamente abordada e aludida por Elias (1994) sobre o processo
161
civilizador do desporto, dando-lhe “amarras” para defender os praticantes de
possíveis excessos e exageros da agressividade humana. É obvio que essa
atitude merece e deve ser enaltecida, incentivada e perpetuada. Entretanto, o
que se critica aqui fortemente foi a tentativa de “sufocar” o Kung-Fu tradicional
por meio das atitudes governamentais da ditadura comunista chinesa sobre
suas profundas inclinações políticas. Entende-se, assim, que há espaço para
ambos os caminhos (tradicional e moderno), como uma terceira via, pois
possuem profunda relevância educativa repousada em valores. O que Dai e Lu
(2019, p. 335) declamam que: “Thus, as the culture of adversaries, Wushu has
civilization on the outside and a warrior in the inside”.
162
Enfim, através desta incursão científica pelos quatro artigos que
constituem esta tese doutoral, pode-se notar a presença de elementos
axiológicos (nomeadamente elementos de natureza ética e estética)
permeados no estudo e prática do Kung-Fu. Interessante pontuar também que
tais observações podem ser notadas não somente no Oriente quanto no
Ocidente, demonstrando ainda a transmissão de valores para além das
fronteiras geográficas, das questões políticas, das diferenças culturais ou
mesmo do tempo. Dessa forma, entende-se que tal prática pode ser vista como
um meio de antropagogia, ou seja, um sistema pedagógico que visa alargar a
ação educativa colaborando com as escolas e famílias. Um ensino imerso em
valores, buscando a saúde nas esferas física, mental e social, o pacifismo, o
respeito à história e culturas e a superação de dificuldades da vida. De forma
insofismável, a ética e a estética se mostraram de forma áurea como falanges
do processo educativo que ocorre no estudo e prática do Kung-Fu. O
entendimento de tais conceitos e a vigília constante para a execução de um
comportamento axiológico na sociedade humana traz e promove ao indivíduo
um caminho com elevado potencial educativo que vale a pena aqui ser
destacado e valorizado.
163
164
6. Conclusões e Considerações Finais
_______________________________________________________________
165
O pensamento é o princípio da ação. Porém, o pensamento reflexivo é o
princípio da boa ação. Através dele promove-se a gênese da filosofia que com
seus questionamentos e respostas, perpetuamente propiciará a educação
humana. Afinal, “Quanto mais se avança no conhecimento, mais mistérios
insondáveis aparecerão” (Morin, 2003, p. 21). Não são as dúvidas e incertezas
que abalam o pensamento reflexivo. De fato, é o pensamento reflexivo que
abala as dúvidas e incertezas. E assim que estas últimas são superadas
descobrindo novas verdades, edificam-se também novas dúvidas e incertezas.
Desta forma, perfaz-se o ciclo da vida do pensamento reflexivo; este, eterno.
Muitas vezes como Sísifo, em prisões e sofrimento. Em outras, talvez poucas,
como Hércules, em júbilo após vencer os desafios outrora gigantes, tocando-se
na sublimação, no divino. Logo, entende-se que nas atuais conjunturas, a
educação de maneira geral passa por uma profunda reavaliação, sendo alvo de
reflexões e reformas em todos os seus campos. Tal afirmação se comprova
quando há uma miríade de casos repensando seu modo de vida, suas leis,
suas políticas, seus (pre)conceitos, suas formas de governo e inclusive suas
práticas cotidianas. Seguindo essa guisa o exercitar de uma prática imbuída de
valores educacionais, ou seja, algo que tem seu fim no bem poderia ser de
imensa valia à sociedade e cultura humana, indo muito além de apenas
exercícios para fins salutares pontuais ou uma estética cosmética de gasto
calórico, que se funda na melhoria da aparência. Mesmo a filosofia, tida como a
milenar ciência-mãe de todas as outras, ainda parece precisar ganhar mais
robustez no universo do desporto, mais especificamente no meio marcial, onde
muito se fala de sua presença do ponto de vista empírico, porém a existência
de investigação a partir da abordagem filosófica ainda é incipiente. Reconhece-
se sim aqui algum desenvolvimento sobre o assunto, todavia, um quantitativo
maior de pesquisas mais profundas e derivadas de formações stricto sensu
seriam de grande contribuição, principalmente no idioma português.
166
evidencia-se mesmo em suas diferentes faces e vertentes, como: método de
autodefesa, meio de promoção da saúde e qualidade de vida, processo
educacional, categoria desportivo-competitiva, campo de lazer, ferramenta
estético-cosmética ou apenas um ambiente de socialização. Contudo, para
uma construção de um pensamento mais complexo e de maior profundidade,
fazia-se necessário o afastamento do entusiasmo de adepto praticante e
adentrar nas indagativas que os campos da filosofia (nomeadamente aqui a
ética e a estética) proporcionam. Ao ganhar forma em um molde acadêmico,
deu-se assim a criação do estudo II com a catalogação e tradução para o
português do código de ética marcial do Kung-Fu, facilitando e aproximando as
compreensões. Por seu lado, o estudo III trouxe para um entendimento tangível
o antigo pensamento chinês a uma realidade contemporânea ocidental.
Objetivando ainda corroborar as referidas reflexões na prática ou mesmo
aparar qualquer “ponta solta” deixada para trás, realizou-se um conjunto de
entrevistas com Mestres de renome do Kung-Fu (estudo IV), assim trazendo
luz sobre tal temática que é popularmente muito falada, mas academicamente
tão pouco estudada. Desse modo, foi possível percorrer pelas narrativas do
mundo acadêmico, pelas reflexões geradas pelo mesmo e após isso ouvir e
interpretar o entendimento ético e estético a partir da experiência vivenciada e
enaltecida pelos docentes de mais elevado patamar hierárquico dessa arte
marcial chinesa milenar.
167
ética e mais ainda sobre a estética no Kung-Fu. Suas narrativas em maioria
carecem de maiores detalhamentos e acabam percorrendo discussões mais
superficiais e genéricas. Os textos apontados pela revisão sistemática chegam
sim a assinalar comportamentos mais direcionados, como respeito às
hierarquias, dedicação constante, zelo ao fazer algo, conhecer e perpassar
suas limitações respeitando sua mente e corpo, sabedoria para efetuar boas
escolhas, liderar e saber ser liderado, adaptar-se aos tempos e dificuldades
buscando harmonia, serenidade emocional em prol de um autocontrole e
pacifismo. Todavia, detalhamentos mais extensos sobre as práticas foram
escassos, sendo muitas vezes citados genérica e superficialmente. Foi daí que
o estudo I colaborou na criação do guião de entrevistas do estudo IV, onde o
mesmo foi convergido para questões mais práticas e concretas e menos
abstratas. Ainda sobre o estudo I, ficou clara a carência de estudos publicados
na lusofonia sobre tal temática.
168
com as mesmas nomenclaturas ou entendimentos do Ocidente. Os países e
culturas da lusofonia se enquadram em maioria nesse último prisma. Logo, a
necessidade de discutir, refletir, ponderar, indagar, desconstruir e reconstruir
conceitos e ideias sobre o Kung-Fu numa perspectiva hermenêutica, o que foi
fulcral para que tal estudo pudesse ser confeccionado, sabatinado,
reestruturado, submetido e aprovado à publicação. E assim, ficou definida e
entendida a designação do conceito de arte marcial como uma educação e
prática pacifista, aludindo como um exemplo da cultura chinesa o Kung-Fu,
imerso em questões éticas e estéticas. Vê-se ali uma educação centrada no
ser, ou seja, a pessoa como princípio axial da educação (Queirós, 2002). Mais,
entendendo que a ética é um princípio coletivo, tal ser deve irradiar, transmitir e
emanar essa integridade e dignidade cultivada dia a dia na sociedade de forma
zelosa e fraternal. Já vislumbrando sua raíz estética, nota-se uma ação que
busca abarcar uma visão holística dividida em duas instâncias. A primeira é
conduzida à matéria: do treino do corpo em suas valências físicas, da
superação da dor e das limitações corporais, do estudo empírico de como
melhorar o movimento, no desafiar da gravidade e das forças opostas. Enfim,
algo limitado e movido pelo corpo. Contudo, a segunda direciona-se ao
imaterial: da força de vontade da mente e do espírito, da busca em conquistar e
permanecer com um bom coração, no entendimento de ser herdeiro de uma
herança coletiva que se perpassou através dos tempos e gerações tornando-se
uma representatividade sociocultural impactante criando uma força do ethos.
Enfim, algo direcionado e movido pelo coração e espírito.
169
como meio de busca de uma educação ética e estética para o alcançar da
incorporação de virtudes como enaltece a visão confucionista, incorporando
humildade, respeito, justiça, confiança, lealdade, vontade, resistência,
perseverança, paciência e coragem (aspectos já evidenciados no estudo II).
170
forma, possibilita-se o crescimento de um ser humano virtuoso, que
engradeceu e enalteceu o espírito e o bom caráter e não somente as vaidades
e prazeres do corpo físico. E é nesse espírito iluminado que repousa a
preocupação de uma educação ética e estética através do Kung-Fu. Afinal,
tomando emprestadas as palavras do poeta Fernando Pessoa, tudo vale a
pena se a alma não é pequena!
30
Na China existe formação acadêmica de nível superior em Wushu. É o único país que apresenta tal
formação.
171
172
7. Referências Bibliográficas
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8. Anexos
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ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO PARA AS ENTREVISTAS
XVI