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T R A V E S S IA

JOVENS IMIGRANTES ANGOLANOS


NO RIO DE JANEIRO
imagens,relatos e diálogos
R e g in a P e t r u s *

“Q u e c o is a e n te n d e is p o r u m a n a ç ã o Sr. M in istro? É a m a s s a d o s in fe lize s? (...)


P la n ta m o s e c e ifa m o s o trigo, m a s n u n ca p r o v a m o s p ã o branco.
C u ltiv a m o s a v id e ira , m a s n ã o b e b e m o s o vinho.
C ria m o s a n im a is, m a s n ã o c o m e m o s a carn e...
A p e s a r d isso , v ó s n os a c o n se lh a is ... a n ão a b a n d o n a r a n o s s a p á tria .
M as é u m a p á tr ia a terra e m q u e n ão s e c o n se g u e v iv e r d o próprio tra b a lh o ? ”
(Resposta de um emigrante italiano, Constantino lanni, a um ministro de Estado que o aconselhava a
não emigrar, provavelmente na 1* metade do século XX - Museu da Imigração / São Paulo, s/d)

O.C. - Olá boa tarde! Posso saber o seu nome? estragar o que o colono deixou, só dos protocolo[negociações
R - (fazendo gesto de fugir) Espere aí minha senhora, eu sou para acordos de paz] temos quatro, com os cumbu [dinheiro] que
menor de idade, só tenho doze anos, não vê! se gastaram vamos mas é importarfilipinos ou tugas [portugue­
ses] ou sei lá quem para fazer a guerra! Eu mesmo que sou filho
O .C. - Espere aí moço, eu só quero te entrevistar, vi-te a único da minha mãe kinguila [comerciante de rua], vou me es­
fugir daqueles policiais e pensei que podías me dizer algo! conder, a espera de outro protocolo, ou que o mais velho bimbi
filip [J.Savimbi-líder da UNITA], porque da maneira que está
R - Quem eu? Que algo? Algo algum?
sempre chateado com os povos não vai demorar que lhe apli­
quem uma grande xide [golpe]/
O .C. - ...Só quero falar consigo a respeito dessas rusgas [bus­
cas para o recrutamento militar] que estão a haver agora!
O .C. - ó jovem não vês que ...
R - Há!...Ainda bem, que a imprensa se lembrou de nós os coi­
tados dos jovens, é que últimamente não podemos ficar em lado De um salto o mancebo com quem eu estava a falar lançou-se
nenhum, se estamos em casa, vão buscar! Se estamos a passar numa valente correría perseguido por três indivíduos fardados,
na rua nos cangam [pegam]/ Mas que culpa é que nós temos acabando assim abruptamente a entrevista que estava a fazer.
que os tais residuais [guerrilheiros] estejam a matar o povo?

O .C. - ...mas o menino não sabe que é preciso defender o


país?
(“Entrevista a um mancebo” [fragmentos], Numa altura em que
R - Defender? O que ? Se eu já não tenho nada, vou defender
se assiste a uma correría entre jovens da cidade de Luanda,
mais o que? Minha mãe ué! Fala só na televisão ou no teu jor­ todas as tardes, para dormirem fora de suas residências, procu­
nal ou quê! Guerra! Não é comigo! Lhes pede só no governo que rando locais onde são menos conhecidos para fugirem às rus­
lhes bombardeia esses bandido, com os avião, com os alicópteros, gas, uma vez que não há qualquer manifesto oficial para a incor­
seja com quem fo r desde que não tenha eu lá dentro! Eu estou poração de mancebos à recruta - Por Olga Cassilda. In: Actual,
aqui, a espera que haja produção! Estamos há trinta e tal anos a Lisboa, 08 de Agosto de 1998).

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INTRODUÇÃO tados1 aproximam-nos dos atores, indiví­ trata-se de jovens que já não encontram
duos concretos , pessoas que se vêem na lugar em seu país de origem e que enfren­
Migrações induzidas ou forçadas por
situação de abandonar o seu lugar, suas tam um processo forçado de re-invenção
situações de guerra e conflitos armados são
referências, parentes, amigos... Em busca de si mesmos e de reconstrução de refe­
fenômenos muito antigos e significativos
de sobrevivência e de alguma condição rências através da soma de velhos e novos
na história da humanidade. Tais movimen­
de trabalho, carregam consigo toda uma vínculos (mantidos com a sua terra natal
tos migratórios foram, tradicionalmente,
história vivida no país de origem e a es­ ou que estão sendo criados em um novo
estudados mais com a preocupação de
perança de reconstrução de suas vidas e espaço - o da imigração). Em uma dolo­
mensurar a população deslocada, identi­
realização de seus projetos pessoais no país rosa (sobre)vivência cotidiana, lutam para
ficar seus locais de destino ou, ainda, seus
de destino. No caso dos jovens angola­ afirmar-se (pelo menos) como sujeitos
movimentos de retorno uma vez termina­
nos, já nascidos num país em guerra2, tra­ individuais, enfrentando, até o momento,
dos os conflitos. Fenômenos políticos,
ta-se de pessoas que emigram por tudo uma ausência de possibilidades concretas
sociais e econômicos, tem-se deles uma
isso e, sobretudo, pelo medo de perder suas para a afirmação de uma identidade cole­
visão muito geral ao tratá-los somente
vidas em conflitos armados que não com­ tiva mais positiva.
como deslocamentos no espaço, fluxos,
preendem e com os quais não se sentem
correntes migratórias, e aos seus atores
comprometidas. Sãojovens submetidos
como meros números nesses fluxos. Se­
a condições expulsoras em Angola, que
gundo Sayad, se a migração é, em primei­
ro lugar, um deslocamento no espaço e,
os atingem enquanto conjunto, mas que Aeroporto
constroem a partir desse contexto, traje­
antes de mais nada, no espaço físico, é pre­ Aeroporto Internacional do Rio de Ja­
tórias individuais diferenciadas. A migra­
ciso destacar que o espaço dos desloca­ neiro - Junho de 1998. Domingo à
ção que realizam só pode ser compreen­
mentos é também qualificado em outros tarde. Setor de Embarque Internacional.
dida, portanto, “em sua dupla dimensão
sentidos: socialmente, economicamente, Balcão das Linhas Aéreas Angolanas -
de fato coletivo e trajetória individual”
culturalmente, politicamente (Sayad: 1998, TAAG . São aproximadamente 15 horas.
(Sayad, 1998, p.l).
p.15). Horário previsto do vôo para Luanda -
Os projetos e as trajetórias dos jovens
Esse artigo resulta de uma experiência 19 horas. Segundo informações da com­
angolanos tornados imigrantes no Rio de
de acompanhamento realizada, desde o panhia, esse é o único vôo regular do
Janeiro inserem-se no contexto geral da
início de 1998, com grupos de jovens an­ Brasil para Angola.
sociedade brasileira e, mais amplamente,
golanos no Rio de Janeiro - principal pon­
num mundo global, heterogêneo, fragmen­ No “check-in" há uma grande fila .
to de destino e concentração desses imi­
tado e excludente, em que novos desafios Chama a atenção o número de pessoas
grantes no Brasil. A migração de angola­
sociais e políticos se impõem, em função que aguardam para despachai bagagens
nos para o Brasil e, especialmente, sua pre­ da predominância de políticas que tratam enormes ( caixas de papelão e de madeira
sença na cidade do Rio de Janeiro, vem
com crescente indiferença os chamados muito altas , com etiquetas que indicam
recebendo destaque crescente nos meios “FRA GIL ”). Em algumas caixas é possí­
“perdedores” da nova sociedade global.
de comunicação de massa. Até o momen­ vel identificar latas de leite em pó,
Nesse sentido, as trajetórias desses imi­
to, existe pouca informação sistematizada achocolatados, alguns aparelhos eletrô­
grantes podem ser analisadas e refletidas
sobre esse processo migratório, princi­
como expressões de um quadro social, nicos, muitos alimentos industrializados
palmente sobre sua fase mais recente. Pre­ para crianças. Duas mulheres negras,
político e econômico sem, entretanto,
domina, assim, no senso comum, uma vi­
esvaziá-las ( e a seus atores ) de suas pe­ muito elegantes, vestindo roupas colori­
são generalista e pouco precisa sobre essa das de estilo africano, descem de um taxi
culiaridades e singularidades.
migração, bem como uma imagem nega­ e transportam cuidadosamente num car­
O propósito desse texto ao tratar a ques­
tiva de tais imigrantes. rinho uma enorme caixa de madeira.
tão nessa perspectiva é contribuir de algu­
É possível, de forma geral, caracteri­
ma forma para ampliar o campo de possi­ Setor de desembarque - I6h30. Há
zar a migração mais recente de jovens
bilidades no qual se inserem os projetos muitos jovens angolanos espcdhados no
angolanos para o Brasil como um proces­
dos angolanos, na sua condição de imigran­ saguão, em uma parte reservada especi­
so bastante complexo em várias dimen­
sões, a saber: as motivações impositivas tes. Uma reflexão sobre as experiências de almente para esse vôo, separada por cor­
da emigração de Angola e a “escolha” do vida desses imigrantes no Rio de Janeiro, dões. Conversam em pequenos grupos.
Brasil como país de destino, as formas de pode funcionar como um foco a ser am­ Outros aguardam sozinhos escutando seus
entrada no Brasil, as estratégias de sobre­ pliado, contribuindo para reafirmar a im­ “walkman". Curiosamente , quase todos
vivência aqui no Rio de Janeiro, a situa­ portância da complexa rede de temas e usam bonés e vestem-se esportivamente,
ção jurídica dos imigrantes, as diversas si­ questões que as migrações nos desafiam a deforma muito semelhante e cuidadosa ,
tuações de permanência legal ou ilegal, as enfrentar, diante do aprofundamento dos mas bem diferente das pessoas que em­
redes sociais de variadas naturezas que diversos mecanismos de exclusão que afe­ barcam para Angola. E possível escutar
sustentam a continuidade dessa migração. tam um enorme contingente de pessoas em fragmentos de conversas sobre a vida. Um
As imagens, relatos e diálogos apresen­ todo o mundo. No caso dos angolanos, rapaz dá conselhos a um outro bem mais

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jovem, explicando repetidamente uns cál­ Tratar de migração é falar da socieda­ muito difícil a integração social e econô­
culos rabiscados num pequeno pedaço de de como um todo, em sua dimensão histó­ mica dos migrantes - tanto os internos
papel. Partes da conversa, em voz alta, rica e condições presentes. Sayad ressal­ quanto os que regressaram de países fron­
revelam que fala sobre o quanto está ga­ ta a importância de se considerar esse ob­ teiriços. A crescente pauperização das
nhando e quantas horas trabalha por se­ jeto de estudo como “um fato social com­ famílias ampliadas tem pressionado todos
mana . Sacode várias vezes a cabeça, ne­ pleto”, sem mutilá-lo de suas duas partes os seus membros, entre os quais os mais
gativamente, como se lamentasse ou de­ integrantes - a emigração e a imigração. jovens, para a busca de algum rendimen­
saprovasse a situação. “O imigrante só passa a existir para a so­ to que lhes garanta as necessidades pri­
Lá fora, chegam várias “kombis ” e ciedade que assim o denomina a partir do márias de sobrevivência. Como consequ­
“vans ” que “despejam ” muitos outros jo ­ momento em que pisa em seu território. ência, há um número incalculável de jo ­
vens. Cada “van” ou “kombi” tem uma Ele ‘nasce’ a partir dessa percepção da vens que vivem vagando pela cidade, de­
placa indicando o bairro ou a localidade sociedade para a qual se destina”. E a per­ socupados, ou que se dedicam a múltiplas
de procedência e de destino. Quase todas cepção dessa sociedade sobre o imigrante atividades informais e intermitentes, des­
muito próximas do aeroporto. é, especialmente hoje em dia, a percepção tacando-se o pequeno comércio (Van-
No saguão, alguns jovens trocam e de um “problema”. Na maior parte das Dúnem, 1998, pp. 14-61).
analisam pedaços de papel que parecem vezes, essa sociedade tende a não consi­ Essas condições da emigração abar­
listas de produtos encomendados, conver­ derar tudo que antecede o nascimento do cam aspectos fundamentais para a compre­
sando sobre preços e negócios. Começam imigrante. O imigrante que chegou a uma ensão do fluxo migratório de jovens an­
a desembarcar os primeiros passageiros. terra estranha é, todavia, anteriormente e golanos para o Brasil no período mais re­
Aparecem mulheres negras muito bonitas simultaneamente, o emigrante que saiu de cente - do início dos anos 90 até os dias
e elegantemente vestidas com trajes colo­ sua própria sociedade. Em outras palavras, de hoje - e suas especificidades. Como
ridos. Aos poucos vão saindo lentamente aquilo que o imigrante irá se tornar já está, se trata de uma migração que engloba
, aos pares ou sozinhos , jovens de apa­ de certa forma, inscrito naquilo que o fez grupos muito diferenciados, conforme já
rência mais humilde que parecem procu­ emigrante (Sayad, 1998, pp. 16-17). citado anteriormente, é importante quali­
rar por conhecidos com olhares nervosos. A migração dos jovens angolanos, ficar essas diferenças.
Alguns outros que aguardavam no saguão, como já apontado, situa-se no contexto No Brasil, os angolanos são a presen­
gritam nomes chamando os que chegam. mais amplo das migrações forçadas por ça mais expressiva da vinda de africanos
Uma mulher vestida de maneira muito situações de guerra embora, como vere­ oriundos de países onde ocorrem confli­
sóbria sai com um saco enorme e é cerca­ mos, de forma muito particular. Na Áfri­ tos armados. Há algumas décadas (desde
da por várias pessoas que escutam aten­ ca, o prolongamento de conflitos arma­ os anos 70), aportam aqui como “refugia­
tamente os nomes que ela chama. O saco dos agrava a pobreza, destrói as estrutu­ dos políticos”4. Entre os mais jovens, há
está cheio de envelopes de carta e todos ras econômicas e aprofunda os problemas também os que vêm de Angola como es­
parecem saber quem é o destinatário de enfrentados por aquele continente tudantes5, e muitos mais são os que en­
cada uma, que aparece não se sabe de “deserdado”, sob muitos aspectos, pela tram no Brasil como turistas e prolongam
onde e, rapidamente, sai com seu envelo­ lógica capitalista neo-liberal. O grande sua permanência no país através de varia­
pe conferindo o conteúdo do mesmo ou número de conflitos que ocorrem em di­ das estratégias que incluem ou não pro­
tirando papéis que também parecem lis­ versos países africanos torna dramática a cessos de legalização.
tas de produtos encomendados. Aos pou­ situação de um enorme número de pesso­ A migração mais recente desse últi­
cos a roda em torno da mulher das cartas as mobilizadas para deslocamentos den­ mo grupo, objeto desse artigo, caracteri­
vai se esvaziando e ela vai andando com tro ou através das fronteiras nacionais. za-se por ser um processo realizado ma-
o saco para fora do saguão. Na calçada, No caso de Angola, é importante des­ joritariamente por jovens entre 18 e 29
coloca o saco outra vez no chão e entrega tacar que a guerra prolongada impôs o anos, do sexo masculino, negros, com ní­
muitos outros envelopes . Os jovens vão deslocamento de vários grupos étnicos vel de escolaridade equivalente ao Io grau,
entrando nas “vans” que os aguardam dentro das fronteiras do país e para os que “migram por conta própria” e , geral­
com os rádios tocando em alto volume. países vizinhos. Décadas de guerra civil mente, sozinhos - não sendo, portanto,
Em frente ao portão de desembarque produziram grande êxodo rural e um ace­ uma migração de famílias. Esses jovens
há uma pequena sala onde um funcioná­ lerado crescimento das principais cidades, são oriundos das classes e grupos sociais
rio de uma empresa brasileira recebe al­ especialmente a capital, que concentra atu­ menos favorecidos de Luanda, onde resi­
guns homens que chegam de viagem. To­ almente quase 30%3da população nacio­ diam nos chamados “musseques” - bairros
dos parecem ser brasileiros trabalhado­ nal. Luanda apresenta os mais acentuados pobres, sem nenhuma infra-estrutura, que
res da tal empresa e conversam com ou­ efeitos desses processos . se expandem principalmente na periferia
tros que vão embarcar para Angola no Com a estagnação da economia e o de Luanda.
próximo vôo. enorme afluxo de migrantes, agravam-se No Rio de Janeiro, em sua grande
na capital angolana os problemas relacio­ maioria, vivem em favelas situadas na Zona
nados à baixa oferta de empregos, sendo Norte e em imóveis de aluguel de baixo

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custo nos bairros próximos à área central nos, quando acham necessário, ou ficam Brasil arranja logo uma garota. ”
da cidade. Quanto à sua inserção no mais excitados com a conversa, usam uma A . dá aulas de inglês na hora do al­
mercado de trabalho (extremamente pre­ "linguagem" própria dos jovens em Lu­ moço para alguns colegas angolanos que
cária) e às estratégias de sobrevivência, anda, carregada de “gírias” que mistu­ trabalham com ele. Sempre me cumpri­
destacam-se os trabalhos temporários no ram o Português com outras línguas tra­ menta em Inglês e pergunta (em Inglês )
setor da construção civil e outras ocupa­ dicionais de Angola. C. (22 anos - 3 anos sobre a minha pesquisa :
ções intermitentes tais como: biscates, ser­ no Brasil), o rapaz diretamente envolvido - “...depois você bota lá no seu Livro
viços de baixa qualificação e remuneração, no episódio em questão, conta com mui­ que a gente pensava que você era fede­
ou pequenas atividades comerciais espo­ ta dignidade e raiva o que aconteceu: ral', assim uma espiã, e por isso a gente
rádicas e de pequeno porte que os vincu­ - “Eu tava lá em cima fazendo meu ser­ inventava uns nomes que não eram os nos­
lam ao comércio informal na cidade de viço, com mais três caras... esses aqui... sos e não falava umas coisas... só o que
Luanda. quando o sujeito, ele chegou e começou a achava melhor. E porque você sabe... a
A compra de produtos de primeira reclamar e a xingar, mandando a gente gente tem que ter sempre muito cuidado.
necessidade, principalmente roupas e cal­ descer e tirar a armação dali porque tava A gente não gosta de ficar muito junto por
çados, para serem revendidos em Angola, atrapalhando. Eu falei pra ele que era aqui. Vai logo andando pra pegar o ôni­
é uma atividade bastante difundida entre pra ele procurar o encarregado, que eu bus... ”
os jovens imigrantes angolanos (especial­ tinha que continuar o meu trabalho... o Alguns minutos depois, sentados to­
mente por aqueles que já estão há mais sujeito fo i ficando ignorante e gritando - dos do outro lado da calçada, começamos
tempo no Brasil). Em alguns períodos, al­ “Sai daí seus macacos... vão se pendurar as entrevistas. Certas perguntas, especi­
ternam ou combinam esses pequenos ne­ nas árvores lá do país de vocês... ” Eu não almente quando se fala da situação polí­
gócios, nem sempre bem sucedidos, com agüentei. Desci correndo do andaime e tica e econômica de Angola, geram po­
o trabalho pesado na construção civil. Em enfrentei ele. Foi a maior confusão. Jun­ lêmica. Eles discutem entre si seus pon­
Luanda, os produtos vindos do Brasil re­ tou um monte de gente, veio a segurança, tos de vista.
presentam parte importante do que se ven­ até que chegou o encarregado e me levou L. (19 anos - 8 meses no Brasil) diz:
de no comércio informal. Tais produtos lá pra cima. Mandou todo mundo voltar - “Aquilo nunca vai melhorar porque
podem ser revendidos com razoável lucro pro trabalho... Eufiquei com muita raiva. a política e aquela guerra por dinheiro e
(maior ou menor em função da relação Só não falei mais nada porque eu até que diamante nunca vai acabar... o inimigo
dólar/real) nos mercados de rua da cida­ estou a tirar um dinheiro melhor aqui agora tá na cidade, antes tava no mato.
de, ou através de um sistema de venda de agora como chefe de turma. Mas fiquei Acho que ninguém mais acredita na paz
porta em porta, pelas mães, irmãs ou tias com tanta raiva que meu olho encheu em Angola (alguns protestos...). Eu nasci
dos imigrantes que se encontram no Bra­ d ’águas. Eporque eles sabem que a gente no meio da guerra e não acho que vou
sil. A grande influência das novelas de te­ não pode fazer nada. Que tem que ficar ver a paz em Angola. ”
levisão brasileiras sobre a moda e os há­ calado... ”. J.C. ( 24 anos - 2 anos no Brasil ),
bitos dos jovens em Angola parece ser respondendo sobre os principais motivos
um importante fator de garantia de mer­ da saída de jovens de Angola, afirma:
Beira da praia
cado para os produtos brasileiros. As re­ - “Qual a mãe que não quer ter um f i ­
des formadas para essas atividades co­ Avenida Sernambetiba. Praia da Bar­ lho fora de Angola... até mesmo no Bra­
merciais garantem a manutenção de vín­ ra da Tijuca. Meados de 1998. Obra gran­ sil? Eu fugia das rusgas. Um dia me pe­
culos entre os imigrantes e alguns mem­ de. Os angolanos, em grande número nes­ garam. Meu tio fo i me buscar. Só me livrei
bros da família que permaneceram em sa obra, quase sempre são os últimos a porque eu já tive dois irmãos que foram
Luanda. sair. Há vários dias venho aqui me en­ pras “tropas ” e um morreu. Meu pai tam­
contrar com A. (24 anos - 2 anos no Bra­ bém morreu na guerra... Não volto mais
Canteiro de obras sil), que me apresenta mais alguns cole­ pra Angola. Só se a guerra acabar mes­
gas, também angolanos. Todos são mui­ mo e a UNITA desmontar todo o exército
Barra da Tijuca - início de 1998. Há to jovens, usam bonés, estão de banho re­ dela... Mas eu também não quero voltar
muitos angolanos trabalhando na fase f i ­ cém tomado e perfumados. Justificam a porque o trabalho lá tá muito ruim ... Em
nal de construção de um enorm e demora porque não gostam de “sair na Angola nunca trabalhei assim em obra
“shopping - center”. Fazem serviços pe­ rua de qualquer je ito ”. A. brinca : pesada... Eu vim pra trabalhar e estudar
sados . São serventes, preparam o reves­ - “Os angolanos são assim mesmo. mas até agora não tá dando não... ”
timento e fazem a pintura externa, são Mesmo com essa vida aqui no Brasil, só Olhando para o mar os outros só sa­
colocadores de vidro ou estão trabalhan­ gostam de andar bem vestidos e gastam codem a cabeça concordando, calados.
do como “calafates ” na limpeza pesada. muito com essas roupas. Assim ninguém Depois, um deles diz:
Surge o relato de um fato que parece mo­ vai pra frente! As garotas de Angola f i ­ - "Aqui tá tudo muito ruim mesmo. Mas
bilizar a todos, inclusive alguns que ge­ cam muito impressionadas com as fotos. eu saí do pior... Aqui eu posso ficar olhan­
ralmente são muito calados. Os angola­ E por isso que em Angola, se você veio do do pro mar e ninguém vem me pegar pras

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tropas ” . zos nas etapas finais das obras. Os pri­ paz agendados entre o MPLA e a UNITA
Seus olhos estão tão mareados que eu meiros angolanos contratados acabavam em 1994, no protocolo de Luzaka, os an­
marco outro encontro para continuarmos sendo “responsáveis” pelos que vinham golanos perderam o direito de obtenção do
as entrevistas. posteriormente, inclusive no que tocava estatuto de refugiado através da chamada
ao treinamento para as tarefas a eles desti­ cláusula ampla8 (aplicada ao caso de An­
nadas. A legalização de muitos desses jo­ gola após as eleições de 1992 em função
vens através da Lei de Anistia de 1998 do recrudescimento da guerra naquele
A dificuldade de inserção no mercado trouxe mudanças no quadro acima descri­ período). Cada solicitação de refúgio pas­
de trabalho é um dos maiores problemas to reduzindo, aparentemente, a “preferên­ sou a ser analisada mais especificamente,
enfrentados pelos jovens angolanos. Pro­ cia” que era dada aos jovens angolanos uma vez que já não havia uma situação de
blema vivido em Angola e (re)vivido no nesse setor. conflito generalizado. Segundo informa­
Rio de Janeiro, na realidade da imigração. ções empíricas fornecidas pelos jovens
Em Angola, algo em torno de 78% da Cáritas imigrantes, tornou-se mais difícil, a partir
população economicamente ativa desem­ de então, obter o estatuto de refugiado no
pregada concentrava-se, em 1993, na fai­ Bairro da Glória. Palácio São Joa­ Brasil. Emigrados de Angola por causa
xa dos 15 aos 29 anos6. Segundo Van- quim. Maio de 1998. Sede da Cáritas RJ da destruição econômica e da falta de tra­
Dúnem, o alto índice de desemprego entre - órgão da Arquidiocese do Rio de Janei­ balho e oportunidades de estudo mas, prin­
os jovens em Luanda deve-se, entre outros ro responsável pela assistência aos refu­ cipalmente, pelo medo de serem recruta­
fatores, à falta de oferta de trabalho no se­ giados, que atua a partir de convênios dos para o serviço militar, muitos jovens
tor formal, ao baixo nível de escolaridade com o ACNUR ( Alto Comissariado das permaneceram no Brasil em situação irre­
e à obrigatoriedade do serviço militar. A Nações Unidas para Refugiados) e o go­ gular ao longo da década de 90, sem ne­
esses fatores soma-se a reduzida possibili­ verno brasileiro. São 2 horas da tarde. nhuma proteção da ONU ou do governo
dade de entrada no mercado de trabalho Há muitas pessoas sentadas em ban­ brasileiro, por não se enquadrarem nos cri­
pela primeira vez, em uma economia cos, numa fila de espera para serem aten­ térios adotados internacionalmente e no
desestruturada por um complexo processo didas. A grande maioria é composta por Brasil para a concessão de refúgio. Em
em que a guerra prolongada é o principal jovens angolanos. Nos primeiros bancos, 1998, alguns desses jovens conseguiram
fator (Van-Dúnem, 1998, pp. 47-49). alguns preenchem formulários para as ser beneficiados pela Lei de Anistia9, con­
No Rio de janeiro, a condição de imi­ entrevistas com as assistentes sociais das seguindo documentos de trabalho e lega­
grante dificulta e especifica o mercado de Cáritas e com o representante oficial do lizando sua permanência no Brasil por um
trabalho para os jovens angolanos. A par­ ACNUR . Essas entrevistas são o primei­ período de dois anos.
tir de observações empíricas, é possível ro passo para tentar obter o estatuto de
afirmar que as possibilidades de trabalho refugiado e conseguir documentos de tra­ Casa
para esses jovens têm se concentrado de balho. Encontro G.( 20 anos - 1 ano no
forma expressiva na construção civil. Com B rasil) que conheço lá da obra. Explico Zona Norte do Rio de Janeiro. Bairro
a acentuação do processo de terceirização o que estou fazendo cdi e ele diz que nin­ de Bonsucesso. Complexo da Maré. Vila
de determinadas etapas das grandes obras guém vai me explicar nada direito. G. do João. Junho de 1999. Manhã de Sába­
para sub-empreiteiros, os angolanos con­ reclama: do na fa ve la . Vou conhecer a Igreja onde
seguem inserir-se numa parcela desse se­ ‘‘Essa é a terceira vez que venho aqui trabalha C., estudante universitário, (35
tor - aquela em que a informalidade e pre­ e não consigo ser atendido. Esse lugar anos- 4 anos no Brasil). C. já participou
cariedade do trabalho é predominante. Nos tem estado muito cheio .... Vim saber se o ativamente de uma associação de ango­
grandes canteiros de obra, os angolanos são meu caso já fo i resolvido... estou esperan­ lanos no Rio de Janeiro e vem tentando
vistos pelos sub-empreiteiros e por seus do há quatro meses. Já estou perdendo a reunir e organizar os angolanos que mo­
encarregados como trabalhadores “mais esperança e acho que não volto mais aqui. ” ram na Maré. Ele quer mostrar como os
produtivos” e “menos problemáticos”, por­ angolanos vivem e vamos andando por al­
que ainda não “aprenderam os macetes gumas ruas próximas à igreja. C. explica
de obra dos paraíbas” e, sobretudo, por­ a vários angolanos que encontramos o
que são jovens, fortes, trabalham duro, Entre os grupos de angolanos que estou fazendo ali . Conheço L.A. (20
aprendem rápido, são disponíveis para o enfocados nesse artigo, encontram-se al­ anos) e ele me leva para conhecer o lugar
trabalho pesado e mal remunerado e “não guns jovens que entraram no Brasil como onde mora. Fica nos fundos de uma casa.
reclamam nada quando são dispensados”. turistas mas, posteriormente, acabaram Entramos. Num cômodo, com vários
Até o final de 1998 havia casos em conseguindo legalizar-se através da obten­ colchonetes empilhados, há um rapaz dor­
que se formava uma verdadeira “rede de ção do estatuto de refugiado7. Como já mindo. Num canto há um fogareiro e al­
fornecimento de angolanos” para alguns citado anteriormente, a ampla maioria dos gumas panelas. Moram ali oito jovens an­
sub-empreiteiros, especialmente quando refugiados no Brasil é composta por an­ golanos. Pagam R$ 250,00 reais de alu­
estes tinham que reduzir seus custos e pra­ golanos. Entretanto, desde os acordos de guel. L.A. paga um pouco menos porque

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mora “em cima ”. Vamos até um quintal festa., .porque angolano adora uma festa! ríodos sem obter trabalho e não têm o su­
onde tem uma escada na parede e, lá em A igreja fo i enfeitada com as cores de porte da família para esses gastos como
cima, urna “entrada" para um pequeno Angola e ficou toda colorida. A gente es­ tinham em Luanda.
espaço onde é impossível ficar em pé.. perava uns trinta angolanos. Vieram mui­ Enfrentando a dura realidade da favela
- “Não repara. E aqui que eu durmo. tos mais. Uma multidão de angolanos. E no Rio de Janeiro, aprendem rapidamente
Você vê que é muito pequeno... por en­ vieram vestidos de colorido... As angola­ os códigos locais do bom comportamento
quanto vou ficando, mas estou procuran­ nas vieram fazer a comida vestidas a ca­ e do silêncio. Como vivem essa realidade
do outro lugar para morar fora daqui.... ráter. Fizeram muito “fu n g i”de Angola, na condição de imigrantes, estrangeiros,
Quando eu cheguei aqui onde estou mo­ frango com quiabo, galinha com amendo­ estranhos, que vêm de um outro lugar para
rando, a primeira coisa que eu pensei fo i im... E a comida parecia que não ia dar onde “um dia deverão voltar”, assumem
que tinha voado pro lugar errado. Em pra tanta gente... mas deu. Naquela noite duplamente “a obrigação de serem reser­
Angola morava com meus pais e irmãs. eu descobri muitas coisas sobre Angola e vados”. Para Sayad, a forma de polidez e
Tinha uma casa e uma cama... mas lá não os angolanos. Descobri que algumas co­ neutralidade que o imigrante deve adotar
dá pra ficar, então a gente vem pra midas angolanas não se misturam ... Eu (e que ele se sente na obrigação de adotar)
cá...todo mundo acaba vindo pra cá. Pra também descobri que os angolanos são nô­ constitui uma dessas “malicias sociais”
mim é só um degrau. Tenho um irmão em mades. Eles aparecem e desaparecem. pelas quais os códigos dos que pertencem
Portugal e quero ir pra lá. Ou eu vou pra Mas alguns vão ficando aqui e mais vi­ ao lugar são impostos àqueles que vie­
outro lugar... o Canadá”. rão. Aprendí também que não se fa z nada ram de outro lugar (Sayad, 1998, pp.57-
com os angolanos aos domingos, que para 58). No caso dos jovens angolanos, imi­
Igreja eles é um dia especial, porque é o dia do grantes e moradores da favela, os códigos
aeroporto... Naquela noite começou a igre­ de convivência e sobrevivência são dupla­
II Igreja Batista da Vila do João, Ju­ ja angolana na Vila do João. Essa igreja mente impostos.
nho de 1999. São 6 horas da tarde .Um está entre a Africa e o Brasil. Aonde vai che­ Angola está presente (e ausente) na Vila
culto especial, seguido de uma festa com gar eu não sei. A igreja não tem frontei­ do João. Os jovens angolanos que ali re­
comidas angolanas, marca o primeiro ani­ ras...atravessou o Atlântico e entrou por sidem vivenciam, em sua maioria, um re­
versário da Igreja Evangélica Angolana aqui por esse lugar da Vila do João lativo isolamento dentro da favela. Sua
da Vila do João. Há brasileiros e angola­ Todos, muito emocionados, oram pela integração com a comunidade local pare­
nos da comunidade local e alguns convi­ paz em Angola. O coral angolano, com­ ce bastante frágil, embora muitos vivam
dados. O coral de angolanos entra na posto por oito cantores e um regente so­ ali há vários anos. Em alguns casos, as
igreja, com passos marcados num ritmo lista, canta uma canção que pede prote­ relações sociais entre angolanos e brasi­
bem africano, cantando hinos religiosos e ção para sua terra: leiros tornam-se mais estreitas através de
canções que falam de Angola e da guer­ - “N ’zambi Sambuta en sietu. U tu namoros e casamentos com jovens brasi­
ra. M isturam o P ortuguês com o temona u temuacu... ”. leiras. A integração com a comunidade
Kimbundo e o Kicongo (línguas dos 2" e Do lado de fora, um número muito local parece, no entanto, ser mais facilita­
3" maiores grupos étnico-linguísticos de maior de angolanos residentes na Vila, to­ da para aqueles que fazem parte da Igreja
Angola ). A comunidade é convidada a dos homens, a maioria jovens, espera o Evangélica da Vila do João. Frequentan­
cantar com eles e a aprender os refrães. final do culto para subir ao local onde do os cultos e participando das demais ati­
O pastor conta a história da Igreja An­ serão servidas as comidas. vidades realizadas pela comunidade evan­
golana naquela localidade: gélica, alguns jovens angolanos entram
- “...Não sei bem quando os primeiros numa rede de obrigações e solidariedade
angolanos chegaram aqui. Dizem que co­ que contribui para a construção de uma
meçou com uma família que veio para cá São extremamente precárias as condi­ identidade vista de forma mais positiva
há muitos anos, talvez uns dez anos... e ções de vida e moradia dos jovens ango­ (inclusive por eles próprios) e que permi­
depois os outros foram chegando. Um dia, lanos na favela. Moram em grupos, ge­ te, entre outras coisas, a obtenção de tra­
fu i procurado por um jovem angolano que ralmente reunidos por laços de vizinhança balho e moradia, o relacionamento com
muito me impressionou, porque ele é se­ e amizade (e com menor frequência, por membros de outras comunidades evangé­
minarista aqui no Brasil e quer voltar para laços de parentesco) já estabelecidos em licas e, ainda, uma certa “proteção” nos
Angola para colocar em prática o que Luanda. Na Vila do João muitos vivem momentos mais difíceis.
aprendeu. E impressionante ver uma pes­ em pequenas casas ou em cômodos que Ramella destaca a importância das re­
soa que tem o desejo de voltar para uma abrigam de seis a oito jovens, às vezes des sociais para os grupos imigrantes, em
pátria em guerra. ...depois vieram o P. e o mais. Com os rendimentos que conseguem função do papel que os vínculos comuni­
C. (agora pastores auxiliares da Igreja obter, muitos desses jovens enfrentam gra­ tários assumem no processo de integração
Angolana) e resolvemos fazer o dia do ves dificuldades para arcar com as despe­ na sociedade de imigração. Ressalta, en­
angolano aqui na Igreja. E resolvemos fa ­ sas de aluguel, transporte e alimentação, tretanto, que as redes sociais ao mesmo
zer um culto, com um baile e uma especialmente porque passam longos pe­ tempo que funcionam como instrumentos

22 - T ra v e s s ia / M a io - A g o s to / 00
para a realização de projetos pessoais, Fevereiro de 2000 cos, acabam por compor um grupo parti­
condicionam os comportamentos dos imi­ A imprensa noticia, com grande des­ cularmente sujeito ao preconceito e à dis­
grantes, num processo de inter-atuação de taque, uma suposta participação de an­ criminação.
sujeitos dentro de fluxos recíprocos, mas golanos em violento episódio ocorrido no Sayad destaca o fato da “imigração só
não equânimes, de intercâmbios de diver­ complexo da Maré. As notícias, não com­ existir como problema - e um problema
sas naturezas (Ramella, 1995, pp.10-15). provadas e posteriormente desmentidas tratado num contexto de correlação extre­
No caso dos jovens angolanos que fre- (inclusive com um pedido de desculpas do mamente desigual de força política e sim­
qüentam as igrejas evangélicas essa é governo estadual a Angola), acusavam os bólica entre país de emigração e país de
uma questão fundamental. As relações de angolanos de terem ligação com o tráfico imigração”. Da distinção fundamental que
solidariedade e compromissos não exclu­ de drogas naquela área. Assustados e re­ se faz entre “nacionais” e “não nacionais”
em, também nesse caso, o exercício de voltados por terem sido encaminhados ao - seja de fato, seja de direito - derivam
relações de poder. posto de polícia local para serem fotogra­ muitas outras distinções de caráter políti­
fados e apresentar documentos, os ango­ co, ético, legal. “Não sendo o imigrante
F a v e la lanos dão várias declarações aos jornais. um elemento nacional, isso justifica a eco­
Sentem-se humilhados e vítimas de precon­ nomia de exigências que se tem para com
Junho de 1998. ceito, discriminação e tratamento diferen­ ele em matéria de igualdade de tratamen­
ciado: to frente à lei e na prática”(Sayad,1998,
Numa conversa na obra discute-se o
-"... Temos medo que essa história tra­ p.58). Tais considerações são extremamen­
número de angolanos residentes na Vila
ga consequências muito ruins... Quando te relevantes para uma melhor compreen­
do João e redondezas (número esse que,
saio para o trabalho fico preocupado... são dos problemas enfrentados pelos imi­
dependendo quem fala, varia entre 500 e
as pessoas vão nos olhar de forma ainda grantes angolanos no Rio de Janeiro.
1500). A maioria pensa que tal número
mais preconceituosa. E aí? O que vamos As informações de caráter muito ge­
só vem aumentando. P. (21 anos - 1 ano e
fazer? Ir para outra favela? ...Quem vem ral apresentadas nesse artigo não esgotam,
8 meses no Brasil) comenta:
para cá vem com a ilusão de vencer na certamente, a riqueza e a complexidade do
- “...Eu me lembro quando foi a primei­ vida. Não vem para morrer. O Brasil é um processo migratório enfocado. Há, ainda,
ra vez, há um tempo atrás, que eu vi todos bom país para se viver mas não para so­ muitas questões a serem levantadas e ana­
os angolanos juntos. Foi quando teve um breviver. E por isso que eu e muitos de lisadas. Algumas características dessa
problema lá... com uma garota... acusa­ nós moramos na favela. ” (O Dia-7/2/00) migração, tais como, a composição social,
ram um angolano. Os homens que man­ - “Não somos guerrilheiros... Saímos etária, sexual, étnica e ocupacional dos imi­
dam lá, mandaram todo mundo se reunir de uma guerra e estão a nos meter em grantes angolanos, permitem e fazem ne­
no campo de futebol. Foi quando pude­ outra... Refugiado, angolano, negro, mo­ cessário um exame das possíveis correla­
mos ver quanto angolano tinha lá...Eu rador da favela, alguém acha que é fácil ções entre esses fatores, a composição das
acho que eram uns oitocentos (concordân­ conseguir emprego? Agora ainda sou redes sociais, a distribuição, concentra­
cias e discordâncias)... mas ninguém sabe mercenário? Por causa dessa coisa toda, ção e segregação espacial desses imigran­
direito. Eu acho que é muita gente, mas colegas foram demitidos, outros perderam tes no espaço do Rio de Janeiro. Outras
alguns dizem que já fo i mais"1... ” suas casas ...” (Folha de S. Paulo-9/2/00). questões importantes a serem analisadas
são: o vínculo histórico entre Angola e
Outubro de 1999 Brasil, os fortes laços culturais, a impor­
No intervalo de um trabalho cultural tância do fato de serem países de mesma
com jovens na Vila do João, B. (22 anos - Nesse início do século XXI, que se língua, as relações diplomáticas e comer­
8 meses no B rasil) diz: apresenta tão globalizado, interconectado, ciais especiais mantidas entre os dois pa­
- “...A vida aqui é muito perigosa. Tem unificado e interligado por variadas redes íses, a crescente presença e importância de
muita violência. Em Angola tem a guerra, materializadas e virtuais, parecemos estra­ empresas brasileiras em Angola nos seto­
mas aqui tem também muita violência... nhar cada vez mais aquele que é “diferen­ res petrolífero e de extração de diaman­
Não vim para o Brasil para viver na vio­ te”, o “outro”, o que não se assemelha a tes, nas obras públicas de grande porte e
lência. ...Os angolanos pagam aluguel nós ou àquilo que pensamos que somos. na construção civil. É possível que o lei­
mais caro porque são angolanos ....e têm Quando não nos reconhecemos nesse ou­ tor entreveja algumas delas nas imagens,
que pagar adiantado. Alguns aqui gos­ tro, no diferente de nós, tendemos a nos relatos e diálogos apresentados (e nos co­
tam até dos angolanos, tratam direito, mas defender de tal incapacidade através da mentários que os acompanharam), com­
muita gente não quer saber de se meter segregação, do isolamento, do preconcei­ pondo uma primeira aproximação do pro­
com angolanos, nem deixar as filhas se to, da falta de solidariedade ou do descaso cesso migratório enfocado.
meterem... Acusam os angolanos de mui­ (Ferreira, 1999, pp.34-37). Os jovens imi­ * Regina Petrus é professora de Geografia
tas coisas... Eu assim que puder quero sair grantes angolanos, sendo negros, pobres, do Colégio de Aplicação da UFRJ e
daqui... minha família tá preocupada co­ estrangeiros, vindos de um país que enfren­ mestranda em Planejamento Urbano e Regi­
migo... ” ta graves problemas econômicos e políti­ onal no IPPUR-UFRJ.

T ra v e s s ia / M a io - A g o s to / 00 - 23
NOTAS direitos humanos ou outras circunstâncias que te­ BIBLIOGRAFIA
nham perturbado gravemente a ordem pública”.
(Revista O Refugiado, julho de 1998, ano 1, n9 4, FERREIRA, Ademir Pacelli
1. O material selecionado foi coletado ao longo de ACNUR-CÁRITAS RJ e SP) (1999) O migrante na rede do outro. Rio de
dois anos, através de conversas, entrevistas (aber­
9. Segundo dados da Polícia Federal, 823 pessoas Janeiro, Te Corá Editora.
tas e dirigidas) e depoimentos (gravados em fitas e
de nacionalidade angolana foram beneficiadas pela RAMELLA, Franco
vídeos ou registrados por escrito), obtidos nos lo­
cais de trabalho e moradia dos jovens angolanos, Lei de Anistia de 1998. (1995) “Por un uso fuerte del concepto de red
nas igrejas que frequentam e, também, em locais 10. A importância desse processo migratório não en los estudios migratórios” In: BJERG, M. y
em que participam de cursos de inglês e informática está, seguramente, em sua expressão numérica - OTERO, H. Inmigración y redes sociales en
organizados por voluntários. multo pequena se comparada à presença de imi­ la Argentina moderna. Tandil, CEMLA-IEHS.
2. Angola vive em situação de guerra desde 1961 grantes e refugiados nos países desenvolvidos, ou SAYAD, Abdelmalek
(quando se ¡niela a guerra pela Independência). Em mesmo ao número de imigrantes latino-americanos (1998) A Im igração ou os paradoxos da
1975, com a conquista da Independência, o MPLA e asiáticos que vivem no Brasil. Se os números são alteridade. São Paulo, Edusp.
(Movimento Popular de Libertação de Angola) as­ sempre um problema nos estudos migratórios, pra­
sume o poder e inicia-se uma guerra civil que, com RIBEIRO, José Teixeira
ticamente inexistem, nesse caso, números oficiais
períodos diferenciados em termos de extensão ou mais confiáveis - apenas estimativas díspares (1995) “Brasil-África: Angola em destaque”. In:
territorial e intensidade dos conflitos, já soma 25 PATARRA, Neide L. Emigração e Imigração
de natureza empírica. Os diferentes atores sociais
anos de duração. A guerra em Angola já produziu Internacionais no Brasil Contemporâneo. Vol.
direta ou indiretamente envolvidos nesse processo
aproximadamente 2 milhões de refugiados e 1,5 I. Campinas, FNUAP/NESUR/NEPO.
migratório (os próprios imigrantes e as várias insti­
milhão de mortos. O MPLA (partido no governo que
venceu as eleições em 1992) e a UNITA (União tuições governamentais e não governamentais do VAN-DÚNEM, José Otávio Serra
Nacional para a Independência Total de Angola), Brasil e de Angola) vivem, percebem e incorporam (1998) “Breve Abordagem do mercado de
seu principal oponente, já assinaram vários “acor­ de forma muito diferenciada o vazio de Identidade trabalho e sua relação com a pobreza - o caso
dos de paz”, mas os conflitos prosseguem. O go­ que se cria com essa Imprecisão. As Implicações e de Luanda - 1990/1997” . D issertação de
verno controla a maior parte do território e as ex­ usos políticos desse fato apontam para a necessidade M estra d o em so cio lo g ia apresentada ao
portações de petróleo, mas há capitais de provínci­ de uma reflexão mais aprofundada da questão. Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro.
as e áreas importantes no Nordeste do país, ricas
em diamantes, sob controle da UNITA. É basica­
mente uma guerra que perdeu seu caráter ideológi­
co, transformando-se numa luta pelo poder e pelo Una revista cuatrimestral
controle das riquezas naturals. (In: “Guerra sem fim".
estu d io s
publicada por el
Ensaio de Pepetela, escritor angolano. Revista Épo­
ca, 24 de janeiro de 2000).
m ig ra to rio s Centro de Estudios Migratorios
3. A dificuldade de obtenção de dados estatísticos latinoamericanos Latinoamericanos - CEMLA
mais recentes Impedem a apresentação de núme­
ros mais precisos no que se refere à concentração
populacional na área de Luanda. Os números mais ANO 14 AGOSTO 1999 NUMERO 42
recorrentes em diversas fontes apontam entre 30%
e 35%.
ARTICULOS CRITICAS BIBLIOGRAFICAS
4. Segundo relatório das Cáritas de 1998, soma­
vam 2.254 os refugiados assistidos por aquela ins­ Boris Fausto (org.) Fazer a América - A
Identidades múltiples y
tituição no Brasil, sendo 1.285 os de nacionalidade
angolana. Dados mais recentes do ACNUR apon­ complementarias: Inmigrantes, líderes Imigração em massa para a América
tam um total de 2413 refugiados acolhidos no Bra­ étnicos y el Estado en los Estados Latina
sil, sendo aproximadamente 70% os de nacionali­ Unidos M a r ie la C e v a
dade angolana. J o n G je r d e
5. São Jovens que desde meados dos anos 80 têm AA.VV. Argentina, un país de
vindo para o Brasil com bolsas de estudos para re­ ¿Quiénes se fueron al sur? La elección inmigrantes
alizar cursos em universidades públicas e privadas de destino entre los inmigrantes M a r ia C a r o lin a F e ito
mediante convênios entre o governo de Angola e alemanes en el siglo XIX
algumas instituições de ensino. Segundo Ribeiro
(1995:129) o conhecimento empírico da situação
W a lte r K a m p h o e f n e r Eleonora María Smolensky, Vera
mostra que nos anos 90 o número de jovens ango­ Vigevani Jarach. Tante Voci, una storia
De la transmisión legítima a la herencia
lanos que entraram no Brasil como estudantes cres­ - Italiani ebrei in Argentina, 1838-1948
ceu multo rapidamente. Por ocasião da anistia con­ legal. Tierra, trabajo y género en un
B ru n o G roppo
cedida pelo Brasil em 1998, foi possível concluir contexto de cambio social (el sur de
que muitos estudantes não tinham retornado a An­ Brasil, 1824-1980) Pilar Gagiao Vila (comp.). Galegos en
gola após o término de seu período de estudos. E lle n F. W o o r tm a n n América e americanos en Galicia. As
6. Fonte: Angola - Inquérito nacional sobre empre­
go e desemprego - 1993. (In: Van-Dúnem, 1998:48) Algunas notas sobre la imagen social colectividades inmigrantes en América
de los inmigrantes gallegos en la e a súa impronta na sociedade galega.
7. “Pode solicitar refúgio uma pessoa que, devido a
temores fundados de perseguição por motivo de Argentina (1860-1940) Séculos XIX-XX
raça, religião, nacionalidade, participação em de­ X o s e M. N u ñ e z S e ix a s D e d ie r N o r b e r to M a r q u ie g u i
terminado grupo social ou defesa de determinadas
opiniões políticas, é obrigada a deixar sua pátria e Fascismo, antifascismo y las comunida­ José C. Moya. Cousins and Strangers.
buscar refúgio em outro país." (Revista O Refugia­ des italianas en Brasil, Argentina y Spanish Inmigrants in Buenos Aires,
do, julho de 1998, ano 1, n8 9 4, ACNUR-CÁRITAS
RJ e SP)
Uruguay: Una perspectiva comparada 1850-1930
J o ã o F a b io B e r to n h a B la n c a S a n c h e s A lo n s o
8. “Também é considerada refugiada a pessoa que
fugiu de seu país porque sua vida, segurança ou Avenida Independencia, 20 E-mail: cemla@ciudad.com.ar
liberdade tenham sido ameaçadas por violência ge­ 1099 Buenos Aires - Argentina Internet: http://www.scalabrini.org/~cemla
neralizada, agressão, conflitos internos, violação dos

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