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Os sentidos da raça na experiência transnacional de peruanos no

Brasil e nos Estados Unidos12

Introdução
Entendendo a raça tanto como uma construção social que hierarquiza os
indivíduos, cujos significados estão sempre sujeitos a redefinições em cada contexto
histórico (SEGATO, 2005; 2010; GROSFOGUEL, 2016), neste trabalho analisarei em
que medida a raça atua como um classificador social transnacional que estrutura os fluxos
migratórios nas Américas. Como estudo de caso, analisarei os significados que a raça e
as categorias raciais assumem na experiência migratória (DANIEL, 2013) de peruanos no
Brasil e nos Estados Unidos. Explorando a riqueza que uma análise comparativa oferece,
este trabalho lançará luz sobre a relevância que a raça assume nos processos migratórios
e na inserção dos imigrantes considerados não-brancos na sociedade receptora. Partimos
do princípio que a experiência cotidiana dos peruanos no exterior apresenta elementos
importantes para analisar as confluências e conflitos nas relações raciais entre os peruanos
e as comunidades locais, bem como da raça como sistema classificatório que dá sentido
a diferentes dimensões do poder para além das fronteiras nacionais.
Encarando a raça como um sistema de classificação desenvolvido primeiramente
no processo de colonização das Américas para dominação das populações nativas e
(re)atualizado na reprodução da colonialidade do poder (QUIJANO, 1999; 2000),
analisarei os sentidos da raça hoje, na percepção de peruanos em trânsito entre as
Américas, buscando entender como os peruanos desenvolvem sua percepção sobre a raça
num contexto de migração, quais critérios definem a posição de cada indivíduo nas
classificações raciais no Peru e no exterior e de que forma o encontro entre as hierarquias
raciais do país de origem e as do país de destino interfere tal percepção.
Assim, entendemos a raça não como estanque, imutável, inscrita na ordem da
biológica, mas como um sistema classificatório elaborado socialmente, constantemente
(re)construído em cada contexto histórico, social e geográfico que tem como caraterística

1
Pesquisa financiada com bolsa de estágio pós-doutoral da CAPES.
2
Este artigo será publicado no livro “Imigração nas Américas: estudos de história comparada”, organizado
por Cláudio Pereira Elmir, Marcos Antônio Witt e Oswaldo Truzzi. São Leopoldo: Oikos; UNISINOS,
2018.
a reprodução de relações de poder sobre os indivíduos que carregam no corpo a marca da
dominação colonial (SEGATO, 2005), ou seja, os indivíduos não-brancos. No caso
peruano, a categoria “latino” nos Estados Unidos e a “índio”, no Brasil, desempenham
um importante papel. Os peruanos percebem que através delas os norte-americanos e
brasileiros, respectivamente, lhes atribuem um lugar na hierarquia racial local, ao mesmo
tempo que as categorias que adquirem um caráter transnacional, já que é também
empregada para classificar outros estrangeiros procedentes da América Latina.
Este trabalho se baseia em diferentes metodologias, incluindo o trabalho de campo
etnográfico realizado no período julho de 2011 e dezembro de 2013 com peruanos
vivendo no Rio de Janeiro, Brasil, que deu origem à minha tese de doutorado (DANIEL,
2013) e no período de janeiro a dezembro de 2016 com peruanos nos Estados Unidos, nas
áreas de Baltimore e Washington D.C (englobando pequenas cidades dos estados de
Maryland e Virginia), incluindo a observação participante em eventos públicos e
privados, conversas informais, o trabalho como voluntária numa organização de
atendimento a imigrantes e num coletivo de justiça racial, em Baltimore e a participação
como dançarina no grupo de danças folclóricas peruanas, no Rio de Janeiro. A
metodologia deste trabalho também abrangeu a realização de entrevistas semi-
estruturadas com peruanos nos Estados Unidos no período de junho a setembro de 2016
e como estudantes peruanos no Rio de Janeiro no período de agosto a dezembro de 2012.
No roteiro de entrevistas, eu incluí perguntas relacionadas com as observações do campo.
Cabe aqui ressaltar três questões. A primeira delas é que, neste trabalho,
privilegiei analisar a percepção dos peruanos sobre as classificações raciais, por isso,
apresento no texto as categorias raciais e os significados destas mencionadas por eles.
Sempre que a compreensão for possível, manterei a grafia da categoria racial no idioma
originalmente usado pelos peruanos para expressá-la. Sempre que isso acontecer, a
palavra será grafada em itálico, como no caso de indio, escrito sem o acento agudo para
manter a grafia original, em espanhol, ou ainda mestizo, que apesar da grafia diferente
entre o português e espanhol peruano, a pronúncia é igual. A outra questão é que, como
tradição do cânone antropológico, o pesquisador participa ativamente do processo de
produção de conhecimento, por isso, além de escrever este texto na primeira pessoa do
singular, também incluo minha experiência como sujeito racializado negativamente –
como negra brasileira -, interagindo com os peruanos, brasileiros e norte-americanos,
como parte da análise. A terceira se refere à importância de reconhecermos as
especificidades regionais dentro do Brasil e dos Estados Unidos e, por isso, os resultados
deste trabalho são qualitativos e não extensivos à totalidade dos dois países.

Raça e imigração de norte ao sul das Américas

Nas últimas décadas do século XX, o Peru sofreu uma intensa crise econômica
concomitante à instabilidade política, devido a violência de estado e a atuação de grupos
políticos armados que denunciavam as profundas desigualdades sociais, políticas,
econômicas e raciais históricas reproduzidas pelo estado peruano3 (DEGREGORI, 2010).
Este cenário contribuiu para que a imigração se tornasse uma esperança de vida para
peruanos das zonas rurais e urbanas, de todas as classes sociais, níveis de escolaridade e
origens étnicas (ALTAMRIANO, 2000). De 1990 a 2011, estima-se que mais de 2
milhões de peruanos emigraram, o que correspondia a cerca de 8% da população do país
(INEI, 2012). Por meio das condições econômicas e do capital social que dispunham, os
peruanos construíram trajetórias migratórias rumo a diversos países, principalmente como
Estados Unidos, mas também destinos menos comuns como México, Brasil e Alemanha
(INEI, 2012). A crise vivida pelos Estados Unidos e Europa em 2008 e o recrudescimento
das políticas de imigração nesses países, de um lado, o alardeado crescimento econômico
do Brasil, a inclusão do Peru no acordo de residência Mercosul4 e a crescente presença
brasileira na vida cotidiana peruana (DANIEL, 2013), de outro, ampliaram o interesse
dos peruanos pelo Brasil.
Classificador social que legitima a desigualdade de poder entre brancos e não-
brancos, a raça tem no deslocamento internacional as suas origens. No fluxo ultramarino
da virada do século XV, os colonizadores espanhóis e portugueses fizeram da raça um
parâmetro para classificar as populações das Américas e do mundo, estabelecendo uma
hierarquia entre povos inferiores e superiores segundo características físicas e biológicas,

3
No imaginário peruano, o país é formado por três grandes áreas geográficas: Serra, Costa e Selva. Além
de se referir a aspectos da morfologia física do território peruano, essa divisão remete a uma divisão
político-social, que distingue a Costa, região que concentra as maiores cidades do país, entre elas Lima, a
capital, como também a população branca e mestiça e o poder político; da Serra e Selva, regiões onde
predomina a presença indígena, as cidades mais pobres e os piores índices de desenvolvimento humano do
país (Daniel, 2013; INEI, 2012).
4
Em 2011, o Peru foi incluído nos países participantes do "Acordo sobre residência para nacionais dos
estados parte do Mercosul e associados", que permite aos nacionais dos países do Mercosul, além do
Equador, Peru e Colômbia estabelecer residência em qualquer outro estado assinante do acordo.
onde o branco europeu ocupa o topo (MIGNOLO, 2007; QUIJANO, 1999, 2000). A raça
também exerceu um importante papel na formação dos estados nacionais, na definição de
"povo" como comunidade nacional (SEYFERTH, 1996; BALIBAR e WALLERSTEIN,
1991) e na seleção do imigrante desejado (CALAVITA, 1994; NGAI, 2008;
ALENCASTRO e RENAUX, 1997; SEYFERTH, 1996; 1997, LESSER, 2001;
MARCONE, 1992), chegando a receber respaldo como teoria científica no século XIX.
Na construção do Brasil como nação, a ideologia do branqueamento teve um papel
central, baseando-se numa interpretação criativa do racismo científico e da eugenia do
século XIX. Enquanto a corrente anglo-saxônica defendia a pureza das raças e via a
miscigenação como a degeneração das raças, a corrente latina a considerava um meio
para aprimorar as raças (STEPAN, 2005). Seguindo a corrente latina, as elites brasileiras
apoiaram uma política de imigração de brancos europeus que garantisse o branqueamento
da população nacional através da miscigenação (SEYFERTH,1997; RAMOS, 1996).
A ideologia do branqueamento contribuiu para a formação de um sistema popular
de classificação racial que tem como base a aparência física, em que os mestiços são
valorizados e reconhecidos parte da nação. Tal pensamento predominou nas ideologias
nacionais latino-americanas, como na democracia racial, no Brasil, de Gilberto Freyre, e
na raza cósmica, de José de Vasconcelos, no México. Diferentemente do Brasil e alinhado
com a corrente eugenista anglo-saxônica, nos Estados Unidos vigorou um sistema legal
de segregação racial baseado num rígido sistema de classificação a partir da ascendência,
que recusa a miscigenação. No Peru, o debate sobre raça e racismo tem como foco
principal o índio (COTLER, 1994; FUENZALIDA, 1970) e, apesar de dialogar com a
ideologia do branqueamento, a miscigenação é vista com reservas tanto pelas elites
nacionais como por intelectuais indigenistas (DEGREGORI, 2012).
Uma questão importante é que os Estados Unidos se tornaram uma referência
mundial para o debate sobre a raça e o racismo. Telles (2012 [2004]) comenta que o
campo intelectual e político brasileiro foi fortemente influenciado pela comparação com
os Estados Unidos. Essa comparação balizou tanto o mito da democracia racial - quando
o Brasil era considerado um exemplo mundial de sociedade não racista, por nunca ter tido
uma segregação racial legal como os Estados Unidos - e como contribuiu para a
consolidação do movimento negro brasileiro, que denunciou o racismo velado no Brasil
e lutou pela implantação de ações afirmativas, inspiradas nas affirmative actions norte-
americanas. Para os peruanos, inclusive militantes no campo da questão racial, os Estados
Unidos também são o parâmetro de avaliação das relações raciais no Peru (OBOLER,
1996).
Além do preto e branco: repensando a Raça entre o Peru, os Estados Unidos e o
Brasil
Fernanda tem 29 anos. Peruana de Lima, desde os 3 anos mora nos Estados
Unidos. Desde 2014, ela vive em Baltimore, onde nos conhecemos quando realizava uma
pesquisa de pós-doutorado durante todo o ano de 2016. Fernanda e eu fizemos parte de
um coletivo de arte e ativismo que organiza oficinas para discutir o racismo usando
linguagens artísticas. O grupo se reunia periodicamente e era composto por homens e
mulheres, na sua maioria com idade entre 20 e 35 anos, negros, latinos e brancos. Ele se
define como um coletivo de “justiça racial” e seu trabalho tem como objetivo abrir um
espaço de diálogo entre os diferentes grupos que vivem em Baltimore, questionando as
categorias raciais estanques e refletindo sobre as consequências do racismo na vida
cotidiana dos indivíduos e da cidade. As reuniões do grupo aconteciam às terças-feiras à
noite, em Highlandtown, bairro que concentra a população latina de Baltimore e onde
está localizado o mais tradicional restaurante peruano da cidade.
Fernanda e eu nos tornamos grandes amigas assim que nos conhecemos, em maio
de 2016, na primeira oficina em que participei. Numa das dinâmicas do grupo, eu
compartilhei da minha dificuldade de me inserir em Baltimore como negra brasileira, já
que nem os afro-americanos nem os latinos me aceitavam: os afro-americanos não me
aceitavam porque eu sou negra, mas não americana; os latinos não me aceitavam porque
eu sou da América Latina – e geralmente os latinos têm simpatia pelo Brasil -, mas meu
corpo é negro. No fim da oficina, Fernanda veio conversar comigo, dizendo que já havia
visitado o Brasil e que estudava português. Para minha surpresa, ela me contou que era
peruana e que seu pai mora próximo a Paterson, cidade no estado de Nova Jersey que
abriga uma numerosa população peruana. Tanto eu, brasileira, de pele negra escura,
cabelo crespo natural e Fernanda, com pele clara, cabelo levemente ondulado, castanho
escuro e com sobrenome alemão, éramos latinas em Baltimore.
Cidade onde 63% da população é negra5, recentemente, Baltimore ocupou as
primeiras páginas dos jornais depois que Freddie Gray, um jovem afro-americano, foi
morto quando estava sob custódia da polícia. Revoltados, muitos moradores de Baltimore

5 Segundo dado do US Census Bureau, 2016. Disponível em


https://www.census.gov/quickfacts/fact/table/baltimorecitymarylandcounty/SEX255216, acessado em 3
de abril de 2018.
saíram às ruas para protestar contra a violência policial e que levou a cidade a se unir ao
movimento Black Lives Matter em 2015. Baltimore também tem um significado marcante
para a história das relações raciais no Estados Unidos, tendo sido o lar que abrigou
grandes figuras do movimento abolicionista, como Frederick Douglass, e participado
ativamente do movimento pelos direitos civis.
Considerada a transição entre o sul e o norte dos Estados Unidos, Baltimore foi a
primeira cidade – ao sul – ou a última – a norte – a implementar o código Jim Crow, as
leis raciais que legalizavam a segregação racial, exigindo a separação de negros e brancos
nos espaços públicos, restringindo o acesso dos negros ao exercício da cidadania. A
população negra nos Estados Unidos criou diferentes estratégias para garantir sua
manutenção a despeito das proibições impostas pela lei. Entre elas esteve, por exemplo,
a criação de instituições de ensino superior que recebesse os jovens negros formados no
ensino médio que não podiam frequentar as universidades americanas, brancas. Assim,
foram criadas as universidades negras, existentes até hoje e reunidas na Liga das
Universidades Historicamente Negras (HBCU). Baltimore abriga duas universidades da
Liga, uma delas foi onde realizei o pós-doutorado na qual parte desse trabalho se baseia.
A história de segregação racial entre negros e brancos continua presente na cidade,
agravada pelos altos índices de pobreza que afeta desproporcionalmente os negros. Além
disso, a raça também é um elemento fundamental na organização da vida social, sendo
um critério bacilar para definir os círculos de amizade e as relações de confiança. Ela
também é um critério importante na organização do espaço urbano e no acesso à serviços
públicos, como a educação básica. A raça funciona ainda como um mapa que dá a direção
para seguir a vida social e que traçar a rota para a construção das identidades étnico-
raciais. Nesta dinâmica, são raros na cidade espaços onde brancos e negros convivam sem
tensão. O encontro entre os dois costuma ser raro e permeado de desconfiança. Assim,
Baltimore é um caso extremo que ilustra a clássica interpretação das relações raciais
norte-americanas, entendidas como um sistema estruturado numa lógica birracial,
polarizada entre brancos e negros (SKIDMORE, 1992) e, tendo como consequência, a
formação de grupos étnico-raciais que constroem fronteiras culturais diante dos outros
grupos.
A cidade de Baltimore tem um significado importante para minha pesquisa porque
foi nela onde morei e estabeleci as primeiras tentativas de me inseri num círculo social de
peruanos. Juntamente com Washington D.C, Baltimore é a maior cidade da área. Também
conhecida como DMV, a área engloba o distrito capital dos Estados Unidos e os estados
de Maryland, Virgínia. Essa área está sob circunscrição do Consulado Geral do Peru em
Washington D.C e a circulação de peruanos entre cidades menores dessa área, como
Rockville e Silver Spring (Maryland) e Fairfax e Alexandria (Virgínia) é constante e
intensa. É comum, por exemplo, que membros de uma mesma família residam em
diferentes localidades de DMV e se visitem nos fins de semana6. Ou ainda, que os
peruanos vivam num determinado município, mas trabalhem em outros.
Apesar de ter a pele clara, Fernanda não se reconhece – e não é reconhecida –
como branca nos Estados Unidos. Diferentemente da classificação que recebe no Peru,
onde é branca, nos Estados Unidos ela está sujeita à racialização como latina, sendo
tratada como inferior na hierarquia racial norte-americana. Grosfoguel (2016) explica que
a racialização é o processo que posiciona os indivíduos nas hierarquias raciais nacionais
e globais, separando-os entre os que se localizam acima da linha da “zona do ser” e os
que se localizam abaixo dele, na “zona do não-ser”. Os indivíduos localizados na zona do
“não-ser” têm o acesso a direitos, recursos materiais e o reconhecimento de suas
subjetividades e, em última instância, sua própria humanidade negada (GROSFOGUEL,
2016, p.10).
Fernanda conta que já aconteceram situações em que estava em festas e algum
americano branco se aproximou dela fazendo um pedido, imaginando que ela era
empregada da equipe de buffet – e não uma convidada. Na formatura de um de seus
melhores amigos da faculdade, que é branco, a mãe dele, também branca, falava com ela
muito devagar, em tom paternalista, supondo que ela não seria capaz de entender bem
inglês. Fernanda conta estes eventos fazendo a análise de que ela, nos Estados Unidos, ao
ser vista como latina, automaticamente os americanos imaginam que ela tem baixa
escolaridade, não fala inglês e desempenha trabalhos mal remunerados. Assim, a jovem
vive de forma particular o processo de racialização.
Fernanda se tornou uma das minhas melhores amigas em Baltimore. O fato dela
ter interesse pelo Brasil e em aprender português e de eu falar espanhol, gostar de dançar
salsa e ter afinidade com o Peru contribuíram para nossa aproximação. Desde que nos
conhecemos, nós costumávamos nos encontrar para ir ao restaurante peruano comer pollo

6
Este era o caso da família Gomez. Oriundos de Iquitos, região amazônica do Peru, um dos
irmãos reside em Baltimore com sua esposa e três filhos, enquanto os outros 3 irmãos e seus respectivos
companheiros e filhos que residem nos Estados Unidos moram em Rockville. Além deles, a família tem
ainda uma irmã que permaneceu no Peru com sua filha.
a la brasa7, dançar salsa aos sábados e conversar sobre nossos projetos de vida. Enquanto
os americanos – brancos e negros - e os latinos em Baltimore geralmente evitavam me
incluir em seus círculos de afinidade, desde o dia que nos conhecemos, Fernanda passou
a me convidar para participar de encontros com elas e suas amigas, grande parte delas
também latinas. Por isso, ela desempenhou um papel central na minha inserção em
Baltimore, me oferecendo a possibilidade de ter um círculo de amizade que até então eu
não havia conseguido construir.
Além do interesse mútuo pelos nossos respectivos países, Fernanda e eu nos
tornamos amigas pela forma como entendemos as relações raciais nos Estados Unidos e
as diferentes maneiras como o racismo afeta nossa experiência cotidiana. Nós
compreendíamos que ambas estávamos expostas à racialização como não-brancas, porém
não da mesma maneira, já que ela era reconhecida fenotipicamente como latina e eu como
negra, sempre confundida como afro-americana pelos latinos e pelos próprios afro-
americanos. Assim, em muitas ocasiões, eu poderia “me passar por8” afro-americana, o
que me permitia, por exemplo, transitar por espaços negros sem ser vista como intrusa,
uma vantagem significativa numa cidade majoritariamente negra. Fernanda, por outro
lado, tinha mais chances de ser aceita pelos latinos do que eu. Nosso encontro através do
coletivo de justiça racial também nos aproximou pois nele compartilhamos um
vocabulário comum sobre raça e racismo que aprofundava nossa relação.
O caso dos peruanos como parte da população latina em Baltimore traz elementos
muito interessantes para pensarmos como os processos de racialização são dinâmicos e
contextualizados em cada realidade. A despeito da polarização racial em Baltimore,
peruanos como Fernanda também são inseridos na hierarquia racial local como não-
brancos, mas também como não-negros. Numa cidade onde a segregação racial entre
brancos e negros se manifesta no cotidiano, peruanos como Fernanda se encontra num
lugar de ambiguidade, já que não se enquadram em nenhuma das duas grandes categorias
raciais que organizam a vida na cidade. De um lado, por não serem brancos, eles estão
sujeitos a às consequências materiais e simbólicas da racialização negativa. Por outro
lado, eles não estão sujeitos às mesmas discriminações raciais sofridas pela população
negra em Baltimore, como, por exemplo, se tornar uma vítima fatal da violência policial,

7
Frango assado temperado tradicional na culinária peruana.

8
“Pass for” é uma expressão empregada pelos americanos para se referir a indivíduos considerados
pertencentes à uma categoria, mas que, pela ambiguidade de seus traços fenotípicos, eles são vistos como
pertencentes a outra.
como aconteceu com Freddie Grey. A violência policial desproporcional é também vivida
pelos latinos, mas se manifesta de forma diferente, principalmente sobre os latinos que
estão nos Estados Unidos de forma irregular, que são os mais afetados pela ameaça à
detenção9 e à deportação.
O recrudescimento da política imigratória pós-11 de setembro e a efervescência
do nativismo provocou uma crescente criminalização dos imigrantes não-brancos,
encarados como um perigo à identidade norte-americana e terroristas em potencial. As
categorias criadas pelo estado norte-americano para classificar a população assumiram
um significado político, através da homogeneização das diversidades étnicas e nacionais
e da essencialização de características culturais. A racialização da categoria
latino/hispânico (ALCOFF, 2000; MENDIETA, 2000; OBOLER; 2000, 2010) demonstra
que a raça nos Estados Unidos se metamorfoseou, pressionando a sociedade americana a
repensar o paradigma binário negro-branco, ao mesmo tempo em que substituiu a base
biológica, fundamental no modelo clássico do racismo anglo-saxão, pela reificação e
homogeneização dos grupos étnicos e suas culturas (FALQUET, 2008; OBOLER, 2000,
2010). Adquirindo novos contornos, a raça agora não se limita apenas à biologia ou à
aparência física, mas também inclui a etnicidade, religião, a nacionalidade e o status legal
(FALQUET, 2008; GROSFOGUEL, 2016).
Ao mesmo tempo em que os latinos não estão sujeitos ao mesmo tipo de
discriminação racial que a população negra, eles também não são imaginados como
sujeitos de direitos no acesso às políticas de diversidade e ação afirmativa. A limenha
Melissa conta que, quando realizou seus estudos universitários em Baltimore na década
de 2010, sua universidade tinha programas específicos para beneficiar estudantes de
minorias raciais. No entanto, os recursos eram integralmente destinados para os
estudantes negros. Os estudantes latinos não eram vislumbrados como parte da
comunidade universitária e nem como potenciais beneficiários de tais recursos.
Além disso, os latinos em Baltimore também estão sujeitos a sofrer discriminação
dos afro-americanos. Nora10 mora com sua família numa casa de Baltimore, num bairro
majoritariamente negro. Ela relata que ela e seus filhos já foram diversas vezes assaltados
na porta de casa. Por isso, eles precisam ser muito cuidadosos quando circulam pelas ruas

9 Um debate sore a encarceramento de latinos é desenvolvido em Oboler, 2009.

10 Nora faz parte da família Gomez. Ela é esposa do irmão Gomez que mora em Baltimore, com quem
tem 3 filhos que também moram com eles.
do bairro. Nora e sua família são parte da pequena parcela de latinos que reside na área.
Seus traços físicos se destacam na vizinhança e por isso, se ela e sua família tornam os
mais vulneráveis às ações criminosas no bairro. Apesar de evitar conversar sobre o
assunto, eu presenciei a família comentando que já tido roubados um celular, o carro e a
bicicleta do filho mais novo. Ao contrário de Fernanda, Nora não usa os termos “raça” e
“racismo” para denominar as experiências de discriminação que ela e sua família
sofreram.
Uma questão crucial na relação dos latinos com o sistema de classificação racial nos
Estados Unidos e o processo de racialização ao qual estão sujeitos é heterogeneidade de
seu fenótipo. Por isso, a experiência de racialização de cada um deles pode ser muito
particular, de acordo com a maneira como seus traços fenotípicos é lido pelos outros
latinos e não-latinos. A diversidade fenotípica dos latinos complexifica ainda mais sua
participação nas relações raciais em Baltimore e nos Estados Unidos, onde as categorias
raciais, estruturantes da vida social, são popularmente entendidas como independentes,
que não se misturam entre si. Em seguida, analisaremos como os peruanos se entendem
diante do sistema de classificação racial norte-americano e em que medida navegar por
um outro sistema de classificação racial incide sobre a maneira como eles se percebem
no contexto de imigração.

O silêncio sobre a raça


Assim como Nora e sua família, e diferentemente de Fernanda, grande parte dos
peruanos com quem tive a oportunidade de interagir nos Estados Unidos não
compartilham de um vocabulário específico para nomear a raça e o racismo. Além disso,
era frequente os peruanos sentir um incômodo com a presença da raça na vida pública
norte-americana, o que, para muitos, parecia excessivo. Grande parte das instituições no
país, desde as estatais até as do terceiro setor, incluem em seus formulários de
atendimento uma pergunta sobre como o indivíduo se classifica racialmente. Estes
formulários empregam o critério da autodeclaração e geralmente utilizam as categorias
oficiais definidas pelo US Census Bureau, responsável pela realização dos censos
populacionais. Para muitos deles, será nos Estados Unidos a primeira vez em que serão
pressionados a descrever-se racialmente usando vocabulário específico, definido pelas
vias oficiais.
Na história do Peru, o Estado teve um papel central em atribuir ao vocábulo “raça”
um lugar periférico no cenário público. Nos anos de 1940, foi a última vez que o censo
populacional peruano teve uma pergunta sobre classificação racial, cuja resposta era dada
pela avaliação do recenseador: era ele quem definia a classificação racial do entrevistado.
No mais recente censo realizado no Peru, em 2017, foi incluída uma pergunta
“autoidentificación étnica”, que pretende mapear a população peruana e reunir dados que
sirvam para a implementação de políticas públicas para grupos específicos, como
indígenas e afroperuanos11. Entretanto, a palavra “raça” continua fora do vocabulário
oficial.
No trabalho de campo etnográfico em DMV, encontrei muita dificuldade para
conversar com os peruanos sobre raça, principalmente pela falta de um vocabulário
comum e de categorias que fizessem sentido para mim e também para eles concomitante.
O fato de um ser uma brasileira negra realizando uma pesquisa sobre raça com peruanos
no Estados Unidos também era um complicador. Como eu já vinha realizando trabalho
de campo com peruanos no Rio de Janeiro desde 2011, eu imaginei que não teria
dificuldades de me inserir na comunidade peruana nos Estados Unidos. Contrariando
minhas expectativas, minha aproximação dos peruanos nos Estados Unidos foi difícil.
Um dos motivos para tal dificuldade foi porquê eu era confundida como afro-americana
e, portanto, vista como estranha ao grupo, como não-latina. Como mencionei
anteriormente, a identidade étnico-racial nos Estados Unidos define os círculos sociais
nos quais o indivíduo pode se inserir, por isso, ao ser identificada como afro-americana,
eu não era vista como um possível par para a interação. No Rio de Janeiro, no entanto, eu
não tive dificuldades em ser aceita nos círculos sociais peruanos, questão que discutirei
adiante.
Outras duas questões complexificaram meu trabalho de campo sobre os sentidos
da raça na imigração peruana nos Estados Unidos. Eu era duplamente estrangeira – para
os peruanos, sujeitos da minha pesquisa e também para a sociedade norte-americana, na
qual eu estava vivendo, e ambas apresentavam classificações raciais afetavam
diretamente minhas possibilidades de me inserir no campo e na vida social no exterior.
Assim como os peruanos em DMV eram afetados pelas classificações raciais norte-
americanas que lhes eram estranhas, eu também era. Por isso, enquanto eu desenvolvia a
pesquisa, eu precisava circular por pelo menos três hierarquias raciais diferentes, do
Brasil, do Peru e dos Estados Unidos, sendo racializada negativamente em todas elas. E
ainda, como brasileira negra, eu construí minha identidade racial e minha noção de raça

11
http://www.censos2017.pe/autoidentificacion/, acessado em 5 de abril de 2018.
a partir da minha experiência no Brasil, incluindo minha convivência com peruanos no
Rio de Janeiro, que serviu de inspiração para a pesquisa nos Estados Unidos. Por isso,
meu trabalho de campo com os peruanos nos Estados Unidos tinha como substrato uma
dinâmica de relações raciais transnacional e uma multiplicidade de categorias e sentidos
particulares para a raça.
Para ter a possibilidade de estabelecer um diálogo sobre a raça no contexto dos
Estados Unidos de maneira mais sistemática, decidi realizar, além da etnografia – que eu
não estava conseguindo desenvolver, entrevistas semi-estruturadas tendo como ponto de
partida as perguntas sobre raça e etnicidade (perguntas 6 e 7) do formulário de registro na
seguridade social que gera o número do seguro social, conhecido em inglês como social
security number. Este número é essencial na vida das pessoas que residem nos Estados
Unidos, exigido para realizar transações financeiras e para ter acesso ao trabalho
remunerado. Eu optei em reproduzir na entrevista a pergunta do formulário da seguridade
social porque eu mesma tive que preenchê-lo quando cheguei nos Estados Unidos. As
duas perguntas são de resposta voluntária. As perguntas são as seguintes:

Pergunta 6:
Etnicidade:
“você é hispânico/latino?”
(sua resposta é voluntária)
( ) sim ( ) não

Pergunta 7:

Raça
Selecione uma ou mais
(sua resposta é voluntária)

( ) nativo havaiano ( ) índio americano ( ) Procente de outra ilha


no Pacífico
( ) nativo do Alaska ( ) Negro/Afro-americano
( ) Branco
( ) Asiático
Entrevistei o total de catorze homens e mulheres peruanos, com idade de 20 a 44
anos que vivem na área DMV. Eles chegaram aos Estados Unidos entre 2000 e 2014 com
idades variadas, oriundos de Lima, Trujillo e Andahuaylas. Quando apresentados às duas
perguntas, todos os entrevistados prontamente responderam “sim” à primeira pergunta,
sobre etnicidade. Não houve nenhuma dúvida em declararem-se latino/hispânico12. Tal
rapidez não foi encontrada na resposta à segunda pergunta, sobre como eles se identificam
racialmente. A pergunta foi acompanhada das sete categorias norte-americanas de
classificação racial. Após ler a pergunta e as categorias para os entrevistados, eu ouvia o
silêncio e via o franzir dos rostos dos entrevistados em busca de resposta. Apenas um
entrevistado respondeu a segunda pergunta tão prontamente quanto a primeira. Ele
identificou-se como “branco”. Todos os outros entrevistados tiveram dificuldade para se
encaixar numa das categorias do sistema de classificação racial dos Estados Unidos.
Chegando à conclusão de nenhuma categoria refletia como eles se identificariam, os
entrevistados responderam que se autodeclarariam: branco, mestizo, indio sul-americano
e “moreno”/afroperuano.
Os peruanos que se identificaram como “mestizos”, explicaram que nenhuma das
categorias raciais norte-americanas eram capazes de abranger a sua constituição étnico-
racial, marcada pela miscigenação. Lourdes, de 44 anos, de Trujillo esclarece que ela tem
uma família muito diversa, composta por imigrantes europeus e chineses, assim como
negros e índios. Lourdes foi quem apontou o maior número de componentes na sua
composição identitária. Diferentemente de Lourdes, os outros entrevistados explicaram
que a miscigenação da qual eram fruto ocorreu entre dois grupos étnico-raciais: moreno
e branco; indio e branco e moreno e indio. A jovem Isabel, de 24 anos, com sua pele
negra clara e cabelo crespo, se autodeclara mestiça, resultado da mistura de seu pai
branco, uruguaio, e sua mãe negra, peruana. Por sua vez, Antonio, 42 anos, afirma que
ele não vê sentido em classificar-se racialmente, mas se tivesse que escolher uma
categoria, ele adaptaria a categoria “american indian” e se autodeclararia “indio
suramericano”. Ele fundamenta sua resposta no seu local de nascimento – Andahuayalas,
município na serra do Peru – e nos seus traços fenotípicos que remetem à ascendência
indígena.
Os três peruanos que se autodeclararam afroperuanos possuem uma trajetória de
migração e construção de sua identidade racial muito peculiar, se comparada com a dos

12
Os entrevistados também não diferenciam um termo no outro. No entanto, o termo “latino” é muito
mais difundido que “hispânico”.
outros sujeitos da pesquisa. Todos eles são de Lima, foram para os Estados Unidos como
profissionais qualificados, já com o ensino superior concluído e eram amigos que
integravam uma organização de jovens afroperuanos em combate ao racismo e à
invisibilização dos negros no Peru. Reconhecendo-se como afrodescendentes, Dora, 30
anos, Javier, 33, e Jaime, 32, os três apontam que enfrentam dificuldades para serem
reconhecidos como negros e peruanos, ao mesmo tempo.
Jaime, por exemplo, tem a pele negra clara, nariz afilado e cabelo crespo. Seu pai
era negro e faleceu quando ele ainda era criança. Sua mãe é branca. A primeira
experiência de racismo que ele sofreu foi quando tinha 4 anos: um colega de turma se
recusou a brincar com ele, chamando-o de “negro” em tom agressivo. Se, por um lado,
ele foi reconhecido como negro pelos peruanos e estigmatizado como tal, por outro, ele é
claro demais para ser negro em outros países, como ouviu no Brasil de colegas negras
brasileiras, país que visita com frequência. Dora, por sua vez, tem a pele marrom escura,
nariz largo e cabelo liso. Ela conta que suas amigas, no Peru, afirmam que ela não deveria
se autodeclarar afroperuana porque ela tem “pelo suelto13”.
Cabe ressaltar o recorrente uso da palavra morena para referir-se aos indivíduos
com ascendência africana, como os afroperuanos e eu. Para mim, a palavra remete às
relações raciais brasileiras, em que é usada como eufemismo para se referir às pessoas
negras, por isso, eu recuso ser denominada como tal. Entre os peruanos, a utilização do
termo era muito recorrente, e, era nessa categoria que eu era classificada, o que me gerava
indignação e dificultava ainda mais minha interação com eles. Em contrapartida, os
jovens peruanos de ascendência africana que tiveram uma experiência política anterior se
autodeclaram afroperuanos ou afrodescendentes, diferentemente de Isabel, que, apesar de
suas características fenotípicas negras, se reconhece como mestiza e denomina sua mãe,
a progenitora com ascendência africana como morena.

Branco e Peruano: branco demais para ser latino, escuro demais para ser americano
Além do jovem que prontamente se autodeclarou branco, outros dois jovens
peruanos também afirmaram que são brancos. No Peru, eles se consideravam brancos e
também eram tratados como tal nas relações cotidianas com os outros peruanos. Quando
imigram para os Estado Unidos, eles encontram uma outra concepção de brancura, da
qual eles estão excluídos devido tanto ao seu fenótipo quanto à sua nacionalidade. Nesta

13
Expressão peruana para se referir ao cabelo liso.
seção, discutiremos o processo de ressignificação da categoria branco para os peruanos
que se classificam como tal no Peru e como a imigração afeta sua maneira de se perceber
como indivíduo na sociedade americana.
Alejandro me explica que ele e sua família é branca no Peru, mas nos Estados
Unidos ele não pode se classificar como tal porque os brancos americanos têm a cor da
pele mais clara que a sua, que ele chama de cor “branco gringo”. Diferentemente de
Alejandro, Victor, de 30 anos, comenta que ele costuma ser confundido como americano.
Sua pele branca clara, seu nariz pontiagudo e sobressalente e sua alta estatura ressaltam
sua ascendência italiana, permitindo-lhe “passar-se por” branco americano. Já Sebastian,
20 anos, explica que se autodeclararia branco porque é assim que ele é visto pelos outros
latinos. O jovem comenta que é muito comum ele ouvir dos latinos de que ele é “branco
demais para ser latino”. No ensino médio, recorrentemente era preterido entre os jovens
latinos, ou tinha sua “latinidade” colocada à prova, como uma forma de compensar a
clareza da sua pele.
O depoimento de Sebastian me lembrou um comentário que eu ouvi quando
trabalhei como voluntária para o consulado do Peru em Washington nas eleições
presidenciais peruanas. Um homem alto, de pele clara se dirigia para a saída do local de
votação quando, uma mulher magra, de pele amarronzada, cabelo preto, liso e longo,
olhos pequenos, disse para o homem, que aparentava ser seu amigo, em tom debochado:
“você é muito branquinho para ser peruano14”. A suposição de que uma pessoa de pele
branca clara não é peruana – e latina -, deixa evidente a complexidade das relações raciais
na América Latina. Se, por um lado, o branco remete à posição de maior poder e prestígio
no histórico da dominação colonial, a construção da identidade nacional fundamentada
na miscigenação – e no branqueamento – fez do mestiço o seu representante mais legítimo
e o branco um extremo questionável.
Os três jovens nos mostram que, apesar de “branco” ser uma categoria empregada
no sistema de classificação oficial norte-americano, ela é também utilizada no Peru e nos
outros países da América Latina. No entanto, os critérios para definir quem é ou não é
branco difere, sendo negociados nas relações que cada indivíduo estabelece na sua vida
social. Além de não ter a pele “branco gringo”, Alejandro, que aos 21 anos, vive em
Baltimore para cursar a universidade, comenta que seus amigos americanos brancos não

14
Original, “Tú eres muy blanquito para ser peruano”. Citação retirada das anotações do caderno de
campo, 11 de abril de 2016.
o reconhece como branco por causa do seu sotaque. Ele fala inglês fluente, porém tem
sotaque espanhol, o que é motivo de gozação.
Ainda assim, o jovem prefere ter amizade com os americanos brancos do que os
latinos. Apesar de, pelo fenótipo, passar por branco americano, Victor reconhece que seu
sotaque revela sua origem latino-americana. Sempre que revelada sua origem, ele tem
dificuldade de se inserir nos círculos sociais dos americanos brancos. Em contrapartida,
Victor desempenha um papel de liderança na comunidade peruana em DMV, na qual está
profundamente inserido. Já Sebastian, incomodado por não se sentir aceito por seus pares
latinos, decidiu entrar para um grupo de danças latinas. Reconhecendo a dança como um
elemento central na etnicidade latina nos Estados Unidos, Sebastian se sente acolhido
como mais latino desde que aprendeu a dançar.

A raça entre nós: percepções sobre a raça e o racismo entre os peruanos no Rio de
Janeiro
Muito diferente da organização da vida social na área de Baltimore, em que
classificação racial era um dos critérios fundamentais que distanciava os americanos –
brancos e negros -, dos latinos, no Rio de Janeiro é muito comum que brasileiros e
peruanos interajam, formando redes de apoio e afinidade e, inclusive formando famílias
peruano-brasileiras. Nos eventos peruanos na cidade, como a festa Noches de Sol, as
apresentações dos grupos msuicais Negro Mendes e Kuntur e da Copa Brasil-Perú, é
comum que o público peruano seja acompanhado por brasileiros, incluindo familiares e
amigos. Para muitos dos peruanos, tais eventos são uma oportunidade de, mesmo
distantes do Peru, se aproximar seus entes queridos brasileiros de alguns dos elementos
importantes na (re)produção da peruanidad como uma identidade étnica em relação à
sociedade brasileira (DANIEL, 2017). Além disso, estes eventos são significativos no
processo de reterritorialização dos peruanos, como forma de apropriarem-se do espaço
urbano do Rio de Janeiro, como discuti na análise da Copa Brasil-Peru (2014).
Enquanto nos Estados Unidos15, a raça era uma palavra muito popular no
vocabulário dos americanos – principalmente negros – e severamente evitada pelos
peruanos, no Rio de Janeiro acontecia o fenômeno inverso: a palavra costumava estar
muito mais presente nos diferentes círculos sociais peruanos pelos quais eu circulava, do

15
Cabe lembrar que este trabalho foi realizado na área de Washington DC, Maryland e Virgínia, que não
representam a totalidade dos Estados Unidos.
que nos círculos brasileiros, seja o de familiares, amigos ou colegas de profissão. Apesar
de eu ser negra e ter nascido, crescido e passado grande parte da minha vida na cidade do
Rio de Janeiro, quando eu comecei o trabalho de campo com os peruanos, eu tive a
sensação que pela primeira vez, os vocábulos “raça”, seus derivados (racismo, racista,
racial) e as categorias vinculadas a ela (negro, moreno, indio, cholo, etc) haviam se
tornado parte da minha vida cotidiana. Antes disso, eu percebia que nos círculos sociais
por onde eu transitava, a “raça” era silenciada, sendo mencionada abertamente apenas em
espaços específicos de militância e de estudos sobre a questão racial.
Além da constante presença da “raça” na minha interação com os peruanos no Rio
de Janeiro, outro fato me chamou atenção. Desde que eu comecei a frequentar os eventos
da comunidade peruana, em junho de 2011, e compartilhava com os peruanos do meu
desejo de realizar uma pesquisa sobre a imigração peruana no Rio de Janeiro, muitos
peruanos me alertaram que eu deveria prestar atenção numa coisa: no racismo entre os
próprios peruanos. Esta era uma confissão que eu ouvia tantos dos peruanos jovens que
estão no Rio de Janeiro como universitários, interlocutores da minha pesquisa de
doutorado, como daqueles que estão na cidade como trabalhadores ambulantes ou
empregadas domésticas, provenientes principalmente das periferias de Lima ou de
províncias localizados na Serra peruana.
Curiosa, eu queria saber mais. Aproveitando a abertura dos meus interlocutores,
eu sempre perguntava quem praticavam o racismo e quem eram as vítimas dele. A
resposta à segunda pergunta (quem são as vítimas do racismo no Peru) geralmente era
muito menos controversa que a primeira. Os peruanos concordam que as pessoas mais
sujeitas a sofrem racismo são ou indios, ou cholos16. Nestas categorias são inseridas as
pessoas que reuniam como caracterísitcas: oriundas das províncias fora da capital, das
zonas rurais da Serra, descendentes dos povos indígenas pré-coloniais, se dedicam ao
trabalho braçal, não tiveram acesso à educação, utilizam vestimentas tradicionais, falam
quéchua ou aymara. Portanto, os indivíduos que têm menos possibilidade de escapar do
racismo no Peru são aqueles que reúnem as seguintes características: geográficas (ser
oriundo da Serra e da zona rural); fenotípicas (como por exemplo, baixa estatura, pele
amarronzada, cabelo preto liso, olhos pequenos, esticados nas laterais e com pálpebras

16
Apesar de ambas categorias se referirem a pessoas que possuem ascedência indígena, cholo costuma ser
a categoria empregada para populações urbanas e/ou mestiças. Um debate sobre tais categorias entre os
peruanos no Rio de Janeiro está em Daniel (2013, p. 95).
pequenas, pômulo saliente); de classe (se dedicar ao trabalho braçal, pouco qualificado
formalmente; e de etnicidade (comunicar-se em línguas indígenas não-ocidentais, vestir
trajes tradicionais, bailar danças folclóricas indígenas, etc).
Nem todos os sujeitos ao racismo apresentarão todos os elementos desta
combinação ao mesmo tempo. Os elementos que tornam um indivíduo suscetível ao
racismo são avaliados na relação com outros indivíduos e com as hierarquias raciais
compartilhadas pela sociedade no qual eles estão inseridos, o que demonstra o caráter
dinâmico das relações raciais. Enrique, por exemplo, nasceu em Cusco, tem traços
fenotípicos indígenas – baixa estatura, cabelo preto liso -, mas tem formação universitária
e possui um capital cultural familiar, já que seu pai era professor universitário. Ele conta
que existem bares e discotecas nas áreas nobres de Lima, como os bairros de Lima e San
Isidro, que restringem o acesso ao público tendo como critério a aparência física,
proibindo a entrada de pessoas com traços fenotípicos indígenas. Enrique analisa que ele
tem o perfil físico de quem não seria aceito nestes espaços. Portanto, sua condição social
como imigrante peruano no Rio de Janeiro, com ensino superior e integrado à classe
média carioca não livrá-lo-ia de sofrer racismo no Peru.
Corroborando com a análise de Enrique, em 2004, o jornal peruano “La
República” noticiou o caso de uma discoteca processada por discriminação racial17. A
discoteca respondeu que funciona como um clube privado, por isso tem a entrada restrita
aos sócios e seus convidados. No entanto, dois casais empregados pelo Instituto Nacional
de Defensa de la Competencia y de la Protección de la Propiedad
Intelectual (INDECOPI), um com um fenótipo branco e outro com fenótipo mestizo,
tentaram entrar na discoteca. Nenhum dos dois casais era sócio ou convidado da
discoteca. Enquanto ao casal branco foi permitida a entrada, o casal com traços mestizos
foi impedido de entrar. O interessante é que o caso está sendo tratado como ferindo ao
código do consumidor, o que indica a supervalorização das relações de mercado em
contraposição à perspectiva dos direitos humanos. Assim, o racismo é encarado
exclusivamente como um entrave para o livre mercado e a vítima de racismo tratada como
consumidora, e não cidadã (CADENA, 2007, p.10).
Se a resposta para a pergunta “quem sofre racismo no Peru?” encontrou um
consenso entre os peruanos no Rio de Janeiro, o mesmo não acontece quando a pergunta

17 “Indecopi comprueba discriminación racial en discoteca de Larcomar”. Disponível em:


http://larepublica.pe/sociedad/321435-indecopi-comprueba-discriminacion-racial-en-discoteca-de-
larcomar. Acessado em 30 de março de 2018.
é quem pratica o racismo. Uma resposta recorrente é de que os limenhos dos bairros
nobres são os que mais agem de forma racista. No entanto, eles não são os únicos. Luis
Fernando explica que o racismo no Peru é complexo justamente porque não existe uma
posição fixa de oposição: quem discrimina x quem é discriminado. O que existe no Peru
é uma escala de discriminação, que ele denomina como indiomêtro/cholômetro: quanto
mais características fenotípicas e étnicas de indígena um indivíduo tiver, mais chance ele
terá de sofrer racismo, como discuti anteriormente. A fala de Luis Fernando nos
confirmarque a discriminação racial acontece na interação entre indivíduos e uma mesma
pessoa pode discriminar e, ao menos tempo ser discriminada, dependendo de com quem
ela está se relacionando. Por exemplo, um indivíduo com fenótipo mestizo pode ser
discriminado por alguém mais claro que ele. Por outro lado, ele pode discriminar outro
com características fenotípicas mais indígenas que ele.
Apesar de não existir no Peru um sistema oficial de classificação racial no Peru,
os peruanos empregam uma lógica de classificação racial que regula as relações sociais.
A posicionalidade dos indivíduos nesse sistema de classificação pode se transformar, de
maneira muito similar à que acontece com o caso dos negros na sociedade brasileira. Com
suas particularidades, em ambas as realidades, a miscigenação teve um papel fundamental
no projeto nacional de branqueamento e a ascensão social abre a possibilidade para uma
ascensão racial, ou seja, de ser reconhecido, se não como branco, como mais claro.
Sobre a ambivalência da raça no Peru, Cadena (2004), ao analisar os sentidos da
indigeneidade em Cusco, nos mostra o caráter dinâmico das categorias raciais e as
negociações realizadas em torno delas de acordo com o contexto no qual são mobilizadas
e de quem as utiliza. Em outra obra, autora (2014) mostra que a raça teve seu significado
transformado ao longo da história no discurso público peruano, fortemente influenciado
pela participação de intelectuais oriundos da Serra no debate sobre tema na capital, Lima.
Tal deslocamento levou que a raça deixasse de ser considerada como uma hierarquia
estritamente biológica, para se converter numa hierarquia com critérios morais e culturais,
o que permitiu que os intelectuais serranos fossem legitimados e reconhecidos como
“brancos honorários” (p. 55).
Outro aspecto que despertava minha curiosidade quando os peruanos me falavam
sobre o racismo no Peru, era se eles reconheciam que o racismo também estava presente
nas relações entre os peruanos no Rio de Janeiro. Afirmativamente, eles respondiam que
as hierarquias raciais, étnicas e sociais não desapareciam quando se instalam no Rio de
Janeiro. Ao longo do trabalho etnográfico, observei que os eventos organizados pelos
peruanos eram segmentados em dois grandes grupos: o de peruanos que chegaram no Rio
de Janeiro como estudantes e os peruanos que se dedicavam à venda ambulante e ao
trabalho doméstico. Alguns dos eventos importantes para a comunidade, como as festas
pelas Independência do Peru e a celebração de Señor de los Milagros, santo padroeiro do
país, era mais visível a presença de peruanos com um perfil mais heterogêneo. Entretanto,
outros eventos organizados por peruanos, como a festa Noches de Sol, eram frequentados
quase que exclusivamente por peruanos universitários.
Um fato intrigante é que, apesar dos peruanos no Rio de Janeiro serem unânimes
em admitir que existe racismo entre os peruanos no Peru e no Brasil, nenhum deles
admitiu já ter praticado racismo. Ao contrário: quando comentam o racismo no Peru, o
discurso é proferido em terceira pessoa – nunca em primeira. E o racismo é tratado como
uma questão individual, um problema psicológico de quem o expressa. Uma vez que o
racismo é percebido como um problema do indivíduo que o pratica, a solução para ele
também é individualizada: é esperada que a vítima busque sozinha maneiras de “seguir
em frente18”. Cabe a ela demonstrar força e não se deixar abalar pelas atitudes racistas.
Também é esperada que a vítima do racismo se mantenha em silêncio sobre o que sofreu,
pois, falar publicamente sobre o racismo seria um sinal de fraqueza, uma incapacidade de
superar os obstáculos da vida.
Por diversas ocasiões, quando eu relatava casos em que eu havia vítima de
racismo, era comum que meus interlocutores peruanos minimizassem o ocorrido, me
consolando dizendo para eu tinha que superar. Ou então, eles não entendiam minha
irritação quando me perguntavam se eu gostava de sambar, já que a dança estaria “no meu
sangue”, ou, repetiam, em tom de deboche, que os afroperuanos ao sul de Lima comem
gato19. Assim, eles ignoravam a manifestação do racismo em suas distintas dimensões,
desde a interpessoal até a estrutural. Mais do que um preconceito ou a reprodução de
estereótipos, o racismo se caracteriza como uma estrutura de dominação que perpassa as
questões de gênero, raça, classe (GROSFOGUEL, 2016, p. 11).

Indio como categoria transnacional

18 Tradução da autora de “seguir adelante”.

19
Arroyo (2007) demonstra que comer carne de gato é uma tradição afroperuana que faz parte do ritual de
celebração a Santa Efigenia, en Cañete, sul de la Lima. Quando os peruanos no Rio de Janeiro mencionavam
tal tradição era de maneira anedótica, tratando o ritual e seus praticantes como exóticos.
Na minha pesquisa de doutorado com peruanos que chegaram ao Rio de Janeiro
como estudantes universitários, observei que muitos deles evitavam relacionar-se com
peruanos inseridos no Rio de Janeiro em trabalhos pouco qualificados. Um jovem,
estudantes de doutorado em Engenharia na PUC-Rio, comentou que ele prefere não
frequentar os eventos nos quais estes peruanos estão porque eles terminam a festa muito
alcoolizados e, às vezes, se agridem verbal e fisicamente, e isso produz uma imagem
negativa dos peruanos no Rio de Janeiro. Em outra ocasião, eu estava jantando num
restaurante peruano em Copacabana com vários amigos peruanos, entre eles dois que
eram de Cusco e realizam seus estudos de mestrado também na PUC-Rio. Enquanto
jantávamos, dois irmãos de Cusco que eu conheci vendendo bijuterias em frente ao
shopping Nova América, zona norte da cidade, chegaram. Com entusiasmo,
cumprimentei os recém-chegados irmãos e os apresentei para meus amigos cusquenhos.
Os quatro se cumprimentaram e um dos meus amigos perguntou de que parte de Cusco
os irmãos eram. Quando eles responderam que eram de uma área periférica de Cusco,
meus amigos demonstraram incômodo e desinteresse em continuar a conversa.
Os dois episódios acima não me permitem concluir que os três estudantes tiveram
uma atitude racista. Todos os três apresentam traços fenotípicos indígenas – cabelo preto
liso, pele amarronzada, olhos pequenos, com as laterais estendidas -, e são oriundos da
Serra sul e norte do Peru, assim como os irmãos cusquenhos. Um dos jovens estudantes,
por exemplo, ficava muito chateado todas as vezes que uma colega sua peruana, também
estudante de pós-graduação, dizia, com sarcasmo, que suas amigas brasileiras falavam
que ele parecia com Evo Morales. As origens indígenas e rurais do presidente da Bolívia
não agradavam o jovem que, preferia ignorar sua colega.
Se suas características fenotípicas e seu local de origem são elementos pesam para
serem classificados como inferiores na hierarquia racial peruana, os três detêm um capital
cultural proporcionado pelo seu nível de educação elevado e pela inserção no Brasil como
estudantes universitários, uma posição de prestígio tanto na sociedade brasileira como na
sociedade peruana. Além de confirmar que a nacionalidade não é suficiente para garantir
uma afinidade imediata entre os indivíduos do mesmo país, o comportamento dos três
jovens pode ser interpretado como uma estratégia de distinção para evitarem ser
confundidos com os compatriotas que, além de um fenótipo indígena, ocupam as bases
da hierarquia social peruana e estão mais sujeitos ao racismo no Brasil.
Além de negociar com as estruturas de poder presentes na sociedade peruana no
Peru e na comunidade peruana no Rio de Janeiro, os peruanos também enfrentam as
estruturas de poder da sociedade brasileira, muitas vezes por eles desconhecidas. Certa
vez, Karen, uma jovem de 26 anos, estudante de mestrado Comunicação Social, estava
no metrô. De repente, um senhor, brasileiro, se aproxima dela e pergunta: “você também
trabalha vendendo na (rua) Uruguaiana?”. Karen respondeu que não. Naquele momento,
a jovem ainda nem conhecia a rua Uruguaiana, importante rua no centro do Rio conhecida
pelo intenso comércio ambulante. Tempos depois, ela foi à Uruguaina e viu que a rua
estava repleta de vendedores ambulantes, muitos deles estrangeiros com um fenótipo
indígena, a maioria deles do Equador. Karen, então, concluiu que o senhor brasileiro, ao
olhar para elA e ver seus traços físicos – baixa estatura, pela amarronzada, cabelo liso,
preto, longo, olhos pequenos -, muito parecido aos dos equatorianos, imaginou que ela
também seria uma vendedora ambulante.
Karen reconhece a semelhança fenotípica entre ela e os equatorianos que vendiam
na rua Uruguaiana, mas não considera que suas características físicas possam ser
suficientes para um senhor desconhecido supor que ela também seria uma vendedora
ambulante. Na sua vida cotidiana no Rio de Janeiro, Karen explica que se sente
incomodada quando percebe que as pessoas nas ruas olham para ela com curiosidade,
como uma estranha, mesma reclamação que faz Gabriela, que veio para o Rio de Janeiro
em 2009 para fazer mestrado na PUC-Rio. Com seus longos e lisos cabelos negros, pele
amarronzada e olhos pequenos, Gabriela é frequentemente chamada de “india” pelos
brasileiros. Cansada de dar explicações para estranhos na rua, hoje Gabriela prefere
ignorar os comentários. No entanto, ela fica particularmente chateada quando olhares
curiosos e a alcunha de “india” lhe é dada por familiares de seu marido, brasileiro natural
do interior de São Paulo. Seu marido insiste que seus familiares não a chamam de “india”
por maldade, mas porque Gabriela tem um tipo físico e um sotaque que se destaca ao
contexto da pequena cidade.
Ainda assim, Gabriela se incomoda por ser classificada no Brasil numa categoria
racial que, no Peru, ela não se classificava e que tem um sentido profundamente negativo.
Karen, ao contrário, não se incomoda tanto com o fato de ser classificada como india:
tendo crescido na periferia de Lima, de uma família de imigrantes da Serra do Peru, Karen
tem orgulho da sua ascendência indígena, e se reconhece como chola, categoria racial
comumente empregada para nomear peruanos com fenótipo indígena, filhos de migrantes
da Serra que vivem na zona urbana de Lima. No entanto, ela se sente constrangida por
ser observada pelos brasileiros, como alguém estranho, e não encontrar no Rio de Janeiro
muitas outras pessoas como a mesma origem que a sua. Gabriela, ao contrário, não se
considerava india no Peru e, por circular pelas classes médias de Arequipa, cidade onde
nasceu e cursou a universidade, ela se incomoda em ser classificada racialmente no Rio
de Janeiro.
O incômodo de Gabriela ao ser chamada de india não apenas por desconhecidos,
mas também por familiares de seu marido está relacionado com os significados que a
categoria tem no Peru. Como discuti anteriormente, a categoria indio tem uma conotação
negativa, usada muitas vezes de maneira depreciativa para insultar pessoas posicionadas
na base da hierarquia racial peruana devido sua aparência, origem geográfica, classe e
etnicidade. Desconhecendo o profundo significado da categoria no Peru e o
constrangimento que ela mobiliza nos peruanos assim classificados, muitos brasileiros
empregam indio indiscriminadamente, como um vocábulo para nomear aleatoriamente
peruanos e outros latino-americanos com um fenótipo indígena.
No Rio de Janeiro, estado brasileiro onde a presença indígena é minoritária,
pessoas com traços físicos indígenas chamam a atenção e, frequentemente, tratadas como
exóticas. Gustavo, por exemplo, conta que já presenciou muitas vezes amigos seus
peruanos que tem traços físicos indígenas ser apontados ou ouvir comentários de
curiosidade por parte de brasileiros quando caminhavam pelas ruas da cidade. Gustavo
observava que seus amigos ficam muito constrangidos, mas tentava seguir seu caminho
com normalidade. Gustavo, que tem cerca de 1,90 cm, pele morena clara e usa o cabelo
raspado, explica que, pessoalmente, nunca passou por isso porque não tem uma aparência
reconhecida como indígena pelos brasileiros.
Da mesma maneira que Gustavo, Nancy relata que também não é reconhecida
como peruana pelos brasileiros, explicando que seu tom de pele morena, sua estatura
mediana e seu cabelo cacheado levam os brasileiros a supor que ela também é brasileira.
No entanto, sua amiga Sandra, que tem baixa estatura, cabelo preto escuro liso, olhos
esticados e pele clara, é reconhecida como estrangeira. As duas contam que, muitas vezes,
quando saem juntas para fazer compras, Sandra costuma ser seguida pelos vendedores
das lojas, que vigiam se ela não vai roubar algum item. Nancy relata que já presenciou
cenas assim, de vendedores que não queriam permitir que Sandra experimentasse uma
peça de roupa no provador temendo que ela o roubasse.
A experiência de Karen, Gabriela e Sandra, mulheres peruanas que são vistas
pelos olhos brasileiros como diferentes, nos coloca o desafio de repensar as diversas
formas que a raça assume na relação entre a sociedade brasileira e a população
estrangeira, mesmo quando o uso da palavra não é explícito. Portanto, nos cabe refletir
em que medida a classificação que os brasileiros fazem de peruanos como Karen e
Gabriela como indias representa, além de uma forma de lidar com indivíduos
fenotipicamente diferentes da maioria da população local e que, portanto, escapam do
sistema classificatório localmente hegemônico, também uma forma de os posicionar
numa categoria racial inferior na hierarquia racial brasileira.

Considerações Finais
A reflexão sobre a percepção dos peruanos no Brasil e dos peruanos nos Estados
Unidos sobre a raça e o racismo nos mostra como as relações raciais com as quais os
peruanos interagem na sociedade de acolhida influenciam a maneira como eles se percebe
diante das hierarquias raciais por onde circulam. Entre os peruanos no Brasil, a “raça” é
uma palavra que faz parte do cotidiano, principalmente quando relatando casos de
racismo. Já para os peruanos nos Estados Unidos, a “raça” era uma palavra silenciada e o
racismo um assunto evitado. Contrapondo-se à realidade local, principalmente na área de
DMV, onde o debate sobre o racismo e a tensão racial entre negros e brancos faz parte do
cotidiano, os peruanos preferem não tratar do assunto.
No entanto, evitar falar sobre a raça não exime os peruanos de exercer um
importante papel no sistema de classificação racial da sociedade receptora. Posicionados
na grande categoria “latinos”, nos Estados Unidos, os peruanos se deparam com os limites
e as possibilidades que o sistema de classificação racial norte-americano impõe. Como
“latinos”, os peruanos encontram a oportunidade de conviver com indivíduos procedentes
de outros países da América Latina, porém encontram dificuldade para se inserir em
círculos sociais de americanos de ascendência não-latina. Apesar de “latino” ser
oficialmente definido nos Estados Unidos como uma etnicidade, na vida cotidiana, a
categoria assume contornos raciais.
Por outro lado, os peruanos no Brasil se deparam com a categoria “indio”. Presente
no sistema de classificação racial brasileiro oficial e informal, o termo também faz parte
do sistema de classificação racial peruano. Apesar do Peru ter abolido o uso oficial da
palavra “raça” e um sistema de classificação racial oficial desde os anos de 1940, continua
a vigorar na sociedade peruana um conjunto de categorias que hierarquizam os indivíduos
de acordo com aspectos como sua ascendência, classe e local de origem. Neste contexto,
“indio” é a palavra empregada para designar os indivíduos posicionados no inferior da
hierarquia racial peruana. Quando se deparam a palavra “indio” no Brasil, os peruanos se
incomodam que ela seja usada indiscriminadamente pelos brasileiros que, ignorando a
complexidade da categoria no Peru, empregam-na para descrever aqueles que apresentam
características fenotípicas indígenas, a despeito de sua origem nacional.
Assim, esse trabalho abre um caminho para refletirmos as diversas
ressignificações que a raça tem assumido no contexto de globalização, bem como a
participação dos imigrantes neste processo. Longe de ser um sistema de classificação
estanque, com categorias fixas, a raça, como construção social, tem a capacidade de se
transformar no tempo e no espaço, de acordo com as relações de poder que estão em jogo.
No contexto migratório, os peruanos se deparam com outras classificações raciais e, como
estrangeiros diante das classificações raciais nacionais, contribuem para a construção
local de categorias raciais transnacionais, como são “latino”, nos Estados Unidos e
“indio” no Brasil. Neste último caso, apesar da categoria já existir no sistema de
classificação racial brasileiro oficial, no Rio de Janeiro, ela é ressignificada como uma
categoria utilizada para classificar qualquer pessoa com um fenótipo indígena.
Se estas duas classificações raciais transnacionais são empregadas pela sociedade
de acolhida como uma maneira de posicionar os estrangeiros na hierarquia racial de seus
países, elas também podem ser apropriadas pelos sujeitos classificados para construir
novas identificações, redes de apoio e afinidades para além das nacionalidades, como
ocorreu entre a peruana Fernanda e eu, brasileira, e nosso engajamento no coletivo de
justiça racial em Baltimore.

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Camila Daniel
É antropóloga. Professora do Departamento de Ciências Administrativas e Sociais
(DCAS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pós-doutora pelo departamento
de World Languages and International Studies da Morgan State University, Baltimore,
Estados Unidos. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Participa do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM). Atua no campo dos estudos migratórios
e relações raciais, trabalhando com a questão racial na imigração latino-americana, com
especialidade na imigração peruana.

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