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Ensaio Sobre A Relação Epistemológica Entre Probabilidade e Método Científico
Ensaio Sobre A Relação Epistemológica Entre Probabilidade e Método Científico
1 Instituto Fernandes Abstract In the XIX century, regularities in statistics of events were perceived in Medicine and
Figueira, Fundação
Human Sciences. These regularities raised the possibility of forecasting what considered to be
Oswaldo Cruz.
Av. Rui Barbosa 716, impredictable, and so, probabilistics laws became an alternative to the strictly-causal laws. This
4 o andar, Rio de Janeiro, RJ work presents a brief historical review of probability calculus and its applications. Some philo-
22250-020, Brasil.
sophical thoughs, regarding the use of probabilistics models and decision analysis in Medicine,
esmaciel@rio.nutecnet.br
2 Departamento de are also discussed.
Epidemiologia e Métodos Key words Statistics; Probability; Decision Analysis; Medicine
Quantitativos em Saúde,
Escola Nacional
de Saúde Pública, Resumo No século XIX, as regularidades observadas na contagem dos eventos surgem como a
Fundação Oswaldo Cruz. possibilidade de previsibilidade do que parecia até então imprevisível, principalmente no cam-
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
8 o andar, Rio de Janeiro, RJ
po das Ciências Humanas e da Medicina. As leis probabilísticas tornam-se uma alternativa para
21041-210, Brasil. leis estritamente causais. Neste trabalho, fazemos um breve histórico do cálculo de probabilida-
nando@ensp.fiocruz.br des e suas aplicações, e desenvolvemos algumas questões filosóficas acerca da utilização da teo-
ria da probabilidade e da análise de decisão – oriunda do campo econômico – à Medicina.
Palavras-chave Estatística; Probabilidade; Análise de Decisão; Medicina
provável a descoberta de um efeito físico que Laplace, ao fundir os dois sentidos num
contradiga a teoria quântica’; esse enunciado, único, parece antecipar o papel do cálculo de
creio eu, não pode ser transformado em enun- probabilidades na ciência contemporânea. As
ciado de probabilidade numérica ... sem sofrer decisões baseadas em lógicas como a bayesia-
distorção de significado”. na ou a nebulosa, por exemplo, aceitam como
No segundo sentido do termo – não numé- legítima a indiferenciação dos conceitos de
rico –, este ganha o estatuto de predição rela- probabilidade formal e empírica, incorporan-
cionada ao mundo físico. “Provável” agora sig- do e evidenciando a dimensão subjetiva no uso
nifica expectativa com relação a um aconteci- da probabilidade.
mento futuro, expectativa que pretende estar Na inferência fundamentada no cálculo de
fundada na observação e análise de séries de probabilidades, a certeza é a unidade e a pro-
eventos passados que comportaram-se tal qual babilidade uma fração. Esta quantificação de-
um determinado modelo formal. riva da definição clássica de probabilidade ma-
Indiscutivelmente, Laplace coloca-nos dian- temática: a probabilidade matemática de um
te de um dos impasses mais importantes do evento é igual à razão entre o número de casos
conhecimento objetivo, que é o da necessidade favoráveis e o número total de casos. Quando
de justificar uma crença a respeito da realiza- aplicado a uma situação cuja evolução deve-se
ção de um acontecimento futuro. Dentre as vá- predizer, temos uma totalidade de casos possí-
rias características do pensamento moderno veis, tanto favoráveis quanto desfavoráveis. Os
podemos destacar a busca de uma solução não casos possíveis referem-se ao futuro, enquanto
dogmática para dar conta desta questão. No sé- o número total de casos, na proposição mate-
culo XVIII, por exemplo, Hume chama a aten- mática, tem sempre o presente como limite.
ção para o fato de que no mundo físico não en- Assim é que na inferência probabilística relati-
contramos qualquer dispositivo que justifique va a uma situação empírica, podemos perceber
inferir um acontecimento futuro valendo-se de a junção do atual com o virtual, apoiada num
observações pregressas. Neste sentido, a infe- certo tipo de racionalidade subsumida pela
rência indispensável às demandas cotidianas matemática e a ela subordinada.
seria possibilitada – mas não justificada – pela Os sistemas dinâmicos da mecânica newto-
crença ou fé de que eventos futuros tenderão a niana caracterizam-se pelas idéias de determi-
ser semelhantes aos do passado. Mecanismo nismo, causalidade e reversibilidade do tempo.
psicológico a que Hume denominou “hábito”. Dado o conhecimento da posição e da veloci-
A inferência causal não se justificaria, portan- dade de um corpo num momento determina-
to, pela experiência observacional. Como re- do pode-se deduzir a sua evolução, tanto no
solver o problema de justificar racionalmente passado, quanto no futuro. O demônio imagi-
o conhecimento depois da crítica humeana es- nado por Laplace é capaz de observar estas
capando, ao mesmo tempo, de epistemologias condições para todos os corpos do Universo.
fundadas em princípios dogmáticos? Ainda que Ele recorreu a esta descrição de forma a realçar
o pensamento de Hume não seja, por definição, o limite das possibilidades do conhecimento
epistemológico, uma vez que a noção de hábi- humano e de nossa capacidade de predição.
to apenas descreve os modos de entendimento Daí a necessidade de, diante dessa inevitável
humano, fugindo da idéia de qualquer tipo de ignorância, atributo da condição humana, re-
fundamentação, sua filosofia não deixa de difi- correr a uma descrição estatística de certos
cultar a aceitação de sistemas de leis científicas. processos. A dualidade lei-condições iniciais
Kant parte das idéias de Hume para elabo- põe em xeque a descrição determinística, obje-
rar a “Crítica da Razão Pura” (Kant, s/d), em tiva, da dinâmica clássica, acessível apenas ao
que tenta tornar viável a justificativa do conhe- demônio de Laplace (Prigogine & Stengers,
cimento racional ao fundar o conceito de “juí- 1991). Na linguagem da dinâmica, um sistema
zo sintético a priori”. Popper apóia em Kant o evolui sobre uma trajetória determinada, guar-
seu pensamento. Outros filósofos, no entanto, dando as condições iniciais que determinam
justamente por julgarem problemática a idéia essa evolução. Na termodinâmica, os sistemas
de uma síntese a priori, vão ter na Teoria da fora do equilíbrio evoluem para um mesmo es-
Probabilidade o solo epistêmico a partir do tado de equilíbrio, independentemente de suas
qual justificarão o conhecimento objetivo, co- condições iniciais; o que conta é a bacia atrati-
mo o fizeram os empiristas lógicos do Círculo va: todos os sistemas com um atrator perten-
de Viena, no início do século XX. Mas, neste ca- cente a esta bacia possuem o mesmo ponto de
so, isto só poderá ser feito se os dois sentidos equilíbrio, dirigindo-se, portanto, para o mes-
do termo – provável – acima referidos, forem mo estado final. Estávamos diante da abertura
sobrepostos. para uma ciência do complexo. Alguns investi-
gadores apostavam que para articular as duas compreendendo o mesmo número n de tenta-
descrições – dinâmica e termodinâmica – seria tivas, nas mesmas condições, podem apresen-
necessário reduzir a complexidade dos fenô- tar diferentes freqüências relativas. Pela expe-
menos termodinâmicos à simplicidade de riência sabemos, no entanto, que a freqüência
comportamentos elementares, o que implicava relativa para uma certa classe de fenômenos,
a passagem do nível macroscópico para o mi- em condições bem definidas, tende a oscilar
croscópico. Boltzmann foi o primeiro a enfren- em torno de um certo número p, que coincide
tar esse desafio (Prigogine & Stengers, 1991). A com a probabilidade matemática do evento es-
inovação conceitual necessária localizou-se no tudado. Além disso, a experiência ensina que
conceito de probabilidade: esta deveria trans- quanto maior o número de repetições, mais a
formar-se de uma forma de aproximação em freqüência relativa aproxima-se da probabili-
um princípio explicativo. dade matemática, limite para o qual tende a
Com Cournot teria sido iniciada uma nova freqüência relativa em um número indefinido
fase no uso das probabilidades (Du Pasquier, de repetições.
1926). Para Laplace o acaso era conseqüência Tomando-se por base a lei dos grandes nú-
das limitações do conhecimento humano e, meros, a probabilidade matemática anuncia-
diante de uma inteligência superior, todas as se como a seguir:
condições, causas e, portanto, a evolução de “Em uma série de tentativas repetidas um
quaisquer sistemas seriam reveladas. Assim, o grande número de vezes nas mesmas condições,
acaso definido como desconhecimento das quaisquer dos acontecimentos fortuitos possí-
causas era inassimilável em um sistema deter- veis manifestam-se com uma freqüência relati-
minista, a antítese da aplicação de qualquer va sensivelmente igual à sua probabilidade
lei. Para Cournot, ao contrário, o acaso é uma matemática. A aproximação aumenta em geral
realidade objetiva independente do estágio dos muito rapidamente, à medida que as tentativas
nossos conhecimentos. Trata-se agora de defi- tornam-se mais numerosas” (Du Pasquier,
nir noções precisas de medida – dadas pela 1926:76).
teoria moderna dos conjuntos – e a axiomati- A diferença entre a freqüência relativa do
zação, pela da aritmética, da teoria. No início evento e sua probabilidade matemática consti-
do século XX, com uma base lógica irretocável tui o afastamento relativo da série. Com o au-
e fundado nas idéias de Cournot, o cálculo de mento do número de tentativas, o afastamento
probabilidades já não é “uma lógica geral da relativo tende para 0.
incerteza, mais metafísica do que matemática” Ao aplicar os teoremas do cálculo de proba-
(Du Pasquier, 1926:30). bilidade aos eventos, recorremos a um movi-
mento de aproximação semelhante àquele rea-
lizado quando aplicamos a objetos reais as leis
A lei dos grandes números mecânicas do movimento. Não há uma justifi-
e a inferência estatística cativa para a afirmação “ao lançarmos um da-
do perfeito 600 vezes, a face contendo o número
A Lei dos Grandes Números ou Lei Empírica do 1 aparecerá 100 vezes voltada para cima”, já
Acaso compreende três noções fundamentais: que há outras possibilidades. No entanto, pres-
a freqüência relativa, a flutuação e a ausência supomos que os teoremas do cálculo de proba-
de regularidade. Ao propô-la, o objetivo de Jac- bilidades aplicam-se com uma certa aproxima-
ques Bernoulli não era demonstrar a realidade ção aos fenômenos naturais que repetem-se
da referida lei, comprová-la empiricamente, em condições quase idênticas. A teoria proba-
mas criar um sistema teórico explicativo. bilística determina a probabilidade matemáti-
Imaginemos um evento E. São executadas ca, que é um conceito, enquanto a prática re-
n tentativas de realização do evento E. O nú- quer a previsão de freqüências de eventos. Jac-
mero de vezes que o evento E realiza-se nessas ques Bernoulli evidenciou esta distinção entre
n tentativas é sua freqüência absoluta. Para sa- abstração e realidade na aplicação do cálculo
bermos se esse evento é ou não raro, é neces- de probabilidades.
sário calcular sua freqüência relativa. A fre- Uma nova abordagem para o problema da
qüência relativa do evento E é o número de ve- inferência estatística foi dado por Thomas Bayes,
zes em que este realizou-se – k – em relação ao na primeira metade do século XVIII (Bernstein,
número total de tentativas – n. A freqüência re- 1996). O seu problema formulava-se de forma
lativa é sempre um número compreendido en- distinta do proposto por Bernoulli: dado o nú-
tre 0 e 1. mero de vezes que um evento desconhecido
A freqüência de um mesmo evento varia ocorreu ou não, qual a probabilidade de que
com o número de tentativas. Diferentes séries ele aconteça em uma única tentativa? Nesse
caso, nada sabemos do evento, exceto que ele Aqui, a percepção mediada pelos órgãos dos
ocorreu um certo número de vezes e não ocor- sentidos é uma espécie de ruído a interferir
reu em um outro número de vezes. Bayes utili- com o verdadeiro conhecimento. A razão, que
za o exemplo das bolas de bilhar. Uma bola de tem a capacidade de contemplar as essências
bilhar está parada sobre a mesa. Uma segunda por meio da lembrança ou reminiscência da al-
bola é impulsionada. O sucesso ocorre quando ma, deve abdicar daquilo que há de mundano
esta vai localizar-se à direita da primeira; se es- e, portanto, enganoso, no que nos chega pela
ta pára à esquerda, considera-se fracasso. Al- sensação do mundo físico. Platão enuncia uma
guém conta os sucessos e fracassos. Qual a questão epistemológica crucial, que é a de que
probabilidade de o lançamento seguinte obter há componentes do conhecimento cuja fonte
sucesso? No método bayesiano, a probabilida- não pode ser encontrada na experiência do
de de a bola localizar-se à direita é, a cada ten- mundo físico; são entes do pensamento, cuja
tativa, reformulada em função do resultado ob- realidade é apenas formal.
tido na tentativa anterior – cada lançamento “Sócrates: – Que diremos então de certas coi-
tem uma probabilidade prévia e uma probabi- sas, Símias? Da justiça, por exemplo? Diremos
lidade posterior. Há, assim, uma revisão contí- que é alguma coisa ou nada?
nua das inferências ao agregarem-se novas in- Símias : – Diremos que é algo.
formações. A análise bayesiana pode ser utili- Sócrates: – Não o diremos também do bom e
zada em processos de tomada de decisão du- do belo?
rante a realização de um diagnóstico clínico, Símias : – Sem dúvida.
por exemplo. Do mesmo modo, a lógica nebu- Sócrates: – Entretanto, já chegaste a vê-los
losa utiliza-se de dados a priori para tomada de com teus olhos?
decisão. Estes dados são sistematizados numa Símias : – Nunca.
matriz composta por elementos cujas qualida- Sócrates: – Há algum sentido corporal pelo
des e valores relativos são inferidos por causa qual chegaste a apreciar as coisas de que te falo,
de conhecimento prévio e especializado. Assim como a grandeza, a sanidade, a força, em resu-
é que, no nosso entender, a lógica nebulosa mo, a essência de todas as coisas, isto é, aquilo
otimiza o princípio bayesiano ao permitir que que são nelas mesmas? Ou se aproximará mais
se trabalhe com a valoração de eventos simul- do fim desejado aquele entre nós que se encon-
tâneos, muitas vezes contingentes, que passam tre em maior grau e mais precisamente prepa-
a ser indicadores mais efetivos para a predição rado para pensar por si mesmo a coisa que ob-
de um desfecho em questão. É o a priori, aqui serva e toma por objeto? ...
forjado em linguagem matemática. Não nos de- ... – Deste princípio – disse Sócrates – não se
ve causar estranhamento o fato de que os men- segue que os filósofos devem pensar e dizer: a ra-
cionados tipos de lógica passem a ter sua im- zão deve seguir apenas um caminho em suas in-
portância aumentada pelo desenvolvimento vestigações, enquanto tivermos corpo e nossa al-
da informática. ma estiver absorvida nesta corrupção, jamais
possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a
verdade. Porque o corpo nos oferece mil obstá-
Probabilidade e senso comum culos pela necessidade que temos de sustentá-lo
e as enfermidades perturbam nossas investiga-
Uma questão que agora gostaríamos de apre- ções...” (Platão, 1996:127).
sentar é: em que medida o uso da probabilida- Assim, para Platão, a Reminiscência é o lu-
de em tomadas de decisão pretensamente cien- gar do conhecimento verdadeiro e inequívoco,
tíficas, do ponto de vista da epistemologia, não justamente por esta perseverar independente-
passa de uma instrumentalização de nossos mente das vicissitudes da percepção do mundo
sentidos em favor do conhecimento de senso físico. Numa outra passagem famosa, no Me-
comum? Definiremos, a seguir, o que conside- non, Sócrates demonstra a realidade do conhe-
ramos senso comum e o que queremos dizer cimento das essências pela Reminiscência da
com “tomadas de decisão pretensamente cien- alma, ao fazer com que um escravo compreen-
tíficas”. da um determinado teorema da geometria, sa-
O racionalismo platônico constitui-se num bendo de antemão que o mesmo jamais tivera
dos primeiros sistemas de pensamento a des- entrado em contato com tal disciplina até então.
tacar um certo tipo de dualismo inerente ao Para Platão isto só se torna possível pelo fato de
conhecimento. Isto fica bem caracterizado pe- o escravo trazer em sua alma (razão) a reminis-
la separação estabelecida entre o que podemos cência de tal conhecimento desde a eternidade.
apreender pela percepção do mundo físico da- Mas talvez haja uma outra alternativa para
quilo que realmente conhecemos pela razão. explicar a bem sucedida preleção de Sócrates
para com o escravo. Podemos aqui substituir a to de que os objetos ocupam um lugar no espa-
idéia de Reminiscência pela de conhecimento ço e de que o tempo passa tendo o sujeito co-
de senso comum. Conforme Guerreiro (1999), mo referência. É justamente pelo fato de tem-
Platão poderia ter explicado o sucesso de Só- po e espaço deixarem de ser apreendidos como
crates por meio de três fatores relacionados di- grandezas em si mesmas e passarem a consti-
retamente com as capacidades humanas e o tuir dimensões essenciais da existência, que
uso da linguagem e da razão no processo de pensamos poder aproximá-las da idéia de sen-
obtenção do conhecimento: a clareza e a preci- so comum aqui definida. Trata-se, portanto, de
são daquele que faz a demonstração; a capaci- uma relação de proximidade que pretendemos
dade de dedução inerente ao discernimento estabelecer entre senso comum e as intuições
humano como uma potencialidade podendo de espaço e tempo em Kant. Sabemos que, em-
ser ativada desde de que adequadamente esti- bora qualquer tipo de apreensão da realidade
mulada; e “o caráter auto-evidente dos axiomas pelo entendimento deva estar subsumida às
apresentados cuja veracidade pode ser apreen- intuições transcendentais de tempo e espaço,
dida intuitivamente por todo e qualquer ser hu- isto não ocorre de maneira direta. O sensível
mano dotado de uma capacidade mínima de torna-se inteligível no ato de um certo enqua-
discernimento” (Guerreiro, 1999:12). dramento elaborado na “imaginação”, ou seja,
Aqui apresentamos o conceito de senso co- a forma do fenômeno é dada na Faculdade do
mum composto por duas dimensões: a primei- Entendimento. Neste caso, haveria coisas do
ra relativa à idéia de percepção; a segunda da mundo a meio caminho entre o sentido e o
ordem do entendimento. Haveria, portanto, compreendido, na “imaginação”. Esta apresen-
uma experiência sensível e uma conseqüente ta seus elementos ao entendimento para que
elaboração mental comuns relativas, por assim este imponha-lhes a forma. A síntese produzi-
dizer, à própria condição humana. Percepção e da pela imaginação poderia, então, conter os
entendimento de senso comum seriam, então, elementos de um conhecimento comum. É cla-
o a priori a partir do qual uma outra forma de ro que, do ponto de vista kantiano, o termo
conhecimento especulativo – científico – en- “conhecimento” é aqui inadequado, pois só se
contraria o solo fértil para o seu desenvolvi- conhece com base na forma atribuída ao sensí-
mento. Aqui seguimos bem de perto a noção vel (objeto) feita pela Faculdade do Entendi-
popperiana de que o conhecimento científico mento. Do ponto de vista da filosofia de Kant,
seria estruturado como conjecturas, passíveis não haveria propriamente objetos na síntese
de falseamento pelo trabalho experimental, da imaginação, mas arriscamo-nos a especular
conjecturas nascidas no solo do senso comum. acerca de alguns elementos aí existentes que,
Talvez possamos nos atrever a afirmar que no- em seu conjunto, caracterizariam uma certa
ções como percepção e entendimento de sen- experiência comum: percepção e entendimen-
so comum aproximam-se das idéias kantianas to de senso comum (sem confundir o termo
de intuição de espaço e tempo e de suas res- “entendimento” com a Faculdade do Entendi-
pectivas sistematizações na instância da ima- mento). Seriam noções como as de “outro”,
ginação. A estética transcendental, intuição do “múltiplo”, “dentro”, “fora”, “todo”, “parte”, por
espaço e do tempo, responderia por nossa ca- exemplo, que nos parecem, valendo-se da to-
pacidade humana comum de perceber, fican- pografia kantiana do entendimento humano,
do o entendimento de senso comum por conta estarem mais próximas da intuição de espaço e
da sistematização de tais aspectos da sensibili- de tempo do que estariam as categorias da Fa-
dade na instância da imaginação, a serviço do culdade do Entendimento. Já a idéia de “cau-
que Kant chama “faculdade do entendimento”. sa”, por exemplo, teria gênese mais identifica-
Note-se bem que aqui não estamos querendo da com a especulação das categorias da Facul-
especular sobre um suposto conceito de senso dade do Entendimento do que com as séries
comum em Kant. Longe disto, pretendemos espaço-temporais da imaginação, mesmo que
apenas estabelecer aproximações entre aquilo saibamos que sem as idéias de “antes” e de “de-
que o mencionado filósofo expõe como condi- pois” não há, evidentemente, especulação cau-
ção necessária, embora não suficiente, à apreen- sal possível. Se partirmos da epistemologia de
são do mundo físico, isto é, o espaço e o tempo Popper, de raízes kantianas, o pensamento cien-
como dimensões da existência humana, e a tífico é a passagem deste primeiro plano para o
idéia de uma percepção e entendimento co- segundo, isto é, das noções menos equívocas
muns, necessários às demandas elementares proporcionadas pela síntese espaço-temporal
de nossa existência. Kant cria um sistema filo- rumo à especulação. A ciência estaria, então,
sófico no qual funda a possibilidade da expe- em continuidade com o senso comum, e a di-
riência das coisas e dos estados de coisas no fa- ferença entre eles estaria no “locus” ocupado
pendente do sujeito que a conhece. Hipótese são porque as concepções que temos de ciên-
metafísica, refratária a qualquer tipo de tenta- cia e pesquisa científica, técnica e aplicação de
tiva de refutação: ou se aceita, como pressu- tecnologias são constitutivas de nossa subjeti-
posto, um real que excede o sujeito que o co- vidade. Deve-se problematizar o fato de a pes-
nhece, ou perde o sentido a questão de um ti- quisa em epidemiologia, por exemplo, que en-
po de conhecimento a ser legitimado pelo mé- volve inúmeras dimensões requerendo a parti-
todo científico. A possibilidade do conheci- cipação – para além das ciências básicas e es-
mento objetivo repousaria, então, na aceitação tatística – das ciências humanas e sociais, pa-
a priori de um princípio não justificável empi- reça escapar da fundamentação teórica, da
ricamente. Isto é fundamental para o entendi- busca de novas teorias e modelos, contentan-
mento da idéia de fato empírico que aqui pre- do-se com o exercício cotidiano da resolução
tendemos exprimir. de puzzles da ciência normal (Kuhn, 1978), cir-
Para a ciência contemporânea, “fato” expri- cunscrevendo o debate “metodológico” à pro-
me-se num “enunciado observacional” (Pop- cura de desenhos de estudo mais adequados e
per, 1993) que pode ser deduzido de outro à aplicação de tal ou qual pacote estatístico. A
enunciado, mais geral, universal e categórico, necessidade de uma revisão conceitual neste
elaborado com base na fundamentação teóri- campo parece apresentar-se, para alguns epi-
ca. Para tanto, torna-se necessária a constru- demiologistas, como evidência. Mas há um ir-
ção de um outro tipo de enunciado, interme- refutável argumento utilitário e as decisões ba-
diário, que trata das coordenadas espaço-tem- seadas no resultado de estudos rigorosos e tra-
porais do suposto fato empírico; de uma hipó- balhos de metanálise, tanto em saúde pública,
tese “Todo A é B”, deduz-se o enunciado de es- como no cuidado individual, são desejáveis. O
pecificação: “Se numa dada região k do espaço que pensar de uma ciência que se exerce como
e num certo momento t existir um objeto do ti- um contínuo acúmulo e tratamento estatístico
po A, então este terá a propriedade de tipo B”. de dados?
Trata-se de uma dedução cujo objetivo é o de Popper parece ser o primeiro a construir
introduzir as variáveis de espaço e tempo, o um certo racionalismo no qual o a priori por si
que daria a condição de possibilidade ao expe- só não define o que é conhecimento. Aqui é
rimento. O enunciado observacional ou factual original com relação à Kant. A razão é especu-
seria deduzido do de especificação, apresen- lativa, por isso não pode ser povoada por cate-
tando-se como “existencial”, isto é, do tipo “Há gorias estáveis, fundadoras de um conheci-
aqui um objeto ...”. Para Popper, a pesquisa em- mento seguro. O problema da causalidade, pa-
pírica deve satisfazer a esta exigência; a de que ra citar uma das categorias vitais do entendi-
o enunciado observacional ou básico seja fruto mento, transforma-se radicalmente com Pop-
de uma dedução. Isto dá a garantia de que a per. A causa deixa de ser inferência para e pas-
observação do fato acontece à luz da teoria sa a ser da ordem da conjectura, da hipótese.
universal. Aqui o filósofo austríaco tenta de- Isto se materializa no enunciado universal e
monstrar que a ciência não pode ser o resulta- categórico do tipo “Todo A é B”. Aqui há uma
do de uma coleção de observações particula- reviravolta na forma de a razão produzir seus
res. Assim, o enunciado existencial indepen- fundamentos. O a priori de Popper é simples-
dente do universal não passa de observação mente conjectural. A causa, longe de ser co-
particular, da qual jamais poderá ser deduzida nhecimento seguro, é uma especulação. Mas
uma boa inferência causal. De fato, sucessivas somente assim não fica resolvido o problema
observações do tipo “há aqui um objeto do tipo da fundamentação. Se a razão especula a prio-
A que tem a propriedade B” não levam necessa- ri, em que solo repousará o conhecimento que
riamente à conclusão de que o objeto A é causa vai além da simples opinião? Dito de outro mo-
da propriedade B. Não mais do que a inferên- do, haverá algum sentido em acreditar na pos-
cia de que o canto do galo é causa do amanhe- sibilidade de um conhecimento seguro? Pop-
cer. Nunca é demais voltar à Hume e à máxima per responde que sim, mas a solução por ele
de que a inferência causal excede a empiria. proposta parece-nos escapar da necessidade
Então, como compatibilizar observação e infe- da prova. A diferença entre ciência e pseudo-
rência causal a não ser pelo que Hume chama- ciência não está na capacidade que a primeira
ra “hábito”, mecanismo eficiente do ponto de tem de valer-se de uma razão inequívoca, co-
vista prático, mas que escapa da fundamenta- mo quiseram Descartes e Kant, embora este úl-
ção do racionalismo crítico popperiano. timo de forma não dogmática. Tampouco se
Cabe aqui uma problematização simulta- assenta num puro empirismo em que observa-
neamente ética e epistemológica: se escolhas ções legítimas justificariam a passagem do par-
são delegadas a softwares, entendemos que o ticular para o geral, num salto que vai além do
que permitiria a lógica formal. A diferença en- co, o problema da pertinência evidencia-se.
tre ciência e pseudo-ciência deve ser buscada Que investigações seriam, num dado contexto,
no tipo de diálogo que uma e outra travam com as mais pertinentes? E ainda, quais as táticas
a natureza. O pensamento deve dialogar com o mais adequadas para tais investigações? A
mundo de coisas e estados de coisas, de forma questão da pertinência não é restrita ao campo
a extrair deste um testemunho. Esta é a base científico, mas envolve toda a sociedade. As re-
empírica do pensamento de Popper que pare- lações entre ciência e poder apresentam-se aí
ce, em um certo sentido, ter influenciado Sten- em toda a sua vitalidade.
gers na definição do modo de produção, no No privilegiamento da técnica, ao reduzir o
diálogo experimental, de um “testemunho fi- diálogo experimental a trabalhos de aplicação
dedigno”. A capacidade de fazer os fatos fala- e avaliação tecnológica, estamos nos arriscan-
rem de forma fidedigna, base da ciência mo- do duplamente: em uma dimensão metodoló-
derna, estaria menos em função de critérios gica, a uma volta ao empirismo ingênuo, como
metódicos protocolares, absolutos, do que na se fosse possível a existência de fato científico
“arte” do cientista em eleger um problema, ela- sem teoria, e na dimensão ética quando, ao
borar uma pergunta pertinente e, valendo-se desprezarmos a possibilidade de criticar os
desta, uma hipótese teórica que nortearia o ex- modelos atuais, deixamos de abrir espaço para
perimento (Stengers, 1995). Isabelle Stengers soluções melhores, construindo um tipo de dis-
fala em um “Popper ético”, cujo principal feito curso auto-referente.
estaria na descrição do comportamento do Uma alternativa seria utilizar as técnicas
cientista como eminentemente crítico e atento matemáticas como amplificadores de nossa
às possibilidades de refutação de sua hipótese percepção, uma informação a mais nas pesqui-
pela natureza: convocada, mas jamais cons- sas e decisões clínicas, ao invés de permitir que
trangida a falar (Stengers, 1995). Assim, sendo os bancos de dados falem e prescrevam auto-
a ciência um exercício permanentemente críti- nomamente.
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