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Cinema marginal

A construção do "filme marginal"


Luís Alberto Rocha Melo

1 − Quando, entre 2001 e 2004, a mostra Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras foi apresentada
aos públicos de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, uma geração de jovens cinéfilos e estudantes de
cinema tomou contato pela primeira vez com um conjunto de 61 títulos, entre curtas, médias e longas-
metragens, muitos deles totalmente desconhecidos da maior parte do público que lotou as sessões.
Além da mais do que necessária exibição dos filmes, a mostra resultou na edição − já histórica − de um
catálogo com textos críticos, ensaios, entrevistas e uma bibliografia sobre o tema.

Foi um evento de extrema importância, que teve, entre os seus vários méritos, o de trazer novamente à
tona uma parte significativa da cinematografia brasileira, pouco vista, menos ainda estudada e quase
sempre entendida de forma redutora, isto é, presa aos rótulos que a definiriam. Assim, a partir do
contato com as obras em seu conjunto, a mostra possibilitou uma série de revisões em torno do
assunto, em grande parte motivadas pela diversidade de estilos presente em cada título. Tal diversidade
é justamente o que nos permite perguntar se, enfim, é realmente possível estabelecer com precisão o
que seria um “filme marginal”. Haveriam formas, procedimentos, temas propriamente marginais?

Este texto parte da idéia de que o “filme marginal” em si não existe. Se é possível falar em
marginalidade, a palavra deve ser pensada em termos de conceituação crítica (inicialmente pejorativa) e
de luta política interna travada no campo cinematográfico e cultural. Se os filmes ditos “marginais”
eventualmente dialogam entre si, não o fazem por um princípio programático pré-estabelecido, mas por
afinidades ideológicas, políticas e poéticas. Ainda assim, nem sempre é possível estabelecer conexões
claras entre filmes e diretores muitas vezes unidos por uma leitura aproximativa um tanto forçada.
Cinema (ou filme) “marginal” é, muitas vezes, uma expressão que serve apenas para facilitar a vida de
críticos e pesquisadores interessados em delimitar datas e fatos. Aqui mesmo, neste texto, embora
usando as aspas, não escapo a esta armadilha.

Os próprios realizadores que foram rotulados de “marginais” buscaram outros termos para traduzir ou,
talvez, sintetizar o processo de criação que os tornava próximos:
cinemaindependente, alternativo, experimental ou de invenção, este último criado pelo crítico e cineasta
Jairo Ferreira. Porém, tais expressões continuavam − e continuam − a não dar conta da pluralidade das
propostas.

A expressão “filme marginal” é vista aqui, portanto, como uma construção da crítica, freqüentemente a
posteriori, nascida em uma determinada conjuntura política (final dos anos 1960) marcada pelo
radicalismo das posições.

Nem sempre ela deve ser entendida apenas em chave pejorativa: em 1970, por exemplo, o artigo “Por
um cinema marginal”, de José Wolf, assumia o tom de manifesto ao afirmar que “marginal” era a
“palavra-de-ordem dos jovens cineastas brasileiros”, que, “com sua violenta urgência”, punham em
xeque as “mistificações estéticas de qualquer tipo ou ideologia”.

Marcados pelas carências de ordem filosófica tradicional, armados de invulgar consciência crítica
e de furiosa negação de tudo, esses jovens têm um denominador comum: a impaciência.[1]

Mas a impaciência que fazia negar o já estabelecido era a mesma que impulsionava aqueles jovens a
deglutir vorazmente referências díspares e contrastantes. Esse impulso está claramente expresso em
muitos filmes e em alguns textos do período, bastando para tanto mencionar o célebre manifesto de
Rogério Sganzerla a propósito de O bandido da luz vermelha (1968): “Fiz um filme-soma; um far-
west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica.”[2]
Relacionar o “cinema marginal” ao antropofagismo de 1922 e ao tropicalismo, opor “cinema novo” ao
“cinema marginal”, ou então buscar linhas de continuidade entre ambos, são construções discursivas
consistentes que sem dúvida estabeleceram cânones na historiografia vigente. Porém, talvez fosse o
caso de refazer o percurso e perguntar se, pelo menos a partir da mostra Cinema Marginal brasileiro e
suas fronteiras, ou seja, de 2001 para cá, surgiram no horizonte novas percepções em torno do assunto,
novas abordagens, um outro olhar sobre o tema, sobre os filmes, sobre a poética desses realizadores.

2 – Certamente, é possível identificar no trabalho de alguns críticos, cineastas ou pesquisadores


cinematográficos da geração mais recente – a que vem se desenvolvendo com maior continuidade e
visibilidade a partir do final da década de 1990 – a tentativa de estabelecer, não apenas em relação ao
cinema dito “marginal”, mas à cinematografia brasileira como um todo, novas conexões e
interpretações. Trata-se de um trabalho disperso, na verdade muitas vezes desconectado, nem sempre
claro ou conseqüente, mas que traduz sensibilidades afins.

Quando falo em “geração”, porém, não quero dizer propriamente um grupo coeso e homogêneo,
pertencente à mesma faixa etária; refiro-me à coexistência de textos, filmes, mostras e informações
partilhados por indivíduos e grupos diferentes. Tendo como denominador comum a atração pelas zonas
de sombra de um cinema brasileiro cuja face visível quase sempre é oficialesca, essa geração se vale
dos novos meios de difusão e de reprodução de filmes e textos para escapulir ao óbvio. Ligados ou não
aos estudos acadêmicos, acabam por contribuir para uma necessária revisão historiográfica. Nesse
processo, a idéia de cinema “marginal” também é atingida.

Seria exaustivo citar aqui as diversas contribuições nesse sentido, e nem é esse o nosso objetivo.
Contudo, vale a pena destacar pelo menos alguns gestos significativos que, ao meu ver, iluminaram as
discussões sobre o cinema brasileiro, com fortes ressonâncias no modo como essa nova geração vem se
relacionando com o legado dos filmes realizados na virada dos anos 1960-70 que ficaram conhecidos
como “marginais”.

Com a internet possibilitando a existência de diversas revistas eletrônicas sobre cinema e


incontáveis blogs, verifica-se a atuação significativa de alguns núcleos preocupados em disponibilizar um
volume maior de dados e de reflexões diferenciadas sobre o cinema feito no país
(Contracampo, Paisà, Cinética, Cinequanon etc.). O “cinema marginal” é forte referência para essa nova
crítica, e não por acaso a Contracampo vai promover retrospectivas comoJúlio Bressane: cinema
inocente (2002-3) e Rogério Sganzerla: cinema do caos (2005). Entre as revistas eletrônicas, é
importante destacar a Zingu, especialmente por suas reportagens e entrevistas com diretores, técnicos e
críticos da Boca do Lixo de São Paulo, figuras inteiramente ausentes na “mídia especializada”. No
mercado das publicações editoriais, há que se ressaltar a formidável contribuição de Alessandro Gamo
como organizador de Jairo Ferreira e convidados: crítica de invenção: os anos do São Paulo
Shimbum (São Paulo: Imprensa Oficial, 2006), e o trabalho da Azougue Editorial, lançando em 2001 Por
um cinema sem limite, coletânea de ensaios de Rogério Sganzerla, e, em 2003, Cinema: sonho e
lucidez, reunião de textos, poemas, desenhos e entrevistas de Fernando Coni Campos. O recente
lançamento nos cinemas do filme de longa-metragemConceição – Autor bom é autor morto (André
Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro, 2007) renova o
diálogo entre o cinema brasileiro dos anos 1960-70 e o cinema universitário da virada do século XXI, em
que o humor, a invenção e o filme de cinema são naturalmente incorporados. Correndo por fora desde o
final dos anos 1980, o pesquisador e programador carioca Remier Lion finalmente tem seu trabalho
conceitual reconhecido, ao emplacar com sucesso, em São Paulo, a mostra Cinema brasileiro: a
vergonha de uma nação, na Cinemateca Brasileira, em 2004.

Todas essas atividades coletivas e individuais resultaram em importantes contribuições na construção de


novos discursos sobre o cinema brasileiro em geral e sobre o “cinema marginal” em particular. Contudo,
destacaria o trabalho de Remier Lion como sendo aquele que mais radicalmente soube deslocar o foco
das discussões em torno do cinema brasileiro, com conseqüências surpreendentes em termos de uma
ressignificação da expressão “marginal”.

A curadoria de Remier abrange de Massacre no supermercado (J. B. Tanko, 1968) a Bonecas


diabólicas (Flávio Ribeiro Nogueira, 1975); de Madrugada de sangue (Maurício de Barros, 1957)
a Psicose do Laurindo (Nilo Machado, 1969); de Cais do vício (Francisco José Ferreira, 1953) a Taradas
no cio (Roberto Mauro, 1983); de O quinto poder (Alberto Pieralisi, 1962) aRogo a Deus e mando
bala (Oswaldo de Oliveira, 1972). Ou seja, filmes policiais, eróticos, de espionagem ou faroeste. Remier
não ficou no “marginal”: foi às fontes que, em 1968, Rogério Sganzerla já indicava como sendo
determinantes na fabricação do seu “filme-soma”, penetrando nos meandros de um cinema – este sim
− marginalizado quando não totalmente ignorado pela historiografia clássica. De acordo com Remier,

O bandido da luz vermelha nada mais é do que um apanhado geral desse cinema: ali você tem
o Adolpho Chadler, o strip-tease, o Quinto poder, o filme policial, e o único gênero que não está
expressamente no filme, que seria o bang-bang, aparece na frase que o Sganzerla usa pra
definir o filme, que é um “faroeste do Terceiro Mundo”.[3]

Aqui, portanto, apontam-se “antecedentes” do cinema “marginal”, uma tradição negada e quase nunca
referenciada em textos críticos ou analíticos. Remier promove esse importante deslocamento do
“marginal” ao “maldito”. Ocorre que, na historiografia vigente, os “marginais” não são propriamente
“malditos”, pelo menos não tanto quanto os títulos exibidos na mostra Cinema brasileiro – a vergonha
de uma nação e nas sessões cariocas promovidas por Remier antes de sua mudança para São Paulo,
sessões que tinham o revelador título de Malditos filmes brasileiros! (o que é um pouco diferente de
dizer “filmes brasileiros malditos”...).

E assim, o trabalho de Remier vai encontrar, de forma precisa, conexões com algumas das reflexões
constantes no catálogo Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras, já comentado no início deste texto.
No artigo “Marginal, adeus”, Carlos Reichenbach relembra:

Há um filme emblemático que falta em todas as retrospectivas do Udigrúdi. Trata-se


de Superbeldades (1962), de Konstantin Tkaczenko. Uma sucessão de dozestripteases filmados
com a câmera Mitchell e magazines de trezentos metros de negativo; doze planos-seqüência de
oito minutos cada, que fariam inveja a Jean-Marie Straub. O “clássico” é homenageado em O
bandido da luz vermelha e no plano final de João Callegaro em As libertinas. Foi esse filme que
nos fez (eu e Callegaro) cair de boca na Boca e mandar a nossa pretensa erudição acadêmica
[...] às favas.[4]

No ensaio “Cinema marginal?”, Jean-Claude Bernardet investiga as relações entre os cinemas “novo” e
“marginal”, porém, logo no princípio do texto, faz uma advertência fundamental:

Há três, quatro décadas que nos acostumamos a pensar o cinema dos anos 60-70 em termos
de Cinema Novo e Cinema Marginal – no caso do cinema culto, porque no comercial, o ciclo do
cangaço etc., que era o que o público via, não pensamos muito.[5]

Tal como a mostra de Remier, o testemunho de Reichenbach e a distinção apenas tangenciada por
Bernardet – não mais aquela que opõe cinema novo e cinema marginal, mas a que delimita um
cinema culto e um cinema comercial − dizem muito sobre a necessidade de um novo enfoque em torno
de heranças, tradições e dicotomias.

3 – É possível, portanto, analisar a estrutura formal dos filmes ditos “marginais” levando em conta as
suas relações internas e externas tanto com o cinema culto quanto com o cinemacomercial, para
ficarmos na terminologia de Bernardet. Isso em parte já está sendo feito há algum tempo: as relações
entre o cinema “marginal” e as chanchadas dos anos 1950, via chave paródica, é por exemplo um tema
estudado por João Luiz Vieira. Um outro eixo de análise privilegia a influência da indústria cultural de
massas sobre o imaginário dos realizadores daquele período, o que inclusive aproximaria “marginais” e
tropicalistas. No entanto, chanchada e tropicalismo são dados da cultura brasileira já referenciados como
fundamentais para a compreensão de nossa história recente. A investigação em torno dos filmes
“negados” pela historiografia clássica (do strip-tease ao kung-fu caboclo) abre caminhos bem diversos e
ainda não percorridos, mas igualmente necessários e reveladores.

O cinema culto encontra no diálogo “cinema novo/cinema marginal” a sua melhor tradução. Podemos
também pensar na tradição das vanguardas européias e do modernismo brasileiro como antecedentes
importantes para a geração 1968. Quanto ao recorte comercial, as coisas ficam um pouco mais
complexas, e um dos aspectos que me parecem mais problemáticos é justamente o que diz respeito às
idéias de público e de filme popular, implícitas na expressão comercial.

Comecemos pelo público. Como pensar a questão do público se, no caso do filme “marginal”,
a marginalidade muitas vezes refere-se também ao fato de que determinadas obras só alcançavam um
número muito restrito de espectadores, isso quando não ficavam inteiramente proibidas de circular?

É claro que não se deve falar aqui em termos generalizantes: nem todos os filmes “marginais” tiveram
trajetórias subterrâneas. Se Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970) e República
da traição (Carlos Alberto Ebert, 1970), por exemplo, foram interditados pela censura e privados do
contato com o público, o mesmo não aconteceu com O bandido da luz vermelha e A mulher de
todos (Rogério Sganzerla, 1969), filmes que deram retorno de bilheteria. Enquanto a maior parte das
produções paulistas ligadas à Boca do Lixo (de realizadores “marginais” como Carlos Reichenbach, João
Callegaro e Antônio Lima) procuravam, já em 1969-70, ressaltar claramente suas intenções comerciais,
os filmes cariocas mostravam-se em geral hostis a essas estratégias, como atestam os seis longas-
metragens realizados naquele mesmo período pela Belair de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla.

Assim, para os “marginais” o “público” poderia ou não ter importância, poderia ou não ser levado em
conta, dependendo das condições e do esquema de produção por meio dos quais cada filme era
viabilizado.

Uma importante distinção pode ser feita entre os jovens cineastas surgidos por volta de 1968 e os
cinemanovistas que os antecederam: para os primeiros, “público” não mais se confundia com “povo”.
Esse é um dado significativo na medida em que altera substancialmente a idéia de interferência e
de engajamento proposta pelo cinema novo. Um filme é um filme; o “público” não se sabe bem o que é.
Pode ser um, podem ser muitos. Antes de ser peça na engrenagem de um programa maior (de uma
cinematografia), o filme deveria ser um poema, a ser aberto por quem puder ou souber lê-lo. Portanto,
não é que para os “marginais” o “público” não existia: simplesmente a relação obra-espectador era
pensada em outros termos, inteiramente atomizados, fragmentados, quase individuais.

Em relação ao “público”, portanto, a postura da geração dita “marginal” vai oscilar entre o apelo
comercial escancarado (típico dos filmes ligados à Boca do Lixo) e um aristocratismo no melhor estilo
Chaplin Club (espírito próximo à trajetória da Belair e sobretudo de Júlio Bressane). Em ambos os casos,
porém, temos uma idéia de “público” inteiramente diferente daquela formulada pelo cinema novo: não
mais um obstáculo a transpor, mas uma hipótese, nascida do pragmatismo cínico ou do risco
individualista.

De qualquer maneira, os filmes falam: e, a julgar pelas mostras mais recentes, um público bastante
amplo de jovens (em sua maioria universitários) não só tem o maior interesse em ver e ouvi-los como
compreendem e sentem muito bem o que é dito. Isso não significa reduzir a relação obra-espectador ao
consumo imediato, mas simplesmente constatar que a sensibilidade contemporânea está muito mais
próxima dos filmes “marginais” do que de muitos exemplares do cinema novo. Eventos periódicos como
o Cachaça Cinema Clube e a Mostra do Filme Livre, os curta-metragens de diretores como Nilsão
Primitivo e André Francioli, a própria existência de um longa como Conceição – Autor bom é autor
morto ou do documentário sobre a Belair que está sendo realizado por Bruno Safadi, atestam a “sintonia
intergalaxial” que para Jairo Ferreira definiria o cinema de invenção.

4 – Além da questão do público, o segundo sentido implícito na expressão cinema comercialé aquele
ligado ao filme popular. Aqui penetramos no aspecto propriamente formal da discussão. Como articular o
“popular” ao cinema “marginal”?

Uma resposta possível a esse questionamento nos leva a uma constatação paradoxal, aliás já presente
no cinema novo: é pela via culta que o popular chega aos filmes “marginais”. O diferencial nasce das
referências trabalhadas pela geração de 1968, em grande parte bastante diversas das que formaram os
cinemanovistas.
Do ponto de vista da construção fílmica, é importante entender esse movimento rumo ao “popular”
dentro de uma perspectiva não-linear, não-programática. “Popular”, aqui, está totalmente ligado a um
sentido de liberdade formal, no qual deve ser levado em conta a contradição, os contrastes violentos, a
intuição, o visionarismo, a mágica, a indefinição, o anti-intelectualismo. É necessário entender o culto e
o popular dentro de um mesmo fluxo libertário, um conduzindo ao outro, um ocultando deliberadamente
o outro: Baudelaire filmado em Amplavisão por Primo Carbonari.

É fácil identificar, aí, o legado das vanguardas cinematográficas, especialmente as ligadas aos cinemas
francês e soviético dos anos 1920. Na raiz da idéia desse cinema popular proposto pelos chamados
“marginais”, encontra-se uma espécie de impressionismo de atrações, na medida em que se conjuga a
musicalidade da moldura fugidia da câmera (fotografia) ao conflito das imagens e sons em constante
criação de sentidos (montagem). Não por acaso, os estetas franceses e os revolucionários soviéticos
tinham como eixo inspirador a idéia de que o cinema era ou pelo menos deveria se transformar em
uma nova língua, um novo estágio de entendimento artístico, cultural e político. O cinema era o futuro
porque não dependia da tradição: anti-literário, deseducado e popular, exatamente por isso prestava-se
à revolução. O corre-corre dos policiais e o banho de beldades redimiam séculos de racionalismo
burguês.

O contexto de 1968, porém, era bem diverso do de 1920. O futuro já havia chegado e ele não era dos
mais luminosos. Algo nesse processo havia se perdido ou pelo menos encontrava-se oculto. A busca pela
liberdade através do cinema deveria, portanto, partir da descontinuidade e do caos, e é nesse sentido
que o cinema “marginal” pode ser visto como uma reação ao cinema “moderno”, cujo representante
maior no Brasil era o clássico cinema novo. Por isso, não se trata de entender o filme “marginal” como
uma radicalização da “estética da fome”, como freqüentemente se proclama, e sim como uma recusa
frontal a esse programa. Buscaram-se outros caminhos, outras trajetórias, outras percepções: Trevisan
não filmou um cangaceiro grávido por acreditar que dali nasceria um novo Corisco. E o que tem a ver
Andrea Tonacci com Glauber Rocha?

Assim, se para o cinema novo tratava-se de enxergar no “popular” a vanguarda de um processo


revolucionário, para os “marginais” era necessário voltar atrás, muito atrás, para bem antes dessa idéia.
Para os “marginais”, a vanguarda não estava à frente, justamente porque havia sido deixada para trás.
Nesse sentido, era necessário uma reação a esse “avanço” que se tornava cada vez mais uma
instrumentalização da idéia de “popular” (ainda mais se pensarmos em sua conexão com o “nacional”).
Liberto de um programa didático, o cinema deveria mergulhar no caos, na dissolução da linguagem
convencional, na concretude mágica, para talvez aí reencontrar um novo ponto de partida. Essa espécie
de nostalgia de um passado sagrado aponta para a convergência entre as idéias de um
cinema popular eculto. Era necessário voltar à “retaguarda da vanguarda” (Jairo Ferreira), ao “real”
dentro do “arqui-falso” (Sganzerla), a um “olhar virgem” (Tonacci). Em uma palavra: ao bárbaro.[6]

É importante esclarecer que essa “volta” ao passado não significa retrocesso formal ou conservadorismo.
Para os “marginais”, o cinema deveria também significar a busca de uma “pré-linguagem” porque assim
seria possível mergulhar no presente de forma mais desprovida de pré-conceitos. Essa postura influía na
própria concepção fílmica das obras, que em muitos casos retomava um tipo de construção próxima ao
do cinema dos primórdios, anterior à predominância da decupagem clássico-narrativa.

Em termos de montagem, muitos dos filmes considerados “marginais” se estruturam comoquadros, às


vezes quase independentes (cf. Sem essa, Aranha, Bang bang, Família do barulho, Perdidos e
malditos, A sagrada família, entre outros). Tais “quadros” possibilitam o uso do plano-seqüência e a
contemplação do processo criativo dos atores. Inserem-se, portanto, na perspectiva dos filmes que
estão preocupados muito mais em “mostrar” do que em “narrar”, para retormarmos a divisão com a
qual Fernão Ramos trabalha em seu livro[7] a propósito da estética do cinema “marginal”, divisão que,
não por acaso, nos remete aos estudos eguindo a tendha em seu livro, e com a qual es que "dos
historiadores que, a partir de meados dos anos 1970, debruçaram-se sobre o chamado primeiro cinema.
[8]

A admiração de um Júlio Bressane pelo cinema dos primórdios atesta essa aproximação:

Família do Barulho tem algo de um lance de olhos no “cinema selvagem” a vasta tradição dos
esquecidos cinegrafistas-mascates que povoaram sertões e interiores no mundo todo: de
Edison (dançarina do ventre; lavando o bebê) e Lumiére (viagem a china méxico e japão) à A.
Jacob (lampião) e o Major J. Reis (rondon) cinema nosso esquecido e presente rastro que
desaparece na e pela bruma.[9]

Não é também por acaso que, na trajetória de um realizador como Andrea Tonacci, a busca por um
olhar “virgem” seja tão importante, criando um percurso que vai da geografia urbana filtrada pela
geografia fílmica (Bang bang) até o interior brasileiro e o convívio com os índios (Conversas no
Maranhão, Os Araras, Serras da Desordem).

Por um lado, portanto, o aspecto popular dos filmes ditos “marginais” passa pelo retorno ao bárbaro,
procedimento que os torna em muitos aspectos semelhantes ao cinema de Pier Paolo Pasolini, às teorias
do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, ao cinema de atrações dos primeiros tempos. Tratam-se de
referências, por assim dizer, “cultas”.

Mas há também o namoro com o cinema clássico-narrativo da melhor tradição hollywoodiana, evidente
em diretores como Rogério Sganzerla, João Callegaro e Carlos Reichenbach. Aqui, trata-se de
transportar o experimentalismo contido na própria “evolução da linguagem cinematográfica” (Bazin),
para o plano das referências metalingüísticas ou das citações explícitas. A denominação “filme de
cinema”, que aparece nos letreiros de apresentação de O bandido da luz vermelha e que foi reiterada
em diversos textos de Jairo Ferreira no São Paulo Shimbum, traduz esse intuito de falar a partir e
através do cinema. As citações passam por Orson Welles e Jean-Luc Godard, Howard Hawks e Samuel
Fuller.

Tome-se como exemplo O pornógrafo, de João Callegaro. O namoro, ali, é com o cinema norte-
americano de gênero, sobretudo os filmes de gangsters, fazendo parte do mosaico de citações as
próprias imagens de arquivo dos filmes hollywoodianos. Callegaro é, como afirma Jairo Ferreira (co-
roteirista de O pornógrafo), um “compilador de compilações”.[10] E o filme se apresenta, do princípio ao
fim, como uma aplicação bem-humorada dos elementos típicos do cinema clássico-narrativo, o que
atesta que o cinema “marginal” − se quisermos insistir em defini-lo − não pode ser compartimentado
em uma só estrutura formal. Assim como determinadas obras escolhem “mostrar” antes de “narrar”,
outras levam em consideração primordialmente o ato de contar uma história (O bandido da luz
vermelha, O pornógrafo,Orgia, ou o homem que deu cria etc.).

De qualquer modo, tanto o “filme bárbaro” quanto o “filme de cinema” têm como intuito o trabalho com
as referências populares, um pela via culta, mais próxima das vanguardas, outro pela via comercial,
mais afinada ao cinema como espetáculo de massas.

É dentro desse entendimento que o jovem crítico Rogério Sganzerla vai se dedicar, desde meados dos
anos 1960, ao estudo do “cinema moderno”, em vários ensaios nos quais analisa as características que
definiriam o aparecimento de um novo olhar essencialmente diverso do cinema pré-1945. Constróem tal
olhar a incerteza, a distância crítica entre a câmera e o personagem, a substituição do ideal pelo
possível, a epiderme das ações, a preferência pelo físico em detrimento do psicológico. Trata-se de um
cinema que efetua a passagem do absoluto para o relativo. Isso requer um novo entendimento da mise-
en-scènee do trabalho de interpretação dos atores:

Uma parede imprevista, um gesto não ensaiado, um reflexo solto, são instantes espontâneos e
fugazes que, registrados pela objetiva, tornam-se preciosos e vitais: são instantes de liberdade.
É o mesmo tratamento dado aos seres e objetos em certos cine-jornais que juntamente com a
televisão e o documentário, influenciaram tremendamente o cinema moderno. Estamos em
pleno domínio do cinema-ensaio, gênero relativista por essência.[11]

Novamente, a referência ao cinejornal e ao documentário nos remete ao cinema dos primeiros tempos,
no sentido em que se busca a concretude nas imagens, dentro de uma operação de retorno ao real, em
termos muito semelhantes aos que Pasolini trabalha em sua teorização do cinema de poesia:
[...] enquanto todas as outras linguagens se exprimem através de sistemas de signos
“simbólicos”, os signos do cinematógrafo não o são; [...] enquanto todos os outros modos de
comunicação exprimem a realidade através de “símbolos”, o cinema exprime a realidade
através da realidade.[12]

Seguindo as vanguardas, o filme “marginal” busca o passado. Voltando ao passado, através de um modo
peculiar de entender as referências populares, persegue novas possibilidades de comunicação com o
espectador. Mas, nessa operação, o que se constata é que um elo (cinema/público) se perdeu e ele
dificilmente será reconstituído. Nesse sentido, o cinema realizado pela geração dita “marginal” pode ser
visto como um grande ensaio poético (e, por que não?, histórico) sobre a fratura entre o cinema culto e
o cinema comercial ou popular.

5 – Diante do conjunto de filmes reunidos sob o rótulo de “cinema marginal”, torna-se realmente difícil
apontar uma pretensa unidade de estilo. Mesmo na carreira dos realizadores não há linhas de
continuidade precisas, a não ser que se queira enxergá-las e construí-las, dentro dos tradicionais
métodos de crítica. Os filmes “marginais” trabalham determinadas questões e certas estruturas formais
que mantêm relações de semelhança (claras ou não) entre elas, mas que não necessariamente
fundamentam um estilo específico.

A insistência em enxergar nos filmes daquela geração uma série de traços comuns definidores parece
estar ligada a uma necessidade de legitimação frente à herança do “cinema moderno”. Se ela cumpriu
um papel fundamental na construção do discurso histórico cinematográfico, conquistando e ampliando o
espaço de análise para o cinema “marginal”, por outro teve a desvantagem de aplicar, no âmbito restrito
da sua história particular, o mesmo procedimento de eleição e exclusão de nomes e títulos para um
específico “panteão”, típico das histórias tradicionais do cinema mundial. De fato, o “cinema marginal”
tem seus clássicos indiscutíveis, seus principais cineastas, suas obras de transição, seus filmes
menores e, claro, seus realizadores e obras sobre os quais pouco ou nada foi dito. Talvez não fosse
assim, se quiséssemos enxergar esses filmes fora das regras excessivamente preocupadas em criar
“ciclos” ou “movimentos”. Outras conexões poderiam ser estabelecidas, novas abordagens poderiam ser
propostas em torno de filmes talvez não tão festejados ou mesmo conhecidos.

Penso que um filme como Os monstros de Babaloo, filmado por Elyseu Visconti em 1970 e lançado
somente em 1975, poderia servir como um bom exemplo. Quando exibido na mostraCinema Marginal
brasileiro e suas fronteiras, a comunicação estabelecida entre o filme e o público foi imediata. Espécie de
chanchada freak, Os monstros de Babaloo arrancou gargalhadas de uma platéia que não parecia estar
preocupada em ver ali o “clássico” do filme “marginal”. No entanto, o filme contém inúmeros elementos
de todo um repertório cinematográfico característico daquele período.

A herança do cinema novo se faz presente nos exagerados, irregulares e constantes movimentos de
câmera na mão, bem como na localização da história em uma ilha imaginária (Babaloo) dominada pela
repressão; as cenas, apesar de obedecerem à estrutura narrativa clássica, com princípio, meio e fim,
desenvolvem-se na atomização dos quadros; os atores-tipos evoluem através do improviso,
denunciando o processo em cada gesto ou olhada para a objetiva da câmera; o som e a imagem buscam
a criação de novos sentidos a partir da sua dissociação e da ausência de sincronismo; o melodrama
barato, a comédia musical, o filmetrash se misturam à sofisticada trilha sonora de Edson Machado e às
citações de Cidadão Kane. Os monstros de Babaloo sobretudo se apropria de determinados esquemas
típicos do gênero de maior sucesso dentro do cinema popular brasileiro daquele período, isto é, a
pornochanchada ou a comédia erótica que tinha como palcos principais as salas, os quartos e as
cozinhas de uma classe média assentada no milagre.

Querer enxergar o filme de Elyseu Visconti segundo um certo conjunto de padrões que o classificaria
como “marginal”, de certa forma impede a fruição desses diversos pontos de contato com um cinema de
extração popular que o filme procura desenvolver, ainda que buscando também o diálogo com a
vertente mais radical da contemporânea Belair. Considerar a coexistência, em um filme como Os
monstros de Babaloo, das influências de um cinema culto e de um cinema comercial e o conflito advindo
dessas duas vertentes em geral dissociadas, poderia nos levar inclusive a relativizar certas conclusões a
seu respeito. Possivelmente, talvez passássemos a não atribuir maior valor ao fato de que ele é
considerado um filme “marginal”, até porque não saberíamos dizer, em termos estritamente fílmicos, no
que de fato consiste a sua “marginalidade”. E isso me parece um avanço.

BIBLIOGRAFIA

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984.

BORDWELL, David & THOMPSON, Kristin. Film history. An introduction. New York: McGraw-Hill, 2003.

CATÁLOGO Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras. São Paulo: Heco Produções/Centro Cultural
Banco do Brasil, 2004.

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[1] WOLF, José. “Por um cinema marginal”. Revista de Cultura Vozes (5). Ano 6. Vol LXIV. Petrópolis:
Editora Vozes Ltda., jun/jul 1970, p. 358.

[2] SGANZERLA, Rogério. “Cinema fora-da-lei”. Disponível em


http://www.contracampo.com.br/27/cinemaforadalei.htm.

[3] LION, Remier. “O negócio foi assim”. Entrevista com Remier Lion. Disponível em
http://www.contracampo.com.br/67/entrevistaremier.htm.

[4] REICHENBACH, Carlos. “Marginal, adeus”. In: Catálogo Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras.
São Paulo: Heco Produções/Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 126.

[5] BERNARDET, Jean-Claude. “Cinema marginal?”. In: Op. cit., p. 12.

[6] Agradeço ao pesquisador Hernani Heffner por ter me chamado a atenção para o apreço que os
cineastas “marginais” tinham por essa palavra.

[7] RAMOS, Fernão. Cinema marginal (1968/1973). A representação em seu limite. São Paulo:
Brasiliense, 1987, especialmente pp. 137-142.

[8] Cf. COSTA, Flávia Cesarino. “Primeiro cinema”. In: MASCARELLO, Fernando (org.).História do cinema
mundial. Campinas: Papirus, 2007, especialmente pp. 22-25.

[9] BRESSANE, Julio. “Cinema do barulho: família inocente”. In: Catálogo Retrospectiva Julio Bressane:
cinema inocente. Rio de Janeiro: Contracampo/Centro Cultural Banco do Brasil, 2002, pp. 64-65.

[10] FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000, p. 108.

[11] SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 19.

[12] PASOLINI, Pier Paolo. As últimas palavras do herege. Entrevistas com Jean Duflont. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 109.

In: BRAGANÇA, Gustavo; FREIRE, Rafael de Luna; BOUILLET, Rodrigo. A invenção do cinema
marginal. Rio de Janeiro: Tela Brasili, 2007.

Texto publicado no catálogo do curso realizado pelo Tela Brasilis na Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro entre 20 de outubro e 8 de dezembro de 2007, como acompanhamento da
aula ministrada pelo prof. Luís Alberto Rocha Melo em 8 de dezembro, quando foi exibido o filme Os
monstros de Babaloo (dir. Elyseu Visconti, 1970)

Fonte

Curso A invenção do cinema marginal

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