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O Galo, o Pelicano e a Águia – Simbólicos ou reais – Estes

animais que nos interrogam sobre nossa condição humana


Tradução José Filardo

Publicado 17 de maio de 2017 – por John Moses Braitberg

Do galo do gabinete de reflexão à águia de uma ou duas cabeças,


passando pelo pequeno povo do Livro da selva de Kipling, os animais,
embora raros, estão simbolicamente presentes na Maçonaria. E
assim eles nos lembram que a observação da natureza é instrutiva
sobre a nossa condição humana. Tomemos cuidado, entretanto, de
não humanizar demais a natureza, sob risco de distorcer o
humanismo.
Devemos admitir que, entre os maçons, os animais estão mais presentes na mesa
do banquete, que em seu simbolismo. Se existe, o bestiário maçônico inclui
apenas animais de penas. Animais aéreos, relacionados, portanto, com a
respiração, o espírito, o céu. Embora o primeiro deles, o galo, mesmo se ele tem
asas para voar, tem as duas pernas bem colocadas sobre a terra e se manifesta
principalmente por seu canto matinal, chamando ao despertar, à iluminação, ao
renascimento. Razão pela qual o galo está presente no gabinete de reflexão, por
vezes associada a esta frase: “Vigilância e perseverança. Ele vela na escuridão e
anuncia a luz”.

O galo anuncia a chegada da luz e, portanto, da iniciação. Seu significado


simbólico é tão antigo quanto universalmente distribuído. Anteriormente, os
companheiros construtores utilizavam o galo para exorcizar suas construções.
Sua cor era importante porque correspondia a um dos três cantos que o
galináceo canta ao alvorecer. O primeiro galo é preto, porque o seu canto
acontece durante a noite; o segundo é vermelho como a cor da aurora e
simboliza a luta entre a escuridão e a luz; o terceiro é branco, porque a luz
conquistou a escuridão. Cabia ao mais jovem aprendiz ir colocar o frango, o
catavento em forma de galo, no topo da torre da igreja.

Na Índia, Skanda, o deus da guerra é acompanhado por um galo, símbolo, ao


mesmo tempo, de viril e solar. No Japão, é o canto do galo que faz sair de sua
gruta celestial a deusa do sol Amaterasu. Na França, fabricamos seu nome a
partir da raiz celta Kog, que designa a cor vermelha, associada ao amanhecer e
ao sol. Mas em latim, o galo se diz Gallus, daí o trocadilho com Galus, os
gauleses, a origem do galo gaulês das moedas, dos cataventos e sem dúvida dos
campanários. Embora, colocado no alto, o volátil evoca, em vez, seu simbolismo
bíblico. No Antigo Testamento, primeiro, onde ele é coberto de louvores, ao lado
de seu parceiro emplumado, o Ibis:

“Quem fez do Ibis o pássaro cheio de sabedoria?

Quem deu ao galo a arte do discernimento? “(Jó 38: 36)

Na tradição cristã, o galo personifica Cristo anunciando o novo dia da fé. Há


também o famoso episódio da negação de São Pedro, a quem Jesus havia predito
que ele o iria renegar três vezes antes que o galo cantasse duas vezes.

O galo, finalmente, também está associado à hagiografia de muitos santos: São


Vito, o curador por suas qualidades viris, Santa Odila, milagrosamente curada de
uma cegueira e que tinha recuperado a luz do dia, como o galo. São Tiago Maior,
protetor dos caminhos de Compostela, que, de acordo com uma lenda espanhola
trazia em seus braços um infeliz inocente enforcado por engano até que um galo
assado comece a cantar para provar a inocência do pobre condenado…
Há também o galo no Islã, onde é associado ao Muezzin que anuncia a oração ao
amanhecer. Mas, diz o Corão que, se o galo canta à noite, é que ele viu um anjo.
Por outro lado, se um burro zurrar, nas mesmas circunstâncias, é um sinal de
que ele viu o diabo. Enfim, o galo branco é evocado por vários Hadîth (tradição
oral). De acordo com um deles, Adão, ao sair do Paraíso, foi acompanhado por
um galo branco de crista dividida e tão grande quanto um boi, que lhe mostrava
as horas de oração.

As dores do pelicano

Se assim, o galo é na ordem da iniciação o primeiro animal que o maçom


encontra, será preciso que ele progrida muito para encontrar um segundo
símbolo animal, o pelicano.

Quando o pelicano, cansados de uma longa viagem,

Na névoa da noite retorna às suas canas,

Seus pequenos esfaimados correm sobre a margem

Vendo-o ao longe cair sobre as águas.

Já, acreditando capturar e compartilhar sua presa,

Eles correm para o pai com gritos de alegria

Sacudindo seus bicos sobre seus bócios hediondos.

Ele, lentamente ganhando uma alta rocha,

Sua asa pendente abrigando sua ninhada,

Melancólico pescador, ele observa os céus.

O sangue flui em longas ondas do peito aberto;

Em vão, ele procurou na profundidade do mar;

O oceano estava vazio e a praia deserta;

Para todo alimento que ele traz seu coração.

Sombrio e silencioso, estendido sobre a pedra


Compartilhando com seus filhos as entranhas de pai,

Em seu amor sublime ele embala sua dor,

E, olhando correr seu peito ensanguentado,

Sobre seu festim de morte, ele cambaleia e cai,

bêbado de prazer, de ternura e de horror.

Com sua verve romântica, Alfred de Musset detalha em um longo poema o


destino glorioso e trágico do pelicano, pássaro igualmente mítico e simbólico que
a Fênix, mas, neste caso, muito real.

Este pássaro, raramente encontrada no sul da França habita principalmente os


pântanos, canaviais e paisagens lacustres do Sudeste da Europa, da África, da
Ásia e da América. É um grande pássaro que pode exceder os dez quilos, vive em
bandos e se alimenta de peixe. O interesse nele remonta pelo menos ao antigo
Egito. Presente na decoração dos templos, parece ter sido assemelhado, se não
confundido com o cisne.

É junto aos padres da Igreja que se precisa buscar o simbolismo associado ao


Pelicano. Isto se baseia no fato de que a ave acumula peixes em seu papo, de
modo que o sangue escapa de seu bico quando ele volta ao ninho, onde abre o
bico para que seus filhotes dali retirem seu alimento. Uma observação superficial
dessa cena podia levar a acreditar que o pelicano levava a abnegação paterna ao
ponto de alimentar seus filhotes com a sua própria carne. Uma lenda persistente,
retomada por Leonardo da Vinci dizia também que um pelicano, vendo seus
filhotes mortos por uma serpente, lhes devolvia a vida pulverizando seu sangue
sobre eles. Outra versão foi dada pelo “Physiologos”, bestiário cristão escrito no
Egito no século II que influenciou toda a Idade Média. Nesta versão, os pequenos
pelicanos, no nascimento, batiam em seu pai. Como retaliação, eles eram mortos
e depois ressuscitavam três dias depois, graças às gotas de sangue que sua mãe
pingava sobre eles. Naturalmente, associa-se esse mito ao sacrifício de Cristo
para salvar o mundo. Assim como seu sangue, associado à cruz e à Eucaristia
promete a ressurreição, o pelicano tornou-se um símbolo da ressurreição.
Eusébio de Cesarea e Santo Agostinho o mencionam no início do século IV. O
pássaro, a partir de então ligado ao simbolismo cristão, apareceu em seguida em
muitos livros de iluminuras, nos capiteis de igrejas e mais tarde nos brasões. Ele
á tão comum na heráldica que adorna o cetro de Ottokar que Tintin devolve ao
rei da Sildavia, Muskar XII antes de ser recebidos na ordem do pelicano de Ouro,
a mais alta distinção desse país imaginário. Bem real este, o reino da dinastia
escocesa dos Stuarts havia adotado o Pelicano em seus brasões que incluem um
pelicano de prata alimentando seus filhotes, acompanhado pela frase: “Virescit
vulnere virtudes” “A coragem se fortalece com um ferimento”. Talvez esta seja a
origem da presença do pelicano no grau 18 dos ritos chamados “escoceses”. Pelo
menos se seguirmos as premissas segundo as quais a Maçonaria foi trazida para
a França pelos regimentos exilados leais ao Rei da Escócia, James Stuart II. Mais
provavelmente, devemos ver neste grau muito católico, chamado Rosacruz, um
dos muitos caminhos esotéricos que os altos graus emprestam da sabedoria
hebraica, de Pitágoras, dos Templários ou da alquímica, e tanto é verdade, que
não existe tradição maçônica diferente daquela que a Maçonaria toma
emprestado das mais diferentes tradições.

Altura de vista da águia

Na origem de sua criação, em 1765, na quarta ordem do antigo Rito Francês,


equivalente ao 18 escocês, o grau se chama Cavaleiro da Águia e do Pelicano. Eis
aqui o maçom provido de dois pares de asas, sem dúvida para voar ainda mais
alto em direção à sabedoria.

Compreensivelmente o fascínio muito antigo com a águia se impõe à imaginação


por sua envergadura, a altura de seu voo, a acuidade de sua visão, sua força, mas
também sua crueldade. O simbolismo ligado a ela junto aos maçons está
enraizado na antiguidade greco-latina e nos primeiros textos cristãos. De fato,
reconhecemos na águia as duas propriedades eminentemente maçônicas que são
a capacidade de ver a luz de frente e a capacidade de renascer. Lucano, autor
latino do século I escreveu em seu épico A Pharsalia: “O pássaro de Júpiter
quando faz eclodir o ovo enquanto quente, seus filhotes desprovidos de plumas,
os vira para o nascer do sol; aqueles que podem suportar seus raios e suportar o
dia sem piscar os olhos são reservados para a tarefa celestial (…) aqueles que não
resistem a Phoebo são deixados lá”. O Physiologus escrevia sobre ele: “Quando a
águia envelhece seus olhos se sobrecarregam, bem como suas asas e ela voa mal.
E então o que ela faz? Ela busca uma fonte de água pura e voa em direção ao sol
e queima suas velhas asas, e o escurecimento de seus olhos, e desce em direção à
fonte e mergulha três vezes e se renova e se torna jovem” .

Embora às vezes seja comparada a abutres e temida como predador, a águia alça,
durante a Idade Média ao posto de ave se não sagrada, pelo menos, símbolo de
propriedades sagradas ligadas a Cristo. O bestiário de Ashmole, manuscrito
inglês do século XIII resume bem este simbolismo:

“Livrar-se de suas velhas penas é perder o gosto por ações enganosas, assumir
novas é adotar um estilo de vida suave e macio; as penas do antigo modo de vida
são pesadas, mas novas penas, voo mais leve (…) é em um abrigo quente e
fechado que em torno se espalham suas velhas penas, por isso o homem deve se
retirar para se tornar um novo homem (…) mas guarda sua presa e constrói
sobre ela, o cristão deve tomar também ele a altura para derrotar o pecado (…)
ele cuida de seu ninho com muito carinho. ”

Se este simbolismo é amplamente suficiente para explicar o interesse na águia


pelos maçons, eles o compartilham com muitas outras culturas nas quais o rei
dos pássaros é ao mesmo tempo símbolo de clarividência, de renovação e de
poder. Atributo de Zeus-Júpiter, ela era o emblema dos exércitos de César,
Napoleão e Hitler. Na América do Norte e Central, na China, na Sibéria, no
Japão, governantes, sacerdotes e xamãs tomaram emprestados os seus atributos
para participar de seus poderes sobrenaturais e divinos. Os Salmos a tornaram
símbolo de regeneração espiritual e no Hinduísmo, ela é Garuda, a montaria de
Vishnu.

Mas é no início do cristianismo e, mais especialmente, no simbolismo ligado a


João Evangelista que é preciso buscar o interesse dos Maçons pela águia, às
vezes branca, às vezes preta, que coroa, se assim pode-se dizer, vários dos altos
graus de diferentes ritos. O simbolismo ligado aos evangelistas – a águia de
João, o touro de Lucas, o leão de Marcos, e Mateus o único plenamente humano
– encontra sua fonte na visão tomada como empréstimo a Ezequiel no Velho
Testamento: “Eu discernia algo que parecia ser quatro animais que tinham esse
aspecto: tinham forma humana. Eles tinham, cada um deles, quatro faces e
quatro asas… quanto à forma de suas faces, eles tinham o rosto de um homem, e
todos os quatro tinham uma face de leão à direita, e todos os quatro tinham uma
face de touro no lado esquerdo, e todos os quatro tinham uma face de águia ”

João chamado de a águia de Patmos, ilha grega onde teve a revelação do


Apocalipse recebe esse apelido por sua clarividência e sua altura de vista, pois ao
argumentar que Deus é Logos, isto é verbo, ele leva ao mais alto a visão de um
homem, criatura de natureza essencialmente espiritual. Assim se explica a
importância atribuída a João e ao seu evangelho na maioria das tradições
maçônicas. Estes se encontram em uma visão neoplatônica ou gnóstico na qual a
Verdade deve ser procurada na clareza da palavra e da razão para a qual o
iniciado não pode se elevar, a menos que ele possa, como a águia, manter os
olhos abertos diante da luz.

Mistérios da águia bicéfala

Mas se o simbolismo da águia é facilmente compreensível, a águia de duas


cabeças, símbolo ao mesmo tempo profano e maçônico é mais enigmático. Sua
origem é muito antiga pois a encontramos nos Hititas, civilização que se estendia
sobre o Oriente Médio entre três e quatro mil anos antes do presente. Sem que
seja possível estabelecer ligação entre elas, outra águia de duas cabeças aparece
na mesma região no século X com a chegada dos Turcomanos e Seljukidas,
povos originários da Ásia Central que se converteram ao Islã. A águia de duas
cabeças era então parte da iconografia muçulmana, mas isso não impede a
adição de uma cabeça suplementar à águia monocéfala romana que já era um
emblema do Império Bizantino. A adopção da águia bicéfala pelo cristianismo
ortodoxo repousa essencialmente na aliança de poder temporal e poder
espiritual tornados inseparáveis por pertencerem a um mesmo corpo.
Transformada até hoje em um símbolo da ortodoxia grega, a águia de duas
cabeças é encontrada principalmente nos brasões da Rússia e da Sérvia.

No Ocidente, a águia bicéfala apareceu no tempo das Cruzadas por influência


oriental. Ela pode ser encontrada em diversos brasões, bem como em baixo
relevos em várias capiteis de igrejas e claustros, provavelmente por simples
imitação da arte oriental. Na França, o exemplo mais antigo da águia bicéfala é o
selo afixado em 1227 por um Cavaleiro da Ordem do Templo, Guillaume de
l’Aigle, Comandante do Templo na Normandia.

A águia bicéfala aparece na maçonaria na França na década de 1760 com o grau


de Grande Inspetor Grande Eleito ou Cavaleiro Kadosh. Nós a descobrimos
também na famosa carta que a maçons de Metz escreveram aos de Lyon, em
junho de 1760: “Todos os graus […] são todos subordinados a esse último,” ou:
“O pequeno atributo [desse grau] é uma água dourada com as asas abertas e
trazendo uma coroa de príncipe sobre as duas cabeças e segurando um punhal
em suas garras. O grande atributo é uma Cruz vermelha com 8 pontas
semelhantes à de Malta; no centro, em um círculo, estão uma Espada e um
Punhal em cruz. ”

Resta que as diferentes razões invocadas para justificar o lugar da águia bicéfala
na maçonaria são pouco convincentes. Certamente, no final do século XVIII,
quando a referência aos Templários governa amplamente a construção do
edifício dos altos graus, alguns quiseram ver na águia um símbolo vingativo “A
águia carregando um punhal em suas garras com estas palavras: Neccum
Adonay, Vingança a Deus, representa as últimas palavras de Jacques de Molay, o
último Grão-Mestre, quando ele amaldiçoou o Papa e o Rei; terrível maldição
confirmada pela realização. A águia, o animal que plana mais alto no ar e o único
que olha para o sol, é o emblema certo desse velho homem desafortunado ”
pode-se ler em uma carta a Jean-Baptiste Vuillermoz, um dos fundadores dos
Altos Graus. Mas isso é suficiente para justificar o uso da águia bicéfala?

Como ocorre muitas vezes, o símbolo precede seu significado. E, sem dúvida, a
águia bicéfala, já amplamente presente na heráldica europeia não foi
simplesmente integrada na Maçonaria, a não ser para marcar um grau que se
queria superior a todos os outros e de um brilho comparável àquele que envolvia
as potências do mundo secular.
Os iniciados da selva

Se, portanto, o galo, o pelicano e a águia de uma ou duas cabeças resumem o


bestiário maçônico, a relação do maçom, se não da própria Maçonaria com o
mundo animal não para por aí. Pelo menos se se considera que a Maçonaria,
filosofia de vocação universalista, pretende considerar tudo do ponto de vista da
razão, do progresso e do humanismo. No entanto, com esta diferença em relação
à abordagem secular, que o maçom, focado como é no símbolo, se esforça de
outra forma de querer detectar um esoterismo em tudo, pelo menos para facilitar
a sua compreensão por meio de uma abordagem mimética ou pelo menos
analógica. Conforme mostrou o antropólogo francês Philippe Descola, a maneira
de conceber as relações entre o mundo humano e o mundo não-humano e não se
funda universalmente na ideia naturalista de que os seres humanos se situam em
um continuum biológico habitado por qualquer coisa “maior”. Certos povos
animistas acham que os animais têm um pensamento, uma visão de mundo
própria e que se baseia em sua relação com o biológico. Outros têm uma visão
totêmica e acham que diferentes categorias de humanos e não-humanos
pertencem a um mesmo grupo. Algumas culturas, enfim, conseguem unificar sua
visão de mundo estabelecendo analogias e correspondências entre os seres e as
coisas como o fazem, por exemplo, os taoístas com o Ying e Yang, ou como
fizeram os gregos antigos imaginando um Deus para cada fenômeno.

Um bom exemplo de analogias entre o mundo animal e a humanidade nos é


dado por Rudyard Kipling, maçom e autor do famoso Livro da Selva. O jovem
Mowgli, criança criada por lobos, simboliza a humanização-iniciação daquele
que partindo da escuridão da animalidade aprende a humanidade seguindo o
exemplo das qualidades daqueles em quem ele sabe reconhecer e apreciar as
altas virtudes morais apesar das diferenças que os caracterizam. Assim, cada
criatura da selva vai encarnar uma virtude particular necessária para se tornar
um homem (ver caixa). É nesta selva, que cada um “em seu lugar e em seu ofício”
ajuda a reunir o que está espalhado, fazendo das diferenças uma
complementaridade tendendo para a unidade. O que não é possível, como
Kipling faz dizer suas criaturas, porque “nós somos do mesmo sangue, você e eu.
” Neste texto, a fraternidade não seria, portanto, reservada apenas aos homens,
mas se estenderia a todos os seres vivos.

Rudyard Kipling e as criaturas do Livro da Selva

Akela: Lobo, dito solitário e solidário, encarna o chefe, mas sobretudo o


exemplo. O respeito que ele inspira repousa mais em sua sabedoria que em sua
autoridade. Capaz de enxergar na escuridão, ele deve esse poder à sua luz
interior.
Bagheera: Pantera negra, ensina caça a Mowgli. É ela quem corajosamente
agarrada ao rochedo dos velhos, o direito de Mowgli tomar a palavra.
Contraponto feminino de Akela, ela simboliza a coragem e, acima de tudo, a
justiça.

Baloo: Urso castanho, diz-se dele o “Doutor da lei.” Ele defende com sabedoria
uma justiça afável, mas sem fraqueza. Instrutor de usos e costumes da selva, ele
é o iniciador que ensina boas maneiras, aquelas que permitem passar da
bestialidade selvagem à coexistência pacífica. E assim, à tolerância recíproca.

Bandar-Logs: Estes macacos são lutadores, prepotentes, briguentos e


irrefletidos. Eles não têm nem leis nem chefe e preferem se divertir em vez de
trabalhar. Eles vivem em cavernas frias, onde nunca penetra a luz. É lá que eles
sequestraram Mowgli, com ciúmes de suas qualidades. Inquestionavelmente,
esses macacos encarnam o mundo profano. Mas também uma forma de loucura
e indisciplina que às vezes se torna uma grande sabedoria.

Kaa: É a Serpente assustadora. Mas é também um animal de sangue frio que


inspira respeito e curiosidade. É com ela que Baloo e Bagheera entregam Mowgli
mantido prisioneiro dos Bandor-Logs nas “Grutas Frias”. Ela fala pouco, mas
criatura cheia de mistério, ela incentiva os outros a falar, a se envolver e
representa uma forma de sabedoria adquirida depois de uma longa experiência.

Shere Khan: O tigre tenta semear a discórdia entre os lobos para capturar
Mowgli. Ele é enganoso, cruel, ataca os animais indefesos e teme somente o fogo.
Ele personifica as paixões que habitam cada um de nós e se dissipam somente
sob o efeito da luz.

Raksha: é a loba que sozinha protegeu e alimentou Mowgli. Ela o defendeu


contra Shere Khan. Ela simboliza a mãe protetora que passa seu amor acima de
todas as outras considerações, mesmo correndo risco de vida. Ele encarna a
figura da Viúva. O que pode ser dito de Mowgli que ele é um filho da viúva.

As armadilhas da “vida”

No entanto, se o simbolismo ou as analogias são ferramentas insubstituíveis


úteis na conceituação do mundo, não vamos objetiva-las. Não é porque os lobos
são exemplos úteis e bonachões no conto de Kipling que, na natureza, eles
tenham perdido os dentes e já não ameaçam as ovelhas.

Não projetemos sobre uma história datada da grande era colonial, os valores da
ecologia de tendência panteísta que caracterizam hoje o respeito e a defesa do
“viver” esta coisa indistinta que apareceu muito recentemente em nosso
vocabulário. Todos os pesquisadores em psicologia evolucionista concordam
com o fato de que os nossos comportamentos fundamentais, incluindo a
capacidade de prever e interpretar os fenômenos são baseados no medo da
predação. O que também explica que as representações mais antigas
relacionadas com crenças religiosas dão aos agentes sobrenaturais o caráter de
animais ameaçadores. Como evidência, especialmente, o homem-leão da caverna
de Stadel na Alemanha, com trinta e cinco mil anos de idade. Até meados do
século XX, a grande maioria dos habitantes do planeta eram rurais vivendo
permanentemente em contacto com animais domésticos de que precisavam para
se alimentar e cultivar a terra e a que estavam ligados por uma espécie de relação
familiar. Os vários predadores eram unanimemente temidos e considerados
como habitados por forças do mal.

Em nossas sociedades cristãs, a separação entre o humano e o não-humano


passava por um dualismo dividindo os seres de acordo com a sua superioridade
ou sua suposta inferioridade, mas também por uma classificação dos animais em
relação à sua utilidade para o homem dentro da “Criação”.

De toda forma, a mecanização e o estilo de vida urbano perturbaram


amplamente esta classificação. Ao perder o contato com os animais, os homens
os tornaram, paradoxalmente, mais humanos. Kipling e Walt Disney estiveram
lá. Certamente, os contos de fadas, as antigas lendas abundam em histórias de
animais, mas também de árvores, montanhas e rios que são uma espécie de
agentes sobrenaturais “naturais”, dotados de comportamentos humanos. Mas o
que mudou com Bambi, Mickey Mouse, Donald e as Aristogatas é que eles
mudaram completamente nossa hierarquia de espécies. Desde os anos 1970, as
teorias antiespecistas (ver caixa) negando à humanidade o direito de dispor de
outras espécies para seu benefício, aos poucos introduziu a ideia de que os
animais são se não humanas, pelo menos, têm direitos equivalentes. Se na
França, o parlamento aprovou mudar o status de animais de “bem móvel” para
“ser sensível”, estamos longe de considerar que os animais são “pessoas não-
humanas”. No entanto, isso é o que estabeleceu um tribunal de apelações em
Buenos Aires no final de 2015 ao reconhecer em favor de uma fêmea
Orangotango “presa” em um jardim zoológico, o direito de ser livre.

Cada vez mais, ser sensível ao sofrimento animal já não significa que um animal
pode sofrer como animal em seu corpo de animal e que o fazer sofrer em
consciência degrada o próprio homem. Trata-se, por meio do direito, de fazer a
admitir que nada autoriza os humanos a se outorgar um lugar especial dentro da
“vida”, dispondo à vontade dos animais, e porque não de vegetais e até mesmo
de rios ou minerais. Isto resulta na aparição, minoritária no momento, mas em
rápido crescimento, de uma nova forma de crença neo-animista que, da mesma
forma que se empresta aos agentes sobrenaturais – deuses, espíritos, várias
forças – propriedades e intenções humanas, tende a distorcer a natureza em uma
humanização generalizada da “vida”.

Talvez se possa objetar que a abordagem não é nova, que La Fontaine e antes
dele contos e lendas faziam falar e agir os animais, e às vezes as plantas, como
seres humanos. Mas isso não significava absolutamente que os “seres vivos”
formavam uma grande família. Não se tratava, como agora, de emprestar
realmente sentimentos e emoções do humanas a não-humanos, mas de usá-los
de forma analógica para caracterizar simbolicamente as personagens humanas
para que essas representações, como no teatro, fossem pretexto para a sátira e a
crítica de costumes. O Leão, o Asno, a Lbre, a Formiga e o Carvalho podiam
muito bem contar histórias agradáveis e instrutivas. Isso não impedia que os
contemporâneos de La Fontaine caçassem leões, batessem em asnos, the
prender lebres pelo pescoço, queimar formigueiros e abater os carvalhos.

Hoje tudo mudou. Anteriormente, lutava-se por um mundo melhor, menos duro
para a condição humana. Hoje, nas ZDPs (Zonas de Preservação) luta-se contra
humanos. Não para preservar a natureza da Natureza, mas, pelo contrário,
porque esta, como uma pessoa agora tem direitos no seio do “Grande Tudo”
indiferenciado do “Vivente”.

Novo totalitarismo

Este novo totalitarismo, literalmente, também é encontrado nos doces


iluminados New Age que acreditam em uma “fonte de vida” ou em um “oceano
de unidade”, que os seguidores da ecologia profunda – deep ecology –
movimento extremista que não distingue a humanidade de outras espécies e
atribui ao homem a realização do “grande ser” em continuidade com todos os
“viventes”. O que não é nada novo. O ideólogo nazista Alfred Rosenberg
declarava sobre isso “Tudo é vida (…) as almas, os corpos e Deus são apenas
um.” 2 Quanto a Hitler, era para apoiar suas teorias raciais e sua filosofia da
violência que fazia do homem um animal como os outros: “A observação mais
superficial é suficiente para mostrar como as inumeráveis formas que assume a
vontade de viver da natureza estão sujeitas a uma lei fundamental (…). Todo
animal se acasala somente com um congênere da mesma espécie: pardal com
pardal, pintassilgo com pintassilgo, cegonha com a cegonha, o rato com a rata,
camundongo com camundongo, o lobo com a loba, etc. (…) nunca encontrar uma
raposa que uma disposição natural a levasse a se comportar filantropicamente
com os gansos, assim como não existe um gato que sinta uma inclinação cordial
pelos ratos”.

Mas, ao contrário da religião nazista da natureza que exaltava a força e a


selvageria viril, a nova religião do “vivente” é protetora, materna, feminina. Os
homens não são mais lobos selvagens e conquistadores, mas criaturas nocivas e
brutais abusando de uma natureza frágil. O mesmo que dizer machos horríveis.
Todos os seres vivos são agora, sem distinção de espécie, os filhos de nossa
muito amada mãe terra à qual devemos obedecer, sob pena de infligir a nos
mesmos graves infortúnios. E que se parece muito com Deus.

Assim, no futuro, ai dos incrédulos e blasfemos – obrigatoriamente do sexo


masculino porque necessariamente predatórios e violentos por natureza – que se
atreverem a caçoar deste amor geral comendo presunto ou pescando com linha.
Estes serão considerados inimigos de nossa Mãe Terra que os novos inquisidores
– ou inquisidoras – se encarregarão de reeducar se não os enviar diretamente ao
abatedouro.

“Uma natureza sanguinária contra os animais testemunha uma propensão


natural para a crueldade. Quando se estava habituado em Roma aos espetáculos
de morte de animais, passou-se aos homens e gladiadores. A Natureza, eu temo,
deu ao Homem uma tendência à desumanidade. Ninguém gosta de ver animais
brincar e se acariciar – e todos são atraídos para vê-los se rasgar uns aos outros e
se desmembrar “, escreveu Montaigne, que desprezava muito a crueldade. À
imitação de seu humanismo, em vez de ver nos animais outros de nós mesmos,
devemos ver na forma como nós os respeitamos enquanto animais uma forma de
nos respeitarmos enquanto seres humanos.

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