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34 + Camillo Boito ‘confunde com o ogival francés, mas na pintura dele se distancia, ¢ nao é toscana, e ndo é lombarda, mas mostra um sinal de natureza prépria, cujo trago leve permane- ce, aqui ¢ ali, na arte piemontesa até o século XVIII. Entao, nés, do bem-aventurado século XIX, temos tum brago tao grande que tudo acolhe para si. Essa For- taleza, esse Burgo nao poderiam ser imaginados em ne~ nhuma outra 6poca. E se a Comissao para a Histéria da Arte tivesse desejado seguir seu primeito conceito, o de acolher em edificios de diversas arquiteturas as orna- ‘mentagdes, as alfaias das principais épocas da arte, do ‘Ano Mil em diante, teria sabido fazé-lo igualmente bem; € nds terfamos passado do grave modo romanico as suti- lezas ogivais, destas as purezas do Renascimento, ¢ de- pois ao classicismo do Risorgimento, e depois as pompas barrocas e as douragdes do Rococs, sempre admirando. Cem vezes melhor o Castelo; mas, em suma, se agradas- se & Comissiio mostrar-se eclética, certamente, hoje em dia ela teria sucesso. E seria necessério muito estudo e muito engenho, ‘mas menos do que teve Rafael Sanzio, que na sua conhe- cida carta a Leto X, corrigida talvez na forma por Casti- lione, adverte como os alemies (a arte ogival era sem- pre chamada alema) “freqiientemente punham apenas figurinhas retrafdas e mal feitas como mfsula para sus- tentar uma viga, ¢ animais estranhos e folhagens desa- jeitadas e fora de qualquer proporgao natural”, O famo- 3, Para umn edigto cries da cata, of, E. Camesasca (ed), Refello~ Gi Os Restauradores + 35 so Averulino, alcunhado & grega Filarete, isto 6, amante da virtude, autor do Ospedale Maggiore de Milao, onde todavia empregou o arco ogival, chama aquela maneira “uma praticazinha, e maldito seja quem a introduziu; e creio”, acrescenta, “que s6 pode ter sido gente bérbara ‘que a trouxe para a Itilia”, Palladio, depois de ter-se lan- ado violentamente contra alguns arquitetos ultramon- tanos, que se intrometeram em coisas suas, para eximulo da injaria grita contra eles; “Mostrais 0 animo em con- formidade & vossa baixa arquitetura alema”. Eu me recordo, senhores (tinha entao doze ou treze anos), dos meus primeiros dois professores de arquitetu- ra. Eram bem velhos e morreram hé mais de um quarto de século. Ambos sentiam o mais arrogante desprezo, no fundo, pela novidade, que 0 marqués Pietro Selvatico tanto se esforgava por introduzir na Academia de Veneza, , no na palavra, mas na substncia, falavam da arte gética como Palladio; alias, um deles, um homenzinho pequeno, redondo, sem barba, sorridente, calmo, havia purgado a fachada do Palacio Vendramin Calergi, aque- le milagre de Pietro Lombardo que alegra o Grande Ca- nal, e no € gético, mas do Renascimento — ele a havia purgado segundo os preceitos de Vignola, mudando as proporgdes das ordens, diminuindo pela metade a uilti- ‘ma cornija, retirando as aberturas bffores das arcadas; € porque gostava de mim, ¢ eu, devo confessar, dele gosta~ ‘Ser: Lettre, Fie, Saneti Sagat Teenicie Teoria Cura di Etre Camezasa, com la Collaborasione di Giovanni M. Paz, Milt, Riblice- ca Univesile Rizoli, 1994, pp, 257-322 36. + Camillo Boito va, ele me dava, sem que Selvatico de nada soubesse, aquele castigado modelo para copiar. Meu casto velhinho, como o abade Juvara, autor do templo de Superga, como o padre Guarini, autor do tor- cido e retorcido palécio Carignano, como Baccio Pintelli € Meo del Caprino, autores daquele gentilfssimo exem- plar de arquitetura do Renascimento que 6 a catedral de San Giovanni, como os desconhecidos arquitetos que ‘construfram 0 escuro Castelo, 0 vetusto campanério da Consolata e a Porta Palatina, todos tiveram um ideal pro- prio a seu tempo, de fato distinto daquele de outras épo- cas, um ideal tinico, absoluto, claro, irremovivel. Em contrapartida, para nés parece a coisa mais na- tural do mundo que, por exemplo, o ingresso prineipal da Exposigdo seja de estilo quinhentista, enquanto o ingres- s0 pelo Corso Raffaello é de estilo mourisco; que o palé- cio das Belas Artes seja de modo pompeano, enquanto 08 outros edificios ¢ pavilhdes sto barrocos, ou sufgos, ou mussos, ou turcos, ou sei eu I o qué. Antes das tiltimas tués ou quatro geragies, ninguém teria pensado seriamen- te, nem mesmo para uma exposigao proviséria, em uma babilénia semelhante. Nés, do presente (e nao falo ape- znas dos italianos, mas de todos os povos civis), somos poliglotas; mas a nossa lingua, aquela, verdadeiramente nossa na arte, onde esta? Qual seré a marca artistica es- pecial que nos distinguiré das outras épocas na grande resenha dos séculos? Ea era atual, no que respeita & arte, pode talvez ser chamada uma época? Dir-nos-Ao: os restauradores. Que gléria! Os Restanradonee + 37 Mas o curioso & que, enquanto a nossa suprema sa- bedoria consiste em compreender e reproduair minucio- samente todo o passado da arte, ¢ essa recente virtude nos torna maravilhosamente adaptados para completar as obras de todos os séculos passados, as quais nos chega- ram mutiladas, alteradas ou arruinadas, a nica coisa sabia que, salvo raros casos, nos resta a fazer é esta: deixé-las em paz, ou, quando oportuno, liberté-las das mais ou menos velhas ou mais ou menos més restaura- «es. E dificil! Saber fazer algo tio bem e ter de conten- tar-se em abster-se ou em desfazer! Mas aqui niio se dis- corre sobre conservagio, que aliés é obrigagao de todo governo civil, de toda provincia, de toda comuna, de toda sociedade, de todo homem nao ignorante e nio vil, pro- videnciar que as velhas e belas obras do engenho huma- no sejam longamente conservadas para a admiragao do mundo. Mas, uma coisa € conservar, outra é restaurar, ou melhor. com muita frequéneia uma é 0 eontrério da ou- tra; e 0 meu discurso é ditigido nilo aos conservadores, homens necessdrios ¢ beneméritos, mas, sim, aos restau- adores, homens quase sempre supérfluos e petigosos. Essas tiltimas propostas, no breviesimo tempo que nos resta antes do almogo, pretendo demonstré-las, tra- tando em primeiro lugar da estatuéria, em que a questdo € mais simples, depois da pintura, em que comega a intricar-se, e finalmente da arquitetura, em que se caca em um matagal. 38 + Camillo Boito Deixemos para trés as estdtuas perdidas e das quais ‘os escritores nos narram milagres: jazem como os mortos devemos dar-lhes descanso; mas os senhores bem sa- bem, como eu, que so raras as figuras antigas de mér- more ou de bronze diante das quais nio tenha sido pro- nunciada a feia palavra apégrafo. Cépias ou no, cépias figis ou licenciosas, s40 coisas antigas e belfssimas, e com elas podemo-nos contentar. Ora, com rarfssimas ex- egies, as estituas gregas e romanas (0s romanos foram originais e grandes nos retratos) a nés chegaram esquar- tejadas, manetas, desprovidas de alguns membros, pelo menos de uma ou de outra extremidade. Do século XVI em diante houve a firia de restaurd-las. As més restau- rages ou as medfocres ¢, em geral, as modernas sio fa~ cilmente reconhecidas; mas a tarefa torna-se menos répida quando se trata de restauragées antigas. Nao bas- ta ver que um membro esta grudado para deduzir que foi acrescentado: as verdadeiras pernas do Hércules Farnese foram encontradas em um poco a trés milhas do lugar das termas de Caracala, onde por volta de 1540 desenterra~ ram o corpo; aléim disso, freqilentemente os préprios es- cultores gregos ¢ romanos faziam as estétuas em vérias partes. Tampouco basta o reconhecimento de uma leve diferenca no estilo: 0 grupo original do chamado Touro Farnese (cito propositadamente as obras que estio vivas nna meméria de todos voeés, senhoras e senhores) foi tra- balhado por dois artifices em conjunto, Apoldnio e Tau- risco; 0 Laocoonte por trés rodienses, Hagesandro, Ateno~ doro e Polidoro. 0s Restauradores © 39 De quantos erros nao foram causa as restauragies! Os senhores nio ignoram a disputa provocada pelo violi- no colocado por Bernini na mao de um Apolo. Conhecem talvez esta grande questio: se os gregos e os romanos fer- ravam os cavalos. Parecia que ni; mas eis que surge um baixo-relevo em que as ferraduras com seus bravos cra- vos esto ali indicados claros ¢ evidentes; e um arque6- Jogo de nossos diss, famoso, sempre cauteloso e sagaz, observa-os ¢ grita triunfalmente: ferravam os cavalos. Aquelas patas, infelizmente, eram um remendo. 0 Ar- rotino torna-se um Esfolador de Marsias; a Lucrécia, des- coberta no Trastevere e para a qual um papa, Leso X, escreveu versos latinos, transforma-se em Ariadne; 0 Jasao da Gliptoteca de Munique era tido como um Cin- cinato; o Apolo citaredo, cujo ombro com o brago direito ea mio esquerda com a maior parte da lira niio so ge- rufnos, era conhecido antes sob o nome de Musa Barbe- rini; aliés, Winckelmann nele via nada menos do que a Erato do estatuério Agelada. Invoquei o Hércules em Repouso, todo miisculos, imponente, verdadeiro sfmbolo da forga. Ninguém pare~ cia mais apto do que Michelangelo a acrescentar-Ihe as peas que ainda nao haviam sido encontradas. Paulo III chama-o ¢ ordena-lhe que seja feito. O artista pie-se a trabalhar, realiza-as de gesso e ajusta-as ao colosso; exa- mina, reexamina, gira em volta, regira, depois, sacudin- do a cabega, pega um martelo e comega a bater até que as pemnas se despedagassem:; ¢ dizem que gritava: “nem mesmo um dedo eu saberia fazer para essa estatua”. As 40+ Camillo Boito pemas foram entdo acrescentadas por Guglielmo della Porta; somente dois séculos depois se entendeu que eram ‘mal feitas, quando se encontraram, como disse, as per- nas de Glicon, se é que a estdtua ¢ de Glicon. Com o grupo do Laocoonte, que Plinio coloca &fren- te de todas as outras obras de estatuéria e pintura e no qual nota o “admirével entrelagamento dos dragies”, aconteceu 0 seguinte: tendo sido desenterrado, ha ndo muito tempo, um antigo grupo pequeno de bronze, repro- duzido a partir do Laocoonte original, entendeu-se como © brago direito do pai, com o qual ele tenta o supremo cesforgo de livrar-se de uma das serpentes, e o brago di- reito do filho menor, elevado em ato de desespero, foram licenciosamente refeitos, j4 que tanto o pai quanto me- nino no grupo de bronze dobram 0 brago, colocando a mio sobre a cabeca'. E assim o pobre senhor Corna- cchini, restaurador, ficou vexado. Citei Plinio anteriormente. Nao quero deixar pas- sar a boa ocasiio de apresentar-lhes uma sugestao hi nica, tirada de sua Historia Natural, ¢ nao alheia & estatudria, sobre a qual discorremos. Se Ihes acontecer de terem dor de cabega, peguem a erva nascida sobre a ‘eaboga de uma estétua e, com um fio vermelho, amar- rem=na.a roupa: rapidamente ficarao curados (livro XXIV, cap. 19). 44. Tal gropo escltrico passou por divers intervensdes, depois de escabertsem 1506. No ial dos ans 1950, fram rtirados as acrés ‘mos sodas e inerido un fragmento orginal do rago do pa. que havia so descobeto, 0s Restauradores + 41 Mas, em suma, hé realmente necessidade desses henditos restauros, que dio a algumas partes da obra antiga um conceito distante do original, ou, pelo menos, nao indubitével? Nao stio admirdveis rotos ¢ manetas 0 Torso de Hércules, chamado Belvedere, 0 Torso de Baco, chamado Farnese: 0 primeiro, um espanto de vigor gran- dioso, mas naturals o segundo, um espanto de delicadeza elegante? Nao ¢ admirdvel e sedutorfssima a Psique, en- contrada no fim do século passado entre as rufnas do an- fiteatro de Cépua e que agora resplandece no Museu de Népoles? E falta-lhe o brago direito, 0 brago esquerdo € um pedago de ombro, ¢ um flanco, e tudo do umbigo para baixo e o cocuruto da cabeca. No dorso existem tragos da insergio das asas; e inclina o corpo em ato de graga ine~ fével, ¢ talver olhe, para baixo, um Amor menino, que deveria estar a seu lado, talvez.a lucera fatal ou a bor- boleta, que talvez segurasse na mao. Nessas dlividas va- gas, a fantasia inspira-se, deleita-se e enamora-se. E um encanto. Se 0 préprio Michelangelo, se Canova a tives- sem terminado, 0 génio independente do desconhecido artifice grego nao se teria mais algado ao nosso encon- tro; ndo poderfamos mais voar através dos séculos até 0 pafs beato da eterna beleza, Hé uma parte no rosto, talvez a principal nos bus- tos monocromaticos, que os catélogos estrangeiros bem feitos muito freqiientemente registram como restaurada, ‘mas cujo remendo, por sorte, nio ¢ dificil descobrir, mes- ‘mo quando os catélogos mal feitos, como em geral sao 03 nossos, nada indicam das restauragées. E 0 nariz, contra 42 + Camillo Boito co qual, além das quedas, dos desmoronamentos, das ruf- nas de todas as espécies, também contribui de bom gra- doo ataque dos gaiatos de hoje; e para convencer-se di so basta passear pelo Pincio, contemplando as efigies dos jnumerdveis homens ilustres. Os olhos, espelhos da alma, ea boca, sem a cor das pupilas ¢ dos lébios, perdem muito de sua expressao, ainda mais porque as pupilas no melhor perfodo da arte antiga nfio eram de fato marcadas, ‘ou desapareceram, porque pintadas ou feitas de esmalte ou inorustadas de pedras preciosas. O nariz, em compensa- ‘¢do, tanto de mérmore quanto de bronze, de frente como de peril, imprime a fisionomia o seu destacado carter: basta uma diferenga quase imperceptivel na linha de sua jjungo com o rosto, na sua espessura, na sua forma reta, ‘ou aquilina, ou amassada, ou chata, ou sinuosa e na am- plitude das narinas, para alterar o aspecto e a expresso das feigoes. Leonardo da Vinci mostra-o nas caricaturas bizar- ras: e 08 romanos € gregos tiravam do nariz. um indicio da alma, como fizeram os fisionomistas posteriormente. Na prépria Biblia, vejam, o Levitico protbe de aproximar- se do altar “aquele que tem o nariz achatado ou desme- ido” (cap. XXI, versfculo 18)°,e 0 Cantico dos Canticos (cap. VI, versfculo 4), nio em todas as tradugées, mas 5. Na Vulgot, lee: “neo accede ad ministerum cus si eaceus fuert si ‘laa af parvo vel grand vel oro nao [J Biblia Vulgata, Madi Biblitoce de Autones Cristianos, 1985, J6 na Babli de Jerusalém. Sio Paulo Eigses Peulinas, 1961, 16-2: "Pois nenhum harem dev 8 pro- sfmar caso tenkaalgum defeito, quer sja cop, coro. desigrado 0 de- formade”, sem mengies a0 nar 0s Restauradores + 48 nas mais fiéis, exclama: “teu pescogo, uma torre de mar~ fim; teus olhos, as piscinas de Hesebon junto as portas de Bat-Rabim. Teu nariz, como a torre do Ltbano volta- da para Damasco™. Para os judeus nariz era a sede da célera, e nés mesmos dizemos Saltar la mosca al naso’, assim como dizemos “ter bom nari”, ou simplesmente “ter nariz”, no sentido de ter um bom jurzo, de ser prudente, ajuiza~ do, e “tomar ou pegar pelo nariz.e meter o nariz e ficar com um tamanho nariz ou com um palmo de nariz”... da maneira que 05 senhores ficario, desculpem, depois de terminada esta minha conferéncia. Nao pretendo brincar: o grave, o solene Tommaseo, que nao brincava, em seus Pensamentos Morais, dedica dois capftulos ao nariz, j4 cantado pelos poetas, e comeca assim: “Grande 6 0 po- der do nariz nas simpatias dos mortais”. Depois de ter afirmado que “a civilizagao pode muito com os narizes”, sentencia: “Olhos cerdleos, nariz longo: mulher m4. — Nariz reto: alma ao menos leve. ~ Queixo proeminente e nariz longo: bondade. ~ Nariz.que se inclina para beijar boca: pouco engenho”, ¢ continua, mas ereio que para nds basta. Para mim, era urgente mostrar-Ihes a suma impor- tancia do nariz na fisionomia e na estatuéria para poder- ‘Biblia de Jerusalém, ect, p. 857. Na verdade,tata-se do versfcuo 5 mediante Literalmente,« moscapular no nari, que significa perder a pce, terum acess deeblers ae No enti deter fro, Ficardesitido, 44 + Camillo Boito Thes despertar a seguinte interrogagio: nos bustos ou nas cestituas, em que falta o nariz, deve-se recolocé-lo ou nao? Deixando a cabega sem nariz, certamente se tolera ‘uma feidira repugnante: podemos fantasiar os bragos, as pemas de uma figura, até os ombros ou um pedaco de ‘nuca, mas para adivinhar um nariz que nfo existe requer- se um esforgo superior talvez nossa imaginagao. Por que ‘enti no nos deixarmos socorrer por um valente artista que, depois de ter estudado bem o caréter da face rota, complete com mérmore, jé que pode fazé-lo, aquilo que iio conseguimos atingir com nosso engenho idealmente? Direi qual é 0 meu sentiment. Para mim, confes- so, repugna, mesmo nessa ocasido, mesmo em se tratan- do de um insigne restaurador, deixar-me enganar. O res- taurador, no fim das contas, oferece-me a fisionomia que Ihe agradas 0 que eu quero mesmo a antiga, a genufna, aquela que saiu do cinzel do artista grego ou romano, sem acréscimos nem embelezamentos. 0 intérprete, ainda que grandfssimo, enche-me de ferozes suspeitas. Somen- te em um caso 0 remendo pode parecer tolerdvel, até mesmo, as vezes, desejavel: no caso da estétua ou do re- trato em que houvesse outros exemplares seguros ¢ com- pletos, ou pelo menos medalhas claras ou camafeus evi- dentes. ‘Teoria geral para a escultura: RESTAURAGOES, DE MODO ALCUM; & JOGAR FORA IMEDITAMENTE, SEM REMISSAO, TODAS |AQUELAS QUE FORAM FEITAS ATE AGORA, RECENTES OU ANTIGAS. + Restauradores ¢ 45 Antes de passar & pintura, entendamo-nos em dois, pontos. O primeiro é 0 seguinte. Aquele que, trazendo de uma arte do passado todos os elementos da prépria obra, a executa nova em folha, nao tem nada em comum com 0 restaurador. No Castelo em que estamos, na vila aqui a0 lado, todos os conceitos e todos os detalhes, tanto da ar- quitetura como da omamentagaéo, foram tirados (e o Ca- Uflogo ndo cansa de demonstré-lo) de modelos efetivos do século XV; mas tudo €, como se sabe, recomposto, de modo que o trabalho aparece como uma verdadeira obra de arte, na qual nao sabemos se devemos elogiar mais a escrupulosa cautela do arqueélogo € a fiel fineza do copista, ou o génio refazedor do arquiteto e o espirito do artifice, adivinho de singulares aspectos prospéticos € romanticos. A vida, que esta aqui dentro, veio do animo criador; o belo, que nos comove, nio é o parto grave do estudo, € 0 filho volante da imaginagao. Dupré no era um restaurador, quando, jovenzinho, esculpia em buxo um erucifixo, roubando aqui e ali, e 0 Cristo ver a ser julgado do século XV por Bartolini, que centendia do assunto; nem quando entalhou um cofre com muitos enfeites ¢ uma eabeca de Medusa, o qual, depois de 0 mesmo Bartolini o ter declarado um dos trabalhos mais belos do Tasso marceneiro, feito a partir dos dese- hos de Benvenuto Cellini, foi vendido a marquesa Poldi de Milo: e a marquesa, passados alguns anos, mostrou- a Dupré como uma insigne obra antiga, quando o artis- ta, experimentando certo remorso, disse: “Senhora mar- quesa, perdoe-me, este trabalho é meu”, e a marquesa, 46. + Camillo Boito em resposta: “Nao importa, alids, gosto dele”. Dupré pe- diu-lhe somente que nao dissesse nada ao grande mes- tre iracundo e ranzinza. Buonarroti néo era um restaurador quando, aos vin~ te anos, executava em mérmore aquele Cupido Dormen- te, que, ao prego de duzentos dueados, um milanes viga- rista impingiu como antigo ao cardeal de San Giorgio. 0 qual, diferentemente da marquesa Poldi, ndo se péde dar paz por ter sido enganado, apesar de, depois, Isabella, marquesa de Mantua, ter esctito do Cupido: “ndo hé nada moderno que se compare”. Esté A mostra aqui no precioso Museu Arqueologico o Menino sobre o qual dis- ‘corro, Pobre Michelangelo, caluniado! Nao eram restauradores aqueles artffices romanos, de quem Fedro trata, os quais, como ele atributa a Esopo as préprias fabulas, punham sob suas obras os nomes de Praxfteles, de Miron ou de Zeuxis: e mais largamente as ‘comerciavam, pois, nota Fedro, “a inveja maligna exalta sempre as coisas antigas em prejufzo das boas coisas pre- sentes”. O segundo ponto a destacar 6 0 seguinte: nilo.se pode chamar restauragio a qualquer operagdo que niio se intrometendo de fato naquilo que é arte na obra.anti- a ou velha, busca apenas a sua conservaglo material. ‘A enorme barbaca que o papa mandou construir em 1805 para reforgar o Colisew ndo é uma restauragio, mas tum enéfico provimento, gragas ao qual os restos do an- fiteatro, que os predecessores de Pio VII nfo tiveram su- ‘cesso em destruir, nao cafram por terra. Nao é restaura- Os Restauradores + 47 ‘80 embeber o mérmore das estétuas com um Ligitide que consiga preservé-lo contra a agiio corrompedora do tem- po, devolvendo-lhe sua primitiva compacidade, consis- téncia ¢ transparéncia. Se as experiéncias afortunadas que também se tentam agora na Itélia puderem ser es- tendidas aos grandes blocos, os senhores verdo as vanta- gens que delas tiraremos. Assim, o Davi retornaria & Pra- a da Signoria, diante do Palazzo Vecchio, ao lado da Loggia de’ Lanzi, onde o havia colocado seu terrivel au- tor; nio viveria aprisionado melancolicamente em uma tribuna fechada, que nao proporciona ar suficiente & res piragao daquele amplo térax, e da qual o seu corpo ro- bustoe esbelto desejaria derrubar as paredes e fazer cair acépula. ‘Também na pintura € possfvel emular cirurgidio, ‘que com mio atenta opera e salva a vida e restitui a sai- de, Nao falo dos milagrosos vernizes que alguns espa Tham na superficie das pinturas e que, freqlentemente, dando um brilho ficticio e passageiro pioram, com o tem- po, a real condigao da obra; mas penso no transporte da madeira, da tela ou da parede para uma madeira, tela ou parede novas. Sdo operagses que requerem muito cuida- doe maravilham. Para libertar-se das madeiras despe~ dagadas, encurvadas e com brocas, 6 necessério aplainar ligeirissimamente a madeira atrés da pintura; depois, re- tirar as dltimas fibras, uma por uma; em seguida, tirar aqui com uma esponja molhada, ali, através da raspadei- ra, com delicadeza infinita, a imprimadura, a propria mistura de tintas, deixando intacta, mas descoberta, a sutil folha da cor, onde aparecem as tintas da prepara~ ‘go, o8 primeiros tragos do desenho ¢ os pentimenti e as ‘mudangas. Entra-se assim na fantasia do artista, espiam- se as suas perplexidades, os seus contrastes, quase se adivinham os seus fervores e os desenganos de seu dini- mo. 0 prinefpio da obra, e o fim, a primeira pagina e a ‘iltima, o inquieto esboco e a sublime obra-prima, que talvez tenham requerido o intervalo de longos anos de estudo; ei-los diante de nossos olhos, divididos pela es- pessura de uma superficie téo grossa quanto uma folha de papel. Se a pintura, ao contrétio, € sobre tela apodrecida ‘ow estragada, é necessério tirar-lhe a trama fio a fio. As- sim desnudada a obra do pincel, ela € recolocada com uma cola tenaz sobre uma nova tela ou madeira ¢ o tra~ balho esté terminado. Para o bom afresco, a operagio no resulta muito diferente; mas apresenta mais riscos, nto tanto por causa do nitro, dos criptogramas ¢ das partes cestufadas, mas por causa dos retoques a seco, que supor- tam mal a umidade da cola. E apesar disso, tentou-se 0 transporte do bom afresco (no do pedaco da parede, digo, mas apenas da superficie), desde o prinefpio do século passado, enquanto o transporte da pintura a éleo foi executado em 1729 por um romano, Domenico Miche- lini, e pouco depois por um francés, Pierre Picault, que trabalhou sobre um vasto quadro de Andrea del Sarto em Versalhes, e depois. em 1752, sobre o Sao Miguel de Rafael no Louvre. Nés, vinte ou vinte cinco anos jé se passaram, voltamos, com grande alarde, a inventar os Os Restauradores © 49 métodos que j4 existiam hé muito tempo, e que agora encontram uma aplicago difusa e segura em todas as principais pinacotecas italianas. Até aqui nao se tratou de assunto de pintor nem de restaurador; mas quando realmente se chega ao momen- to de tocar uma pintura, surgem as controvérsias. Mes~ mo assim, 6 necessério confessar que 08 pintores-restatt- radores dio exemplo de rara unanimidade em duas coisas essenciais. Primeira: ao jurar por todos os deuses que sobre os quadros que foram confiados as suas mos no deram, arbitrariamente, nem mesmo a mais leve pin- celada, no acrescentaram nem mesmo a mais pélida velatura, Segundo: ao langarem-se uns contra os outros, pelas costas, ¢ As vezes alé mesmo cara a cara, os doces titulos de falsificadores e ignorantes. — Entio estamos entendidos, Senhor Professor, © senhor 86 deve tirar as gotas de cera, cafdas dos cande~ labros do altar, sobre este pobre Ticiano. Estamos de acorde? — Imagine! Senhor Diretor, Ihar na pintura, ditia nao. Pref as gotas de cera, entenda-se, devo espanar a poeira. Veja aqui, a0 tocar, como 0 dedo fica sujo. ~ A poeira, parece-me justo. —E também a fuligem. Mas, por favor! Com Sigua pura. ~ Claro: gua destilada. Alids, deixe-me experimen- 50 + Camillo Boito tar. Viu como maltrataram aquele Gaudenzio. As maos foram todas despeladas, no hé mais cor; e depois a ca- bega, que se destacava pela luz no ar, agora se destaca pelo tom; ar foi repintado; o manto da Madona, nao The parece assim? Era de um valor diferente. ~ Tem razio, Senhor Professor, ndo se reconhece mais o Gaudenzio. Que sacrilégio! ~ Oh, se pensassem na responsabilidade do restau- rador! £ um sacerdécio o nosso. Eu, veja bem, me apro- ximo de um quadro velho com mais devogao do que quando vou ajoelhar-me diante do altar. Veja, veja como jd neste canto a cor revive. Pena que haja tantas restau- rages! Este pano foi refeito por um bérbaro: até um que indo € do ofcio percebe. Examine, toque. ~Certamente, o Senhor diz, bem, 0 pano azul foi re- feito; mas o que estaré embaixo? 0 pano original, eu juro. Devo prové-lo? Basta um pouco de gaze levemente embebida neste inocente ligui- do alealino. — De verdade, nao sei. — Senhor Diretor, esta € ou nao uma infame restau- ragio? Se é uma restauragiio, 0 que tem a ver com Ti- ciano, aliés, nao esconde Ticiano? Querendo ter-se 0 ge- nnufno Tieiano, é necessirio que se retire esta cobertura. Verdade, ou niio? —Verdade. = Note com quanta dogura: mal se tocas mas é ne- cessdria uma santa paciéncia e deve-se ter a mio leve ‘como o vento, Bstive em Turim, por causa de um negé- 0s Restauradores * SI cio, no ano passado. Aquele Tamburini, barbeiro mila- nés, estragou quadros nos tempos de Vittorio Emanuele T, € para raspar a cor antiga, lembrando seu primeiro off- cio, usava a navalha. B como era amigo dos camaristas, elegeram-no conservador dos quadros dos palacios reais. - 0 barbeiro esfolador! = 0 Senhor ri, mas Figaro fez escola. Ha alguns: meses, em uma cidade da Itélia (no quero dizer qual) a Academia de Belas Artes confiou a um velho restaura- dor um grande quadro de Lorenzo Lotto, para que o lim- passe sob a vigilfancia de uma solene Comissdo. Todas as manhas a Comissdo ia dar uma olhada. No chao, sob a tela, alguém havia notado como que montinhos de ras- pas. No infcio pensaram que fosse tabaco: mas em um belo dia, junto ao cavalete, descobrem ferros, cinzéis, alguns pequenos, outros grandinhos, ¢ todos muito co- tantes. Observam bem, espiam. O restaurador, em vez de lavar, raspava as sujeiras, com a firia de cinzéis, e junto com as sujeiras, as cores; ¢ depois, onde lhe parecia que as carnes no eram suficientemente luminosas, com 0 cinzel tracejava a seu modo até encontrar 0 branco da imprimadura. Disso nasceu um diabinho. Prontamente se retirou o trabalho do pobre velho; mas o quadro ainda ccarrega os tragos dos ferros, especialmente em dois ou trés anjinhos, voando nos ares ... Veja, Senhor Diretor, 0 ano azul dé lugar ao original. uma revelagdo. ~ Parece-me que sim. Mas como é pélida a cor que est embaixo; parece um claro-escuro. ~ Porque esta molhado. Espere um pouco até que 52 + Camillo Boito seque. Conhego bem a maneira de Ticiano. Antes do quadro de Adao e Eva, que o Vecellio deixou inacabado, eno qual Tintoretto fez 0 Adio e Lodovico Pozzo de Tre- viso executou a aldeia, ¢ Bassano acrescentou os a mais, eu, com os olhos vendados, tocando, parei meu dedo sobre os joelhos de Eva e gritei: eis o meu Ticiano. Mas enquanto se discutia, procurei, veja, expurgar um canto do fundo da repintagem. Veja que belo verde, que verde querido! ~ Muito bem. 0 Senhor conhece, Professor, a esti- ma que Ihe tenho; mas os regulamentos obrigam-me a nomear uma Comissao. A Comissdo, de resto, n&o 0 abor- recerd. Até logo. A Comissio é nomeada. A princfpio resiste, depois se aborrece e deixa as coisas caminharem, e ao fim, ten- do deixado andar, aprova, com excegao dos casos de grandes escandalos, como ode Lorenzo Lotto; ¢ 0 restau- rador, arrastado por uma invenetvel fatalidade, domina- do por uma forga irresistivel, continua 0 proprio traba- Iho. Por qué, de fato, conservar religiosamente em um quadro velho os borrées que em parte o escondem e ti- ram-Ihe todo o esplendor da beleza? A obra-prima em tal estado niio deve ser considerada quase perdida? Seria um mal tentar liberté-la daquele denso véu negro, daqueles horridos borrdes, devolvendo-a & admiragao de todos? Esse € 0 primeiro passo bastante razoavel e, as ve~ zes, de fato, inevitével. Mas ao retirar os velhos retoques e restauros, por mais cuidado que se tenha, no temos sempre certeza de nd retirar um pouguinho da cor pri- Os Restauradores + 53 mitiva. E quando o restaurador entende ter despelado, como se diz, a pintura © teme a erttica, ele sabe sempre resistir As faceis tentagdes de seu offcic ? Trata-se de uma veladura; mas assim como a limpeza de uma parte pede a limpeza de outra, a veladura pede outra, velar obriga freqitentemente a repintar. Aonde se vai parat? 0 restaurador deve ser entéo uma espécie de ope- ério, que encontra na prépria ignorancia o mais seguro dos freios para repintar e para completar; ou deve ser um pintor, conseiencioso, entenda-se, mas também habil em todas as técnicas da pintura e perito nos varios estilos da arte? Eu, confesso, temo nesse caso a ambigo do sébiog ‘mas temo ainda mais a ambigo do ignorante. Nao basta, infelizmente, 0 nao saber fazer para néo fazer. Ora, nas restauragdes da pintura eis aqui o ponto chave: PARAR A ‘TeMPO; © aqui esta a sabedoria: CONTENTAR-SE COM 0 ME> Nos Poss see Em geral, nés, que discorremos sobre arte, fazemos como 0 padre Zappata, o qual “deverfamos seguir em palavras, mas ndo em feitos”""; mas em nenhum campo é {0 dificil operar e tao facil refletir quanto naquilo que se refere a restauracdo dos monumentos arquitetdnicos Os senhores escutam, a todo momento, os deputados na 10. No original, “predicava bene ¢ raszolava male”, expresso idomdtice qe significa que 36 em palavra se compertava here 54 + Camillo Boito Camara, os jornalistas em seus textos ligeiros, os enge- nheiros em seus congressos, os académicos nas suas as- sembléies, ditar sentengas repletas de sabedoria em re- lagao aos modos de conservar para os nossos netos, sem aque percam nada do aspecto antigo, as grandes obras de nossos avés. E 0s pobres arquitetos, 0 pobres membros das Comissdes, encarregados de algumas restauragées, do gente que deveria estar na berlinda ou ser mandada diretamente ao patfbulo; ¢ sentimo-nos felizes quando se pode fazer eco aos nobres desdéns dos estrangeiros, notadamente dos ingleses, reavivando-os ¢ enfocando-os de novo. O mal deve ser revelado sem remissao, estamos de acordo; mas, antes de gritar bdrbaro, seria necessério examinar se o bérbaro poderia ter feito de outro modo. ‘Todos os senhores conhecem Veneza. Nao é uma cidade deste mundo: 6 uma miragem divina. Eu, entretanto, 2 imagino ainda mais bela. Quando, como em Aquiléia, ‘como em Grado, como em Torcello, 0 assoreamento tra~ zido pelos rios tiver enterrado as lagunas, e as febres ti- verem expulsado os tiltimos mfseros habitantes, e todas as casas tiverem rufdo, e sobre 05 amplos espagos cober- tos de ervas as arvorezinhas magras tiverem produzido uma breve sombra, se levantardo todavia, ao cair da tar- de, sob as nuvens douradas, os remanescentes de alguns velustos edificios. A igreja dos Frari mostraré desven- tradas as suas enormes naves; de longe, a avolumada et- pula da Salute dominaré impasstvel; mais distante, © templo dos Santos Joao e Paulo seré um amontoado de Os Restauradores #55 rufnas, com exeegio das cinco absides, e restard intacto © Colleoni sobre o pedestal disforme, mas os omatos do Hospital, tio finos, to delicados, deverdo ser procura- dos entre os restos ¢ 08 fragmentos. A praca de Sio Mar~ cos, que estupor! Trés exipulas da bastlica, periclitantes, ainda nao terdo cafdo; 08 mosaicos do interior das abé- badas poderdo ser vistos da parte de fora e, através das aceragées das muralhas desmanteladas, resplandecer 0 ‘ouro; € 08 mérmores € os pérfiros e os alabastros das co- unas rotas emitirdo, naquela tristeza sepuleral, estranhas cintilagées. Quanto ao Palicio Ducal, o mais maravilhoso pa- licio do mundo, nao pareceria necessério, deixando-o ‘como estava, esperar mil ou dois mil anos, nem talvez ‘cem ou dez, antes de vé-lo reduzido ao apropriado ideal de pitoresea beleza. Boa parte das bases ¢ dos capitéis, alguns fustes de colunas, ¢ muitos pedagos dos liga- mentos dos arcos estavam reduzidos a fragmentos. Ago- 1a € necessario também que os blocos de pedra, que niio sustentam mais, sejam substitufdos por novos. Certamen- te, 6 uma pena; certamente, 6 uma profanagao: mas, en- fim, 0 que se queria era o palcio em pé ou por terra? Alguém diz: deveriam fazer um novo micleo para os capitéis, por exemplo, e depois recolocar ao seu redor a superficie dos antigos, com as suas folhagens ¢ as suas pequenas figuras admirdveis. E mesmo? E os senhores ceréem que esses capitéis, jf despedacados e dilacerados, reduzidos assim a um fino folheado, néo estariam, apés alguns anos, dissolvidos a pé? Uma vez destrutdos, quem 56 * Camillo Boito mais os admiraria? Nao seria melhor reproduzi-los mi- nuciosamente ¢ guardar os antigos em uma sala ali a0 lado, onde os estudiosos, presentes ¢ futuros, poder pesquisé-los a seu hel-prazer? Faz-se o que se pode nes- te mundo; mas nem mesmo para os monumentos se en- controu, até agora, a Fonte da Juventude. Hé dois anos, uns einquenta pintores, escultores ¢ arquitetos, entre os quais Favretto, Mion, Dal Zotto, Marsili e outros intrépidos, fizeram uma adesio formal a um optisculo sobre o Futuro dos Monumentos em Veneza, escrito com furor, rico em coisas poéticas e em coisas sabias, no qual se lé: Nao nos iludamos, éimpossivel, to impossfvel quanto res- suscitar um morto,restaurar qualquer coisa que foi grande e bela em arquitetura... Replicario: pole surgi a necessidade de restau rar. Concedamos. Olhe-se bem nos olhos tal necessidade e com- preenda-se 0 que significa. Ea necessidade de destrur. Aceitem- na como tal, destruam o edificio, dispersem as pedras,fagam delas lasteo ou eal se quiserem: mas fagam isso honestamente, e no coloquem uma mentira no kagar do verdadeiro! 1, cht rid Menon oc Veni etn, 185) scp cir ns wt do ln Raina peo pe Ment pale nate Lng ‘puns pe ee eo 108 CL Rain Th en Lape ‘ttre @ Samy lle, 1, p16 "Do we tua comes leit Praag os ores bel nao Bars ters my oe enc trin Goni enk te bl st ee ord on oe es vy deutch pl ll dag et 0s Restauradores + 57 Isso segue uma légica, mas uma légica impiedosa. Nao podendo conservar ineélume 0 monumento, destrui- To, ou deixé-Io, sem reforgos e sem as inevitéveis reno- vases, morrer de sua morte natural, em paz. A arte do restauradr, volo a dizé-lo, € como ado cirurgio. melhor (quem nao o vé?) que o fragil corpo humano nao precisasse dos auxilios eirirgicos: mas nem todos eréem que seja melhor ver morrer o parente ou o amigo do que fazer com que Thes seja amputado um dedo ou que usem uma pera de pau, Disse no princfpio que a arte de restaurar é recente € que podia encontrar as suas teorias somente em uma sociedade que nao tivesse nenhum estilo seu na arte do Belo, mas que fosse capaz de compreendé-los e, quando oportuno, de amé-los todos. Encontramo-nos nesse caso hd pouco mais de meio século; mas, apesar de o tempo ser breve, até mesmo os eritérios sobre o restaurar se transformaram, prineipalmente nesses iltimos anos, Nem eu, senhores, confess0-o, sinto-me livre de alguma con- tradigao. Existe uma escola, jé velha, mas nao morta, e uma nova. O grande legislador da velha foi Viollet-le-Duc, its stones into neglected comers, make hills of them, or mortar, if you wil hut doit honestly and donot stupa Lie in their place” Em outro texto de Boito em que 6 abondads a restauragzo, Qustone Pratiche di Belle Art (Milano, Hoepli, 1898), oautorrepeteesnactagan tribuido-tFavtetto pinto Ciaora Favret nasi em Veneta em 1849 e moro em 1887) a “outs intspos” (p11), sem relacioné las Ruskin. Bit cit Ruskin mais sdiane(p. 19) arespeito de comentéion sobre Maran, quaifcando-o de fantétio. 58 + Camillo Boito que com seus estudos histéricos € criticos sobre a arte da Idade Média na Franca fez progredira historia e a erf- tica também na Itdlia. Foi também arquiteto, mas de va- lor contrastante, e restaurador, até hd pouco elevado aos céus por todos, agora afundado no inferno por muitos pelas suas mesmas obras na antiga cidade de Carcas- sonne, no castelo de Pierrefonds e em outros insignes monumentos. Fis a sua teoria, da qual derivou sua préti- cca: “Restaurar um edificio quer dizer reintegré-lo em um estado completo, que pode nfo ter existido nunca em um dado tempo”. Como fazer?{Colocamo-nos no lugar do arquiteto primitivo ¢ adivinhamos aquilo que ele teria feito se os acontecimentos o tivessem permitido finalizar a construgao. Essa teoria é cheia de perigos. Com ela nao ‘existe doutrina, nio existe engenho que sejam capazes de nos salvar dos arbftrios: e o arbftrio é uma mentira, uma falsificacao do antigo, uma armadilha posta aos vindou- ros. Quanto mais bem for conduzida a restauragio, mais a mentira vence insidiosa e o engano, triunfantg. Que diriam os senhores de um antiquitio que, tendo desco- berto, digamos, um novo manuserito de Dante ou de Petrarca, incompleto e em grande parte ilegfvel, se pro- pusesse a completar, de sua cabega, astutamente, sabia~ mente, as lacunas, de modo que nao fosse mais possivel dlstinguir 0 original dos acréscimos? Nao maldiriam a habilidade suprema desse falsdrio? E até mesmo poucos 12, Cl. a tradusto do texto de E.E, Viole-e-Duc, Reteuregd, Sto Paulo, Atel Estoril, 2000, p. 29, 0s Restauradores + 59 Perfodos, poucos voedbulos interpolados em um texto nao Thes enchem a alma de tédio e o cérebro de diividas? Aquilo que parece tio reprovavel no padre Piaggio no ~ monsieur|[sic] Silvestre, seria, ao contrétio, razio de lou- Vor para o arquiteto restaurador? Em 1830, Vitet foi nomeado inspetor geral dos mo- numentos histéricos na Franga e, cinco anos depois, foi substitufdo por Mérimée, aquele autor de graciosos ro- ‘mances, 0 qual chamava os italianos “un tas de fumistes et de musiciens”", e declarava desprovida de gosto e de imaginagao a arquitetura dos palécios venezianos, ¢ no- tava como toda a misica de Verdi et consorts se asseme- Thava a uma roupa de arlequim, e de Mili, dizia: “Vous ai-je parlé des cailles au riz qu’on mange & Milan? C'est ‘ce que jai trouvé de plus remarquable dans cette ville”, Isso importa pouco, mas Mérimée foi também secretério de uma Comissio eleita em 1837 para classificar e con- setvar os monumentos franceses, a qual falava coisas pre- ciosas. Ougam: Nunca se repete suficientemente que, em relagao a resta ragio, o primeiro e inflexivel prinespio ¢ este: ndo inovar, mesmo quando se fosse levado 2 inovagao pelo louvével intento de eom- pletar ou de embelezar. Convém deixar incompleto ¢ imperfeto tudo aquilo que se encontra incompleto e imperfeito. Nao é ne- 13, Em francés no orginal. “Um monte de levianos ede music”. A pala a fancessfamiste tanto se refre ao limpadr de chaminés quanto & tuma pestou que nio leva seu trabalho a sia. 14. En ances no orginal “Fall para vots sob a codons com arue que se-come em Mili? Eo que encontrei de tas netvel nessa cidade.” 60 + Camillo Boito ‘cessério permitir-se corrigir as irregularidades, nem alinhar os desvios, porque os desvios, as iregularidades, os defeitos de imetria so fats histéricos repletos de interesse, os quais frequen- temente fornecem os ertérios arqueol6gicos para confrontar uma época, uma escola, uma idéia simbélica. Nem acréscimos, nem supresses. Em 1837, realmente, “do dito ao feito existia uma grande distancia”; mas e agora? Nao poderia alguém in- terromper-me, gritando: “entre o dizer ¢ 0 operar existe em meio o mar?” Quanto me déi que a hora do almogo ‘me impega de poder mostrar-Ihes, senhores, em que ca~ sos certas excegdes devem vencer a santa regra geral, € como 0 Génio, que se chama civil, € a maior praga dos ‘monumentos italianos e, finalmente, de que modo 0 Go- ‘verno poderia e deveria reordenar utilmente seu gabine- te nessa maléria. Assim, sobre as restaurages arquite- tonicas, concluo: 1° E NECESSAIIO FAZER O IMPOSSIVEL, & NECESSAIIO FA~ ZUR MILAGRES PARA CONSERVAR NO NONUNENTO 0 SEU VELHO ASPECTO ARTISTICO . PITORESCO; 15, Nooriginal estas dus expresses, “dal dato a fatto erm un gran tat” fetta il dee il fae © in erzo il mare sgificam que existe wna fronde distineia entre falar eo fazer, Na tadugo, pocuro-se manter ttm poco da sonoridade das frases italiana. Boia, em Questione Pratche (Bele Ai (Milano, Hoepl, 1883) retoma ou, mesa repete itramente ‘certs rechos desta conferncis, Em relagdo ao panorama francés dos {tno 1830, alma (p- 13} ~Inquegi ann. per eodeste faced, ti die til fare cera in mezzo non un mare qalsas, ma TOceano, ora futtavia un logo eno stagno” [Naqueles anos. no que se efeve a esses feounte. entre o dizer opera exitia em mio no wm mar qualquer. fas 0 ocean agora exist todavia um lagoon un tanga Os Restauradores #61 2° F NECESSARIO QUE 05 COMPLETAMENTOS, SE INDISPEN- SAVEIS, E AS ADIGOES, SE NAO PODEM SER EVITADAS, DEMONS- TREN NAO SER OBRAS ANTICAS, MAS OBRAS DE HOJE. wee Antes de terminar, gostaria de dizer-Ihes, senhores, que me veio um remorso. Temo ter caluniado os séeulos passados ao repetir-lhes que sabemos excogitar melhor do que nossos predecessores as belezas do passado. O fato 6 verdadeiro; mas n6s pesquisamos, por exemplo, a Antiglidade Classica através do terso cristal da nossa critica erudita, aguda, pedante, esmiugadora, curiosa, enquanto, por exemplo, o Renascimento a via através da lente de seu préprio génio artistico singular e, jurando imitar, recompunha, reeriava. Tanto a nossa é uma pie dosa sabedoria infecunda, quanto aquela era uma inve- javel ignordncia prolifica. ‘Temos pouco com que nos alegrar. Pensando como 6 avaro, s6rdido 0 Balango do nosso Reino em tudo aquilo que se refere ds incontrastaveis glrias hist6rieas italia- has —0s monumentos, as artes, as indistrias artfsticas ~; pen- sando nos inumeraveis objetos belos de todas as espécies e de todos os tempos, que a velha Itélia soube realizar, ¢ que hoje a nova sabe vender, sente-se o rubor aquecer a face, ¢ recorda-se aquele rei ostrogodo, que, com a pena de Cassiodoro, escrevia ao prefeito de Roma: 0 decoro das construgies romanas exige que tenhamos um ccurador, para que essa admiravel abundancia de obras seja con- 62+ Camille Boito servada com diligéneia, A nossa generosidade no desiste da in- ‘tengo de manter as coisas antigas e de vestir as novas com a gl6- ria da antigaidade, E pensamos nas palavras de uma dama, dignas de serem repetidas, nio somente aos negociantes évidos, ‘mas também ao duque milionério, que vende aos estran- geiros a pintura de Pietro Perugino, ¢ ao conde milioné- rio, que vende aos estrangeiros a Familia de Dario, pin- tada por Paolo Veronese para os ancestrais do mesmo patricio vil que dela faz dinheiro. Havia pois em Floren- ga. um certo senhor Battista della Palla, homem facultoso, narra Varchi, e bom de prosa, que andava colecionando, quanto mais pudesse, esculturas e pinturas e medalhas ¢ outras coisas antigas, ¢ as mandava ao rei Franeiseo de Franga. Ora, ele tanto falou que persuadiu a Senhoria a dar ordem para que fossem pagos e depois retirados, para dé-las aquele rei, os ornamentos da cémara de Pierfran- cesco Borgherini, onde tinham trabalhado Tacopo da Pontormo, Granacei, Baccio d’Agnolo e Andrea del Sarto. Apresentou-se, com os mensageiros dos Senhores, Bat- tista della Palla na casa de Pierfrancesco, ¢ ali encon- trou a mulher deste, a senhora Margherita, filha de Ru- berto Aceiaiuoli, a qual disse: Pois entdo voo8 quer ousar, Giovambattista, vilissimo rega- tcador, mereadorzinho ordinério, arrancar 0s ormamentos das ¢&- tmaras dos fidalgos © despojar esta cidade das suas mais ricas ¢ hhonoréveis coisas, como fez e ainda faz para embelezar as locali- dades estrangeiras e 08 nossos inimigos? Isso, vindo de voeé, nfo Os Restauradores © 68 ‘me admira, homem plebeu e inimigo da sua pétria; mas des ma- gistrados desta cidade, que permitem essas suas abomi celeridades... Saia desta casa com essa sua quadrilha, Giovam- Dattista, e v4, e diga a quem 0 enviou, mandando que estas coisas sejam levadas de seu lugar, que eu sou aquela que nao quer que nada daqui de dentro se mova, Prouvera ao Céu, senhoras ¢ senhores, que um fato assim indigno e um amor como esse aquecessem 0 nosso Animo para preservar para a Ilia os monumentos da sua srandeza passada!

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