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Direito Natural e Constituicao Anotacoes
Direito Natural e Constituicao Anotacoes
1 – O direito natural existe? Qual é a sua utilidade para a discussão jurídica atual?
Eu gostaria de começar falando como e por que eu passei a estudar o direito natural
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a) O homem integral
Vou dar um exemplo de como isso funciona. Eu, bem no início da faculdade de
direito, fiquei fascinado pela teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann. É uma teoria
fantástica, com muitas aplicações para o direito. Vale a pena ser conhecida e
segundo um código binário próprio (para a economia: ter e não ter; para a política:
maioria e minoria; para o direito: lícito e ilícito, e assim por diante). A religião, na
que a teoria dos sistemas proporciona uma distorção. Como eu intuía que o direito,
conclusão possível (para mim) era abandonar Luhmann. Antes que apontem esse
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meu abandono como a atitude de um crente, advirto que, embora sempre tenha
sido católico, na época eu não tinha nenhuma prática nem formação religiosa; a
religião ocupava um espaço nulo na minha vida: foi uma decisão estritamente
racional.
É conhecida a história de Thomas More, um político inglês do século XVI que foi
canonizado. Hoje ele é, para nós católicos, santo. Ele morreu pelas mãos de
precedência espiritual sobre o papa. Para ele continuar vivo e ocupando os cargos
mais honrados do reino ele só precisaria prestar esse juramento, uma coisa de
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nada (todos nós, quando colamos grau na faculdade de direito, prestamos o
daquilo era tão mentiroso, tão repugnante intelectualmente, que More preferiu
morrer. Há, claro, a dimensão espiritual dessa escolha (ele não é santo por acaso),
mas há, também, a dimensão da probidade científica: ele se recusou a deixar que a
a vocês uma peça, escrita por Robert Bolt, chamada “A man for all seasons”, que
santo católico, resume em poucas palavras a cosmovisão católica (vou falar dela
porque é a que eu conheço e a que me parece a única correta). Diz ele, logo no início
outras coisas que jazem sobre a face da terra são criadas para
qual foi criado. Daí se segue que o homem deve tanto usar
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Importante salientar, desse trecho de Loyola, um dado que muitas vezes nos passa
Carl Schmitt costumava dizer que toda teoria política que se prezasse e tivesse
algum valor tinha que reconhecer que o homem é mau. Ele gostava de uma frase
com essas pessoas, que temos que construir o direito, e o direito pode apenas
impedir que o mundo piore muito. Se me perguntarem para que se deve estudar
direito, a única resposta que me parece satisfatória é esta: para evitar o genocídio.
mundo.
c) O direito e os direitos
A queda, no entanto, não mudou o universo criado por Deus, só mudou a nossa
posição nele. Se antes a nossa posição era de contato imediato e direto com Deus,
agora essa relação se dá de forma muito mais distanciada e pode ser agravada
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(Santo Tomás fala que os sucessivos pecados que o homem praticou depois da
do mal). Logo depois da queda, o homem ainda falava com Deus (Caim, já assassino,
tentou esconder o seu crime de Deus) e vivia muitos séculos. Depois disso Deus se
retirou, a vida ficou curta e perigosa, e Deus entrou de novo na jogada, enviou seu
reaprender) o que é certo e o que é errado e traz à tona o ideal — que já era
sabedoria e de que o sábio é, por definição, virtuoso. Trazendo isto para a nossa
discussão (eu já disse isso em sala de aula, sempre com espanto geral): se quiser
fazer bem o seu trabalho, o cientista (e o jurista, nessa linha) deve ser, em certa
Quando nós falamos em participação (em sentido leigo, e não em sentido filosófico),
nós podemos nos referir a certas condutas que um indivíduo faz na qualidade de
sua preferência). De outro lado, um indivíduo pode dar algo de seu para terceiros
(isso acontece quando alguém dá uma boa notícia a seus parentes, ele participa a
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Em sentido ontológico o conceito ilustra a dependência da criatura em face do
criador. Em relação a Deus, cada ente criado participa do ser de Deus de acordo
com certo grau que é indicado pela essência daquele ente (um cachorro participa
energia ontológica. Deus é a fonte do ser, uma fonte que não retira a sua existência
de nenhum ente alheio a si. Não à toa, Deus, muito antes de Popeye, assim se
alguém, podemos dizer que estamos imitando uma qualidade que é divina, já que
participação não é uma mera imitação, é mais do que isso. Quando participamos da
caridade de Deus, não só imitamos Deus mas nos tornamos Deus, aderimos
clássico católico é o livro “A imitação de Cristo”. Qual é a ideia que o título deste
livro evoca? A de que eu possa participar de Cristo a ponto de dizermos, como São
Paulo, que já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim (Gálatas, 2:20). A
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come Deus, que se integra não apenas à sua alma mas à sua corrente sanguínea, às
fibras dos seus músculos, e assim por diante. Aquele que participa ganha alguma
consulte os estudos do filósofo italiano Cornelio Fabro, além, é claro, das obras de
Mas, antes de tudo, o que é o direito para Santo Tomás? Para ele, uma lei “é uma
promulgada por uma autoridade competente” (S.t. I-II, 90,1–4). Tudo que estiver
A mente divina, o justo absoluto, a fonte da qual emana todo o direito, é Deus. A
essa dimensão do direito podemos chamar de direito divino. Nós não temos acesso
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O direito natural corresponde ao direito que pode ser apreendido pelo intelecto
seres humanos), pela revelação (os Dez Mandamentos são uma “ajuda” de Deus
natural que todos temos (São Paulo descreve o direito natural como a lei inscrita
homem (essa inscrição da lei natural no seu coração) seria o hardware, e a criação
Por último, o direito positivo corresponde ao direito instituído pelo Estado, que é a
realidade em toda a sua abrangência —, não há nenhuma oposição entre essas três
esferas (o direito divino, o direito natural e o direito positivo), mas uma relação de
direito natural, mesmo que não houvesse um tipo penal correspondente no direito
positivo, que participa de norma com igual conteúdo no direito natural, que
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participa da mente Divina, que reserva a si o direito de dar e tirar a vida de suas
criaturas.
Isso me lembra uma conversa que tive uma vez com um professor positivista da
PUC/SP. Ele se gabava de dizer que não se ocupava do sexo dos anjos (que para ele
era o direito natural) e que gastava o seu tempo só com aquilo que os juízes usavam
para decidir (para ele, o direito positivo). É claro que isso é uma petição de
princípio: se o critério para investigação científica for o que os juízes (ou juristas)
levam em conta para formulação dos seus juízos jurídicos, então basta que estes
usem o direito natural nos seus juízos, como os juízes fazem com o direito de
propriedade no Canadá, para o assunto deixe de ser banal para ser digno de
do direito positivo. (Eu acho que uma melhor formulação desse pensamento teria
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de ser: o conteúdo de uma regra do direito positivo não pode contrariar o direito
estabeleça, por hipótese, a cor dos uniformes dos guardas de trânsito, nós não
podemos dizer que esse conteúdo seja o direito natural, pois não há razão, extraível
do direito natural, para preferir uma cor a outra; nem tampouco um mandamento
divino sobre as cores — Deus deixou, me parece, esse campo livre para os gostos, e
direito natural não existe. É como se o positivista dissesse: como eu não sei como
chegar ao direito natural, prefiro nem investigar. Na verdade, o que está por trás
deste raciocínio é a ideia de tudo aquilo que é metafísico (isto é, tudo aquilo que
investigado. Com essa postura, como diz Arnaldo Vasconcelos, falando do fracasso
que cinde a realidade ao meio, contentando-se em ficar com a pior parte dela."
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Sobre o momento histórico em que ocorre essa rejeição positivista à metafísica,
que não temos tempo de discutir aqui, recomendo o meu posfácio à obra “A
Russell Hittinger, que tive a honra de traduzir e acabou de ser publicado pela
editora EDA.
Por isso é que uma linha mais produtiva dos modernos estudos sobre o direito
natural reconhece que o juízo sobre o que deve ser — que se dá em um contexto
de liberdade humana, em que tudo pode acontecer. Recomendo, sobre esse aspecto,
operação moral para saber o que fazer. Santi Romano oferece uma definição
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(...), que é o da vida social inteira” (Fragmentos de un diccionario jurídico. Buenos
aquela legislação sob o argumento de que violava a lei fundamental da terra e que
o rei não podia errar (the king can do no wrong). Era inconcebível (era uma
presunção absoluta) que o rei (a autoridade civil) pudesse querer instituir uma
por Deus e que não podem ser vulnerados pelo Estado. A Constituição portuguesa
direito”.
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O positivismo é um voluntarismo irracionalista, que outorga ao Estado um poder
positivismo em seu Estado puro na Alemanha nazista e nos estados totalitários que
um voluntarismo radical, não limitado nem mesmo pelo Estado e pelo direito
ser, e as tensões entre ambos os domínios têm de ser resolvidas por um ato
prudência.
3) O direito natural não oferece uma teoria do Estado, não oferece uma teoria
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julgamento da constituição e uma medida de julgamento de todo e qualquer
raciocínio jurídico.
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