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A teoria e a prática da pesquisa social qualitativa: este é o tema

— inédito na produção intelectual da Area da saúde — de que


trata este livro. E um texto fundamental para cientistas sociais, ) I )14.SA I:I()
epidemiologistas, planejadores do setor e para todas as
categorias sociais que compõem as equipes da saúde —
psicólogos, enfermeiros, nutricionistas e assistentes sociais. )( ONI 1144,CIMENT()
Escrito em linguagem acessível, serve plenamente a professores
e alunos de qualquer área universitária preocupados com a UNA ()I 1Ai ITA FIVA IM SAODE
abordagem da pesquisa social qualitativa.

ISBN 85-271-0181-5

9 85 P

HUCITEC-ABRASCO
SAÚDE EM DEBATE
HTULOS EM CATALOGO
Educação Popular nos Serviços de Scale, Eymard M. Vasconcelos
Educação Médica e Capitalismo, Lilia Blima Schraiber
Epidemiologia da Saúde Infantil (um Manual para Diagnósticos Comunitários), Feman C.
Barros e César G. Victora
Terapia Ocupacional: Lágica do Trabalho ou do Capital?, Lea Beatriz Teixeira Soares
Mulheres: "Sanitaristas de Pés Descalços", Nelsina Melo de Oliveira Dias
O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Smirk, Maria Cecilia de Souza Minay
Reforma da Reforma: Repensando a Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia para Municípios, J. P. Vaughan e R. H. Morrow
Distrito Sanitário: 0 Processo Social de Mudança das Práticas Sanitárias do Sistema Chaco de S e,
Eugênio Vilaça Mendes (org.)
Questões de Vida: Ética, Ciência e Saida, Giovanni Berlinguer
0 Medico e Seu Trabalho: Limites da Liberdade, Lilia B. Schraiber
Ruído: Riscos e Prevenção, Ubiratan Paula Santos et al.
Informações em Saúde: Da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania, Ilara H. Sozzi
Moraes
Saber Preparar uma Pesquisa, A.-P. Contandriopoulos et al.
Os Estados Brasileiros e o Direito a Saúde, Sueli G. Dallari
Uma História da Saúde Pública, George Rosen
Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde, Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves
Os Muitos Brasis: Saúde e População na década de 80, Maria Cecilia de Souza Minayo (org.) 0 DESAFIO DO CONHECIMENTO
Da Saúde e das Cidades, David Capistrano Filho
Aids: Ética, Medicina e Tecnologia, Dina Czeresnia et al. (orgs.)
Aids: Pesquisa Social e Educação, Dina Czeresnia et al. (orgs.) Pesquisa Qualitativa em Saúde
Maternidade: Dilema entre Nascimento e Morte, Ana Cristina d'Andretta Tanaka
Memória da Salida Pública. A Fotografia como Testemunha, Maria da Penha C. Vasconce
(coord.)
Relação Ensino/Serviços: Dez anos de integração docente assistencial (IDA) no Brasil, Regina
Giffoni Marsiglia
Velhos e Novos Males da Salida no Brasil, Carlos Augusto Monteiro (org.)
Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Salida Coletiva, Ana Maria Canesqui (org.)
0 "Mito" da Atividade Física e Saúde, Yara Maria de Carvalho
Saúde & Comunicação: Visibilidades e Silêncios, Aurea M. da Rocha Pitta
Profissionalização e Conhecimento: a Nutrição em Questão, Maria Lúcia Magalhães 13osi
Nutrição, Trabalho e Sociedade, Solange Veloso Viana 11.
Uma Agenda para a Saúde, Eugênio Vilaça Mendes
Ética da Saúde, Giovanni Berlinguer
A Construção do SUS a partir do Município: Etapas para a Municipalizaçao Plena da Salida, Silviat.
da Silva
Sobre o Risco. Para Compreender e Epidemiologia, José Ricardo de C. Mesquita Ayres
Ciências Sociais e Saúde, Ana Maria Canesqui (org.)
Agir em Saúde (um desafio para o público), Emerson Elias Merhy e Rosana Onocko (orgs.)
Contra a Mare A Beira-Mar: A Experiência do SUS em Santos, Florianita Coelho Braga Camp e
Claudio Maierovitch P. Henriques (orgs.)
A Era do Saneamento. As Bases da Política de Saúde Pública no Brasil, Gilberto Hochman
0 Adulto Brasileiro e as Doenças da Modernidade: Epidemiologia das Doenças Crônicas N -
Dansmissfveis, Ines Lessa (org.)
A Organização da Salida no Nível Local, Eugênio Vilaça Mendes (org.)
Mudanças na Educação Media e Residência Medica no Brasil, Laura Feuerwerker
A Mulher, a Sexualidade e o Trabalho, Eleonora Menicucci de Oliveira
A Educação dos Profissionais de Salida da America Latina. Teoria e Prática de um Movimento de
Mudança. I — Um Olhar Analítico, Márcio Almeida, Laura Feuerwerker e Manuel Llanb s
C. (orgs.)
A Educação dos Profissionais de Salida da America Latina. Teoria e Prática de um Movimento de
Mudança. II — As Vozes dos Protagonistas, Mário Almeida, Laura Feuerwerker e Manuel r,
1.1anos C. (orgs.)
Sobre a Sociologia da Saúde, Everardo Duarte Nunes
Clencias Socials e Saúde Para o Ensino Medico, Ana Maria Canesqui (org.)
Eiluakaa Popular e a Atenção à Snide da Família, Eymard Moult° Vasconcelos
Um Milo& Para Análise e Co-Genii:01k Coletivos, Gastão Wagner de Souza Campos
A Ciboria da Saúde, Naomi. de Almeida Filho

A ill IX )4 I /MAN TIIA 1%I t IkAD "SADIti EM DEBATE" ACHA-SE NO FINAL DO LIVRO
1

DA MESMA AUTORA, NA EDITORA HUCITEC MARIA CECÍLIA DE SOUZA MINAYO


0 Limite da Exclusão Social: Meninos e Meninos de Rua no Brasil, 1993, (esgotado)
Os Muitos Brasis: Saúde e População na década de 80, 2. ed., 1999.

0 DESAFIO DO CONHECIMENTO
Pesquisa Qualitativa em Saúde

SÉTIMA EDIÇÃO

HUCITEC-ABRASCO
São Paulo-Rio de Janeiro, 2000
0, Direitos autorais, 1992, de Maria Cecilia de Souza Minayo. Direitos de publicação
reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 São Paulo,
Brasil. Telefones: (011)240-9318, 542-0421 e 543-3581. Vendas: (011) 543-5810. Fac-
simile: (011)530-5938.

E-mail: hucitec@mandic.com.br

Home page: www.hucitec.com.br


SUMARIO
Foi feito o Depósito Legal.

Introdução 0 DESAFIO DO CONHECIMENTO 9


Capitulo I INTRODUÇÃO A METODOLOGIA DE
PESQUISA SOCIAL 19
Capitulo 2 FASE EXPLORATÓRIA DA PESQUISA 89
Capitulo 3 FASE DE TRABALHO DE CAMPO 105
Capitulo 4 FASE DE ANALISE OU TRATAMENTO DO
MATERIAL 197
Conclusão 249
Bibliografia 255

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Sandra Regina Vitzel Domingues)
M 615 Minayo, Maria Cecilia de Souza
0 desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em
saúde. /Maria Cecilia de Souza Minayo. — 7. ed. — São
Paulo : Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2000.
269 p.; 21 cm. — (Saúde em Debate; 46)
Bibliografia: p. 255
ISBN 85-271-0181-5

1. Pesquisas Sociais — Metodologia 2. Saúde Pública—


Pesquisa I. Titulo II. Série

CDD - 614.072
Índice para catálogo sistemático:

1. Pesquisas Sociais: Metodologia 614.072


2. Pesquisas: Saúde Pública 614.072
196 FASE DE TRABALHO DE CAMPO

como componentes de classes em oposição, na sociedade capitalista.


Essa concepção que politiza o conceito vai ao encontro da visão
especifica das classes trabalhadoras que se expressam através da
resistência cultural e de forma politicamente organizada. Os traba-
lhadores e profissionais do setor que representam a saúde como
direito individual e coletivo rompem a concepção centrada no bio-
lógico, no individual, na harmonia e equilíbrio sociais. Fazem da CAPÍTULO 4
saúde uma meta a ser conquistada, como um bem que se adquire FASE DE ANALISE OU TRATAMENTO DO
através dos conflitos e da luta de classe. MATERIAL
No entanto, a epidemiologia social encontra seu limite no para-
digma que institui apenas o corpo como o espaço da saúde/doença.
Seu desafio atual é encontrar na teoria e na prática a totalidade
fundamental do ser humano. OS PESQUISADORES costumam encontrar três grandes obtd-
culos quando partem para a análise dos dados recolhidos no campo
(documentos, entrevistas, biografias, resultados de discussão em
grupos focais e resultados de observação).
O primeiro deles é o que Bourdieu denomina "ilusão da transpa-
rência" isto 6, o perigo da compreensão espontânea como se o real se
mostrasse nitidamente ao observador. Essa "ilusão" é tanto mais
perigosa, quanto mais o pesquisador tenha a impressão de familia-
ridade com o objeto. Trata-se de uma luta contra a sociologia ingênua
e o empirismo, que acreditam poder apreender as significações dos
atores sociais mas apenas conseguem a projeção de sua própria
subjetividade.
O segundo escolho é o que leva o pesquisador a sucumbir à magia
dos métodos e das técnicas, esquecendo-se do essencial, isto 6, a
fidedignidade as significações presentes no material e referidas a
relações sociais dinâmicas.
O terceiro obstáculo, muito comum na interpretação dos traba-
lhos empíricos, é a dificuldade de se juntarem teorias e conceitos
muito abstratos com os dados recolhidos no campo. Isso se refere a
trabalhos cuja elaboração teórica fica distanciada das descrições,
geralmente marcadas pela "ilusão da transparência"..
Uma análise do material recolhido busca atingir a três objetivos:
— ultrapassagem da incerteza: o que eu percebo na mensagem, esta-
rd Id realmente contido? Minha leitura será válida e generalizável?
— enriquecimento da leitura: como ultrapassar o olhar imediato e
197
1
198 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 199
espontâneo e já fecundo em si, para atingir a compreensão de outros conceitos. 0 termo "Análise do Discurso" por exemplo,
significações, a descoberta de conteúdos e estruturas latentes? tomado por Bardin (1979: 214-220) como uma técnica de Análise de
— integração das descobertas que vão além da aparência, num Conteúdo, é concebido por seus criadores como próprio para desig-
quadro de referência da totalidade social no qual as mensagens se nar um campo de conhecimento com teoria e método, capaz de
inserem (Bardin: 1979, 29). destruir e substituir a análise de conteúdo tradicional.
Noutras palavras, a análise do material possui três finalidades Por outro lado, passou a ser importante trazer para o âmbito desse
complementares dentro da proposta de investigação social: (a) a debate a recente reflexão sobre a análise hermenêutico-dialética. );
primeira é heurística. Isto 6, insere-se no contexto de descoberta das Proposta por Habermas no seu diálogo com Gadamer (1987) como
pesquisas. Propoõe-se a uma atitude de busca a partir do próprio uma metodologia de abordagem da comunicação, a hermenêutica-
material coletado; (b) a segunda é de "administração de provas". dialética supera o formalismo das análises de conteúdo e do discur-
Parte de hipóteses provisórias, informa-as ou as confirma e levanta so, indicando "um caminho do pensamento". No entanto, os recursos
,outras; (c) a terceira é a de ampliar a compreensão de contextos técnicos para sua operacionalização não fazem parte das preocu-
culturais com significações que ultrapassam o nível espontâneo das pações de seu autor.
mensagens. Neste estudo, tentamos discutir as três possibilidades menciona-
Os pontos levantados acima são bastante comentados por Bardin das, encaminhando nossa preferência pelas vias apontadas pela
(1979: 27-30). Poderíamos dizer que, com expressões mais ou menos hermenêutica-dialética. Essa escolha se fundamenta na busca de um
semelhantes, correspondem a um âmbito de consenso entre inves- instrumental que corresponda As dimensões e A dinâmica das rela-
tigadores. ções que apreendemos numa pesquisa que toma como objeto a SAÚDE
As divergências e dificuldades começam quando se parte para a em suas mais diversas facetas: concepções, política, administração,
tarefa concreta de análise do material coletado. Ai não existe con- configuração institucional entre outras, enquanto representações
cordância nem quanto a pressupostos teóricos e nem quanto a 1 sociais e análise de relações.
métodos e técnicas a serem empregados. Além disso, nota-se certa
repugnância dos pesquisadores em tornar evidente a sua "hesitante
alquimia" para transformar dados brutos em descobertas finais. Tal ANALISE DE CONTEÚDO
fato não é de se desprezar porque freqüentemente oculta aquele A expressão mais comumente usada para representar o tratamento
estado nebuloso, limbic°, no trabalho de pesquisa social, que pode dos dados de uma pesquisa qualitativa é Análise de Conteúdo. No
ao mesmo tempo esconder alta criatividade e procedimentos analí- entanto, o termo significa mais do que um procedimento técnico. Faz
ticos pouco confiáveis técnica e cientificamente. parte de uma histórica busca teórica e prática no campo das investi-
Nossa intenção é discutir essa fase da pesquisa, trazendo a luz os gações sociais.
avanços, os recuos e os debates referentes A análise do material Segundo Bardin, a Análise de Conteúdo pode ser definida como:
qualitativo.
Aqui se instaura uma polêmica que tem a ver com os próprios "Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando
limites do conhecimento e com a luta intelectual para ultrapassá-los. obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do
"Análise de Conteúdo" poderia ser um termo genérico a ser usado conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que
para designar o tratamento dos dados. Como vamos ter oportu- permitam a inferência de conhecimentos relativos As condições de
nidade de refletir, no entanto, trata-se de um conceito historicamente produção/recepção destas mensagens" (Bardin: 1979, 42).
construido, com implicações teórico-metodológicas e em oposição a
200 FASE DE ANALISE FASE DE ANÁLISE 201

0 fator comum dessas múltiplas técnicas, desde o cálculo de enunciados de um texto, seu encadeamento, e as regras formais que
freqüências que fornece dados cifrados, até A ex tração de estruturas validam o raciocínio.
traduzíveis em modelos, é uma hermenêutica baseada na dedução, a 0 termo "Análise de Conteúdo" é uma expressão atual. Surge nos
INFERtNCIA. Estados Unidos na época da Primeira Guerra Mundial. 0 campo mais
A Análise de Conteúdo na sua história mais recente, isto 6, enquanto propicio para o seu desenvolvimento foi o jornalismo da Univer-
técnica de tratamento de dados considerada cientificamente, é cau- sidade de Colfimbia. Dentre os nomes que ilustram a história dessas
.,/ dataria das metodologias quantitativas, buscando sua lógica na técnicas destaca-se Lasswell que fazia análise de material de impren-
Ninterpretação cifrada do material de caráter qualitativo. Berelson, sa e de propaganda desde 1915. Sua obra principal Propaganda
um dos pais teóricos da análise de conteúdo nos Estados Unidos, Tecnique in the World War foi publicada em 1927.
assim a define: Nessa época, em todos os ramos das ciências crescia o fascínio pela
contagem e pelo rigor matemático. Assim, também na Análise de
"E uma técnica de pesquisa para descrição objetiva, sistemática e Conteúdo o rigor cientifico invocado é a pretensa objetividade dàs
quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações e tendo por fim números e das medidas.
interpretá-los" (Berelson: 1952, 18). A partir da década de 40, os Departamentos de Ciências Políticas
das universidades americanas tornaram-se o locus de desenvolvi-
Os grifos anteriores colocados por nós, têm a intenção de enfatizar mento da Análise de Conteúdo, tendo como material privilegiado as
os adjetivos usados por Berelson, lembrando que eles fazem parte do comunicações da Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de desmas-
vocabulário da sociologia positivista, como já temos repetido várias carar os jornais e periódicos suspeitos de propaganda considerada
vezes e em diversos momentos do trabalho. A relevância concedida subversiva, de caráter nazista. Lasswell continuava seus trabalhos
ao quantitativo e ao conteúdo manifesto das comunicações, quando sobre análise de símbolos. A ele juntaram-se estudiosos das mais
se trata de uma análise de material qualitativo, remete-nos A tradicio- diferentes Areas: sociólogos, psicólogos, cientistas politicos. 0 marco
nal discussão sobre a especificidade do material próprio As ciências distintivo dessa época são as análises estatísticas de valores, fins,
sociais, particularmente sobre a questão da SIGNIFICAÇÃO. normas, objetivos e simbolos. A preocupação da objetividade e da
Historicamente a Análise de Conteúdo Clássica tem oscilado entre sistematicidade solidificou-se no rigor quantitativo para se contra-
o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade da por ao que os cientistas denominavam "apreensão impressionista".
subjetividade. A grande importância dessa técnica de função heuris- Do ponto de vista metodológico, Berelson e Lazarsfeld se proje-
tica tem sido a de impor um corte entre as intuições e as hipóteses taram nas Universidades de Colfunbia (NY) e de Chicago, sistemati-
que encaminham para interpretações mais definitivas. Essa tentativa zando as preocupações epistemológicas da época. Em The Analysis of
faz parte de um esforço teórico secular. Communications Content (1948) os critérios fundamentais então exi-
A arte de interpretar os textos sagrados, a exegese religiosa, coloca gidos para testificar o rigor cientifico estão assim resumidos: (a)
a hermenêutica, por exemplo, como uma técnica muito antiga. A trabalhar com amostras reunidas de maneira sistemática; (b) interro-
atividade de desvendamento de mensagens obscuras, do duplo gar-se sobre a validade dos procedimentos de coleta e dos resulta-
sentido de um discurso geralmente simbólico e polissêmico, remonta dos; (c) trabalhar coin codificadores que permitam verificação de
A Antiguidade. Bardin situa a Retórica e a Lógica também como fidelidade; (d) enfatizar a análise de freqüência como critério de
práticas milenares de tratamento de discurso, anteriores A atual objetividade e cientificidade; (e) ter possibilidade de medir a pro-
técnica de Análise de Conteúdo. A Retórica estuda as modalidades dutividade da análise.
de expressão próprias de uma fala persuasiva. A lógica analisa os Berelson, Lazarsfeld e Lasswell são verdadeiros marcos criadores
202 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 203
de um instrumental de análise. Neles, a obsessão pela objetividade e abordagem quantitativa e a qualitativa na análise do material de
o rigor se confundem com os pressupostos do positivismo, excluindo- comunicação. Em relação ao primeiro ponto de vista predominam as
se outras possibilidades de exploração de material qualitativo. Seus idéias de Berelson, Lazarsfeld e Lasswell acrescidas de novas formas
nomes, seus trabalhos e influência continuam marcantes e ainda de procedimento, todas elas buscando "medidas" para as signifi-
atuais em relação à problemática do tratamento dos dados. cações, como critério de cientificidade (Osgood et alii: 1957).
No período posterior A Segunda Guerra a análise de conteúdo Os adeptos das técnicas qualitativas aprofundam sua argumenta-
sofreu seus anos de depressão. Os próprios criadores da técnica ção dentro da seguinte linha: (a) colocam em cheque a minúcia da
parecem refluir seus ânimos e se desencantaram das repercussões de análise de freqüência como critério de objetividade e cientificidade;
seus trabalhos para o avanço do conhecimento. E de Berelson a (b) tentam ultrapassar o alcance meramente descritivo do conteúdo
seguinte frase citada por Bardin: manifesto da mensagem, para atingir, mediante a inferência, uma
interpretação mais profunda.
"A Análise de Conteúdo como método não possui qualidades Atualmente as discussões acima colocadas continuam presentes
mágicas e raramente se retira mais do que nela se investe e algu- e vários fatores tendem a alimentar o debate teórico e técnico. A
mas vezes menos (...) no final das contas nada há que substitua as informática e a semiótica são duas areas que hoje influenciam defi-
idéias brilhantes" (Bardin: 1979, 20). nitivamente, embora de forma diferente, as modalidades de trata-
mento dos dados de comunicação. Os "cérebros eletrônicos" atua-
A constatação do citado autor demonstra um baixar de armas. Por lizam com maior rigor técnico as tendências quantitativistas na
outro lado, se a submetermos A análise de seu próprio conteúdo análise do conteúdo. De outro lado, os estudos referentes A comuni-
perceberemos que ela contém uma "brilhante idéia". Mostra que o cação não-verbal vêm complexizar o campo de trabalho revelando
rigor matemático pode ser uma meta e vir junto com outras formas novo dinamismo na compreensão das SIGNIFICAÇÕES.
de validação, mas nunca substituir a percepção de conteúdos latentes 0 resumo das tendências históricas da Análise de Conteúdo
e intuições não passíveis de quantificação. conduz-nos a uma certeza. Todo o esforço teórico para desenvolvi-
A partir dos anos 50 e sobretudo na década de 60 a questão da mento de técnicas, visa — ainda que de formas diversas e até
Análise de Conteúdo ressurge, desta vez dentro de um debate mais contraditórias — a ultrapassar o nível do senso comum e do subjeti-
aberto e diversificado. A Antropologia, a Sociologia, a Psicologia vismo na interpretação e alcançar uma vigilância critica frente A
juntam-se A Psicanálise, ao Jornalismo, e há uma retomada de pro- comunicação de documentos, textos literários, biografias, entrevistas
blemáticas anteriormente quase intocáveis. No plano epistemológi- ou observação.
co confrontam-se duas concepções de comunicação: (a) o modelo Do ponto de vista operacional, a análise de conteúdo parte de urna
"instrumental" que defende o seguinte ponto de vista: numa co- literatura de primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado:
municação o mais importante não 6 o conteúdo manifesto da mensa- aquele que ultrapassa os significados manifestos. Para isso a análise
gem (como defendia Berelson) mas o que ela expressa graças ao de conteúdo em termos gerais relaciona estruturas semânticas (signi-
contexto e As circunstâncias em que se dá; (b) o modelo "representa- ficantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados.
cionar que (Id fundamental importância ao conteúdo lexical do Articula a superfície dos textos descrita e analisada com os fatores que
discurso. Isto 6, defende a idéia de que através das palavras da determinam suas características: variáveis psicossociais, contexto
mensagem podemos fazer uma boa análise de conteúdo, sem nos cultural, contexto e processo de produção da mensagem.
atermos ao contexto e ao processo histórico.
Do ponto de vista metodológico aprofunda-se a polêmica entre a
204 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 205
Técnicas de Análise de Conteúdo o analista observa que cada vez que ela define sua situação, a doença
aparece vinculada A situação financeira. No caso existe correlação
Na busca de atingir os Significados manifestos e la tentes no entre esses elementos.
material qualitativo têm sido desenvolvidas várias técnicas como Osgood (1959, 197) propõe a seguinte seqüência de procedimentos
Análise de Expressão, Análise de Relações, Análise Temática e para a análise de co-ocorrências: (a) escolha da unidade de registro
Análise da Enunciação. Estudando as propostas de cada uma dessas (essa pode ser uma palavra-chave, p. exemplo) e a categorização por
modalidades perceberemos que cada uma enfatiza aspectos a serem temas; (b) escolha das unidades de contexto e o recorte de texto em
observados nos textos dentro de pressupostos específicos. Passamos fragmentos (pode ser, por exemplo, parágrafos); (c) presença ou
a enumerá-las dando atenção maior A Análise da Enunciação e A Aná- ausência da cada unidade de registro em cada unidade de contexto;
lise Temática por serem as formas que melhor se adequam A investi- (d) cálculo de co-ocorrências; (e) representação e interpretação de
gação qualitativa do material sobre Saúde. resultados.
A utilidade maior da análise de co-ocorrência tem sido no esclare-
I — Análise da Expressão cimento das estruturas da personalidade, na análise das preocu-
pações latentes tanto individuais como coletivas, para análise de
Designa um conjunto de técnicas que trabalham indicadores para estereótipos e de representações sociais (Bardin: 1979; Osgood: 1959;
atingir a inferência formal. A hipótese aqui implícita 6 a de que existe Unrug: 1974).
uma correspondência entre o tipo de discurso e as características do A Análise Estrutural passa a ser bastante exercitada a partir da
locutor e de seu meio. Enfatiza a necessidade de conhecer os traços década de 60 e tem como pressuposto fundamental a crença na
pessoais do autor da fala, sua situação social e os dados culturais que existência de estruturas universais ocultas sob a aparente diversida-
o moldam. de dos fenômenos. Os estruturalistas buscam o imutável e perma-
Esse tipo de análise trabalha com indicadores lexicais, com o estilo, nente sob a heterogeneidade aparente. Por trás dessa busca está a
oencadeamento lógico, com o arranjo das seqüências, com a estrutura noção de sistema. Analisar significará, pois, reencontrar as mesmas
da narrativa. Sua aplicação mais comum tem sido na investigação da engrenagens, quaisquer sejam as formas do mecanismo. A signifi-
autenticidade de documentos, para a psicologia clinica, para a análise cação, no caso, fica subordinada A estruturação.
de discursos politicos e/ ou persuasivos (Bardin: 1979; Unrug: 1974). A análise não se aplica ao vocabulário, à semântica ou ao ternário
da mensagem em si. Ela se dirige A organização subjacente, ao siste-
II — Análise das Relações ma de relações, As regras de encadeamento, de associação, de ex-
clusão e de equivalência. Isto 6, ela trabalha com todas as relações que
Designa técnicas que, ao invés de analisar a simples freqüência de estruturam os elementos (signos e significações) mas de maneira
aparição de elementos no texto, preocupam-se corn as relações que os invariante e independente dos elementos (Bardin: 1979; Lévi-Strauss:
vários elementos mantêm entre si, dentro de um texto. 1964; Barthes: 1967).
Sao duas as principais modalidades de análise das relações: (a) a
de co-ocorrêricias e a (b) estrutural. III — Análise de Avaliação ou Representacional
A análise de co-ocorrências procura extrair de um texto as relações
entre as partes de uma mensagem e assinala a presença simultânea Elaborada por Osgood (1959) tem por finalidade medir as atitudes
(co-ocorrência) de dois ou mais elementos na mesma unidade de do locutor quanto aos objetos de que fala (pessoas, coisas, aconteci-
contexto. Por exemplo, no estudo do discurso de uma doente mental mentos). Seu pressuposto 6 de que a linguagem representa e reflete
206 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANÁLISE 207

quem a utiliza. Portanto podemos nos contentar com os indicado- A entrevista aberta é o material privilegiado da análise da enun-
res explícitos na comunicação para fazer inferências a respeito do ciação, no sentido de que se trata de um discurso dinâmico onde
emissor. espontaneidade e constrangimento são simultâneos, onde o trabalho
O conceito básico da Análise Avaliativa é atitude. Uma atitude de elaboração se configura ao mesmo tempo como emergência do
seria a predisposição relativamente estável e organizada para reagir inconsciente e construção do discurso.
sob a forma de opiniões ou de atos em presença de objetos (pessoas, Em termos operacionais a analise da enunciação segue o seguinte
ideias, coisas, acontecimentos) de maneira determinada. roteiro: (a) Estabelecimento do Corpus: delimitação do número de
Uma atitude seria o núcleo ou matriz que produz e traduz um entrevistas a serem trabalhadas. A qualidade da análise substitui a
conjunto de juizos de valor. A analise avaliativa consistiria ern quantidade do material. Leva-se em conta a questão central e objetiva
encontrar as bases destas atitudes por trás da dispersão das mani- da pesquisa para delinear as dimensões do Corpus; (b) Preparação do
festações verbais. É semelhante A análise temática enquanto separa Material: cada texto (entrevista) é uma unidade básica. Começa-se
o texto em unidades de significagdo. Seu objetivo porém é especifico: pela transcrição exaustiva de cada pegs, deixando-se uma margem (A
atem-se somente A carga avaliativa das unidades de significação direita ou A esquerda) para anotações. A transcrição conserva tanto
tomadas em conta, em termos de dire* e de intensidade dos juizos o registro da palavra (significantes) como dos silêncios, risos,
selecionados (Bardiit 1979; Osgood: 1959). repetições, lapsos, sons etc.); (c) As Etapas da Análise: na análise de
enunciação cada entrevista é submetida a tratamento como uma
IV — Análise da Enunciação totalidade organizada e singular. São observados em cada uma os
seguintes aspectos: (1) o alinhamento e a dinâmica do discurso para
Apoia-se numa concepção de comica do como processo e não se encontrar a lógica que estrutura cada peça; (2) o estilo; (3) os
como um dado estático, e do discurso como palavra em ato. 1A análise elementos atípicos e as figuras de retórica.
da enunciação considera que na produção da palavra elabora-se ao 1. Primeiramente, a partir da observação do encadeamento das
mesmo tempo um sentido e operam-se transformações,,Por isso o proposiçõesl° faz-se uma análise lógica. Separam-se por barra ou
discurso não é um produto acabado, mas um momento de criação de recopiam-se todas as orações observando-se as relações que ressal-
significados com tudo o que isso comporta de contradições, incoerên- tam a forma de raciocínio.
cias e imperfeições.ILeva em conta que, nas entrevistas, a produção Em segundo lugar se realiza a análise seqüencial, que se preocupa
é ao mesmo tempo espontânea e constrangida pela situação. Portanto com a maneira de construção do texto, pondo em evidência o ritmo,
a análise da enunciação trabalha com: (a) as condições de produção a progressão e a ruptura do discurso;
da palavra. Parte do principio que a estrutura de qualquer comuni- 2.0 Estilo: dentro da analise de enunciação o estilo é um revelador
cação se dá numa triangulação entre o locutor, seu objeto de discurso do locutor, de seu contexto e de seus interlocutores, no sentido de que
e o interlocutor. Ao se expressar, o locutor projeta seus conflitos a expressão e o pensamento caminham la do a lado. É importante tê-
básicos através de palavras, silêncios, lacunas, dentro de processos, lo,ern conta;
na sua maioria, inconscientes; (b) o continente do discurso e suas 3. Os Elementos Atípicos e as Figuras de Retórica: na analise da
modalidade:. Essa aproximação se da através de: (1) análise sintática enunciação torna-se fundamental observar: (a) as repetições de um
e paralingiiistica: estudo das estruturas gramaticais; (2) análise lógi- mesmo tema ou de uma mesma palavra dentro de um texto. Essa
ca: estudo do arranjo do discurso; (3) análise dos elementos formais
10 Por proposição entende-se uma afirmação, declaração, juizo. E uma unidade que
atípicos: silêncios, omissões, ilogismos; (4) realce das figuras de
retórica. basta a si mesma, que pronunciada sozinha tem sentido.
208 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANALISE 209

repetição pode ser indicador da importância do termo, da sua Para Unrug o tema 6:
ambivalência, da denegação enquanto tentativa de convencimento
de uma idéia, da presença de uma idéia recusada; (b) os lapsos podem "uma unidade de significação complexa de comprimento variável,
significar a insistência não-dominável de uma idéia recusada. Segun- a sua validade não é de ordem lingüística, mas antes de ordem
do a psicanálise, a erupção irracional num contexto da racionalidade psicológica. Pode constituir um tema tanto uma afirmação como
significa uma quebra de defesa do locutor; (c) os ilogismos, isto 6, os uma alusão" (Unrug: 1974, 19).
emperramentos nos raciocínios demonstrativos. Costumam ser in-
dicativos de uma necessidade de justificação, ou de um juizo em Fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de
contradição com a situação real; (d)os "lugares comuns". Têm um papel t ido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência
justificador. Podem apelar para a cumplicidade do interlocutor signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado. Ou seja,
(frases feitas, provérbios culturalmente partilhados). Também, por tradicionalmente, a análise temática se encaminha para a contagem'
vezes, têm a função de desviar a atenção do entrevistador e indicar a de freqüência das unidades de significação como definitórias do
recusa de aprofundar determinados assuntos; (e) os jogos de palavras: caráter do discurso. Ou, ao contrário, qualitativamente a presença de q".....
os chistes podem indicar descontração mas também a tentativa de (determinados temas denota os valores de referência e os modelos de)
distanciamento de uma questão; (I) as figuras de retórica. Elas jogam Çomportamento presentes no discurso.
com o sentido das palavras. As mais comuns são: o paradoxo (reunião Operacionalmente a análise temática desdobra-se em três etapas:
de duas idéias aparentemente irreconciliáveis); a hipérbole (o aumen-
to ou a diminuição excessiva das coisas); a metonimia (uso da parte 1) A Pré-Análise
pelo todo, do abstrato pelo concreto e vice-versa); a metáfora (designa Consiste na escolha dos documentos a serem analisados; na reto-
uma coisa por outra). mada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, reformulan-
Em suma, a proposta da Análise de Enunciação é conseguir, do-as frente ao material coletado; e na elaboração de indicadores que
através do confronto entre a análise lógica, a análise seqüencial e a orientem a interpretação final.
análise do estilo e dos elementos atípicos de um texto, a compreen- Pode ser decomposta nas seguintes tarefas:
são do significado. A conexão entre os temas abordados e seu Leitura Flutuante: do conjunto das comunicações. Consiste em
processo de produção evidenciariam os conflitos e contradições que tomar contato exaustivo com o material deixando-se impregnar pelo
permeiam e estruturam o discurso. seu conteúdo. A dinâmica entre as hipóteses iniciais, as hipóteses
emergentes, as teorias relacionadas ao tema tornarão a leitura pro-
V — Análise Temática gressivamente mais sugestiva e capaz de ultrapassar à sensação de
caos inicial.
A nog-do de TEMA está ligada a uma afirmação a respeito de Constituição do Corpus: Organização do material de tal forma que
determinado assunto. Ela comporta um feixe de relações e pode ser possa responder a algumas normas de validade: exaustividade (que
graficamente apresentada através de uma palavra, uma frase, um contempla todos os aspectos levantados no roteiro); representativida-
resumo. Segundo Bardin: de (que contenha a representação do universo pretendido); homogenei-
dade (que obedeça a critérios precisos de escolha em termos de temas,
"0 tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente técnicas e interlocutores); pertinência (os documentos analisados
de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve devem ser adequados ao objetivo do trabalho).
de guia à leitura" (Bardin: 1979: 105). Formulação de Hipóteses e Objetivos. Em relação ao material qualita-
210 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 211
tivo, a proposta do primado do quadro de análise sobre as técnicas é Como se pode perceber, a análise temática é bastante formal e
controversa. Há autores como P. Henry e S. Moscovici (1968) e Parga mantém sua crença na significação da regularidade. Como técnica ela
Nina (1983) que privilegiam os procedimentos exploratórios em lugar transpira as raizes positivistas da análise de conteúdo tradicional.
de procedimentos fechados preestabelecidos. Entendemos que há Porém há variantes na abordagem que no tratamento dos resultados
necessidade de se estabelecer hipóteses iniciais pois a realidade não trabalha com significados em lugar de inferências estatísticas. Essas
é evidente: responde a questões que teoricamente lhe são colocadas. variantes, de certa forma, reúnem, numa mesma tarefa interpretativa,
Porém esses pressupostos iniciais têm que ser de tal forma flexíveis os temas como unidades de fala, propostos, como foi exposto ante-
que permitam hipóteses emergentes a partir de procedimentos ex- riormente, pela análise da enunciação.
ploratórios.
Nessa fase pré-analítica determinam-se a unidade de registro ,
(palavra-chave ou frase), a unidade de, contexto (a delimitação do ANALISE DO DISCURSO
contexto de compreensão da unidade de registro), os recortes, a Análise do Discurso é um conceito relativamente jovem no campo
forma de catég_oriz_agão, a modalidade de codificação e os conceitos de interseção entre as Ciências Sociais e a Lingüfstica. Seu criador é
teóricos
_ _ _ mais gerais que orientarão a andlise. o filósofo francês Michel Pêcheux que fundou, na década de 60, a
"Escola Francesa de Análise do Discurso" com a proposta de substi-
2a) Exploração do Material tuir a Análise de Conteúdo tradicional.
A exploração do material consiste essencialmente na operação de 0 quadro epistemológico dessa proposta alternativa de trabalhar
codificação. Segundo Bardin, realiza-se na transformação dos dados a Linguagem, de acordo com seu principal pensador, articula três
brutos visando a alcançar o núcleo de compreensão do texto. regiões do conhecimento: (a) 0 Materialismo Histórico como teoria das
A análise temática tradicional trabalha essa fase primeiro coin o formações sociais e suas transformações estando incluída ai a ideo-
recorte do texto em unidades de registro que podem ser uma palavra, logia; (b) a Lingüística enquanto teoria dos mecanismos sintáticos e
uma frase, um tema, um personagem, um acontecimento tal como foi dos processos de enunciação; (c) a Teoria do Discurso como teoria da
estabelecido na pré-análise. determinação histórica dos processos semânticos.
Em segundo lugar, escolhe as regras de contagem, uma vez que Pêcheux adverte para o fato de que essas três regiões estão
tradicionalmente ela constrói indices que permitem alguma forma de perpassadas ainda por uma Teoria da Subjetividade de natureza psi-
quantificação. canalista para explicar o caráter recalcado na formação do signifi-
Em terceiro lugar, ela realiza a classificação e a agregação dos cado.
dados, escolhendo as categorias teóricas ou empíricas que coman- 0 objetivo básico da Análise do Discurso é realizar uma reflexão
darão a especificação dos temas. geral sobre as condições de produção e apreensão da significação de
textos produzidos nos mais diferentes campos: religioso, filosófico,
38) Tratamento dos Resultados Obtidos e Interpretação jurídico e sócio-politico. Ela visa a compreender o modo de funciona-
Os resultados brutos são submetidos (tradicionalmente) a ope- mento, os princípios de organização e as formas de produção social
rações estatísticas simples (percentagens) ou complexas (análise do sentido.
fatorial) que permitem colocar em relevo as informações obtidas. A Seus pressupostos básicos podem se resumir em dois princípios,
partir dai o analista propõe inferências e realiza interpretações previs- segundo Pêcheux: (1) 0 sentido de uma palavra, de uma expressão
tas no seu quadro teórico ou abre outras pistas em torno de dimensões ou de uma proposição não existe em si mesmo, mas expressa posições
teóricas sugeridas pela leitura do material. ideológicas em jogo no processo saciar-histórico no qual as palavras,
212 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANALISE 213

as expressões e proposições são produzidas; (2) Toda formação demonstrar o que já foi definido a priori pela situação. Ou seja, o tex-
discursiva dissimula (pela transparência do sentido que nela se to 6 tomado como documento a ser compreendido e como ilustração
constitui) sua dependência das formações ideológicas (Pêcheux: de uma situação. Enquanto isso, a Análise do Discurso, segundo seus
1988, 160-162). teóricos, pretende fazer o movimento contrário. Considera o texto
Enquanto procedimento, ela pretende inferir, a partir dos efeitos como um monumento e sua exterioridade como parte constitutiva da
de superfície (a linguagem e sua organização), urna estrutura profun- historicidade inscrita nele. Considera que a situação está atestada no
da: os PROCESSOS DE PRODUÇÃO. Inscreve-se numa sociologia do discur- texto. Desta forma, visa menos a interpretação do discurso do que a
so, tendo como hipótese básica o fato de que o discurso é determi- compreensão do seu processo produtivo.
nado por condições de produção e por um sistema lingüístico. Cremos que a contribuição mais atual da teoria da Análise do
Orlandi define a Análise do Discurso como uma proposta critica que Discurso 6 a sua insistência de incorporar, na compreensão de um
busca problematizar as formas de reflexão estabelecidas. Ela a dis- texto, suas condições de produção. Nesse sentido 6 importante
tingue e a situa enquanto objeto teórico: (a) pressupõe a linguistica apreender alguns conceitos desenvolvidos pelos seus teóricos em
mas se destaca dela: não é nem urna teoria descritiva, nem urna teoria função de uma visão critica no trato do material. A definição de Texto,
explicativa. Pretende ser uma teoria critica que trata da determinação a reflexão sobre as possibilidades da Leitura, os Tipos do Discurso, o
histórica dos processos de significação; (b) considera como fato sentido do Silêncio, o caráter recalcado da matriz do Sentido são alguns
fundamental a relação necessária entre a linguagem e o contexto de temas que os pensadores da Análise do Discurso trazem como
sua produção, juntando para a compreensão do texto as teorias das enriquecimento ao debate sobre o tratamento do material qualita-
formações sociais e as teorias da sintaxe e da enunciação; (c) pela sua tivo.
especificidade, ela é cisionista em dois sentidos: (1) procura proble-
matizar as evidências e explicitar seu caráter ideológico, revela que Texto: Na Análise do Discurso o Texto 6 tomado como unidade de
não ha discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia: (2) denuncia Análise: unidade complexa de significações. Um texto pode ser uma
o encobrimento das formas de dominação política que se manifestam simples palavra, um conjunto de frases ou um documento maior.Tex-
numa razão disciplinar e instrumental (1987: 11-13). to distingue-se de Discurso. Enquanto este último 6 um conceito
A Análise do Discurso se situa, por exclusão e na busca de teórico-metodológico, o primeiro é um conceito analítico. O Discurso
especificidade, em relação à linguistica tradicional e à análise de é a linguagem em interação, ou seja, é o efeito de superfície de relações
conteúdo, enquanto pratica-teórica historicamente definida. Orlandi estabelecidas e do contexto da linguagem. 0 Texto é o discurso
a explica como um PONTO DE VISTA próprio de olhar a linguagem acabado para fins de análise. Todo texto, enquanto couus é um objeto
enquanto lugar do debate e do conflito. Nela o TEXTO é tomado completo. E dele que partem possíveis recortes. Enquanto objeto
enquanto unidade significativa e pragmática, ou seja, o TEXTO é teórico, porém, o texto é infinitamente inacabado: a análise
portador do contexto situacional expresso pelo sentido. No entanto, lhe devolve sua incompletude, acenando para um jogo de múltiplas
comenta Orlandi, isso não significa que palavras, sentenças e perío- possibilidades interpretativas.
dos deixem de ter um nível lexical, morfológico, sintático e semânti- Do ponto de vista analítico o texto 6 o espaço mais adequado para
co, 0 que cria a Análise do Discurso, porém, é o PONTO DE VISTA das se observar o fenômeno da linguagem: ele contém a totalidade. Essa
CONDIÇÕES de PRODUÇÃO do texto (Orlandi: 1987, 130-145). totalidade se revela em três dimensões de argumentação: (a) Relações
Em relação à Análise de Conteúdo, tanto Orlandi como Pêcheux de Força: lugares sociais e posição relativa do locutor e do interlo-
insistem em marcar uma linha divisória. Sua critica é de que a Análise cutor; (b) Relação de Sentido: a interligação existente entre este e
de Conteúdo toma o texto como pretexto e o atravessa s6 para vários discursos, o "coro de vozes" que se esconde em seu interior;
214 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 215

(c) Relação de Antecipação: a experiência anteprojetada do locutor dizem por si. Ambos estão expressando relações: revelam as pessoas
em relação ao lugar e A reação de seu ouvinte. que os empregam (Orlandi: 1987, 263-376).
Segundo Orlandi, esse movimento que acontece no interior do
discurso 6 ao mesmo tempo o processo, o produto e o centro — Tipos de Discurso: Segundo Orlandi um tipo de discurso resulta
nevrálgico da significação a ser recuperado na análise do texto. Em de determinado funcionamento discursivo. Ou seja, a atividade de
suma, todo texto tem sua ideologia e podemos determinar a relação dizer 6 tipificante: todo locutor, quando fala, estabelece uma confi-
entre os dois termos pela caracterização de formação discursiva" da guração que tem embutido em si um estilo e se realiza na interação.
qual ele faz parte. Qualquer discurso 6 referidor: dialoga com outros Porém, se o discurso determinado só pode ser compreendido en-
discursos; 6 também referido: produz-se sempre no interior de quanto processo, seu resultado pode ser classificado dentro de
instituições e grupos que determinam quem fala, o que e como fala e formas ou tipos discursivos distintos. A autora propõe (creio eu, na
em que momento (Orlandi: 1987, 15-239). linha do tipo-ideal de Max Weber, isto 6, enquanto instrumento de
análise) a seguinte subdivisão: o discurso lúdico, o discurso polêmico
— Leitura e Silencio: Qualquer texto admite múltiplas possibili- e o discurso autoritário. No primeiro a simetria e a reversibilidade
dades de leitura. 0 jogo de relações e de interações sociais permite entre os interlocutores 6 total e a polissemia é máxima. No polêmico,
tanto o nível de leituras parafrásticas (reconhecimento do sentido a reversibilidade 6 menor e só se dá sob certas condições, compor-
dado pelos autores) como o nível polissêmico (atribuição de múlti- tando certo grau de polissemia. 0 discurso autoritário 6 totalmente
plos sentidos). Tanto a leitura como a significação são produzidas assimétrico e contém poucas possibilidades de interpretação polls-
pelos interlocutores e leitores. Essa possibilidade de múltiplas inter- sêmica. Os "tipos" se subdividem e permitem a construção de
pretações se apoia no fato de que o processo discursivo não tem um matrizes de interpretação dentro da linha que inspira o modelo
inicio pieciso: ele se apoia em discursos prévios que, por sua vez, teórico, o modelo estrutural (Orlandi: 1987, 150-160).
estão baseados na experiência concreta do leitor, do interlocutor ou
do analista. — Caráter recalcado da matriz do Sentido: Pêcheux chama atenção
Acompanhando a reflexão sobre a leitura do texto, 6 importante para o fato de que os processos discursivos realizam-se no sujeito mas
assinalar as advertências de Orlandi a propósito do Silencio. Tanto o transcendem, ainda quando este tem a ilusão de estar na origem do
quanto a palavra, o silêncio possui suas condições de produção; ele sentido. Na linha da psicanálise lacaniana, adverte o autor para o fato
ambíguo e eloqüente. 0 silêncio conseguido pelo opressor é uma de que a fala 6 marcada por dois níveis de recalcamento: "o esquecido
forma de exclusão; o silêncio imposto pelo oprimido pode expressar número um" e o "esquecido número dois".
formas de resistência. Ou seja, o silêncio não é transparente e necessita 0 primeiro "designa o que nunca foi sabido e que portanto toca
ser compreendido através do dito e do não-dito. Pois assim como há mais de perto o sujeito que fala, na estranha familiaridade que ele
silêncios que dizem, há também falas silenciadoras. A fala autoritária mantém com as causas que o determinam". Trata-se de uma zona
visa a impedir que as pessoas se revelem, mas também quer coagi-las inconsciente, no sentido em que a ideologia 6, por sua constituição,
a dizer o que não pretendem. Portanto, nem a fala nem o silêncio inconsciente. No entanto ela determina uma forma de estrutura
discursiva.
n Entende-se em Pêcheux por Forma* Discursiva as marcas de estilo que se 0 "esquecido número dois" 6 de velamento parcial. Ele pode ser
produzem na relação da linguagem coin suas condições de produção. A formação compreendido, recuperado e reformulado pelo sujeito da enuncia-
discursiva é definida na sua relação com a formação ideológica: o que pode e deve ser
dito. Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se ção. Quando tenta aprofundar ou colocar de forma mais adequada
constitui, sua dependência das formações ideológicas. (Pêcheux: 1988, 160-162). seu pensamento em linguagem, o ator social situa-se numa zona pré-
216 FASE DE ANALISE FASE DE ANÁLISE 217
consciente/consciente do sentido de sua fala (Pêcheux: 1988, 175- repetição do idêntico, através de formas diferenciadas. Tal concepção
180). se apóia na análise estrutural dos mitos de Lévi-Strauss e na própria
Como se pode observar, a contribuição dos autores da teoria da leitura que faz da concepção estruturalista do materialismo histórico
Análise do Discurso encaminha-se fundamentalmente para a critica em Althusser: "busca-se, por trás das variações de superfície, o
da linguagem. Essa visão, a partir do ponto de vista do processo de principio gerador que organiza o conjunto".
produção, alerta para o fato de que o emissor e o receptor do discurso A proposta operacional de Orlandi parece-nos mais flexível. Ela
correspondem a lugares determinados na estrutura social (patrão/ trabalha (sem explicitar se faz "análise automatizada") na seguinte
operários; padre/ fiéis; pai/filhos; etc.). A situação dada do locutor ordem: (1) Análise das palavras do texto (separação dos termos
assim como a do destinatário afetam o discurso emitido, pois o su- constituintes, análise dos adjetivos, dos substantivos, dos verbos, dos
jeito produz e transmite o discurso num espaço social: o locutor advérbios); (2) Análise das construções de frases; (3) Construção de,
antecipa, no processo discursivo, as representações do sentido de seu uma rede semântica, intermediária entre o social e a gramática;
interlocutor, ainda quando esse ultimo seja configurado apenas (4) Consideração da produção social do texto como constitutivo de
hipoteticamente na fala sempre referida do autor. seu sentido (Orlandi: 1987, 157).
Enquanto possibilidade técnica a análise do discurso consuma o Ao terminar essa reflexão sobre a Análise do Discurso enquanto
seguinte objetivo: sendo dados condições de produção determinadas uma prática-teórica historicamente construída, algumas observa-
de um discurso em monólogo; e um conjunto acabado de realizações ções se impõem. A contribuição reflexiva e técnica já foi anotada. Do
discursivas (corpus, amostra), estabelece a estrutura do processo de ponto de vista critico é necessário dizer que há relativamente pouco
produção que corresponde a essas condições de produção. Isto 6, o acúmulo de produção tanto teórica como prática para permitir
conjunto de domínios semânticos postos em jogo neste discurso e as dimensionar o lugar da Análise do Discurso no trato do material de
relações de dependência entre os domínios (Pêcheux: 1969). ciências sociais. Sua pretensão de substituir a Análise de Conteúdo é
Para conseguir as finalidades, o texto deve ser submetido a várias radicalmente questionada por Bardin":
operações classificatárias, simultaneamente semânticas, sintáticas e
lógicas. De acordo com Pêcheux, cada frase 6 decomposta em pro- "Por debaixo de uma linguagem abscôndita que por vezes mascara
posições, o que implica em várias operações linguisticas: substituição banalidades, sob um formalismo que por vezes escapa ao leitor,
das anáforas pelos termos que elas representam; o restabelecimento para além das construções teóricas, que ao nível da prática da
da ordem corrente na frase; reagrupamento dos termos de ligação e análise são improdutivas a curto prazo, existe uma tentativa
explicitação de proposições latentes. totalitária (no sentido em que se procura integrar, no mesmo
Buscam-se as dependências funcionais nas frases e entre as pro- procedimento, conhecimentos adquiridos ou avanços até ai
posições e reduzem-se as proposições a unidades mínimas. Repre- dispersos ou de natureza disciplinar estranha: teoria e prática
sentam-se as proposições em gráficos e dai chega-se A classificação linguistica, teoria do discurso como enunciação, teoria da ideolo-
das relações binárias obtidas. gia e automatização dos procedimentos) cuja ambição é sedutora,
Por fim, procede-se A análise automática do material. Isto 6, mas em que as realizações são anedóticas. 0 que é deplorável!"
codificados os enunciados elementares e as relações binárias, os (Bardin: 1979, 220-222).
dados são colocados em cartões perfurados para se proceder A aná-
lise automática (Pêcheux: 1969). Bardin é um estudioso da Analise de Conteúdo e obviamente sua discussão com
Para Pêcheux a possibilidade da análise automática vem do fato de Pêcheux esta influenciada por uma visão da Análise do Discurso que pretende destruir
clue os mecanismos de produção do discurso são caracterizados pela sua pretensa concorrente. "
218 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANÁLISE 219

Orlandi, no entanto, avança nas propostas concretas de ação: suas sobre a hermenêutica e a dialética, Stein comenta que a filosofia não
formulações são menos estruturadas e fechadas que as de Pêcheux. pode furtar-se de estabelecer uma comunicação direta com as ciências
As reflexões da autora sobre o discurso pedagógico, o discurso sociais que constituem o próprio chão da filosofia hermenêutica:
politico, o discurso religioso, o discurso escolar da história ampliam "sem o diálogo e a ocupação direta com as ciências humanas, a
o campo da abordagem critica e desvendam os mecanismos de filosofia torna-se vazia" (Stein: 1987, 131).
dominação que se escondem sob a linguagem (Orlandi: 1987,15-239). Diríamos que o inverso urge se não quisermos que a questão do
A Análise do Discurso, pela sua vida ainda curta, não consegue método nas ciências sociais se transforme em mera consideração de
precisar cabalmente seu objeto nem em termos teóricos nem do ponto procedimentos, como chama atenção Adorno a respeito da sociolo-
de vista técnico. Caudatária de várias questões do conhecimento, ela gia empírica americana:
dificilmente se objetiva enquanto proposta autônoma. Seu can-der
"amarrado" ao estruturalismo lhe subtrai muito da flexibilidade "A investigação social empírica toma equivocadamente o epifenô-
necessária para realizar o que ela própria pretende: dar conta do meno, o que o mundo fez de nós como a realidade mesma. Seu
SENTIDO. A redução a relações binárias para conseguir a análise método ameaça tanto fetichizar seus assuntos, quanto a degene-
automatizada, a nosso ver, dificilmente permitirá a apreensão das rar-se em fetiche, isto 6, a colocar as questões do método acima
relações dialéticas constitutivas da realização social. das questões de conteúdo" (1979, 219).
As advertências teóricas da Análise do Discurso sobre as CONDI-
ÇÕES DE PRODUÇÃO da linguagem, contudo, são o lado forte da teoria Trabalhar com a hermenêutica e a dialética, diria Stein:
que pode estar presente em qualquer analise de conteúdo. Mesmo
assim, porém, a análise hermenêutico-dialética ao pensar a relação de "Constitui-se num esforço de proteger não apenas o objeto das
oposição complementar entre interioridade/exterioridade inclui o ciências sociais, mas de salvaguardar os próprios procedimentos
texto tanto enquanto documento e como monumento numa relação científicos contra a ameaça da selvagem atomização dos proces-
dinâmica e permanente, viva e polissêmica. sos tecnocráticos do conhecimento" (1987, 129).

Isso não significa que a hermenêutica e a dialética devam ser


A HERMENÊUTICA-DIALÉTICA "encurtadas" através de sua redução a simples teoria de tratamento
Fazemos neste trabalho a reflexão sobre a Hermenêutica-Dialética de dados. Mas, pela sua capacidade de realizar uma reflexão funda-
para completar o quadro do debate sobre o tratamento dos dados da mental que ao mesmo tempo não se separa da praxis, podemos dizer
comunicação. Diferentemente da "Análise de Conteúdo" e da "Análise que o casamento dessas duas abordagens deve preceder e iluminar
do Discurso" que se colocam como uma tecnologia de interpretação qualquer trabalho cientifico de compreensão da comunicação.
de textos, a Hermenêutica-Dialética se apresenta.cormamm.f_caminlia Habermas adverte-nos que a hermenêutica-dialética não determi-
do pensamento", como umasia..cle encontro_entre_as_ciências sociais na técnicas de tratamento de dados e sim a sua autocompreensão
e a filosofia. (1980, 307). E nesse espirito que a tomamos aqui, isto 6, como
A partir dos anos 60 vem se desenvolvendo na filosofia um debate "caminho do pensamento".
entre Habermas e Gadamer que passou a beneficiar as discussões 0 que é Hermenêutica?
sobre método nas Ciências Sociais na medida em que esses autores Segundo o dicionário de Filosofia organizado por Ferrater Mora
buscam formas de conseguir objetividade e de abordar a praxis. (1984,1493-1499) a Hermenêutica consiste na explicação e interpretação
Referindo-se ao diálogo e ao confronto entre Gadamer e Habermas de um pensamento. Essa interpretação pode ser: (a) literal ou de
220 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 221

averiguação do sentido das expressões usadas por meio de uma conceito. 0 fato de pertencermos a determinado grupo social, a
análise lingüística; (b) ou temática, na qual importa, mais que a determinado tempo histórico, de possuirmos determinada formação,
expressão verbal, a compreensão simbólica de uma realidade a ser faz que a compreensão hermenêutica seja inevitavelmente condicio-
penetrada. Tradicionalmente a Hermenêutica está referida à exegese nada pelo contexto do analista. Por isso, para Gadamer, a hermenêu-
das Sagradas Escrituras e deve seu desenvolvimento ao avanço tica tem- que se relacionar com a retórica e com a praxis. A arte da
histórico da gramática, da retórica humanistica e dos estudos bí- compreensão vincula-se com a arte do convencimento (retórica)
blicos. naqueles casos em que a comunicação é trazida para o terreno das
0 conceito de Hermenêutica que usamos neste estudo é elabora- decisões em questões praticas. Desta forma, a hermenêutica e a
do por Gadamer (1987) e clarificado no seu debate acadêmico com_ retórica se unem não apenas como caminho de compreensão da
Habermas, em diferentes trabalhos que têm contribuído para o mensagem mas para entender a orientação e a modificação da ação.
avanço do encontro entre filosofia e ciências sociais, entre a teoria e Da-se ai o cruzamento entre linguagem e praxis pois ambas se
a prática transformadora. interpretam mutuamente.
Para- ,Gadamer, a hermenêutica é a busca de compreensão de Gadamer critica o Iluminismo que pretende a isenção da razão
sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos: "ser que humana, é cego para os preconceitos, colocando-se fora da historia.
pode ser compreendido é linguagem". Portanto a linguagem consti- •Para ele, a autoridade e a tradição são os lugares próprios para se
tui o núcleo central da comunicação: a linguagem ordinária do entender a comunicação do outro.
homem comum no seu dia-a-dia. Seus pressupostos são que o homem Como a fenomenologia, a hermenêutica traz para o primeiro pla-
como ser histórico é finito e se complementa na comunicação. Mas a no, no tratamento dos dados, as condições cotidianas da vida e
compreensão dessa comunicação é também finita: ocupa um ponto promove o esclarecimento sobre as estruturas profundas desse mun-
no tempo e no espaço. E ainda quando podemos ampliar os hori- do do dia-a-dia. A pesquisa hermenêutica também analisa os dados
zontes da comunicação e da compreensão, nunca escapamos da da realidade tendo como ponto de partida a manutenção e a extensão
história, fazemos parte dela e sofremos os preconceitos de nosso da intersubjetividade de uma intenção possível como núcleo orienta-
tempo. dor da ação. A compreensão do sentido orienta-se por um consenso-
Segundo Gadamer, em principio, os meios de uma linguagem possível entre o sujeito agente e aquele que busca compreender. Por
natural são suficientes para esclarecer o sentido de quaisquer con- paradoxal que pareça, no entanto, explica Gadamer, a compreensão
textos simbólicos por mais estranhos e inacessíveis que possam se s6 se opera por estranhamento. Apenas o fracasso na tentativa de
apresentar à primeira vista: podemos traduzir de qualquer lingua entender a transparência do que é dito pode levar alguém a penetrar
para outra, podemos compreender a cultura de outras épocas e de na opinião do outro, na busca de sua racionalidade e verdade, dentro
qualquer tempo. No entanto, o contexto sempre passível de com- de um sistema de intersubjetividade. Assim a reflexão hermenêutica
preensão é ao mesmo tempo questionável e potencialmente incom- produz identidade da oposição, buscando a unidade perdida. Ela se
preensível. A experiência hermenêutica balança entre o familiar e o introduz no tempo presente, na cultura de um grupo determinado
estranho, entre a intersubjetividade do acordo ilimitado e o rompi- para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão de mundo
mento da pos‘sibilidade de compreensão. Isso vale tanto para o estudo própria, envolvendo num único movimento o ser que compreende e
de interações de comunidades e grupos socioculturalmente hete- aquilo que é compreendido.
rogêneos em termos de épocas, culturas, classes, como para as No debate com Gadamer, Habermas reconstitui os pressupostos
relações no interior de conjuntos homogêneos. metodológicos da Hermenêutica para as ciências sociais e nos os
Um segundo ponto realçado por Gadamer é a questão do pre-_ retomamos aqui como balizas no trato do material comunicativo: (a)
222 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANALISE 223

0 pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de setts busca entender porque o autor do texto o apresenta dessa forma e
entrevistados ou dos documentos A serem analisados. Isso 6 impor- não de outra.
tante porque o discurso expressa um saber compartilhado com Somente na medida em que descobre as razões que fazem aparecer
outros, do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. (b) 0 estudioso tal como 6, um depoimento de determinado locutor, o analista pode
sio_texto (o termo texto aqui 6 considerado no sentido amplo: relato, apreender o que o sujeito quis dizer, isto 6, a significação da fala:
entrevista, história de vida, biografia etc.) deve supor a respeito de
todos os documentos, por mais obscuros que possam parecer A , "Compreender uma manifestação simbólica significa saber sob
primeira vista, um teor de racionalidade e de responsabilidade que que condições sua pretensão de validade poderia ser aceita"
não lhe permita duvidar. 0 intérprete toma a sério, como sujeito (Habermas: 1987, 94).
responsável o ator social que está diante dele. (c) 0 pesquisador s6
pode compreender o conteúdo significativo de um texto quando está Uma pretensão de validade contém a afirmação de que algo 6
em condições de tornar presentes as razões que o autor teria para digno de ser reconhecido.
elaborá-lo. (d) Por outro lado, ao mesmo _tempo em que o analista Tentando resumir, podemos afirmar que a hermenêutica busca a
busca entender o texto, tem que julgá-lo e tomar posição em relação compreensão do texto nele mesmo "entender-se na coisa". Ela se
a ele. Isto 6, qualquer intérprete deve assumir determinadas questões distingue do saber técnico que quer fazer da compreensão um
que o texto lhe apresenta como problemas não resolvidos. E compe- conjunto de regras disciplinadoras do discurso. Distingue-se também
netrar-se do fato de que no labor da interpretação não existe última da lingüística, cujo principal objeto 6 a reconstrução do sistema
palavra. (e) Toda interpretação bem-sucedida 6 acompanhada pela abstrato de regras de uma linguagem natural. Coal relação A lingua-
expectativa de que o autor poderia compartilhar da explicação gem, a hermenêutica toma como seu campo as experiências funda-
elaborada se pudesse penetrar também no mundo do pesquisador. mentais de "um falante comunicativamente competente".
Tanto o sujeito que compnica como aquele que o interpreta são A hermenêutica distingue-se, na sua proposta, da fenomenologia
marcados pela história, pelo seu tempo, pelo seu grupo. Portanto o social e da etnometodologia. Em ambas, segundo Habermas (1987,
texto reflete essa relação de forma original (Habermas: 1987, 86-97). 23) a linguagem 6 tomada como sujeito da forma de vida e da tradi-
A partir dos mencionados pressupostos resumimos o caminhoda. ção, prendendo-se A pressuposição idealista de que a consciência-
tarefa interpretativa: (a) Diferenciar a compreensão do contexto da lingiiisticamente articulada determina o ser material da praxis vital.
comunicação, da compreensão do contexto do próprio pesquis_a_dor; Pelo contrário, a hermenêutica se apóia na reflexão histórica -que
(b) Para isso, explorar e deduzir as definições de situação que olexta concebe o intérprete e seu objeto como momentos do mesmo contex-
transmitido permite, a partir do mundo da vida do autor P de seu to. Esse contexto objetivo se apresenta como tradição, entendida aqui
grupo social. Esse mundo da cotidianidade é o horizonte, o parâmetro como uma linguagem transmitida na qual vivemos.
do processo de entendimento do texto com o qual seus contemporâ- O exercício de compreensão proposto pela hermenêutica repudia
neos e interlocutores concordam ou discordam sobre algo, num único o objetivismo que estabelece uma conexão ingênua entre os enun-
mundo objetivo, num mundo social comum, num inundo de intersubjeti- ciados teóricos e os dados fatuais, cujo paradigma 6 o mundo natural.
vidades; (c) ap_esquisador ao analisar_pode_pressuporque-corriparti- Mas opõe-se também ao idealismo filosófico ou teológico que coloca
lha com o autor suas referências formais à vida social. A partir da.! a verdade nalgum lugar fora da práxis.
busca entender porque o sujeito da fala acredita em determinada Qual 6 a concepção dialética presente na discussão de Habermas
situação social, valoriza determinadas normas e atribui determina- no seu debate com Gadamer? É importante distingui-la e fazer sobre
das ações ou responsabilidades a certos atores sociais. Em resumo, ela uma leitura "hermenêutica", no sentido de que o conceito de
224 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 225
Dialética é historicamente construido, tomando diversas conotações de que o contexto da tradição, enquanto o lugar possível
tal como é usado dentro de diferentes marcos teóricos e desenvolvido da verdade e acordo fático, é também, ao mesmo tempo, o lugar
por autores diferentes. Os elementos ressaltados por Habermas são da inverdade fd tica e da violência constante" (Habermas:
os seguintes: 1987, 127).
(a)A razão humana pode mais do que simplesmente compreender
a realidade, na medida em que as condições de racionalidade são Habermas coloca como fundamento da comunicação as relações
também produto da ação humana objetivada. Por isso, para Haber- sociais historicamente dinâmicas, antagônicas e contraditórias entre
mas, a razão humana possui uma força transcendental que se exerce classes, grupos e culturas. Desta forma fica evidente que a linguagem
na critica e consegue ultrapassarbs pré-conceitos. A mesma razão que enquanto possibilitadora de comunicação traduz também a dificul-
compreende, esclarece e reúne, também contesta e dissocia (Haber- dade de comunicação. Seus significantes aparentemente iguais carre-
mas: 1987, 20-25). gam conotações e significados expressivos da própria realidade
(b) A estrutura do "significado" presente na linguagem é apenas conflitiva (1987,26-69). Numa sociedade marcada por relações sociais
um fator na totalidade do mundo real, que para Habermas se compõe de produção profundamente desiguais, a comunicação esta sistema-
de trabalho, poder elinguagem. Portanto, a tradição cultural que se ticamente perturbada. A linguagem é um índice de alienação que
expressa na linguagem está marcada pelo caráter ideológico das expressa a dominação dos homens sobre seus semelhantes.
relações de trabalho e de poder: (c)Um trabalho critico busca um método no qual i interpretação
seja transformação e vice-versa, e que afirme a imbricação entre
"Linguagem também é meio de dominação e de poder social. Ela método e coisa. Isso implica a recusa da totalidade metafísica e a
serve A legitimação das relações de violência organizada. Na afirmação da idéia da totalidade que se faz no processo e que é
medida em que as legitimações não manifestam a relação de operada também no labor teórico. Como se trata de uma concepção
violência, cujà institucionalização possibilitam, e na medida..em de totalidade teórico-prática ela se recompõe perenemente no tra-
que isso apenas se exprime nas legitimações, a linguagem tam- balho de reflexão e permanece como horizonte regulador das questões
bém é ideológica. A experiência hermenêutica que topa com tal da prática. Isso implica no reconhecimento, por honestidade cientifi-
dependência do contexto simbólico com referência As relações ca, de um engajamento em todo trabalho de compreensão (Habermas:
fáticas, passa a ser critica da ideologia" (Habermas: 1987, 21). 1987, 86-95).
(d) Ressalta o condicionamento histórico do pensamento, da re-
Habermas critica a pretensão idealista da sociologia compreensi- flexão e os determinismos materiais da ideologia. Dai que, ao mesmo
va, da etnometodologia, da fenomenologia e da própria hermenêuti- tempo, Habermas apresente o caráter de universalidade da critica
ca que, nas suas análises, ignoram a totalidade da vida social em to- tanto para a base material como para a superestrutura ideológica da
dos os seus momentos. Elas se movem no espaço da comunicao realidade. Mas esse reconhecimento das condições históricas do
ordinária como se ela fosse unívoca e totalizante. O argumento de pensamento submete o própria discurso critico a seus determinismos
Habermas se expressa na luminosa frase de Alhreich Wellmer: histórico-sociais:

"A ilustração sabia o que a hermenêutica esquece: que. o 'diálogo' "Uma transformação dos modos de produção acarreta uma reestru-
que, segundo Gadamer, nós somos, também é um contexto de turação da imagem lingüística do mundo. (...) Não há dúvida de
violência e nisto não há diálogo (...) A pretensão de universalidade que revoluções nas condições de reprodução da vida material são,
do ponto de partida só pode ser sustentada quando se parte do fa to por sua vez, mediadas lingüisticamente: mas uma nova práxis não
226 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANALISE 227

é posta em ação apenas por uma nova interpretação, e sim antigos dominação, e ser dissolvido na coerção sem violência da intelecção
modelos de interpretação vêm a ser também, 'de baixo para cima' e da decisão racional" (Habermas: 1987, 18).
atingidos por uma nova praxis e revolucionados" (1979; 22).
0 autor, ao mostrar a contribuição e os limites da hermenêutica,
A critica da comunicação, para eles, deve se fazer em dois níveis: chega a uma proposta de complementaridade com a dialética, com-
(1) de um lado, em relação à intransparência dos dados; (2) de outro, plementaridade possível a partir da própria realidade.
das próprias categorias usadas para análise, no sentido de que Enquanto a hermenêutica penetra no seu tempo e através da
não existe nenhuma referência fora da história (Habermas: 1987, compreensão procura atingir o sentido do texto, a critica dialética se
86-95). dirige contra seu tempo. Ela enfatiza a diferença, o contraste, o
Após a caracterização das duas posições metodológicas é impor- dissenso e a ruptura de sentido. A hermenêutica destaca a mediação,
tante perceber seus pontos de encontro e de contraste, uma vez que o acordo e a unidade de sentido.
se reconheça a importância da hermenêutica-dialética, na reflexão Assim a hermenêutica e a dialética apresentam-se como momen-
teórica do conhecimento: tos necessários na produção da racionalidade. O método dialético
opera tendo como pressuposto o método hermenêutico, embora essas
"E claro que tanto a dialética como a hermenêutica não percebe- duas concepções tenham sido desenvolvidas através de movimentos
ram de maneira explicita o paradigma que elas inauguraram", filosóficos diferentes. Stein tenta recuperar a complementaridade
defende Stein. "Mas seu modo de proceder como método, dá-lhes dessas abordagens mostrando que: (a) Ambas trazem em seu núcleo
indiscutivelmente uma autoridade epistêmica capaz de dar conta a idéia fecunda das condições históricas de qualquer manifestação
de seus pressupostos e produzir níveis de racionalidade suja. simbólica, da linguagem, e de qualquer trabalho do pensamento; (b)
legitimação vai-se repondo através do progresso do trabalho Ambas partem do pressuposto de que não há observador imparcial
teórico" (Stein: 1987, 109). nem há ponto de vista fora do homem e fora da história; (c) Ambas
ultrapassam a simples tarefa de serem ferramentas do pensamento.
Habermas reconhece a possibilidade de um encontro fecundo São modos pelos quais o pensamento produz racionalidade, contra-
entre a Hermenêutica e a Dialética, em primeiro lugar no seu ponto pondo-se aos métodos das ciências positivistas que se colocam como
de partida: o HOMEM. Em ambas, o objeto de análise é a praxis social exteriores e isentos do trabalho da razão; (d) Por isso, ambas questio-
e o sentido que buscam e a afirmação ético-política do pensamento. nam o tecnicismo presente nos métodos das ciências sociais, para
Reconhece também a importância da reflexão hermenêutica e do descobrir o fundo filosófico que as diversas técnicas metodológicas
valor da tradição mas submete-os à critica. tendem a negar. Destroem, dessa forma, a auto-suficiência objetivista
das ciências com base no positivismo. (e) Ambas estão referidas
"A reflexão é condenada a chegar depois do fato, mas ao olhar práxis e mostram, no campo das Ciências Sociais, que seu domínio
para trás desenvolve uma força reconstrutiva:Nós só podemos nos objetivo está preestruturado pela tradição e pelos percalços da
voltar para as normas interiorizadas depois de termos aprendido história (1987, 110).
primeiro cegamente a segui-las sob um poder que se impôs de fora. A união da hermenêutica com a dialética leva a que o intérprete
A medida porém que a reflexão recorda aquele caminho da busque entender o texto, a fala, o depoimento como resultado de um
autoridade no qual as gramáticas dos jogos de linguagem foram processo social (trabalho e dominação) e processo de conhecimento
exercitadas dogmaticamente como regras de concepção do mundo (expresso em linguagem) ambos frutos de múltiplas determinações
e do agir, pode ser tirada da autoridade aquilo que nela era pura mas com significado especifico. Esse texto é a representação social de
228 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 229

uma realidade que se mostra e se esconde na comunicação, onde o A intervenção de Lazarsfeld 6 altamente significativa e honesta.
autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto ético-politico Desmistifica a "caixa preta" dos procedimentos usados por cientistas
e onde o acordo subsiste ao mesmo tempo que as tensões e per- sociais que certamente teriam muito a narrar sobre os caminhos e
turbações sociais. descaminhos através dos quais conseguem os "assépticos" resulta-
dos de suas pesquisas. Por outro lado, a fala de Lazarsfeld revela não
apenas o lado das dificuldades reais, das fraquezas e das falhas de
CONCLUSÕES: UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO um pesquisador, mas insinua o fato de que, o que escrevemos ou
falamos sobre o trabalho de investigação, ger41mente 6 uma "lógica
"Nossos conhecimentos são apenas aproximação da plenitude da reconstruída" que se distancia da "lógica em uso" no decorrer do
realidade, e por isso mesmo são sempre relativos; na medida,
entretanto, em que representam a aproximação efetiva da reali- trabalho. Marx fala do mesmo tema na "Introdução" A Contribuição
dade objetiva, que existe independentemente de nossa consciên- Critica da Economia Política distinguindo o método de investigação, do
cia, são sempre absolutos. 0 caráter ao mesmo tempo absoluto e método de exposição (1973, 240).
relativo da consciência forma uma unidade dialética indivisível"
As observações acima não nos eximem, porém, de um esforço de
(Lukács: 1967, 233).
reflexão cujo desafio seria unir A critica teórica uma proposta prática
de análise do material qualitativo. Esse desafio tem que partir de uma
Ao pensamento de Lukács sobre o conhecimento aproximado, em
revisão das alternativas até aqui apresentadas e de uma opção que ao
epígrafe, podemos acrescentar a reflexão de Bachelard de que: mesmo tempo se torne viável teórica e praticamente. Estamos alerta
para o fato de que a polêmica existente nessa Area de conhecimento
"0 ato de conhecer, no seu primeiro impulso é uma descoberta é sinal ao mesmo tempo da pouca reflexão (Andr: 1983, 63), mas
plena de incerteza e de dúvida. Sua raiz 6 o julgamento descon- também das dificuldades concretas de ultrapassar o nível dos dados
fiado, seu sucesso, um acesso verificado" (1969, 25). aparentes e alcançar a compreensão mais profunda dos significados.
A critica básica a respeito da Análise de Conteúdo. tradicional (nas
0 que as páginas anteriores nos mostram, concordando com os suas mais diferentes modalidades) é a sua fraca capacidade explica-
pensadores citados, 6 de que no processo de conhecimento não há tiva. Sua ênfase quase absoluta na fala como material de análise,
consenso e não há ponto de chegada. Há o limite de nossa capacidade
transforma a questão da descoberta e da validade, na habilidade de
de objetivação e a certeza de que a ciência se faz numa relação manipulação de instrumentos técnicos, A moda positivista e cau-
dinâmica entre razão e experiência e não admite a redução de um datária das abordagens quantitativas. 0 material etnográfico é arran-
termo a outro. Se isso é verdade para a totalidade do labor de jado como um "Corpus", isto 6, como um conjunto sistematizado e
investigação cientifica, aplica-se de forma muito especifica A etapa, fixo, privilegiando-se tudo o que pode se constituir em sistema de
de tratamento dos dados empíricos. signos a serem decifrados. Desta forma, não entram em pauta o
Poirier comenta que num curso ministrado na França por Lazars- processo de tomada de decisões no campo e nem o contexto da ação
feld (um dos renomados pesquisadores sociais de nosso século) sobre analisada. As entrevistas (ou comunicações em geral) costumam ser
técnicas de análise de conteúdo aplicadas a histórias de vida, um dos
vistas em bloco, perdem sua autoria e o jogo dos "significantes em
alunos lhe perguntou sobre a condução de certos problemas práti-
cadeia" passa a ser o foco da compreensão.
cos. Sorrindo, o mestre lhe. respondeu: "A gente diz e escreve mui-
Da mesma forma, a Análise do Discurso que tenta ultrapassar a
tas coisas, mas na verdade a gente faz como pode" (Poirier et alii:
Análise de Conteúdo tradicional, como o próprio nome indica,
1987, 72).
também coloca sua tônica na fala. Substituindo o critério estatístico-
230 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 231

quantitativo para avaliar o rigor da abordagem, pretende com- dades microssociais, ora para uma abordagem mais política Tie de
preender as regras próprias do processo discursivo e atingir as cunho científico, carente de reflexão sobre os problemas episte-
estruturas profundas na raiz da comunicação. No entanto, o rigor mológicos envolvidos.
formal de que se reveste costuma sacrificar a riqueza dos detalhes e Apesar das constatações feitas e a partir das dificuldades apresen-
a multidimensionalidade da pesquisa empírica — características que tadas na prática teórica é o _mêtodo hermenêutico-dialético que _
constituem a aura e o mérito da abordagem antropológica. apresentamos aqui como o mais capaz de dar conta de uma interpre-
Os refinamentos técnicos tanto da análise de conteúdo como da tação aproximada da realidade,.Ele coloca a fala em seu contexto para
análise do discurso se apóiam na crença de que a "verdade" dos entendê-la a partir_ do sell interior e no campo da especificidade
significados se situa nos meandros profundos da significação dos histórica e totalizante em que é produzida. Usaremos portanto a
textos. Ora, a absolutização dessa crença deixa em segundo plano os reflexão do "caminho-do-pensamento" apresentada por Habermas,
aspectos extradiscursivos que constituem o espaço sócio-politico- mas buscaremos apresentá-la também como urna possibilidade de '
econômico e cultural onde o discurso circula. realização técnica em relação as comunicações referentes. aárea de
A abordagem antropológica, a partir dos clássicos trabalhos de saticle. Sublinhamos a necessidade de unir na análise todo o material
Malinowski, já há muito ultrapassou os limites da ênfase na análise escrito, como as observações, o contexto estruturado e todo o sentido
do conteúdo explícito da mensagem. Seu método é cotejar a fala com "evasivo", "dinâmico", "complexo" das relações sociais.
a observação
_ das condutas e dos costumes e com a análise das Partindo para o nível do concreto, tomemos como exemplo um
instituições referentes ao tema em estudo: Checar o que é dito com o material recolhido sobre Concepção de Saúde-Doença de um deter-
que é feito, com o que é celebrado e está cristalizado. Desta forma, minado segmento social. A interpretação _tem dais nfveis,_que nPrPs-
uma• boa análise interpreta ojconteúdo ou o discurso dentro de um sitamos abordar.
quadro de referências onde a ação e ação objetivada nas instituições 0 primeiro é o campo das determinações fundamentais que já de-
permite ultrapassar a mensagem manifesta e atingir os significados ye estar estabelecido na fase explora tária da investigação. Trata-se do
latentes. contexto sócia-histórico desse grupo social e qpe constitui o marca
Essa proposta, no entanto, pertence ao clássico quadro do funcio- teórico-fundamental para a análise. Esse momento pode ser pensado
nalismo de onde partiu toda a abordagem antropológica. E hoje o esquematicamente como a compreensão: (a) da Conjuntura sócio-
dilema dos que trabalham com análises qualitativas é de superar os econômica e política na qual se insere o grupo e sua participação
esquemas interpretativos formais (A la Berelson) ou o funcionalismo enquanto ator social; (b) da história do grupo e sua inserção na
(4 la Malinowski) em busca de uma teoria dialética capaz de conter os produção (enquanto classe e segmento de classe) e suas condições de
conteúdos intrinsecamente conflitivos e antagônicone nossa reali- reprodução (salário, moradia, acesso a bens e serviços e distribuição
dade social. A abordagem que mais se coaduna à interpretação geográfica); (c) da política de saúde em geral e em particular no que
consistente dos dados é a Marxista, na medida em que ela se propõe concerne ao grupo e da categoria Saúde/Doença enquanto catego-
a captar o movimento, as contradições e os condicionamentos históri- ria historicamente construída e vivenciada através do sistema de
cos. 0 empreendimento, porém, não é fácil como nos advertem saúde; (d) das instituições de saúde As quais tem acesso o grupo em
Durham (1986, 33), Cardoso (1986, 86s), Zaluar (1986, 115), Magnani questão.
(1986, 128). Esses autores, a partir de diferentes temas, mostram que Ele tem que estar presente durante todo o processo de pesquisa e
as tentativas de interpretação qualitativa marxista têm descambado também no momento interpretativo. Arouca nos lembra esse quadro
ora para uma imprecisa categorização, por dificuldades de trans- de relações essenciais:
posição de conceitos usados em análises macrossociais para reali-
232 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 233

"Em um dado momento histórico, em uma formação social dada, ditório, dinâmico, inacabado e em permanente projeção, a segunda
a situação sanitária representa a dinâmica do fenômeno saúde/ condição do método dialético em seu quadro de determinações.
doença nas populações, determinada por um conjunto de relações, Tomando o caso de concepções de Saúde/Doença temos que en-
com outros setores sociais (econômicos, politicos, ideológicos) tendê-las como frutos e manifestações de condicionamentos sócio-
cujas necessidades são enfrentadas por um campo agregado de históricos que se vinculam a acesso a serviços, tradições culturais,
instituições que têm disponível um certo saber e uma certa tecno- concepções dominantes veiculadas e a inter-relação de tudo isso.
logia" (Arouca: 1988, 11). Saúde/Doença são um fenômeno social não apenas porque elas
expressam certo nível de vida ou porque correspondem a certas
0 autor se refere A. situação e As condições de safide, mas suas
profissões e pa-Micas. Mas também porque elas são manifestações da
palavras poderiam se adaptar ern relação As representações sociais
vida material, das carências, dos limites sociais e do imaginário •
de saúde/doença.
coletivo.
Esse primeiro nível é o plano da totalidade enquanto realidade
A interpretação dialética nos faz ver que as Concepções de Sail-
objetiva que significa, segundo Lukdcs:
de/Doença de determinado segmento são, pois, resultado de con-
"Um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira dições anteriores e exteriores ao grupo, mas ao mesmo tempo espe-
ou de outra, em relação com cada elemento; e de outro, que essas cificas. Elas são fruto de condições dadas mas são também produto
relações formam na própria realidade objetiva, correlações concre- de sua ação transformadora sobre o meio social.
tas, conjuntos, unidades ligadas entre si de maneiras complemen- 0 segundo momento interpretativo é na verdade o ponto de
tares diversas, mas sempre determinadas" (Lukács: 1967, 240). • partida e o ponto de chegada de qualquer investigação: é o encontro
com os fatos empíricos, no caso, com um conjunto de Concepções de
No momento concreto de interpretação dos dados, o sentido da Saúde/Doença. E preciso encontrar nesses "fatos anedóticos" a
totalidade se refere tanto ao nível das determinações como ao do totalidade e, a partir deles, descobri-la. Isto 6, esses textos têm uma
recurs° interpretativo pelo qual se busca descobrir as conexões que significação particular e um papel revelador do todo.
__a_experi6.ncia empírica mantem com 9 plano das relações essenciais E necessário, pois, tomar como material concreto as representações
Nem sempre esse momento pode ser captado apenas atramOs das sociais de Saúde/Doença, tais como são manifestadas pelos atores
representações sociais. A operação intelectual pela qual obtemos a sociais, empiricamente. Isso implica considerar na análise interna,
totalidade concreta implica que o movimento da razão e o movimento como parte das representações: (a) as comunicações individuais
da experiência sejam percebidos através de relações reciprocas e (entrevistas, histórias de vida, resultados de discussões de grupo
dialeticamente integradas. etc.); (b) observações de condutas e costumes relativos ao comporta-
Do ponto de vista histórico, a postura interpretativa dialética mento sobre Saúde/Doença; (c) análise das instituições referidas ao
reconhece os fenômenos sociais sempre como resultados e efeitos da tema como Centro deSaúde oficial, entidades alternativas de tratamen-
atividade criadora tant imediata quanto institmcionalizada. Porten- to citadas; (d) observação de cerimônias e ritos atinentes ao assunto.
to, toma como centro da análise a prática socia a_spip hurvaii-a-e a A interpretação exige elaboração de Cgtesorias A nalifiras capazes,--
considera como resultado de condições anteriores, extelmA,s, de desvendar as relações essenciais, mas também _de Categorias
também como práxis. Isto 6, o ato humano que atravessa o- meio social Empíricas e OPeracioriii& capazes de captar as contradições do nível
conserva as determinações, mas transforma o mundo sobre as con- empírico Pm pipAtao_ A partir dos dada colhidos e acumulaii6-g-i5
dições dadas. "0 homem faz a história: ele se objetiva nela e nela se investi ador se volta • ar . • I • • •I • • • • • 'a • . ma
aliena" (Sartre: 1978, 150). E a captação desse movimento contra- reflexão sobre...assonceitasiniciais,para_coloração Pm riflivida das
1
. 7
BIBLIOTECA ISEM:7
FAca,DADE P
234 FASE DE ANÁLISE (• FASE DE ANALISE 235
idéias evidentes. Assim ele constrói uma nova aproximação do etapa inclui: (a) transcrição de fitas-cassetes; (b) releitura do material;
objeto: o pensamento antigo que 6 negado mas não excluído, encon- (c) organização dos relatos em determinada ordem, o que já supõe um
tra outros limites e se ilumina na elaboração presente, 0 novo contém inicio de classificação; (d) organização dos dados de observação
o antigo incluindo-o numa nova perspectiva. .também em determinada ordem, de acordo com a proposta analítica.
Como operacionalizar esse segundo momento que na verdade Essa fase dá ao investigador um mapa horizontal de suas descobertas
constitui o desafio da análise? t o instante hermenêutico, em que no campo.
provisoriamente e apenas para fins analíticos se toma o material de 2.°) Classificação dos dados: j4 dissemos, não 6 o campo que traz
representação social como um conjunto separado, a ser tecnicamen- o dado, na medida em que o dado não 6 "dado", 6 "construido".
te trabalhado. fruto de uma relação entre as questões teoricamente elaboradas e
Aqui pode se aproveitar todo o progresso técnico seja de determi- dirigidas ao campo e num processo inconcluso de perguntas
nada forma de análise de conteúdo ou da análise do discurso, com a suscitadas pelo quadro empírico as referências teóricas do inves-
condição de se submeter essas técnicas a uma superação dialética, is- tigador.
to 6, ao conjunto das relações envolvidas. Do ponto de vista dialético a classificação 6 um processo que, ten-
0 material escrito necessita ser cuidadosamente analisado: frases, do presente o embasamento teórico dos pressupostos e hipóteses
palavras, adjetivos, concatenação de idéias, sentido geral do texto. do pesquisador, 6 feito a partir do material recolhido.
Bakhtin nos lembra algumas regras metodológicas fundamentais: (1) 0 momento classificatório gompõe-se, segundo nossa proposta,
não separar a ideologia da realidade material do signo; (2) não nas seguintes etapas:
dissociar o signo das formas concretas de comunicação (entendendo- (a) Leitura exaustiva e repetida dos textos, prolongando uma
se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social relação interrogativa Com eles. Esse exercício, denominado por al-
organizado); (3) não dissociar a comunicação e suas formas de sua guns autores como "leitura flutuante" permite apreender as estrutu-
base material (infra-estrutura). ras de relevância dos atores sociais, as idéias centrais que tentam
Realizando-se no processo de relação social, todo signo ideológi- transmitir e os momentos-chaves de sua existência sobre o tema em
co, portanto também o signo lingilistico, vê-se marcado pelo horizon- foco (no caso concepções de Saúde/ Doença). Essa atividade ajuda
te social de uma época e de um grupo social determinado. Embora as pesquisador a, processualmente, estabelecer as categorias empíricas,
classes sociais diferentes sirvam-se de uma só e mesma lingua, a confrontando-as com as categorias analíticas teoricamente estabele-
palavra também se torna a arena onde se desenvolve a luta de classe. cidas como balizas da investigação, buscando as relações dialéticas
A análise dos signos (substantivos, verbos, adjetivos etc.) seja no seu entre ambas.
sentido de tema ou forma deve ser orientada pela certeza .das Trata-se aqui de lograr um verdadeiro conhecimento compreensi-
contradições que ai se ocultam (Bakhtin: 1986, 44-47). vo que encontra os atores no seu mundo social, seguindo ao mesmo
Operacionalmente propomos alguns passos. tempo duas práxis. Tomando-se como exemplo a concepção de
1.°) Ordenação dos dados: que engloba tanto as entrevistas como Saúde/Doençá, é necessário entender a expressão desse tema tam-
o conjunto do material de observação e dos documentos populares e bém no comportamento do segmento social.
institucionais, referentes ao tema Concepções Saiicle/ Doença.13 Essa (b) Constituição de, um "Corpus" ou de vários "Corpus" de
comunicações se o conjunto das informações não é homogêneo. Por
n Não entramos aqui nos detalhes referentes A Ordenação de Dados. Indicamos exemplo: entrevistas sobre Saúde/ Doença com os populares, adul-
como bibliografia complementar o trabalho de Poirier et alii, Les Récits de Vie. Paris, PUF. tos; entrevistas corn curandeiros; entrevistas com médicos do Centro
1987. de Saúde; entrevistas com Agentes de Saúde. Cada um desses grupos
236 FASE DE ANÁLISE FASE DE ANALISE 237
fornece informações e representações específicas, constituindo con- dominantes, e mais que isso, de expressão da visão social de mundo
juntos diferenciados. do segmento em relação a sociedade dominante.
Nesse momento fazemos uma "leitura transversal" de cada corpo. Essa compreensão especifica deve nos informar que a fala e o
Recorta-se cada entrevista ou documento em termos de "unidade de comportamento dos sujeitos relativas à Saúde/ Doença trazem consi-
registro" a serem referenciadas por tópicos de informação ou por go uma significação profunda que a época histórica e sua pertinência
temas. Os critérios de classificação em primeira instância podem ser a uma classe lhes empresta. Porque cada ser humano, individual-
tanto variáveis empíricas como variáveis teóricas já construídas pelo mente, em grupo ou sob a expressão histórica de classe é um ser
pesquisador. Geralmente a interação de ambos os critérios permite significante. Nunca se pode compreender sua palavra ou seu gesto
ao analista o aprofundamento do conteúdo das mensagens. sem superar o presente ou sem projetá-lo para o futuro. As signifi-
Em geral a primeira classificação, ainda grosseira, é elaborada cações que descobrimos vêm do ser humano e de seu projeto e se
como em gavetas, onde cada assunto, tópico ou tema é cuidadosa- inscrevem por toda parte, na ordem das coisas e nas relações media-
mente separado e guardado. das pelas estruturas enquanto ação humana objetivada (Sartre: 1978, '
Em seguida, faz-se o enxugamento da classificação por temas mais 179).
relevantes que podem surgir tanto para comprovação de hipóteses 0 produto final e sempre provisório, resultado de todas as etapas
como material exploratório de campo. Por exemplo, pode ser expres- de pesquisa, é o concreto pensado do qual nos fala Marx. Mas a sua
sivo que numa classificação de concepções de saúde/ doença o "mo- compreensão jamais é contemplâtrv-a. Ela inclui num mesmo projeto
do de vida" surja como uma categoria empírica relevante. Que a o objeto, o sujeito do conhecimento e as próprias interrogações em
expressão "doença de Deus" seja um termo a merecer análise minu- movimento totalizador. A interpretação, além de superar a dicotomia
ciosa. Que o "nervoso" surja como uma explicação reincidente da objetividade versus subjetividade, exterioridade versus interioridade,
condição de vida. Assim por diante. análise e síntese, revelará que o produto da pesquisa é um momento
Pode-se dizer que num processo de aprofundamento da análise, a da praxis do pesquisador. Sua obra desvenda os segredos de seus
relevância de algum tema, uma vez determinado (a partir da elabo- próprios condicionamentos.
ração teórica e da evidência dos dados), permite refazer e refinar o Desta forma a totalização final que consiste no encontro da es-
movimento classificatório. As múltiplas gavetas serão reagrupadas pecificidade do objeto pela prova do vivido com as relações essen-
em torno de categorias centrais, concatenando-se numa lógica unifi- ciais, não é uma atividade nem fácil e nem ex terna ao investigador.
cadora. Ele se inclui nela enquanto marcado pelo momento histórico, pelo
3.°) Análise Final: As duas etapas anteriores — ainda que o marco desenvolvimento cientifico (também histórico), por sua pertinência
teórico esteja presente o tempo todo — fazem uma inflexão sobre o (histórica) a uma classe social e pela capacidade de objetivação. Assim
material empírico, que é como dissemos, o ponto de partida e o popto concluímos que a investigação social enquanto processo de produção
de chegada da interpretação. Esse movimento incessante que se eleva e produto é ao mesmo tempo uma objetivação da realidade e uma
do empírico para o teórico e vice-versa, que dança entre o concreto e objetivação do investigador que se torna também produto de sua
o abstrato, entre o particular e o geral é o verdadeiro movimento própria produção.
dialético visando ao concreto pensado. Supondo que sejam as Con- Como observação final, importa relembrar o apelo imediato e
cepções de Saúde/ Doença de determinado segmento que nos impor- indiscutível do objeto "Saúde" A. unidade indissolúvel entre teoria e
ta interpretar temos que partir do caos ar arente das informações prática: enquanto condução do processo de conhecimento e enquan-
recolhidas no campo e fazer delas ao mesmo tempo uma revelação da to necessidade de transformação. Portanto propomos que a análise
sua especificidade de concepção e de participação nas concepções final de qualquer investigação no setor se dirija para uma vinculação
238 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 239

estratégica com a realidade. Neste sentido, sugerimos que, dentro da dade argumentativa do discurso quq lhe permite adquirir um lugar
idéia de pesquisa estratégica enfatizada por Bulmer para ,a área de no conjunto da produção científica. O caráter de originalidade de uma
políticas públicas (1978,11-21), se chegue A conclusão do trabalho com investigação se mede pela sua real contribuição ao avanço do conhe-
pistas e indicações que possam servir de fundamento para propostas cimento, através da pesquisa e da descoberta. Por objetivação se
de planejamento e avaliação de programas, revisão de conceitos, compreende a capacidade de empregar uma abordagem teórico-
transformação de relações, mudanças institucionais, dentre outras metodológica e uma tecnologia adequadas A aproximação mais cabal
possibilidades. da realidade. Objetivação define o próprio movimento investigativo
Certamente não se excluem as contribuições de pesquisas básicas que, embora não consiga reproduzir a realidade, está sempre em
que, realizadas dentro de uma visão a mais longo prazo, funda- busca de-uma maior aproximação. Ela significa de um lado, o
mentem trabalhos teóricos, práticos e estratégicos. Sua importância reconhecimento de que a idéia de "objetividade" e "verificação" é
é de transcendental reconhecimento em qualquer campo e também construída e dirigida. Como mostra Limoeiro Cardoso (1978, 35) o
para a problemática de saúde. próprio campo em que essas idéias surgem é também o terreno de
questionamento daquilo que se verifica. De outro lado, o principio de
objetivação sugere também a crença na necessidade permanente de um
ALGUMAS, OBSERVAÇÕES SOBRE A QUESTÃO DA VALIDADE E DA VERIFICAÇÃO
diálogo crítico entre o investigador e seu objeto, sabendo que ambos
A problemática da VALIDADE e da VERIFICAÇÃO nas Ciências Sociais compartilham a mesma condição histórica e os mesmos recursos
foi colocada, em primeiro lugar, pelo positivismo sociológico, mas teóricos.
representa uma discussão implícita em todas as correntes teóricas . 0 positivismo clássico responde A questão da validade e da
sobre a cientificidade da produção intelectual. A crítica interna verificação com a exigência de rigor colocada no método e nas
constitui a alma da ciência e a coincidência entre a realidade estudada técnicas de "captação" da realidade. Como o termo "captação"
e o produto da investigação é a "utopia" de qualquer marco teórico sugere, o pressuposto básico dessa corrente é de que o objeto se impõe
consistente. Até que ponto as concepções de saúde/doença de deter- ao sujeito que deve procurar a melhor forma de retratá-lo. A verifi-
minado grupo social coincidem com as relações que apreendemos em cação se realiza através da observação empírica, que se puder ser
nossa pesquisa? Como podemos garantir a desejada coincidência repetida e comprovada por várias vezes, independentemente do
entre o pensamento sobre a realidade e a própria realidade? Tais sujeito, será reconhecida como "objetiva". A necessidade da obser-
perguntas são inevitáveis e fundamentais dentro do campo científico, vação controlada permitiu ao positivismo desenvolver inúmeras
embora se aceite que a produção intelectual é sempre um ponto de técnicas de coleta de dados e instrumentais de interpretação (como
vista a respeito do objeto. controle, codificaçãO, amostragem representativa, questionário, pro-
Os critérios de coerência, consistência, originalidade e objetivação cessamento de dados, análise de conteúdo, até a realização de ban-
resumem, segundo Demo, o marco da crítica interna da investigação" cos de dados).
científica (1981, 16). Esses critérios sugerem antes de tudo um debate Atualmente, porém, o avanço do debate sobre os critérios de
entre as várias correntes sociológicas que não é simples e não esta cientificidade tem abalado a segurança dos instrumentos positivis-
encerrado. Por coerência se entende a propriedade de um discurso tas. Popper — reconhecido como um neopositivista — coloca em
logicamente construido, tanto no sentido teórico quanto no desdo- questão os critérios tradicionais de validade do conhecimento, na
bramento de todas as etapas de investigação. Trata-se de um critério medida em que, do seu ponto de vista, nenhuma hipótese é veri-
formal que de certa maneira impede a pesquisa de se tornar uma ficável, pois a acumulação de casos afirmativos não pode sustentar
atividade especulativa ou empirista. Consistência é a própria quali- uma generalização teórica. Para esse autor, a comparação lógica entre
240 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 241

as conclusões, a comparação entre várias abordagens teóricas e, esforços individuais" (1967, 23). A diferença entre os marxistas,
finalmente, o teste através da aplicação empírica das conclusões são Popper e Bachelard é que, para os últimos, a critica é o critério central
os procedimentos mais importantes para se provar a validade de uma do método, enquanto para os primeiros, a critica é a alma também da
investigação (1973: 31-44). Popper substitui o critério de "verificação" teoria.
por "falsificabilidade". Esse principio se institui como conseqüência A submissão do produto do conhecimento à interface das dis-
do seu pressuposto básico de que não.se pode fazer uma generaliza- cussões não significa que a verdade seja o resultado dos pontos de
cão a partir da acumulação de casos concretos, mas apenas um caso vista dos vários estudiosos. Indica, entretanto, que a pluralidade de
negativo concreto atesta que a teoria é falsa, e assim impulsiona o perspectivas permite lançar diferentes focos de luz dos desconheci-
conhecimento. A "objetividade" não se coloca como questão para mentos a respeito do objeto em questão. E necessário também escla-
Popper, assim como não existe para ele uma teoria ou uma descoberta recer, como o faz Demo, que aceitar o "primado do erro" dentro da
evidentes. Qualquer certeza cientifica é sempre provisória até que abordagem de)Bachelard, não significa a permissividade da defor-
seja submetida ao critério de falsificabilidade. Portanto, ele erige mação lógico-formal do trabalho cientifico. HA o que ele denomina
como procedimento fundamental de julgamento cientifico a critica "erros evitáveis" metodologicamente falando, como as tentativas de
intersubjetiva: camuflar incursões ideológicas, argumentos truncados, informações
incorretas, colocações apressadas (Demo: 1981, 49). 0 erro "ine-
"Direi que a objetividade dos enunciados científicos reside no vitável" do qual Bachelard faz o elogio como motor do conhecimen-
fato de que eles possam ser intersubjetivamente submetidos a to, é o contrário da certeza ingênua e está colocado como condição do
testes" (1973, 41). processo e da postura cientifica que reconhece o caráter aproximado
do conhecimento.
Dentro do racionalismo de Bachelard, também os critérios de Dentro das abordagens compreensivistas a questão da verificação
validade e de verificação próprios do positivismo são subvertidos e da fidedignidade também é vista de forma diferente do positivismo
para se colocar em seu lugar a "tese do primado do erro". Para esse clássico. Partindo do principio de que o ato de compreender está
autor admitir o erro é a própria condição de cientificidade de uma 1igad6 ao universo existencial humano, essas correntes de pensa-
teoria, pois caso contrário ela seria um conjunto de dogmas. A mento não admitem que sejam fixadas leis univocamente para se
renovação cientifica se processa pela certeza da incerteza daquilo produzir generalização e verdade. A maneira de abrir o conhecimen-
que afirma, da sua colocação em cheque, através de urna critica to para o universo, é permitir nele a entrada de outras interpretações.
interna irrestrita. Bachelard argumenta que os maiores obstáculos
Por abranger exatamente o mundo da cultura, é nele que se pode
epistemolágicos são as verdades reconhecidas como tal, e propõe o observar, como diz Stein, "um espécie de desvio da univocidade e
julgamento intersubjetivo das descobertas: da transparência do discur. "(Stein: 1988, 48). Portanto, é através da
comparação que se torna mais universal o saber sobre determinado
"A verdade s6 ganha seu pleno sentido ao fim de uma polêmica. grupo cultural, considerada como um recurso fundamental para se
Não poderia haver assim verdade primeira. Não há senão erros garantir maior universalidade ao conhecimento. Do ponto de vista
primeiros" (Canguilhem, comentando Bachelard: 1972, 50). técnico, os autores que trabalham a metodologia qualitativa propõem
a vigilância interna através da triangulação (Denzin: 1973, 260-297)
Esse critério intersubjetivo da critica é também assumido por como prova eficiente de validação. A "triangulação" consiste na
autores marxistas como Goldmann que insiste no "trabalho cientifi- combinação e cruzamento de múltiplos pontos de vistas através do
co como um fenômeno social que supõe a cooperação de numerosos trabalho conjunto de vários pesquisadores, de múltiplos informantes
242 FASE DE ANALISE FASE DE ANALISE 243

e múltiplas técnicas de coleta de dados. A triangulação de certa forma "Conhecer é conhecer objetos que se integram na relação entre o
consagra tanto a critica intersubjetiva como a comparação, embora homem e o mundo, ou entre o homem e a natureza, relação que se
os analistas dessa corrente estejam mais preocupados em mostrá-la estabelece graças A atividade prática do homem" (Vázquez: 1968,
como atividade interna que acompanha todo o processo investiga- 153).
tivo.
Dentro da perspectiva marxista a questão da validade do conhe- Portanto, dentro da idéia expressa na tese n." 1, a prática é o
cimento é tratada como um problema da prática: fundamento e o limite do conhecimento e do "objeto humanizado"
(porque mediado pelo homem) que como produto da ação é objeto
"A resolução da antítese teórica so é possível de uma forma práti- de conhecimento.
ca, em virtude da energia prática do homem. Sua resolução não A tese n." 2 propõe a prática como critério de verdade do conhe-
portanto, apenas um problema de compreensão, mas um prob- cimento. Trata-se de uma tese bastante polêmica porque ela não in-
lema real da vida que a filosofia não poderia resolver, precisamente clui diretamente a explicação do que Marx 'considera "prática".
porque considera tal problema simplesmente teórico" (Marx: Autores como Vázquez interpretam o pensamento da tese n." 2,
1973, 141-143). dizendo que "6 na ação prática sobre as coisas que demonstramos se
nossas conclusões teóricas a respeito delas são verdadeiras". Porém,
Nas Teses sobre Feuerbach Marx fixa as bases da prática como crité- o autor adverte que é preciso evitar interpretar essa relação entre
rio de verdade. Na tese n." 1, critica os idealistas que tomam a realidade verdade e prática num sentido pragmático como se a verdade ou a
como objeto de contemplação e não como atividade humana, falsidade fossem determinadas pelo êxito ou pelo fracasso. A con-
construção histórica, praxis. Na tese n.° 2, indica também a prática cepção da prática como critério de verdade se opõe a concepção
como critério para se verificar se determinados pensamentos perten- idealista de que a teoria traria em si mesma o critério da verdade,
cem ou não A realidade objetiva. A tese n.' 3 é a clássica afirmação sobre como à concepção positivista que vê na prática de forma imediata o
o caráter complexo e interativo da educação: critério de verdade da teoria (Vázquez: 1968, 157).
Na tese n." 3 e na tese n." 11, em que rechaça o papel apenas
"A doutrina da transformação das circunstâncias e da educação, contemplativo da teoria, Marx chama atenção para o dinamismo do
esquece que as circunstâncias têm de ser transformadas pelos conhecimento que so tem sentido como possibilidade de transfor-
homens, e que o próprio educador tem que ser educado" (Marx: mação da realidade, portanto nem somente teoria, nem somente
1984, 11-14). prática, mas união indissolúvel para a fecundidade de ambas.
A questão do conceito de "prática" em Marx é controvertida e,
Assim nas 'eses sobre Feuerbach a prática aparece como funda- portanto, torna-se bastante confusa a interpretação desse critério pa-
mento do conhecimento na tese n.°1, como critério de verdade na tet ra a critica interna do conhecimento. Lênin, sem discutir o significado
n.°2 e como finalidade do conhecimento da tese n."3 e n." 11. Ou seja, do termo, afirma que "o ponto de vista da práxis deve ser o primeiro,
na tese n°1 Marx coloca a prática como condição do conhecimento ao o básico do conhecimento", porém, acrescenta:
mostrar que a possibilidade de conhecer está ligada A atividade
humana criadora, de modo subjetivo por um lado, e por outro, ao
"0 critério da praxis não pode nunca, na verdade, provar ou
negar o processo de conhecimento como mera projeção da cons-
refutar totalmente uma representação humana qualquer. Esse
ciência:
critério é bastante impreciso para não permitir que os conheci
244 FASE DE ANÁLISE 245
FASE DE ANÁLISE

tos do homem se convertam em algo absoluto" (citado em Botto- criação humana como realidade objetiva" (1969, 201). Portanto a
more et alii: 1988, 294). "pratica" não pode ser pensada apenas como uma atividade externa
do homem, como parecem fazê-lo os autores citados. Ele a distingue
Bottomore comenta que o termo "praxis" em Marx, ora parece se do conceito de trabalho, porque, comenta, ela compreende além do
referir à essência livre e criadora da atividade humana e outras vezes momento laborativo, o momento existencial:
se restringir ao campo politico, econômico e ético, e por vezes sugerir
que a própria teoria deve ser vista como uma das formas da praxis "Ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem que
(Bottomore et alii: 1988,292-296). Al thusser emprega o termo "prática transforma a natureza e marca com o sentido humano os materiais
teórica" para falar da "pratica especifica que exerce sobre um objeto naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os
próprio e leva a um produto próprio: o conhecimento". Apresenta a momentos existenciais como a angustia, a nausea, o medo, a
atividade intelectual como: alegria, o riso, a esperança não se apresentam como experiência
passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto 6, do
"Processo de transformação de uma matéria-prima dada num processo de realização da liberdade humana" (Kosic: 1969, 204).
dado produto, transformação que se leva a cabo através de de-
terminado trabalho humano, usando meios de produção deter- 0 centro da reflexão de Kosic, portanto, em relação à questão do
minados" (1966: 67-75). conhecimento é o ser humano enquanto criador: " o homem só conhece
a realidade na medida em que ele cria". Mas esse processo de criação
Para Althusser, as ciências: e de conhecimento ele o concebe como algo interior, através da
apropriação prático-espiritual do mundo como um todb indivisível
"Não têm necessidade de verificação por práticas exteriores para de entidades e de significados (1969: 22-24).
declarar 'verdadeiros' ou seja, conhecimentos, os conhecimentos 0 conhecimento, para Kosic, representa uma das formas de apro-
que elas produzem" (...) "elas mesmas conferem o critério da priação do mundo, que contém os dois modos humanos de apro-
validade de seus conhecimentos" (1966, 75). priação, o sentido subjetivo e o conceito objetivo:

Vázquez acredita, diferentemente de Al thusser, que o termo "0 processo de captação e o descobrimento do sentido da coisa é
"prática" em Marx não pode ser generalizado e nem usado (no seu ao mesmo tempo criação, no homem, do correspondente sentido
sentido transformador) para se referir A "prática teórica" porque ela da coisa. Esses mesmos sentidos, por meio dos quais o homem
não modifica realmente o mundo. 0 conceito se refere à "transfor- descobre a realidade e o sentido dela, são um produto histórico-
mação objetiva e real" do homem e da natureza (Vázquez: 1968, 202- social" (Kosic: 1969, 23).
204). Porém Vazquez defende que uma teoria só pode estar mediando
a transformação e encontrar seu critério de verdade na pratica, se O ponto central da questão da "praxis" como critério de verdade,
permanecer exatamente como teoria, possuindo um conteúdo cuja dentro do pensamento de Kosic, estaria na capacidade de o conheci-
riqueza de consistência possa iluminar a prática, compreendida a mento de abranger o desenvolvimento e a explicitação dos fenôme-
relação indissolúvel entre ambas (1968, 207). nos culturais como atividade pratica objetiva do ser humano históri-
Em A Dialética do Concreto, Kosic tabalha o conceito de PRAXIS den- co. A coerência e a critica interna do trabalho cientifico é colocada por
tro de uma concepção totalmente diferente dos autores marxistas ele como um processo indivisível dentro da construção do conheci-
citados. Para ele "a praxis é a esfera do ser humano, ela é a própria mento, cujos momentos são: (a) a destruição da pseudoconcretici-
246 FASE DE ANALISE FASE DE ANÁLISE 247

dade, isto 6, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o prova. Portanto, são importantes de serem valorizadas tanto a critica
conhecimento de sua autêntica objetividade; (b) compreensão do intersubjetiva, as comparações e triangulações, como a consideração
caráter histórico do fenômeno que manifesta a dialética entre o de todos os cuidados metódicos e técnicos que ajudam a exorcizar a
.1
individual e o social; (c) o desvendamento do conteúdo objetivo e do especulação e o subjetivismo. Mas sempre levando em conta o
significado do fenômeno, de sua função objetiva e do lugar histórico processo dialético entre o lógico e o sociológico, entre o sentido
na totalidade social (Kosic: 1969, 52). subjetivo contido na objetividade e o sentido objetivo da criação
Kosic conclui sua critica A validade do produto do conhecimento subjetiva:
dizendo que seria uma "má totalidade" aquela que entendesse a
realidade social apenas sob a forma de objetos, resultados e fa tos já "A práxis do homem não 6 a atividade prática contraposta A teo-
dados e não subjetivamente como práxis humana objetivada (1969, ria: 6 a determinação da existência humana como elaboração da
52). Portanto, para ele, a problemática da pratica não é explicável pela realidade" (Kosic: 1969, 202).
sua oposição A teoria ou A contemplação. Mas, compreendida dentro
da realidade humano-social, ela se opõe à idéia de ser dodo ou seja,
compreendido como objeto externamente verificavel ou contem-
plável. A teoria da "práxis" 6 uma critica ao idealismo imobilista, ao
positivismo pragmático e ao estruturalismo que reduz o sujeito a
resultante dos mecanismos incontroldveis do modo de produção.
As reflexões sobre o processo de validr.u;Zio do conhecimento nos
mostram o campo aberto de debate não só da produção empírica,
como da própria concepção da realidade a ser estudada e do sujeito
que conhece: não dá para separar os elementos indiviziveis dessa
construção "pratico-espiritual".
Dentro da perspectiva dialética da validade da pesquisa, a prática
não pode ser pensada apenas como atividade externa de transfor-
mação, mas 6 importante inclui-la como compromisso social, e
enfatizar a dimensão interior, ontológica do ser humano enquanto
criador, e da realidade sócio-histórica como construção humana
objetivada. Em relação ao saber, 6 necessário abranger teoria e práti-
ca enquanto unidades complementares, prática teórica enquanto
aproximação da realidade, e teoria capaz de incluir e compreender a
transformação social: critérios ao mesmo tempo internos e ex ternos
que provam a lógica e a sociológica do conhecimento.
0 aporte marxista no campo da "verificação" do conhecimento
não pode consistir num menosprezo aos instrumentais das outras
abordagens, na busca de objetivação. É porém a sua superação
dialética na medida em que coloca no interior da definição da própria
realidade social, a condição sine qua non de seu conhecimento e de sua

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