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Yeda Pessoa de Castro: influência de línguas africanas no português


do Brasil precisa ser mais estudada
Autor: Carlos Ribas

Categories : Letras, Saberes africanos

Data: 25/11/2022

“Sem esquecer Ângela Davis, quando ela disse que o preconceito estrutural do Brasil está baseado na linguagem”.
Com essa lembrança, a etnolinguista e professora da UFBA Yeda Pessoa de Castro começou a palestra "As línguas
negroafricanas no Brasil e o preconceito linguístico", no dia 4 de novembro de 2022, no Centro de Estudos Afro
Orientais (Ceao), uma iniciativa da Linha de Estudos Africanos do Pós-Afro, programa de pós-graduação da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.

Na oportunidade, a pesquisadora lançou em Salvador o seu último livro "Camões com Dendê" – “um 'abecedário'
enriquecido de termos originários [...] que transitam [...] nas diversas áreas do multiuniverso cultural da nossa língua
luso-brasileira”, como a obra é apresentada - no qual a autora expressa a ideia de que o confronto do português com
as línguas bantas, em vez de provocar um conflito por falta de comunicação, resultou numa africanização do idioma. A
professora Yeda Pessoa aproveitou para confessar o desejo de que esse seu livro abra espaço para a criação de um
novo português falado no Brasil.

Acervo Pós-AfroA etnolinguista começou confessando sua preocupação com a linguagem que usamos: “Sem
esquecer Ângela Davis quando ela disse que o preconceito estrutural do Brasil está baseado na linguagem, esta
embutido principalmente na linguagem que usamos. Então é preciso sempre rever essa linguagem, é preciso primeiro
'saber as coisas' a fim de podermos evitar esse racismo que prevalece ainda no Brasil”.

Depois, contou como as línguas faladas pelos negros africanos chegaram ao Brasil, atravessando o Atlântico trazidas
pelos escravos, e aqui se matizaram “com o português arcaico das caravelas”. Em seguida, enfatizou que o influxo
de línguas africanas no português durante o Brasil colonial tem sido mais objeto de silêncio do que de reflexão por
razões históricas e epistemológicas, de maneira preconceituosa.

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Entre essas razões, Yeda Pessoa cita o prestígio conferido pela academia à escrita ante a oralidade, declarando que
“é preciso que esteja escrito para que seja (reconhecido como) verdade, e o tratamento que se dá [a essas línguas] é
desprezível, como se não fossem línguas”, lamenta.

A autora levanta a hipótese baseada nos resultados de 40 anos de pesquisa linguística e etnolinguística nos dois
lados do Atlântico, com a redescoberta do mundo banto, retomando a discussão sobre a origem e configuração da
língua portuguesa e de sua cultura no Brasil e aceitando o desafio de introduzir a matriz africana como partícipe do
processo, dando visibilidade e voz ao povo negro, até então omitido e silenciado nessa história, como se pode
encontrar em "Camões com Dendê".

“Se as vozes dos 4 milhões de negros africanos que foram trasladados para o Brasil ao longo de mais de três séculos
consecutivos não tivessem sido abafadas em nossa história, por descaso ou preconceito acadêmico, hoje saberíamos
que eles, apesar de escravizados, não ficaram mudos, falavam línguas articuladamente humanas e participaram da
configuração do português brasileiro não somente com palavras que foram ditas a esmo e ‘aceitas como
empréstimos pelo português’, na concepção vigente, mas também nas diferenças que afastaram o português do
Brasil do de Portugal”, afirma Yeda.

A palestrante destacou ainda a importância do processo de socialização linguística exercido pelos chamados negros
ladinos, aqueles que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de português, e pela atuação da mulher negra no seio
da família colonial. “O desempenho da mulher negra, ama de leite e criadeira, foi tão marcante no seio da casa
senhorial que até hoje chamamos o filho mais jovem pelo termo angolano caçula em lugar de benjamin, como se diz
em Portugal”. Yeda ressaltou, também, ter sido notável o desempenho sociolinguístico de lideranças afro-religiosas
no uso do seu repertório litúrgico, transmitido por tradição oral e que faz parte do falar cotidiano da gente de terreiro.

Africanização do idioma

Línguas africanas influenciaram o português falado no Brasil, sobretudo na linguagem popular brasileira. Entre os
séculos XVI e XIX, mais de quatro milhões de africanos originários de duas regiões da África subsaariana – banto e
sudanesa – foram trazidos ao Brasil em cativeiro por meio do tráfico transatlântico. Só a região banto compreende a
500 línguas muito semelhantes faladas em 21 países, como Moçambique, Angola e África do Sul, como exemplos,
sendo o quicongo, o quimbundo e o umbundo as de maior número de falantes no Brasil.

Ainda segundo a autora, entre as línguas oeste-africanas, os principais representantes no Brasil foram as línguas da
família kwa, com destaque para os iorubás, e os povos de línguas do grupo ewe-fon, apelidados de minas ou jejes. A
consequência direta dessa travessia foi a alteração da língua portuguesa na antiga colônia, sobretudo da língua
falada. Palavras como babaca, caçula tanga, moleque, bunda e centenas de outras que usamos todos os dias, são
vocábulos que vieram de línguas africanas, ensina Yeda.

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Camões com Dendê

Agora, depois de publicar os livros "Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro" - que é considerado
um marco nos estudos afro-brasileiros por trazer à tona a participação dos negros africanos na construção do
português brasileiro e também por ressaltar a presença até então “escondida” do povo banto também nessa
construção do português - e "A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do séc. XVIII", Yeda
escolheu para sua obra mais recente o sugestivo título de "Camões com Dendê: o português do Brasil e os falares
Afrobrasileiros", que sai pela editora Topbooks.

O livro aprofunda a hipótese levantada em "Falares Africanos na Bahia": “É um livro de certezas, não mais de
hipóteses”, enfatiza a autora, escrito com uma “linguagem simples”, porque Yeda faz questão de ressaltar que não
está escrevendo somente para a academia, mas para o público em geral “sobretudo para aquelas pessoas todas
interessadas das comunidades afro-brasileiras, de religião afro-brasileira, interessados em saber o que elas falam, o
que elas dizem e como essa língua chegou até elas”, declarou Pessoa de Castro durante a apresentação da sua obra
no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em maio deste ano.

O título ideogramático do livro visa projetar o português brasileiro como produto do encontro do português arcaico das
caravelas e da literatura consagrada de Luís de Camões com as línguas africanas representadas pelo termo banto
dendê, o óleo comestível extraído da palmeira Elaeis guineensis, vermelho como o sangue derramado na construção
da segunda maior nação de população negra do mundo”, segundo informa Yeda. Ao final, ela confessa o desejo de
que Camões com Dendê abra espaço para a criação de "um novo português no Brasil, para se escrever uma nova
Gramática da Língua Portuguesa”, a partir das “certezas” agora reveladas por ela sobre as
línguas negroafricanas.Quem é

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Yeda Pessoa de Castro é etnolinguista, graduada em Letras pela Universidade Federal da Bahia; Mestre em Ciências
Sociais pela UNIFE (atual Universidade Obafemi Awolowo), na Nigéria; Ph.D em Línguas Africanas pela UNAZA (atual
Universidade de Lubumbashi), no Congo; primeira entre os brasileiros a defender tese de pós-graduação numa
universidade africana, e a única até agora em sua especialidade.

Consultora técnica em Línguas Africanas do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo e do Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural do IPHAN em Línguas e Culturas Africanas, pertence ao Grupo de Trabalho de Literatura Oral e
Popular da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística) e à Academia de
Letras da Bahia. Foi condecorada com a Ordem do Rio Branco, pelo Ministério das Relações Exteriores, e com a
Comenda Maria Quitéria pela Câmara de Vereadores de Salvador, além de coroada Rainha da Guarda 13 de Maio.

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