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WITTGENSTEIN rowan S235 FRANCOIS SCHNIT2 ee couEgho oD | mourns : FIGURAS DO SABER rngosB etre | i pata 21 OSNS coo, m.252 752 ee hots8 Titulos publicados Kierkegaard, de Charles Le Blane Nictasche, de Richard Beardsworth Deleuze, de Alberto Gualand Maiménides, de Gérard Haddad dré Scala , de Pierre Billouet in, de Charles Lenay Kant, de Denis Thouard Wittgenstein, de Francois Schmitz Teatapan José Oscar de Almeida Harques ‘Universidade Estadual de Campinas FISURAS) BER Tiewlo orginal francis: Winget dBdition Les Belles Leees, 1999 © Feiora Bseago Libendade, 2004, paca ests radio © 50% Prpanao de orginase revise: Tulio Kaveata Edilberto Fernando Versa ‘Nobucs Rachi Natansel Longo de Olives via Moine Asstt editorial Ecler vsponsével Angel Bojadsen SASL ~ CATALOGAGKO NA FONTS ‘Sato Nain ds Etre de non) saaiw Sehmie,Fangln 1905. ‘Wittgenstein! Frangais Sehr: endugfode Jot COser de Alntida Marques. ~ Si Palo: Estaio Liberade, 2004,— (Figass d a ISDN 85-7448-088-6 1. Wagenaein, Ladi, 1869-1951. 2. Liga ‘Smbolica¢ matemation 3. Lnguagern ngs ~ loot, 4 Filosofia aur, L Tul, I See, oson cpp iss cou 139 ao win rondo ditora Bsa Lberdade Ld us Dona Blin, 116 01155.030 Sto Paul-SP Tels (11) 3661-2864 Tas (11) 3825-4259, ‘liton@eracaolibedadecom br bupefwerteolberadecom.be Sumario Quadro cronolégico Introdugao0 1, “Diga-Ihes que tive uma vida maravilhosa” 2. © Tractatus: preliminares 1. O objetivo do Tractatas 2, Que éa 3. A anillise l6gica de Arist6teles 4 Logica? fisicas . Conseqiiéncias met “Nova” logica ¢ “cr Log Um novo ponto de partids 2 da linguagem” ca e gramética La 8 proposicao Teactatus: a teoria pict6rica da proposigiio O que é uma f cara? ° 1 2. Uma proposigéo é uma figura légica 3. Um simbolismo logicamente em ordem 4, Niio ha constantes l6gicas 5.A “forma geral da proposigiio” 6.Q 7. OTractatus em grandes linhas éuma “lei l6gica”? torno ao solo rugoso!” ... Os erros do Tractatus A “gramitica”... 5. “Ba vida que é preciso mudac™ Indicagiies bibliograficas 1889-1903 1897 Quadro cronolégico Nascimento em Viena, em 26 de abril, de Ludwig Wittgenstein, oitavo e tiltimo filho de Karl Wittgenstein e de Leopoldine Kalmus. No mesmo ano nascem, 0 filésofo Mastin Heidegger eo ditador Adolf Hitler. Luxo, calma, voluptuosidade (e misica) no “Palécio Wittgenstein’ Fundacio, por Gustav Klimt, do movimento Secessao; Karl Wittgenstein financia 0 “Edi: ficio da Secessio”, em Viena. Primeiros mimeros de Die Fackel (A Chama), publicagdo em que Karl Kraus es é 1936. A familia Wittgenstein possui co completa desse folhetim satitico, Orto Weininger, judeu anti-semita, autor de Sexo e caréter, suicida-ses Bertrand Russell publica os Princfpios dz matematica jovem Ludwig faz seus estudos na Escola Real de Linz, Estudos de engenharia mecnica na Escola Técnica Superior de Berlim. Interesse nas- cente pela filosofi 10 1908-14 1913-14 1914 1914-16 1916 1917-18, 1918 1918-19 Estudan Manchester, na Inglaterra, Ludwig se ocupa @ aetondutica ¢ se interessa pela ques- tao dos fundamentos da matemética. L8 os Princtpios da matemética, de Russell, assim como as Leis fundamentais da aritmética, de Gottlob Frege. Faz uma visita (durante 0 verfo) a Frege, que © aconselha a procusar Russell. Estuda com Russell em Cambridge; primeiro: trabalhos em légica (“Notas sobre I6gica” Morte, em janeiro, de Karl Wittgenstein, pai de Ludwig. Estadia na Noruega ("Notas ditadasa Moore”, abril de 1914), Em julho, Wittgenstein confia uma grande quantia ao editor Ludwig von Ficker em prol de artistas necessitados (Rilke, Trak, etc); 20 final de julho e infcio de agosto, decla rages de guerra (Sérvia, Réssia); em 7 de sgosto, Ludwig se alista voluntariamente no exézcito austriaco; de agosto a novembro, rio Vistula a bordo do Goplana ‘Wittgenstein trabalha em uma oficina de re- paros da artilharia, Da primav siva Brusilov a0 vero na frente russa; ofen- Na frente a, ofensiva Kerensky. Na primavera, Wittgenstein estd na frente ita- ian; em licenga durante o verdo, conclui 0 Tractatus. Retomna a frente italiana; Ludwig é feito pri- sioneiro no infcio do més de novembro de Quadro roves 1919-20, 1920 1920-26 1922 1926 1926-29 1927 1918. Confinado em Como, depois em Cas- sino, encontra-se com o pedagogo Ludwig Hansel e decide tornar-se professor de es¢ la priméria. Witegenstein zetorna a Viena em agosto; “sui- cidio financeiro” em favor de seus irmios € Ludwig, inscrito em uma escola de forma Go de professores primérios, vive em um alo- jamento independente; grande abatimento psicol6gico. Jardineiro, durante o verao, em um mbstei- ro préximo a Viena, Professor primario na Baixa Austria. Recebe as visitas de Frank Ramsey (prima- vera) ¢ de Russell (verao); publicagao do Tractatus na Gra-Bretanha. Comecam as reunides organizadas por Moritz Schlick, que seriam o embriao do fu- irculo de Viena” (1928). Da primavera ao vero, mais uma ver jardi- neiro de um mosteiro, Reloiuo a Viena; construgio da ca irma Margarete. Primeiro contato com Schlick, inicio dos en- contros com alguns membros do Circulo de Viena. Conferéncia de Brouwer em Viena, em mar- co; Wittgenstein retorna & filosofia, ‘Wittgenstein ensina em C: Redagio das Observ: 5 gue seu doutorado em junho de 1930 com o 1933-34 1934 1934-35 1936-37 1938-41 1941-44 Wisgentea Tractatus; torna-se professor assistente no final de 1930. Redagio do texto que seria publicado par- cialmente com o titulo Gramética filoséica. Redige o Caderno azul, Dolfuss chega ao poder na Austria, persegui- Go contra a esquerda austrfaca; 0 Circulo de Viena, alguns membros do qual estavam ligados & esquerda, comeca a se desagregar Caderno marrom; Wittgenstein aprende rus- so ¢ passa dez dias na Réissia em setembro de 1935, com a esperanga de Ié encontrar algum trabalho manual Wittgenstein, na Noruega, redige as primei ras paginas das futuras Investigagdes filo- séficas, Wittgenstein, em Dublin, acompanha com in: quietagao o processo da anexagio da Aus tris (fevereiro-margo). Wittgenstein retoma suas atividades docen- tes em Cambridge. Em fevereiro, Wittgenstein é eleito titular em substituigéo a Moore; em junho, obtém a nacionalidade inglesa, Porteiro, ¢ depois manipulador na farmécia do Guy's Hospital em Londres, e por fim as- sistente de um laboratério em Newcastle Em Swansea (Pais de Gales}, Wittgenstein tenta terminar “seu” liveo. Retoma suas atividades docentes em Cam- bridge, undo rane 2 1948-49 1950 1950-51 ‘Witrgenstein passa a maior parte de seu tem- po na Irlanda e continua sem conseguir te minar o livro. Durante o veriio, passa um tempo nos Esta dos Unidos; em novembro, um cance préstata é diagnosticado, Em Viena com sua familias morte de su mais yelha, Hermine, em fevereiro. Wittgenstein, adoentado, mora em casas de seus antigos alunos, faz uma curta viagem & Noruega e termina por instalar-se na c seu médico em fevereiro de 1951 Ludwig Wittgenstein morre em Cambridge, no dia 29 de abril, & idade de 62 anos. Publicagéo péstuma das Invest séficas. Introdugao Na Franga, hé ndo muito tempo, o nome de Witt- genstein nfo seria familiar a ninguém fora de um circulo muito restrito de filésofos. Hoje jé nao é assim, Sao cada vex mais numerosos os filésofos “profissionais mitem que o pensamento de Wittgenstein a certo interesse, ¢ a literatura especializada que lhe € con que ad- sagrada se enriquece todos os anos com novos titulos. Aquele que mais fez, na Franca, para tornar conhecido seu pensamento, Jacques Bouveresse, é hoje professor no Collage de France ¢ ocupa um lugar privilegiado no are pago dos “grandes intelectuais” mencionados com res- peito, O pensamento de Wittgenstein tomou assim lugar entre aqueles aos quais nfo é incongruente referir-se em obras de carate: los6fico. de académica nfo é, porém, a tinica que ‘Wittgenstein conhece atualmente. Alguém que nao tenha a menor idéia do que disse Wittgenstein ja teré alguma idéia dele: por exemplo, ter sem ditvida lido recentemente em um “grande jornel vespertino”, ou em uma revis feminina, que Wittgenstein estaria na origem do 6dio pato~ légico de Hitler aos judeus, e que talvez ele tenha sido 0 “recrutador”, a servigo da Unido Soviética de Stalin, dos espides de Cambridge (Kim Philby, Anthony Blunt, ete.) ssa notorie! 16 na década de 1930. A mesma pessoa teria podido igual- mente ver‘um filme no qual Wittgenstein aparece como um afetado homossexaal, ou, se l@ zomances em inglés, er um de Jerome Charyn no qual Wittgenstein é um pro- fessor primério na Califérnia. Num viés mais sério, deria ter lido uma pequena narrativa de'Thomas Bemhard, que dé a palavra ao sobrinho de Wittgenstein relembrando 0 tio filésofo, e assim por diante. Wittgenstein tornou-se um personagem sobre 0 qual se contam estranhas hist6rias e ao qual se atribuem com- portamentos ou maneiras singulares. Ele faz As vezes papel de “sébio”, no sentido que os antigos davam a essa pa- lav ¢ sabio continua tendo uma boa dose de extravagdncia que o coloca & parte da humanidade ordi- nia e se torna um objeto de zombaria on de reveré: Enfim, o individuo Wittgenstein suplanta o filésofo. ia. Sua vida apresenta, é verdade, tragos que nao podem deixar de excitar a curiosidad Wittgenstein foi o dltimo filho de um dos grandes magnatas da siderurgia na Europa no fim do século XIX, cuja fortuna era considerdvel, sendo sua casa o ponto de encontro de artistas ¢literatos da época. Herdeiro de uma parte dessa riqueza, Wittgenstein abriu rence deta em favor de seu irmito e de suas in completa~ Dispen- sado em 1913, apresentou-se voluntarlamente ao exército austtiaco durante a Primeira Guerra Mundial ¢ expe- rimentou, na frente russa, as grandes provacées desse abominével conflito, Brilhante estudante em Cambridge, trabalhando com um dos maiores espiritos de seu tem- po, Bertrand Russell, em quem provocou admiracio, va~ mos encontré-lo 20 final dos anos 20 enfurnado no interior da Austria como professor de escola rural, de pois, alguns meses como jardineiro de um mosteiro, ¢ por fim, ao lado do arquiteto que construfa uma casa para uma de suas inmas. A seguir, professor em bridge, mas, sem nenhum gosto pelo ensino tradicio empzega-se como porteiro de um hospital londrino ¢ de- pois como auxiliar de laboratério durante a Segunda Guerra Mundial na Gri-Brecanha, No é 56 isso, Entre os papéis que Wittgenstein deixou ‘apés sua morte se encontravam cadernos nos quais ele digo, reflexes de carter pessoal. Hlomos- alidade e obcecado identemente anotava, em sexual, pouco & vontade com sua s pela idéia da culpa em geral, ele deixa transparecer alguma coisa disso. Para proteger sua repu- tagio, s s testamentérios julgaram por bem proibir por muito tempo a consulta a essas notas, dei- xando assim 0 caminho livre para todos os rumores qu regalam certos espititos ‘Nos meios filos6ficos, sua postura bigua. Celebrizado por sua primeica obra, de titulo exé~ tico, o Tractatus Logico-Philosophicus, editado em 1921, ‘Wittgenstein ndo publicou mais nada e foi s6 por meio de seus cursos ~ descritos pelos que os assistiram como sessdes de meditago em voz alta pontuadas de longos siléncios ~ € do que deles diziam seus discipulos, que se filtcaram os fragmentos das idéias novas ¢ originais que ele desenvolven nos anos 30 e 40, Disso se seguiu um halo de mistérlo em rorno de sua filusofia, wliasentado pela vorosa devogio de seus discfpulos. Que havia, afinal, de Go extraordindtio a ser dito? Dai a fazer de Wittgenstein um espido a soldo dos so- viéticos ha sem divida um passo que, a um espirito ra- zodvel, pode parecer dificil de ser dado! Que isto tenha acontecido leva a refletir menos sobre Wittgenstein do satez de nossos tempos, pelos quais, us executor foi menos am- que sobre a inser alids, nosso autor confessava “nio ter simpatia”, Aloséfices, Peeftcio. gens Permanece, contudo, o fato de que 0 “halo de misté- 4i0” de que falévamos hé pouco tem sua origem em boa parte na situacao hist6rica paradoxal da obra de Wittgen- tein, ¢ € preciso compreender toda sua ambigiiidade an- tes de entrar no Amago da questio. ‘Wittgenstein era, como se sabe, austriaco, embebido da atmosfera da Viena do inicio do século XX, a de Schnitzler, Karl Kraus, Musil, que viu exguer-se contra uma certa grandilogiiéncia burguesa o movimento 0”, a miisica dodecafdnica de Schoenberg e, ainda, lise freudiana. Ele pr6prio, em sua juventude, havia lido Schopenhauer e Otto Weininger. Nao foi em Viena, contudo, que ele veio a exercer seus talentos de filésofo, mas em Cambridge, aa Inglaterra, em um universo intelectual que nao tinha muita coisa a ver com o de sua cidade natal. Em Cambridge, Wittgen- stein se inseriu na linhagem intelectual dos grandes refun- dadores da ldgica: Russell e seu alter ego alemio Freg Sua filosofia apareceu inicialmente como uma maneira de resolver problemas filos6ficos de tipo muito técnico levantados por essa revolugéo no dominio da l6gica, ¢ foi assim que se leu o Tractatus durante muito tempo nos paises anglo-sax6nicos € que se compreendeu o sentido de suas ligdes posteriores. Fil6solo-Légieu Ue dificil acesso ara os que no estavam a par da “nova légica” e de suas conseqtiéncias filoséficas, Wittgensteia parecia a mil Ié- gnas de distancia das preocupacdes mais grandiosas que animavam, por exemplo, os filésofos alemies e seus epi gonos franceses, Seus escritos foram, portanto, durante os anos 50 ¢ 60, trabalhados e comentados essencialmente nos paises anglo-saxGnicos e, por essa mesma razo, classi- ficados entre aquilo que por vezes se denomina “filosofia analitica”, essencialmente preocupada com a filosofia da linguagem e a filosofia da treed # claro que isso significava esquecer um pouco rapi damente que Wittgenstein chegara 2 Cambridge trazendo consigo questées ¢ preocupagdes que agitavam a Austria decadente e, especialmente, Viena, Tratava-se de ques tes essencialmente éticas, As quais faziam eco tracos de sua personalidade. Essas preocupagGes afloravam por ve zes em seus escritos, sobzetudo em seus cadernos pessoais, mas ndo foram objeto de desenvolvimentos “filos6ficos’ sisteméticos (por excelentes razSes que veremos & frente) e podem, portanto, parecer secundérias em uma primeira leitura. No entanto, & medida que seus manuscritos ¢ ca- dernos eram tornados piblicos, ficou cada vez mais vist- vel que havia como que um avesso de sua obra, um av silencioso que parecia remeter a sua personalidade ator mentada, Esse “avesso” se acha assinalado pelo préptio Wittgenstein em uma carta a um editor a quem havia en- viado o mannscrito do Tractatus: {No preficio] eu queria escrever que meu trabalho con: siste de duas partes, uma que est aqui apresentada, a qual 6 preciso acrescentar tudo aquilo que eu nao es- crevi. B 6 tante. De fato, meu livro traga os limites da ética, por assim dizer, a parti do interior (.] Enfim, penso subre tudo isu de gue (anos falam hoje sem nada precisamente esta outra parte que é impor- ex, eu o repeti calando-me. Esta parte silenciosa de seu trabalho encontra-se como que encenada por sua prépria vida; uma vida que parece ter sido animada pela vontade constante de escapar aos fingimentos ea impostuta, a tudo que se assemelha & deso- stidade, tanto intelectual como moral. Wittgenstein pa rece ter estado sempre em busca de uma espécie de clareza, de transparéncia moral (mas também conceitual), busca que seu permanente sentimento de néo estar 4 altura do 20 Wegensein que deveria ter sido tornava desesperada, Como, ao mes ‘mo tempo, ele estava convencido de que nfo se podia fa~ lar de maneira significativa desse género de questes, niio € de surpreender que tantos biégrafos se tenham cado com um deleite as vezes suspeito sobre su cebida, no melhor dos casos, Compreende-se assim po: stein € 0 cindida: de um lado, trata-se de um pensamento austero, imerso em problemas que muitos “filésofos”, em particular na Franca, mal conseguem compreender, De outro lado, trata-se de um personagem de vida pouco indicagées am apenas apresentar 1 vida, con somo uma parte de sua obra, qnea “imagem” de Wittgen usual e de personalidade intrigante, As pouc biogréficas apresentadas os dados factuais que permitirio, espera-se, satisfazer a curiosidade, sem diivida legitima, de um leitor desejoso de saber em que se apoiar diante de certas lendas. ol Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa”* in nasceu em 26 de abril de 1889, em Viena, Seu bisavé paterno, Moses Meier Wittgenstein, administrador a servico da familia principesca dos S: ‘Wittgenstein, adotou 0 sobrenome “Wittgenstein” (pos- sivelmente} ap6s 0 decreto de Jernimo Bonaparte, em 1808, obrigando os judeus a adotarem um nome de fa- milia, Nao hé, assim, nenum parentesco entre a familia principesca e os Wittgensteins de que iremos falar. Esse Moses Meier Wittgenstein havia se instalado no inicio do sulo em Korbach (na Alemanha, em Hlesse, a uma cen- tena de quilémetros ao norte de Frankfurt), ¢ foi nessa cidade que nasceu em 1802 Hermann Wittgenstein, av de Ludwig, Hermann converteu-se ao protestantismo, sem diivida antes de seu casamento em 1839 (com Fanny Fidgor, judia vienense, ela mesma convertida em 1838). Hiabil negociante, fez. fortuna comprando la na Europa Central para revendé-la nos Paises Baixos e na Gra- Bretanha, Depois de viver dez anos em Leipzig, o casal se instalou em Viena. Tiveram dez.filhos, entre os quais Karl (0 sexto, nascido em 1847), pai de Ludwig. Todos esses filhos alcangaram elevadas posigdes na alta sociedade vienense. 1, Oleinas palavens de Wietgenstein antes de mosses © caso de Karl é 0 mais original, Com 18 anos, sem diivida insatisfeito com os estudos que seu pai desejava vé-lo seguir, fugiu com sen violino e 200 florins no bolso para os Estados Unidos, onde fez. todos os trabalhos que um rapaz dessa idade pode fazer para ganhar a vida, Re toznou 20 cabo de dois anos, extraindo dessa experiéncia uma grande admiragio pelo espitito empreendedor dos norte-americanos. Depois de estudar engenharia e passar alguns anos exercendo a profissio, langou-se aos negécios € construiu em alguns anos um imenso império sider gico, que fez. dele o Krupp do império austriaco. Encer- rou sua catreira em 1898-99, apés ter acumulado uma fortuna considerdvel, Morreu de cancer em 1913. A residéacia dos Wittgensteins em Viena, chamada 0 “Palécio Wittgenstein”, era 0 centro da vida artistica da cidade, ¢ em particular da vida musical; a esposa de Karl, Leopoldine, era uma excelente pianista, ¢ a msica estava por toda parte no “Palécio” e na vida das criangas, par- ticularmente na de Ludwig. Lé se via freqiientemente 0 velho Brahms ou o jovem Pablo Casals; Kar! se fez pro tetor do movimento “Secesso”, financiando seu Edifi- cio em Viena Ludwig foi o dltimo dos oito filhos (ts mogas e cinco rapazes) de Karl e Leopoldine ~ 0 “caculinha”, de satide um tanto frégil. Até 2 idade de 14 anos quase no saiu da casa da familia, pois, como seus irmaos ¢ irmés, foi educado por preceptores privados. Essa forma de instru- so no parece ter conduzido a resultados notéveis e, segundo Paul, os dois iltimos fillhos, 0 préprio Paul Ludwig, ndo tinham aprendido grande coisa quando se decidiu envié-los para instituigées “normais”. Ludwig mostra bem cedo os talentos de meciinico: conta-se que ‘com dez anos de idade ele construiu um modelo zeduzido da maquina de costura da familia que causou a admira- io dos parentes. gees que tv a vide acai” 23 A forte personalidade de Karl, que no era contraba- Jangada pela de Leopoldine, mais apagada, no produziu bons resultados: em 1902, Hans, o filho mais velho, do: tado de alma musical, que no desejava mais ouvie falar do futuro de industrial que seu pai pretendia Ihe impor, partiu para os Estados Unidos como Karl fizera 37 anos antes, ¢ Id se suicidou. O terceiro filho, Rudolph, partiu para Berlim por razées semelhantes em 1903, e suicidow-se em maio de 1904, Mais tarde, ao fim da Primeira Guerra, no ano de 1918, um terceiro irmao de Ludwig, Kart, tam- bém se suicidaria, aparentemente de vergonha por nao ter conseguido fazer que as tropas que comandava se bates- sem com o exército italiano, Parece que esses dois primeiros suicfdios, as nivel escolar mediocre dos dois filhos mais jovens, levaram Karl a modificar sua conduta em relagio a eles. Foi assim que, em 1903, Wittgenstein foi enviado para um colégio técnico em Linz, onde permaneceu por trés anos, sem sido um sluno muito brilhante. Esses anos nao foram feli- zes: transplantado bruscamente para um ambiente que tinha muito em comum com o do “Palécio Wittgenstein”, Ludwig no conseguia suportar a grosseria de seus cama- radas, Nove anos mais tarde ele dataria sua entrada nesse colégio como o inicio de um pesiodo de muita infelicidade, durante o qual a idéia de suicidio estava presente quase todo o tempo. Para 0 anedotirio, é interessante registrar que Hitler freqiientou igualmente esse colégio, deixando-o tum ano apés a entrada de Wittgenstein. Os dois rapazes, que tinham quase a mesma idade, no estavam na mesma classe, Hitler aparentemente estando um ano atrasado ¢ Wittgenstein um ano adiantado (6 em torno dessa coin- cidéncia que se arquitetou o soporifero romance que evocamos na “Introdugio”, segundo o qual Wittgenstein desempenha, entre outros papéis inverossimeis, o de “desen cadeador” do anti-semitism doentio de Hitler!) Wiegenstein No outono de 1906, tendo terminado seus estudos secundétios em Linz com um resultado bastante mediocre, Wittgenstein partiu para Berlim a fim de estudar nharia mecinica na Escola Técnica Superior de Char- lottenburg, obtendo o diploma de engenheiro em meio de 1908. No se sabe muita coisa desses dois anos berlinenses. Wittgenstein morava na casa de um certo pro- fessor Jolles, que parece ter-lhe dado uma boa acolhida, As observacées de carter filos6fico anotadas em seus cadernos dessa época mostram que seu interesse no estave voltado exclusivamente para o aprendizado da engenharia. ‘Ao final de sua estadia berlinense, na primavera de 1908, Wittgenstein dirigiu-se para Manchester, como estudante-pesquisador no Departamento de Ciéncias de Engenharia da universidade daquela cidade; seus trabalhos tratavam de questes de aerondutica. Em contato com professores de matemitica interessados na questo dos fundamentos dessa disciplina, Wittgenstein, desde o ini- cio de sua estada em Manchester, mergulhou na leitura da primeira grande obra que Bertrand Russell dedicou a essa questo, The Principles of Mathematics [Os princi- pios de matemética), publicada em 1903, bem como na da obra paralela do légico-matemético alemio Gottlob Frege, Grundgesetze der Arithmetik [As leis fandamentais da aritmética), em dois volumes publicados, em 1893 1902, respectivamente. Wittgenstein interessou-se pelos oblemas levantados pela clescoberta dos paradoxos que, 10ca, agitavam os cfrculos matemitico-filoséficos. Pou- co antes de abril de 1909, ele pensou ter resolvido essa questo, e enviou sua solugio a um colega e amigo de Rus- sell, Philip Jourdain, Mas a solugo nao obteve o assen- timento nem de Jourdain nem de Russell. Apés esse malogro, Wittgenstein dedicou-se, durante 08 anos letivos de 1909-10 ¢ 1910-11, a suas pesqui Digests gue ua vida mario em aeronéutica, que resultaram em um projeto de motor de aviago cuja patente ele registrou em agosto de 1911. Esse motor nao se mostrou apropriado para avides, seu prinefpio foi retomado para equipar helicépteros du- Segunda Guerra Mundial, Paralelamente ou de desent ‘dias filos6ficas, e havia redigido, antes de 1911, o pla no dé uma obra de filosofia. Segundo o testemunho de sua irma Hermine, durante todos esses anos Wittgenstein se sentia dividido entre suas duas “vocacSes”, a de enge- nbieiro ¢ a de filéso! Durante 0 verdo de 1911, Wittgenstein foi consultar Frege em Iena. A conselho deste, em vez. de retozni Universidade de Manchester, ele se dirigiu, no ourono do mesmo ano, a Cambridge. Chegando duas semanas ap6s @ inicio das aulas, apresentou-se e Russell em 18 de oucu- bro e comegou a seguir sen curso no dia seguinte. Bis 0 que Russell escreven sobre Wittgenstein no dia 19 de o tubro a sua amiga lady Ottoline Morrell: ‘Meu amigo alemao attisca ser uma calamidade. Ele saiu comigo apés a aula e discntiu até o momento da refeic = obstinado e perverso, mas, ao que me parece, nao € uum idiota ‘Witegenstein iria passar dois anos em Cambridge ao lado de Russell, que rapidamente formou uma idéia mui- 0 elevada de sua inteligéncia, Algumas semanas apé: chegada a Cambridge, Wittgenstein perguntou a Russell se lhe parecia que ele, Wittgenstein, poderia fazer algo de bom em filosofia, Favoravelmente impressionado por um pequeno texto inicial que Wittgenstein lhe enviara, Russell respondeu-lhe positivamente em janeiro de 1912. ‘Wie genstein abandonou entio seus projetos aeronduticos € voltou-se inteiramente para a filosofia, pondo também um fim a nove anos de angtistia e pensamentos suicides. Em Wittgenstein, Russell viu rapidamente um “discipulo” capaz de dar uma forma mais satisfatéria a seus Principia Mathematica, publicados em 1910, e que davam conti- nuidade aos Principles de 1903. Durante esses dois anos, Russel e Wittgenstein manti- veram. uma relacio tio estreita quanto conturbada, El eram demasiado diferentes para que o relacionamento nao acabasse mal, Em outubro de 1913, apés ter ditado a Russell o primeiro resultado de suas reflexes sobre a I6gi ca (editada a seguir sob o titulo de “Notas sobre a légica”), ‘Wittgenstein decidiu que nfo podia mais trabalhar ade- quadamente em Cambridge, e que precisava de tranqiili- dade e solidéo, Partin entéo para a Noruega no outono, instalando-se em Skjolden, pequena cidade situada & bei- de um fiorde ao norte de Bergen. Lé permaneceu até 0 fim da primavera de 1914, em uma pequena casa isolada que fez construir a beira do fiorde, Em feyereiro de 1914 enviou uma carta de ruptura a Russell. Continuaram ase escrever e, apés a Primeira Guerra, a se ver, mas seu rela- cionamento se modificou e nfo foi mais to apaixonado €conflituoso como tinha sido até o outono de 1913. O pai de Wittgenstein havia morrido em janeiro de 1913, Em julho do ano seguinte, Wittgenstein, de volta a Viena, pediu a Ludwig von Ficker que distribufsse uma gorda soma em dinheiro a artistas necessitados. Fick editor de um jornal literétio em Ionsbruck, havia adqui- tido grande reputagao nos anos de 1910 ¢ havia se feito porta-voz da vanguarda de lingua alema. Ficker repartiu a maior parte das 100.000 coroas que Wittgenstein the confiara entre Rainer Maria Rilke, Georg Trak e Car! Dallago. Supreendido pela guerra quando ainda estava em Viena, Wittgenstein alistou-se em 7 de agosto no exérci- to austrfaco (ele havia sido dispensado do servico militar “Dip thes cue tive uma vide maces no ano anterior). Até o inicio de novembro de 1914, ele navega pelo Vistula, longe das zonas de combate, a bor- do de um bareo tomado aos russos, 0 Goplana. Foi du rante esses meses ~ passados entre soldados que, como seus camaradas do colégio em Linz onze anos antes, inspiraram-Lhe imenso desgosto ~ que ele teve acasifio de ler 0 Resumo dos Bvangelhos de Tolstoi, 0 ‘nico livro que conseguira encontrar em uma livraria por ocasio de uma de suas escalas, obra que o impressionou muito ¢ o ajudou a superar sua afligao espiritual. Na mesma época, seu itmio Paul, também mobilizado, foi ferido e perden obraco direito. Pianista-concestista, esse to parecia pér um fim a sua carreira, Contudo, a forga de trabalho, ele conseguiu voltar a tocar apés a guerra, apenas com a mio esquerda, ea ensinar. Foi para Paul que ‘o compositor francés Maurice Ravel escreveu seu Concerto para a mio esquerda. Em novembro de 1914, Wittgenstein estava na cidade de Cracévia, onde permaneceria até o veriio de 1915, trabalhando numa oficina de consertos da artilharia, na qual seus talentos de engenheiro foram de utilidade. Ao retornar de uma estadia de trés semanas em Viena du rante o més de agosto de 1915, foi transferido para Sokal, a0 norte de Lemberg, onde passou 0 outono € 0 inverno de 1915-16. A seu pedido, foi finalmente incorporado a uma uni- dade de combate, na frente russa, em marco de 1916. ‘os meses de margo e abril no viram combates muito in- tensos coisas mudaram em junho, com o inicio da ofen- siva Brusiloy sobre as linhas austro-alemas. Wittgenstein: deu mostra de grande coragem, ¢ foi citado para uma con- decoragao, antes de ser promovido a cabo, Enquanto a ofensiva russa mazcava passo, ele foi enviado ao comando de seu regimento em Olmiitz no fim do més, para l4 rece- ber um treinamento de oficial, Hsses meses de violentos

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