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A ESTÉTICA DA
COMUNICAÇÃO
Além da pragmática

Tradução:
Roberta Pires de Oliveira
EDITORA DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
UNICAMP

Reitor: José Martins Filh


Coordenador Geral da o
Universidade: André Villalobos

Diretor Executivo: Eduard


o Guimarães
GS

Nos

UNICAMP
Biblioteca “IFCH
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
Parret, Herman
P248e A estética da comunicação: além da pragmática /
Herman Parret; tradução: Roberta Pires de Oliveira.
- - Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
(Coleção Repertórios)

Tradução de: The aesthetics of communication,


pragmatics and beyond.

1. Pragmática. 2. Semiótica. 3. Compreensão.


I. Oliveira, Roberta Pires de. 1I. Título
20. CDD- 401

ISBN 85-268-0404-9
- 410
- 121
SUMÁRIO
Índices para catálogo sistemático:

1. Pragmática 401
2. Semiótica 410 INTRODUÇÃO: usas 1
3. Compreensão 121
A ESTETIZACÃO DA PRAGMÁTICA ................c serem n
Coleção Repertórios
O leque de pragmáticas ...scsssssuaasempissean
eras osmeneenecneacesmasasesresinterção q
Copyright O by Herman Parret
Homo oeconomicus e Homo sociologicus ................ 15
Projeto Gráfico
Camila Cesarino Costa Antíloco, Albertine e Penélope: três pequenas ontologias .......... 18
Eliana Kestenbaum Modus logicus e modus aestheticus .............r renas 23
Coordenação Editorial NOTAS. . so usicasaeiscaeagoJpaESEI
sd onanonepacen cana enno no alicia seis aee 27
Carmen Silvia P. Teixeira

Produção Editorial
Sandra Vieira Alves 1 A RACIONALIDADE ESTRATÉGICA ..............eemeeeeemereers 29
Preparação de Originais
|-Phulia CENIS screens asa emaganes 30
Solange Aparecida Mingorance Egoísta por natureza, altruísta por necessidade ........................... 31
Revisão Técnica O estado de natureza é um estado de guerra,
Rodolfo Hari
Mayumi Denise S. Hari o estado de paz é um estado de legislação .................................. 34

Revisão
2. O cálculo e a manipulação ......................
serenas 36
Valdir Pereira Gomes A estratégia em análise conversacional .......................se.siiis 36
Etna Lima Macário
Ajestratégia em semiótica). uau rerrentiroccsiicaeacansecaitasentaguas 40
Editoração Eletrônica
Silvia H. P Campos Gonçalves 3. A arte da guerra ou a Kriegskunst .............. eira 43
4. Os jogos de sociedade e os jogos de cultura ........................... 46
1997
Editora da Unicamp
Caixa Postal 6074
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil
Fone: (019) 788.2015
Fone/Fax: (019) 788.2170
Aquém do cálculo e além da manipulação: A arte da caça e a profecia retrospectiva ...................e..es soneca 91
princípios e estilo dos jogos .................... errei 46 A indicialidade de figuras e configurações ...................cccesessssess 93
A finitude dos jogos de sociedade e a racionalidade A analogia e a semelhança sensível................ceceseeeeeeerereererreceness 96
estratégica do bailarino ......................
e crrrrrerreeccrrerrearenaaa 48 ........
eres
4. A sensibilidade ........ ......
rrrsenesresreerecereerece merorsseocanssaanões 98
NOTAS eccsscesrsass esmero paniamasa dios renata ento ne naceste car eqeisema pes esepeço 51 sis........
Iconicidade e sensibilidade ........ ...
eeeeeeeeereeeeeeerererer erreraes 98
A sereia estética .............eeceeeresersacrseescaronseroeesnesconsone
romero corncarcessonnana 100
IH. OTEMPO, ESSE GRANDE ESCULTOR ............................... 55 NOTAS asnasasenasassis
serasa ogn
adiscasa 102
|. DIZER O tempo ...execessesnimeressime
ice 57
O tempo físico e o tempo lógico-discursivo .............................. 57 V:O PATHOS RAZOÁVEL, sycnassaeaiangra
na nana senna 107
A boa aritmética do tempo ..................
is reeererecerrreneos 59 Prolegômenos: a economia discursiva do pathos ............... 110
Intermezzo DN GUÍSTICO) asas assess
sau sra ama 61 1.A regulação das emoções .................... ...as 112
sir ressesereeeeeenereneneen
2, Sentir o:tempo:...ssuasssesssusreetsnosegrsaiunfeacas
sia RaN Ega lia inc entao 63 A expressividade das emoções ...............ccceceereesereseenereeearereema 112
Os cinco sentidos e o senso comum ...............cciieesereeerererenes 63 A ambivalência das emoções ...............cceeeeeererererenenererecerenereneaeos 113
O tempomusical. .sso.seses.cooprrarsaisapi
pampas apncesiirquensescssceceg coegeneasreção 66 2.A lógica dos sentimentos ...................cessiesereereceseereereerseararaneaas 115
A precariedade das melodias ................ciieseeeereeerereneeeerento 68 eee .........
Como as paixões acabam ......... .cs 115
ieeereereeereeeerecerrenaraaenaas
3. Lembrar tenpo: sa en macas estes nanasars n oco.........
Reflexões sobre a ira ......... .scs
s iss resereerrcerececerecererer eraeceaeeo 117
A TÚBÃO MEÍÓdICA...x..veamieamenininsviateoo
ierenecadsaelora sind 71 3. As razões da paixão ...................eeseeseerseresereecereeerocoresorensocranes 120
Análise rt aessagera soros aaa asian 73 A osmose da epistémê e do pathos .............ceeeeeeeeeereeeerereneneranes 120
Memória anamnésica ...................
sn rieiieeereereaererereerenenos 75 Os valores como razões da paixão ...............ececeeseerseseerrenares 122
4: Epllogo: sOfTer O tEMPO ..aasaesecesmeesem
a punseneiaasesorcranesesumenanteõe 76 4. As razões para desejar a paixão ...............ceeseeeereeeereemerreneerems 124
NOTAS ..socrenesnsiiver cesseaeenvivriire asi idiotice 78 O entusiasmo e a Schwiirmerei .............cccreereeeerereererecereerenereacnos 124
A corrente dos entusiastas e as fontes de mel da poesia ........... 126
II. A COMPREENSÃO ABDUTIVA ............... messes 81 As melodias de Olimpos .....................ssserereerseerrererecerscersressceesaanso 128
LINNUIÇÃO ssa nad anda io 83 NOTAS asas saias Ta CE icU aaa Aaron nas cepataçõenão 130
Di ASSUNÇÃO! ascsscorsnererane ts rag aniuedaesagis caes aerea 85
De Galeno a Sherlock Holmes .......................s sisters 85 V. O SUBLIME E A AMBIÊNCIA DA SEDUCÃO ......................... 135
A logica utensda ADdUÇÃO cima massacre eresmepas renato oareme spaemanas 87 1. Hipóstase e crítica do sublime ........................s sisters 138
BE HADILO!:... er rrecomr nero nenem seio do donde suaas carne 91 De pseudo-Longino a Kant ..................ccceereneeeeeeeeererrererrerensento 138
A imaginação subjugada....................ccicieceeereeerereneeeerereereeesa 142 VII COMUNICAR POR AISTHESIS
Para restabelecer a autonomia das duas analíticas ..................... 144 1. Busca e crise dos fundamentos
O tempo do sublime e seus limiares .................ccieeeererseerss 145 2. A comunidade argumentativa e comunicativa
2. O diagrama dos valores estéticos .................cc
cc cieeeeeeereerereees 148 O a priori discursivo e a hipoteca hegeliana
Os estetas e os prazeres da classificação .....................cis 148 Salvar a ocasião e o heterogêneo
As categorias estéticas menores .....................ciccrereeerecrereeees 152 3. A comunidade afetiva
A esteticidade da elegância ..................ccieeeeeeseeeserereesseesenesa 154 O belo e seu sublime: a comunidade e sua crise
3. (Sublime) Ambiência da sedução .................ireereereeereress 155 O coro comunitário
À sedução pelo sublime......ssussesessecanssnesascecasesmasigessansciscansado 155 Eufonia, polifonia e sinfonia
O flerte, o elegante, o dândi ...............cc
is eieereerereeseeeeraness 157 4. Socializar o sensível, sensibilizar o social
NOTAS cascessesmsreussacareaumssaaearne
aaa is par aaa 159 A sinestesia

VI. A ATITUDE DE BOM GOSTO ..............


eee 163
1. Compreender o aceitável ................
nr irrereereeeereeeerereererereneeo 163
A sinceridade e seus acidentes .............cccceesisemesererereereereereess 164
À cooperação e suas violações ................cciiirserersereesas 167
A gramática natural e suas estratégias ............cecceeeereeeermmerseeses 169
2. Desejar-o obrigatório: .sesessescssesecsessrsersesenrasesinis renome 170
Justificar por éthos, legitimar por aisthêsis ..........emeteere 170
Além de Aristóteles: as restrições do discurso
e da argumentação ................en
ii reerrereereereeseeeeeereeraeeeeerereeeeenão 172
Asevidência CAITENeza sesuais sasncn span 174
3.A viareal............... iii rreeeererereseneeraceneeereneneenereeenerreentenaoa 177
O senso comum e o bom gosto ....................ieeeeereeerereereerteaees 177
O sentimento de existência..............ccciceeeseeeeeeseeeereerenreeeeios 178
INTRODUÇÃO

A Estetização da Pragmática

O leque de pragmáticas

A pragmática despontou entre as ciências da linguagem no


final da década de 1960 como reação a certos modelos totalizadores
em lingiística: o estruturalismo (principalmente na Europa) e a
gramática gerativa (inicialmente nos Estados Unidos). Certos dis-
cípulos de Chomsky, insatisfeitos com uma sintaxe autônoma e mais
tarde com a semântica gerativa, optaram por romper com seu mentor.
Enquanto Chomsky continuava a falar muito sobre muito pouco,
assumiram a atitude desafiadora de dizer pouco sobre um espectro
muito amplo de fenômenos. A pragmática, que Bar-Hillel considerou
como uma “disciplina lata de lixo” na década de 1950, ganhou afinal
sua respeitabilidade. É claro que a pragmática tem uma história
muito mais longa do que essas três décadas. A concepção estóica de
linguagem, à margem da grande tradição grega e por isso mesmo
intensamente subversiva, tinha de fato um objetivo pragmático. O
termo pragmatisch aparece em Kant: ele exprime a relação com um
objetivo humano, sendo esse objetivo determinável somente no in-
terior de uma comunidade. Essa caracterização inspira naturalmen-
te o pragmaticismo do neokantiano Charles Sanders Peirce.! Foi essa
linhagem Kant-Peirce que conduziu às pálidas concepções de prag-
mática de Morris e Carnap, após as pesadas perdas sofridas pelo
positivismo e pelo behaviorismo. De qualquer modo, a despeito da
presença constante de uma abordagem pragmática na história do

11
pensamento, viveu-se essa revalorização da pragmática (contra o os mundos ficcionais de nossos sonhos, de nossas fantasias e de nos-
triunfo proclamado pelo estruturalismo e pelo gerativismo) como sos desejos. Na mesma medida, os discursos por si mesmos, por sua
uma ruptura significativa. Toda uma gama de pragmáticas se impôs capacidade performativa, isto é, por sua capacidade de transformar
à atenção dos lingiistas. Para empregar o critério simplista da geo- o mundo, funcionam também como contextos dinâmicos, determi-
grafia intelectual, podemos classificá-las em dois grupos muito nando o sentido das falas que incluem. Aqui encontramos a primeira
distintos: a Pragmática Anglo-Saxônica, e a “Continental” (ou Eu- propriedade da “via” pragmática: a exigência de transcendência do
ropéia, se o leitor preferir). A Pragmática Anglo-Saxônica recons- sentido.
trói o sentido de seqiiências discursivas a partir de propriedades da A segunda propriedade não é menos importante. É que o obje-
situação em que essa segiiência é produzida. Ao contrário, na Prag- to pragmático é trabalhado de fora a fora pela racionalidade. Não a
mática Continental, o sentido é essencialmente determinado pela racionalidade da lógica e da ciência, é claro, não um logos que exclui
“vida do discurso” ou, nas palavras de Benveniste, pela subjetivi- o pathos, mas sim a razoabilidade. As regularidades que o prag-
dade no discurso. Podemos então opor uma pragmática situacional maticista descobre e analisa não são leis naturais, mas estratégias
a uma pragmática enunciativa. Essas duas classes de pragmática re- discursivas enquanto razões da razão. Entre as leis naturais e as es-
cobrem sem dúvida duas mentalidades intelectuais que são bem co- tratégias humanas parece haver as regras. Mas qual é o status
nhecidas nas ciências sociais: a Anglo-Saxônica versus a “Conti- epistemológico dessas regras? De acordo com a concepção galileana
nental”, um certo objetivismo (que põe entre parênteses o sujeito da regra gramatical adotada por Chomsky, uma regra não se distin-
enunciador) versus um certo subjetivismo (que se recusa a reduzir o gue de uma lei natural. Foi o último Wittgenstein quem distinguiu
subjetivo a uma posição situacional objetivizada e formalizada, por entre lei e regra, ao desenvolver toda uma problemática em torno de
exemplo, na forma de índices referenciais). “seguir uma regra”. Suas sugestões, em oposição à concepção
Não é tanto o reconhecimento de diferentes tipos de pragmática chomskiana de regra, evocam com insistência essas “razões da ra-
que interessa aqui, quanto a atitude, ao método ou via pragmática. zão” que são as estratégias. O objeto pragmático — seja ele uma se-
Essa atitude caracteriza as ciências sociais na totalidade, tornando- quência discursiva, um fato social, um evento histórico ou um pro-
se uma perspectiva bastante específica dos fenômenos humanos, dos duto cultural — se constitui numa teia de razões. Neste livro, tenta-
fatos sociais, dos eventos históricos, dos objetos artísticos e cultu- remos formular adequadamente os contornos, tanto dessa razão que
rais. Essa atitude, método ou via compõe-se de três propriedades. toma conta de razões quanto de sua legitimação.
Em primeiro lugar, o sentido do objeto pragmático é determinado Finalmente, uma palavra sobre a terceira propriedade cons-
por seu posicionamento num contexto e, em particular, por sua for- titutiva da atitude pragmática. O sentido pragmático só existe no
ça de contextualização. O sentido não é portanto imanente, como nível dos mecanismos de compreensão. Todas as metáforas do
afirma o slogan estruturalista. Mas devemos levar em consideração paradigma dominante na lingiiística — a gramática de Chomsky, mas
o fato de que o objeto e seu contexto não são entidades autônomas também a teoria dos atos de fala — privilegiam de algum modo a
e estáveis: eles só existem por meio de uma interdependência dinâ- geração e a produção do sentido. A pragmática inverte essa assime-
mica. Alguns pragmaticistas anglo-saxônicos demonstram precisa- tria e a teoria pragmática do sentido se reduz na verdade a uma teo-
mente sua ingenuidade ao atribuírem um status ontológico radical ria da compreensão. O sentido da sequência discursiva, do fato so-
aos contextos, transformados dessa forma em situações, ao invés de cial, do evento histórico, do produto cultural é inseparável dos pro-
explorar a idéia de que o contexto é sempre o efeito provisório de cedimentos para sua compreensão ou, mais geralmente, da transpo-
uma contextualização. Esse efeito provisório é múltiplo e extensí- sição semântica que se realiza em todo ato de interpretação. Essas
vel: o mundo dos objetos, os estados de fato e os eventos, tudo isso três propriedades da via pragmática sem dúvida se interdefinem. É
constitui contextos, mas o mesmo ocorre com os mundos possíveis: assim que, sendo o intérprete alguém que raciocina, as razões do

12 13
objeto pragmático — suas regularidades — só existirão na trans- necessitam ser desconstruídos. No entanto, nós não podemos nos
posição do sentido, e consequentemente na (e por meio da) transcen- evadir da questão dos fundamentos. Que fundamentos e, acima de
dência do sentido.? tudo, fundamentos de quê?
A questão dos fundamentos da pragmática surge quando o
objeto pragmático é percebido como uma axiologia, como um sis-
tema de valores. A procura pelos fundamentos pode tomar um rumo Homo oeconomicus e Homo sociologicus
perverso e transformar-se num reducionismo real se negarmos o sa-
bor profundamente axiológico do objeto pragmático. A identifica- A tese desenvolvida neste livro é a de que a questão dos fun-
ção do sujeito que fala e que produz a cultura e a sociedade com o damentos deriva, desvia e se ideologiza tão logo a arquitetura a ser
Homo cognitivus implica a negação total dos aspectos axiológicos fundada — o objeto pragmático em todas as suas ramificações — con-
do objeto pragmático.º Voltaremos a tratar mais detidamente desse forma-se com o paradigma dominante nas ciências humanas, para-
tema da axiologização da pragmática. Neste ponto, basta notar que digma particularmente redutor. Para nos restringirmos às ciências
a procura pelos fundamentos é, de fato, uma busca do valor dos va- da linguagem — embora seja possível estender às ciências humanas
lores.* A cultura, a arte, a criatividade social, as trocas comunicativas as características que serão aqui enumeradas -, diremos que o
entre sujeitos, o estar-em-comunidade e a própria vida são intensa- paradigma dominante concebe o sujeito-em-comunidade como um
mente valorados até seus limites mais longínquos. A procura pelos veridictor, um comunicador e um jogador-economista.
fundamentos deveria reconstruir as valorações que legitimam os va- As filosofias da linguagem “sérias”, seguindo as posições do
lores característicos do objeto pragmático. É portanto uma questão Círculo de Viena, não têm atribuído outro valor semântico às enun-
de saber a partir de que ponto de vista atribuidor de valores deve-se ciações a não ser o valor de verdade. Somente pouco a pouco e nos
analisar, explicar e aceitar as axiologias que caracterizam os mundos domínios mais pragmatizados, como o dos demonstrativos e da
em que os sujeitos tomam consciência de si mesmos. Nossa condição enunciação, é que puderam aparecer as chamadas lógicas “des-
pós-moderna nos força evidentemente a desconfiar das narrativas viantes”. Mas esse desenvolvimento se dá nos dois sentidos e pode-
de legitimação.” Uma axiologia facilmente se sintagmatiza em ideo- se notar, entre outras coisas, que a teoria dos atos de fala, desde
logia, e é crucial que não permaneçamos surdos aos ensinamentos Austin e o primeiro Searle, foi-se tornando cada vez mais verifuncio-
da Ideologiekritik. Afortunadamente, a filosofia de Wittgenstein ofe- nal. Diz-se que o sentido de todos os atos de fala, e não apenas das
rece um antídoto para certos discursos de legitimação. Ainda pre- asserções, sofre a imposição das condições que determinam a ver-
cisaremos sem dúvida de décadas de pós-modernismo e antimode- dade.º Avaliar, neste ponto, as possibilidades de uma lógica ilocu-
los, de disseminação e dissipação, de fraturas e rupturas discursivas cionária nos levaria demasiado longe. Constatamos apenas, nos
e de deslegitimação. Os sintagmas legitimadores, como: o interesse desenvolvimentos mais recentes da lógica ilocucionária, a tendên-
do Espírito Absoluto (a legitimação totalitária hegeliana) ou a Hu- cia à semantização radical do objeto pragmático: o sujeito-ator se
manidade como herói da liberdade (a legitimação liberal) ou a retira quando confrontado com a relação privilegiada e binária que
Emancipação do homem (a legitimação marxista), deixam-nos pro- o enunciado estabelece com o mundo. O pressuposto filosófico
fundamente incrédulos, aqueles de nós que se banham nas heteroge- dessa atitude verifuncional é bastante claro: o sentido de um enun-
neidades da era pós-moderna. Mesmo as narrativas de legitimação ciado depende de sua capacidade de refletir ou de espelhar uma
mais recentes e mais sutis, como a de Habermas, segundo o qual as ontologia, frequentemente modalizada, por exemplo, na lógica de
axiologias da vida em comunidade (Gemeinsamkeit) se legitimam mundos possíveis. Nas teorias do sentido, a hipóstase da verdade
como procura por um consenso universal, não parecem isentas de continua a ser um fardo pesado de carregar. É como se o sujeito-ator
uma idealização homogeneizadora e são portanto filosofismos que fosse somente um veridictor, mas um veridictor esvaziado de suas

15
próprias motivações e modalizações, um falante-da-verdade que ção — o conceito pivô sendo então o de intenção de comunicacão,
simplesmente registra o sentido, isto é, registra a dependência dos em sua dialética com o reconhecimento dessa intenção, reconheci-
valores enunciativos (reduzidos a meros valores de verdade) com mento esse que completa um miniciclo comunicativo. É difícil ver,
respeito a suas condições referenciais. por outro lado, como injetar a intencionalidade num definiens mí-
À semiótica contemporânea tem acertadamente atacado a idéia nimo da intersubjetividade ou do ser-em-comunidade, sem que ela
da transparência do sentido, insistindo no fato de que o sujeito seja perigosamente caracterizada por uma transparência excessiva,
veridictor não é um sujeito vazio, mas uma competência que quer por uma consciência excessiva ou por uma idealização exagerada.
dizer a verdade ou não quer e assim cria espaços para as mentiras e O sujeito-em-comunidade, mesmo e principalmente no nível de seu
os segredos; que esse querer-dizer-a-verdade é modificado pelo discurso, é mais do que um comunicador, é mais do que um infor-
poder, pelo saber e mesmo pelo dever e, portanto, por um conglo- mador. Além disso, a intenção de comunicar é de uma natureza com-
merado de modalidades responsáveis pela mise-en-scêne de simu- pletamente diferente da intenção de informar: a troca de conteúdos
lacros e por uma teatralização generalizada das interações discur- proposicionais não determina de modo algum a intenção de comu-
sivas. E é sem dúvida, e paradoxalmente, a inteligência artificial nicar, ao passo que determina cabalmente a intenção de informar.
que, por seu prestígio, deverá nos libertar de uma concepção de De um ponto de vista mais geral, no entanto, o paradigma dominan-
sentido segundo a qual a significação das falas é identificada a seu te eleva a comunicação ao status de princípio último da estrutura
valor de verdade, ou de acordo com a qual toda axiologia discursiva interna da intersubjetividade e do ser-em-comunidade, para reduzi-
se reduz a uma sintagmática verifuncional. Um computador progra- la em seguida a uma transmissão de informações. A projeção de uma
mado com sentenças tarskianas do tipo ““a neve é branca” é verda- informática generalizada como modelo da comunidade de sujeitos
deira, se e somente se, a neve é branca” nunca produzirá significa- não nos atrai, e nós nos permitimos, ao longo deste livro, expressar
ção. A pragmatização integral do sentido na inteligência artificial nossa alergia a esse ídolo.
é correlata da indiferença das máquinas pelas ontologias. O sujeito falante, no paradigma que acabamos de denunciar,
Outro aspecto do mesmo paradigma em discussão, mais perni- é, portanto, um veridictor e um comunicador-informador. Há, além
cioso por ser menos visível e menos consensual, consiste na redução disso, um Homo oeconomicus adormecido nele, auto-suficiente, áto-
do sujeito social e comunitário a um comunicador, e em seguida a mo a-social, livre de toda determinação comunitária. Esquemati-
um informador, como se a intersubjetividade (ou co-subjetividade) camente, poderíamos opor o Homo oeconomicus, cujos contornos
fosse equivalente à comunicabilidade e toda comunicação, a uma foram esboçados por Adam Smith, ao Homo sociologicus, construí-
transferência de informação. A comunicação, na nossa época, é uma do por Emile Durkheim. O Homo oeconomicus se autodetermina ten-
verdadeira obsessão. Ela se tornou certamente um dever social e do em vista a maximização dos seus fins: ele é movido de maneira
também um princípio de análise de todo e qualquer fenômeno nas pré-programada pela perspectiva de vantagens futuras. Nesse para-
ciências humanas. De fato, a maior parte das disciplinas pragmáti- digma econômico, não há transcendência do social, nada há “aci-
cas nada mais são do que pragmáticas da comunicação, como se o ma” dos atores individuais. O coletivo, para o economista, é trans-
ser-juntos dos sujeitos na comunidade fosse globalmente governa- parente, pois o contrato social ou a solidariedade humana nada é
do pelas regras da comunicação. Devemos sem dúvida distinguir, e além da coincidência espontânea de interesses individuais. Toda me-
mesmo dissociar, o conceito de ser-em-comunidade ou de intersubje- diação pelo coletivo é eliminada como se se tratasse de um terceiro
tividade do conceito de comunicação. Já é uma especificação e, na fator indesejável. A opacidade do social, a exterioridade do coleti-
verdade, um fator de acrescida complexidade afirmar que o sujeito vo devem bloquear o jogo especular das mútuas indentificações
em comunidade é um comunicador. É difícil imaginar, por exem- contratuais. Além disso, o Homo oeconomicus se revela como um
plo, como se evitaria a intencionalidade numa teoria da comunica- jogador. A racionalidade econômica, na situação de jogo, é refle-
xiva: ela exige que o jogador se coloque na posição do outro para finalizado com sucesso: a finalização é necessária, considerando a
ver o mundo do ponto de vista desse outro. Esse jogo de espelhos é finitude dos jogos econômicos. Esse valor primordial da circula-
potencialmente ilimitado, mas, como nós veremos, o traço distintivo ção informacional conjuga-se facilmente com a outra valoração já
do equilíbrio econômico consiste num bloqueio que encerra o jogo, mencionada: a comunicabilidade ideal é favorecida pelo status
impedindo que os jogadores sejam tragados por um abismo. O jogo verifuncional de nossos discursos. De acordo com essa “grande” on-
especular deve chegar a um fim. O jogo do Homo oeconomicus é tologia, aquilo que nós pronunciamos ganha sentido a partir da
um jogo finito. A prestigiosa teoria dos jogos nas ciências sociais e transparência dos enunciados: um discurso com sentido é um dis-
a concepção da chamada “economia das trocas lingiiísticas” têm curso refletindo os estados de coisas e os eventos no mundo. Entre-
sido preponderantes de Locke até Bourdieu, passando por Saussure. tanto, essa “grande” ontologia tem brechas, e é por essas brechas
Resta o fato de que os teóricos dos jogos e, de um ponto de vista que as “pequenas” ontologias irrompem, instaurando aqui e ali o
mais geral, os defensores do paradigma econômico, têm dificulda- piscar de olhos, estilhaçando o fantasma econômico, comunica-
des enormes para conceptualizar adequadamente a contratualidade cional e veridictório, disseminando o campo do ser-em-comunida-
e a solidariedade em termos diferentes da simples coordenação de de e fragmentando-o. As “pequenas” ontologias atuam de acordo
interesses individuais. Para o economista, a própria comunidade é com a isotopia da eclosão, da ruptura e da fratura, dos limiares e das
um horizonte indecidível, embaçado e fantasmagórico. descontinuidades. Seu efeito estético é o do ofuscamento, do tremor,
Esses são, então, os componentes proemimentes do paradigma do transtorno, da convulsão, do delírio. Podemos, agora, separar
dominante e os contornos de uma arquitetura que só pode provocar alguns fragmentos luminosos dentre essas “pequenas” ontologias.
narrativas de legitimação suspeitas e intensamente ideológicas. “Há pelo menos dois tipos de jogos. Um poderia ser chamado
Determinar o objeto pragmático e mais precisamente o sujeito fa- finito, o outro, infinito. Um jogo finito se joga com o propósito de
lante em comunidade pelo conglomerado veridicção/comunicação- ganhar, um jogo infinito com o propósito de continuar a jogar.”A
informação/jogo econômico é confinar-se num paradigma que só é finitude do jogo econômico exige, com efeito, que haja um vence-
coerente pelo esquecimento inquietante das densas margens da dor, que o jogo seja delimitável no tempo e no espaço, tanto quanto
significação. Essas margens apresentam-se no papel de “pequenas na economia dos desejos, dos motivos, das intenções dos jogadores.
ontologias”. “As regras de um jogo finito são os termos de um contrato através
do qual os jogadores podem concordar a respeito de quem ganhou.”
Os jogadores do jogo finito jogam no interior dos limites; os joga-
Antíloco, Albertine e Penélope: três pequenas ontologias dores da infinitude jogam com os limites. Jogar um jogo finito é
sério; os jogadores da infinitude são frívolos. O jogador sério, ame-
A principal ontologia da comunidade humana, aquela que é drontado pelo resultado imprevisível do jogo aberto, exige uma
endossada pelo paradigma dominante, reconstrói o ser-em-comu- conclusão determinada; o frívolo consente no possível. De fato, é
nidade como um sistema de interações e de transações submetidas impossível dizer em que mundo se joga o jogo infinito, já que to-
às regras da racionalidade econômica e, conseqiientemente, recons- dos os tipos de mundos podem entrar nele. Frívolo, o jogo infinito
trói a comunidade como fonte e alvo de jogos estratégicos finitos. é também paradoxal: o objetivo dos jogadores do infinito é conti-
Os pressupostos subjacentes consistem na exploração de uma axio- nuar a jogar, eles não jogam por eles mesmos — e o paradoxo de um
logia bem simples. O valor primordial é a circulação da informação jogo infinito é que os jogadores desejam continuar o jogo com os
e portanto a comunicação, que é motivada informacionalmente, mes- outros.” Isso mostra que a cultura toda e, com ela, a arte são jogos
mo levando-se em conta que as estratégias econômicas podem dis- infinitos e que é a infinitude dos jogos na comunidade humana que
simular esse valor primordial até o momento em que um contrato é produz a transcendência do social, do verdadeiro social, não o so-

18 19
cial como instrumento de otimização econômica. Podemos, como Passemos agora a outra “pequena” ontologia, a da experiên-
conseqiiência, nos interessar pela racionalidade estratégica de um cia fusional, que nos servirá como argumento contra toda tentativa
Jogador do infinito. Assumir esse interesse será, mais uma vez, to- de modelar o ser-em-comunidade em termos de uma informática ge-
mar posição contra a concepção econômica de estratégia e sua neralizada ou de uma comunicabilidade universal. Toda comuni-
polemologia subjacente. dade é, em essência, patêmica ou, para usar um termo que deve ser
Retornemos por um instante ao Canto XXIII da Ilíada, um canto despido de qualquer conotação cartesiana, afetiva. O ser-em-comu-
que trata precisamente de jogos: as corridas de bigas dos Aqueus. nidade não é uma idéia (normativa, transcendental), mas um senti-
Homero alude aí às estratégias da mêtis,'º a racionalidade do joga- mento ativando nossa faculdade de afeto. Citemos Valéry, que es-
dor do infinito. A mêtis,!! divindade feminina que simboliza a ca- creve, em seus Cahiers, no capítulo Afetividade: “O sentimento só
pacidade intelectual e a prudência sensata, é sempre bem-sucedida me informa sobre si mesmo. Por isso ele é incomunicável, sem refe-
na esfera da ação, graças a uma forte dose de savoir-faire que, como rência fixa e nem localizável”, e ele acrescenta misteriosamente um
escreve Homero, é “útil na vida”. Nas suas estratégias, a mêtis não sintagma que nos coloca na direção correta: “Deus é um certo con-
usa a força, mas sua inteligência e prudência (phronêsis). A ação da tato”? Foi Proust quem disse, melhor que ninguém, em que consis-
mêtis se exerce sobre um terreno móvel; mágica das palavras e hábil te essencialmente esse contato. Em seu Le côté de Guermantes, ele
sedutora, ela sabe como tirar vantagem da “ocasião” (kairos), e do apresenta Marcel como querendo provar o gosto da “rosa secreta que
efeito da surpresa. A mêtis, tal como fizeram os gregos quando se desabrocha nas faces de Albertine”.!* Esse beijo de bom gosto e tato
esconderam no cavalo de Tróia ou como fazem os pescadores quan- é apresentado por Proust como uma experiência intensamente fu-
do põem iscas em seus anzóis, emprega as estratégias da duplicidade. sional e sinestésica. Proust nos diz que o desejo íntimo que é satis-
E Antíloco, mestre das bigas inspirado pela mêtis, amante dos jogos, feito pelo beijo é um intermediário “entre os desejos que podem ser
que não persegue a vitória, mas o simples prazer dos estratagemas satisfeitos pela arte culinária e pela escultura monumental”.!* Há,
frívolos, será calorosamente recebido pelo velho Nestor e por todos de um lado, o pólo escultural do beijo: a contigiúidade de dois cor-
os presentes. Como Homero, e contrariamente a Platão, Aristóteles pos como no baixo-relevo românico da catedral de Balbec, que re-
também sabia apreciar a prudência inteligente do estrategista. En- presenta Eva abraçando levemente o quadril de Adão com os pés.
quanto Platão atribuía toda inteligência à indagação intelectual, De outro, há o pólo culinário: beijar Albertine a transforma em “uvas
Aristóteles atribui essa inteligência fina e ágil, essa “finesse do es- de jade”.!S Cântico dos cânticos da nossa era, esse enfoque prous-
pírito”, não ao filósofo mas à parteira, que executa o que ele chama tiano mostra como o contato sinestésico cria um ser-em-comunida-
de “incisões vitais” com prudência e inteligência. Na verdade, o que de afetivo, onde absolutamente nada é comunicado. Haveria comu-
conta é o olhar firme, a acuidade do “golpe de vista” (eustochia): nicação se não houvesse fusão, se houvesse uma mera conjunção
“ver corretamente” é o que valoriza o estrategista, seja ele um mé- de corpos. O momento da conjunção perceptiva dos corpos é o
dico no exercício da medicina ou um general no campo de batalha. momento em que os sujeitos conferem índices, enviam sinais um ao
Essa inteligência prática é a faculdade de conjecturar por prognós- outro. Uma boa fenomenologia de uma tal conjunção de corpos não
tico com faro e bom gosto. A racionalidade conjectural, pontual e nos levará nunca muito além — citamos Merleau-Ponty parafrascan-
prudente da mêtis, racionalidade imaginativa que não é nem vio- do Husserl — da aporia segundo a qual o sujeito “percebe” o co-su-
lenta nem calculadora, eis a razoabilidade de um jogador do infi- jeito na sua esfera de aderência como um outro corpo, como um alter
nito, sobre quem a teleologia da vitória e a finitude dos jogos não ego. Isso é completamente diferente da fusão, que é relevante na
exercem qualquer fascínio. Será então o Antíloco razoável, herói esfera do afeto, que exclui a possibilidade de uma relação perceptual
homérico, quem nos servirá de ícone dessa “pequena” ontologia que com uma alteridade se constituindo em instância de comunicação.
acabei de invocar, a dos jogos infinitos. A intercorporeidade engendra experiências de bom gosto, de tato,

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de sabor e de sabedoria que são inseparáveis da apreciação estética. tura é fusionar, na memória, a lembrança e a antecipação, o êxodo e
Poderíamos exemplificar pelo aperto de mão, exemplo de Merleau- a odisséia; e é assim que devemos compreender a temporalidade dos
Ponty, ou pelo beijo fusional, no qual a sinestesia do gosto e do to- sujeitos e das comunidades. A possibilidade da constituição de um
que se realiza plenamente. Desta vez é Albertine, esse corpo vibrante referente último como função de verdade deve ser abolida. E, já que
estamos falando de uma odisséia, podemos então colocar essa ter-
no melhor de sua vida, irradiando uma atmosfera fusional, quem
emerge como ícone dessa “pequena” ontologia, que questiona radi- ceira “pequena” ontologia — a memória nostálgica — sob o signo de
calmente toda sujeição do ser-em-comunidade à tirania da comuni- Penélope. É ela quem, no fim de cada Odisséia, desenrola a narrati-

cabilidade. va veridictória e, consequentemente, todo referente último. Aí es-


Uma terceira “pequena” ontologia desconstrói a idéia de que tão então postos os nossos três ícones. O Antíloco razoável, herói
é a verdade que cria o sentido e o valor do discurso e de que o falar- da Ilíada, estrategista do bom gosto; a contemporizadora Penélope,
a-verdade é constitutivo da significação dentro de uma comunidade. heroína da Odisséia, tecelã de nostalgia; e, entre eles, a encantado-
Seria suficiente invocar a teatralização generalizada da vida comu- ra Albertine, esse corpo todo em pleno desabrochar, ambiência de
nitária e o jogo corriqueiro dos simulacros (assumidos consciente afeto e de fusão.
ou inconscientemente), a distribuição de papéis, a natureza meta-
fórica e figurativa de nossas enunciações, em resumo, todas essas
Modus logicus e modus aestheticus
marcas da ilusão referencial. Mas, acima de tudo, é a temporalidade
essencial das comunidades e de seus discursos que torna a hipóstase
da verdade totalmente fútil enquanto valor último. A apologia da Longe de nós pretender afirmar que todos os tipos estabeleci-
verdade cultiva a a-temporalidade e, no entanto, o que empresta sig- dos de pragmáticas, no panorama das ciências da linguagem, sejam
nificação a todos os nossos discursos e a todas as produções huma- totalmente impenetráveis a essas pequenas ontologias ou que elas
nas é a temporalidade. Não a temporalidade do tempo físico, cós- se submetam docilmente ao paradigma dominante. Muitos tipos de
mico ou do calendário, nem mesmo o existencial, mas o tempo pragmáticas — e esse já é um bom começo — neutralizam a própria
patemizado. É Borges quem escreve: “Podemos dividir o espaço em idéia de um sentido literal para interessar-se pelo ímplicito, pelo su-
jardas, em metros ou em quilômetros; o tempo da vida não se ajusta gestivo, pela implicatura e pela conotação. A teoria dos atos de fala
a medidas análogas... Eu sei que esse tempo é impossível de medir; reintroduziu o velho tema da enunciação indireta (indirectedness),
eu sei que cada dia é feito de instantes que só eles são reais e cada focalizando assim o domínio das formas de intencionalidade que
um deles terá seu sabor particular de melancolia, de alegria, de não são predicadoras de verdade e que são dificilmente confes-
exaltação, de tédio ou de paixão”.!* Novamente aparecem as pala- sáveis, como, por exemplo, a intenção de manipulação. A análise
vras sabor e paixão: o tempo como memória patêmica, poder-se-ia do discurso, especialmente na forma como é praticada na Europa,
dizer, nada mais é de fato do que o entrelaçamento de um Êxodo e encanta-se com o fenômeno da heterogeneidade discursiva: os
de uma Odisséia. O êxodo constante de nossa temporalidade na di- zoomings sintáticos, as estruturas elípticas, os caminhos do silên-
reção do futuro dá aos momentos concretos de nossa vida seu sabor cio, as falhas e as aproximações, as rupturas enunciativas.'* Nunca
de incompletude. A odisséia de nossa temporalidade cria na memó- houve tanta reflexão quanto hoje em dia sobre os acidentes ao lon-
ria toda uma trilha de antecipações. Chamaremos de nostalgia a essa go da produção dos atos de fala (acidentes de sinceridade, por exem-
estrutura específica da memória patemizada como êxodo e odisséia. plo), sobre as violações da atitude de cooperação ou sobre o pers-
É difícil resistir ao prazer de citar outra frase de Borges que excita pectivismo da compreensão. Além disso, vemos que a metáfora dei-
nossa imaginação: “Eu já tenho nostalgia do momento em que eu xou definitivamente o domínio limitado dos tropos para se tornar
terei nostalgia deste momento”.Ter nostalgia de uma nostalgia fu- uma força essencial por trás de toda semiose. O bom sociolingiista

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se interessa pela distribuição de papéis e pela teatralização genera- rada como a expressão e mesmo o completamento da concepção
lizada das interações discursivas. O bom psicolingiúista lida com as aristotélica de política. Será — se é que eu posso pôr as minhas car-
forças cognitivas responsáveis pela conceptualização da hetero- tas na mesa — esse movimento de vaivém entre a política segundo
geneidade pelo sujeito falante. É claramente depois das reconstru- Aristóteles (corrigida, com certeza, por sua retórica e sua poética) e
ções de certas margens do objeto pragmático que a busca de funda- a estética de Kant que pode dar substância a uma busca pelos funda-
mentos tornar-se-á relevante e ganhará um valor explicativo. mentos. De fato, os jogos infinitos, as experiências fusionais, a
Os fundamentos da pragmática devem ser tratados como uma memória nostálgica — todos fatores de heterogeneidade — são fím-
questão que concerne às condições de possibilidade de hetero- brias estéticas do objeto pragmático e é preciso abordá-las à ma-
geneidades discursivas. Como conceber o ser-em-comunidade neira do esteta (modus aestheticus), para que não sejam absorvidas
(Mitmenschsein) uma vez estabelecido o fato de que a comunidade pelo paradigma dominante.
de sujeitos falantes se manifesta essencialmente numa dissemina- Essas fímbrias estéticas dos discursos, dos diálogos e das con-
ção de heterogeneidades? Não podemos colocar verdadeiramente versações, de qualquer outro tipo de produto cultural e histórico,
em discussão se os fundamentos da pragmática são políticos ou não, são o que eu gostaria de realçar neste livro. O livro desenvolve-se
porque eles concernem a pólis ou comunidade de co-sujeitos. Mas com a seguinte linha de reflexão: sob o título A racionalidade es-
como garantir às heterogeneidades discursivas um fundamento po- tratégica, entram em cena o Antíloco razoável e suas estratégias,
lítico sem invocar automaticamente os valores do paradigma domi- criticando tanto a teoria dos jogos enquanto modelo determinante
nante, a veridicção, a comunicabilidade e a economia das trocas? das ciências sociais quanto a concepção econômica de intersubje-
Isso precisará ser feito através de uma transformação radical do modo tividade. Isso nos permitirá remeter ao debate sobre a hierarquia
e do objeto da busca de fundamentos. Para ilustrar o que está em entre cooperação e conflito, entre philia e eris, entre harmonia e
jogo no modo e no estilo da busca pelos fundamentos, podemos citar discórdia, central para muitas pragmáticas contemporâneas. O afe-
o parágrafo 49 da Crítica Juízo, que estará onipresente neste livro: to e a experiência fusional serão abordados a partir de uma análise
“Há, toda vez que nós transmitimos nossos pensamentos, dois mo- musical da fusão melódica dos sons em música, opondo-a à junção
dos (modi) de compô-los, um dos quais se chama maneira (modus harmônica dos sons. A antiga Tonpsychologie, que influenciou tão
aestheticus) e o outro, método (modus logicus), que se distinguem profundamente a fenomenologia da estesia e da sinestesia em
entre si no fato de que o primeiro modo não possui nenhum outro Husserl, nos servirá de trampolim para uma reflexão sobre a tempo-
padrão que não o sentimento de que há unidade na apresentação ralidade da experiência fusional e a memória nostálgica. O capítu-
(dos pensamentos), ao passo que o segundo segue em tudo princí- lo seguinte traça as linhas de força de uma filosofia do faro, do tato,
pios indeterminados”.!º Podemos, portanto, se acompanhamos Kant, do bom gosto e do sentimento a partir da abdução perciana. À psi-
refletir sobre o fundamento político da pragmática de acordo com o cologia afetiva de Ribot, quase esquecida hoje em dia, nos ajudará
modus aestheticus, como estetas, não com o método mas com a a formular, a seguir, do que tratam as razões para a paixão ou o pathos
maneira, como maneiristas, com bom gosto e tato estéticos. Há ob- razoável. A sedução, sutil semeadora de heterogeneidades e cimento
viamente mais do que isso. da intersubjetividade, e com ela o sublime — um assunto acerca do
Na dedução transcedental que Kant propõe na sua Terceira qual surgiu toda uma floração de novas filosofias — constituem fra-
crítica, a pólis ou comunidade de sujeitos serve precisamente de turas que nos convidam a estetizar o objeto pragmático. Uma refle-
fundamento a toda avaliação, a toda apreciação e a todo juízo esté- xão filosófica completa nos dois últimos capítulos deste ensaio
tico. Nesse aspecto admitimos, pois, termos sido fortemente influ- deveria mostrar de que modo a filosofia da linguagem contemporá-
enciados pela intuição expressa por Hannah Arendt em sua obra nea (de Austin e Grice, para citar apenas alguns) pressupõe uma
póstuma,” quando escreve que a estética de Kant deve ser conside- axiologia específica: categorias como a sinceridade ou a coopera-

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ção servem de princípios axiológicos em suas gramáticas. Se qui-
sermos perseguir o projeto de estetização da pragmática, convirá
encaixar esses valores numa preocupação com o bom gosto. Essa
espécie de via real, que Kant esboçou em seus escritos sobre o juízo
estético ou juízo de bom gosto, nos mostrará, pois, como conceber
o fundamento estético da comunicação. Para concluir, a comunica-
ção e o sentimento de comunidade deverão ser colocados numa re-
lação dialética, unindo, como prometido, a política de Aristotéles NOTAS
e aestética de Kant. Essa união permitir-nos-á então tratar de algu-
mas propostas atuais interessantes, como aquelas da Escola de
Frankfurt e da filosofia pós-moderna.
!Ch.sS. Peirce, Collected Works, 5.412.
2 Cf. H. Parret, Verbete “Pragmatics”. In: Th. A. Sebeok, Encyclopedic
dictionary of semiotics. Berlin-New York, Mouton/de Gruyter, 1986, 751-60;
e também “Empreinte pragmatiste, attitude pragmatique et sémiotique in-
tégrée”. In G. Deledalle (ed.), Sémiotique et pragmatique. Amsterdam, J.
Benjamins, 1989, pp. 277-96.
3 É exatamente o que acontece na teoria que D. Sperber e D. Wilson desen-
volvem em seu livro Relevance. Harvard University Press, 1986.
*V. cap. 6 adiante.
$*V. J. F. Lyotard, The postmodern condition: a report on knowledge.
Minnesota University Press, 1984.
*V. J. Searle e D. Vanderveken, Foundations of illocutionary logic. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1985.
? James P. Carse, Finite and infinite games. New York, The Free Press, 1986,
p. 3.
* Ibid., p. 8.
* Ibid., p. 26.
'º Cf. M. Detienne e J. P. Vernant, Les ruses de l'intelligence; la mêtis des
grecs. Paris, Flammarion, 1974.
" Homero, Ilíada, Canto XXIII, a partir de 520.
2 P. Valéry, Cahiers. Paris, La Pléiade, v. 2, pp. 347-48.
2 M. Proust, Le côté des Guermantes. Paris, La Pléiade, v. 3, 362ff .
4 Ibid., p. 61.
15 Ibid., p. 71.
'º J. L. Borges, Atlas. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1984, p. 75.
“ Ibid., p. 76.

27
26
18 Cf. H. Parret et al., Le sens et ses hétérogénéités. Paris, Les Editions du
Centre National de la Recherche Scientifique, 1991.

19 1. Kant, Crítica do juízo (1790). Tradução para o inglês de Werner Ss.


Pluhar, Critique of judgment. Indianapolis, Hackett Publishing Company,
1987, parágrafo 49, pp. 181-88.
20 H. Arendt, Lectures on Kant's political philosophy. Chicago, The Uni-
versity of Chicago Press, 1982.

A RACIONALIDADE ESTRATÉGICA

O objeto pragmático — a produtividade discursiva, social e


artística do homem — não tem sentido a menos que seja entendido
como uma rede de razões de um sujeito razoável. Devemos distin-
guir essa razoabilidade da racionalidade que se manifesta no exercí-
cio da lógica e da ciência. Entretanto, no que se segue empregaremos
o termo racionalidade a fim de evitar o termo desusado “razoabi-
lidade”. As conotações que razoabilidade evocaria são: razão, em
oposição ao entendimento, a faculdade de reconstrução teórica; as
razões da razão, em oposição às causas que explicam os fenômenos
naturais; as razões da razão que aduz razões, em oposição a uma
razão que não funcionaria por argumentação ou, de forma mais sim-
ples, que funcionaria sem inferências argumentativas. Defendere-
mos, neste capítulo, que a razão razoável somente tem razão dentro
de uma comunidade (oposta à sociedade), cuja vida, evidentemente,
se faz de concórdias e discórdias, de consenso e conflito, de philia
e eris. É a partir de uma reflexão sobre o par philia/eris, que forma
a primeira parte deste capítulo, que apresentaremos, na segunda
parte, duas concepções de estratégia. A primeira, a dos lingiistas, é
a estratégia em termos de cálculo. À segunda, principalmente a dos
semioticistas, a estratégia como manipulação ou manobra. Demons-
trar-se-á a seguir que essa distinção corresponde a dois tipos de pole-
mologia, a do confuciano Sun Tzu e a do general von Clausewitz, ou
a dois modos diferentes de formular a arte de guerra ou Kriegskunst.
E como a Kriegskunst é também um Kriegsspiel, na terceira seção

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deste capítulo, retornaremos à noção de jogo, fazendo a crítica da Esse debate é de primordial importância na pragmática conver-
teoria econômica dos jogos, onipresente como metodologia nas sacional. O princípio de cooperação de Grice tem sido ingenuamen-
ciências sociais, e defendendo que a concepção polemológica do te interpretado como uma posição irênica e foi essa interpretação
jogo estratégico só concerne ao ser-em-comunidade na sociedade. que deu lugar a aplicações e substituições, como o famoso princí-
A comunidade, no entanto, não é redutível à sociedade. E é assim pio de polidez de Leech. Pode-se dizer, ao contrário, antecipando o
que a idéia do jogo infinito será evocada: o jogo infinito é o da que virá a seguir, que o princípio de cooperação assenta-se numa
cultura, sendo essa uma concepção coreográfica de jogo, que se concepção agonística ou polemológica das estratégias comunica-
opõe ao jogo finito da sociedade. Essa reflexão, consequentemen- tivas e da racionalidade que a elas subjaz.
te, fecha-se com um elogio da dança e das estratégias do bailarino. Assim, enquanto permanecermos no domínio da comunicação
(ou, de novo, no campo dos jogos de sociedade), o conflitual tem
prioridade e serve mesmo de princípio para a estruturação das trocas
1. Philia e eris (econômicas, obviamente) e das interações sociais. Felizmente, o
ser-em-comunidade transcende o ser-em-sociedade e, portanto, o
Eris, “o conflito com o coração violento”, lê-se na Teogonia conflitual. Dessa forma, somente através da perspectiva de uma
de Hesíodo, é filha da Noite, e “a Odiosa Luta deu à luz Pena, a estetização do político é que podemos escapar à dominância do eixo
dolorosa, e a Distração e a Fome e a Dor lacrimejante; e também a philia/eris ou agôn/irénê. A comunidade não é o ser-juntos-em-
Guerra e as Batalhas, as Matanças, os Assassínios e também as Ri- sociedade, e essa é a razão pela qual o pas de deux coreográfico
xas, as palavras mentirosas, e as palavras carregadas de Odio”.! É não é nem um duelo nem uma luta.”
muito estranho encontrarmos na descendência dessa mesma Noite
a Ternura ou philia. A discórdia e a concórdia, eris e philia, nascem
da mesma mãe: eris e philia são as duas irmãs noturnas. É mais uma Egoísta por natureza, altruísta por necessidade
vez eris quem inspira o enorme exército dos troianos, na Ilíada, e,
como escreve Homero, quem “espalha o espírito de querela entre Os conversacionalistas, de Schegloff a Kerbrat-Orecchioni,
todos eles”.? Eris, a filha ateniense de Zeus, é “fúria sem medidas”, nos garantem que as regularidades do “bricolage” conversacional
é a própria alma da guerra; o medonho Conflito leva um signo de podem ser explicadas pela dominância do princípio lúdico: “É
guerra em suas mãos, lemos no Canto XI. Na verdade, é essa tensão aconselhável jogar o jogo de acordo com todas as regras da conver-
entre eris e philia, ou mais simbolicamente e menos mitologicamen- sação.” Esse princípio, em sua generalidade, abrange todas as ou-
te, entre agôn e irénê, que vai prevalecer, a partir de Hesíodo e de tras fórmulas pragmático-dedutivas encontráveis na filosofia da
Homero, até os mais recentes tipos de pragmáticas. linguagem: cooperação (Grice), caridade (Davidson), humanida-
Há duas soluções possíveis. Entendendo que o conflito, eris, de (Quine) e muitos outros. Transgredir as regras de conversação seria
vem primeiro, deve-se interpretar o contrato, o acordo, a cooperação, em primeiro lugar uma violação do princípio lúdico, antes de ser
como resultado da pacificação do conflito original. Se se considera um insulto à polidez, ou uma falha em reconhecer a humanidade,
a philia (ternura, simpatia) como fundamental e constitutiva, então ou uma falta de caridade. Jogar o jogo é então jogar a favor do pólo
o conflito, a discórdia e até mesmo a guerra devem ser considerados positivo, eufórico, e portanto a favor da philia e da concórdia. Essa
como desvios e violações. Certos autores sustentam que não há es- não é obviamente uma constatação estatística, já que todos estão
colha a ser feita entre agôn e irénê, e que só se pode “declarar sua bem cientes de que as conversações cooperativas, caridosas, “hu-
associação funcional”. Outros tendem para um irenismo idealizante, manas” ou mesmo polidas não formam, de modo algum, a maioria.
ao elaborar sobre a noção de “comunidade ideal de comunicação”.

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A idéia por trás dos grandes princípios pragmático-dedutivos tância estatística, baseia-se num egoísmo natural como sua motiva-
é muito diferente: para que haja compreensão e portanto comunica- ção fundamental. A polidez é uma necessidade e interessa a todos
ção, deve-se pressupor que o locutor joga adotando as regras do nós que “ela funcione”. Somos altruístas em nosso próprio interesse:
jogo como norma. Se o locutor não joga de acordo com elas, só todos nós temos algo a ganhar, domando nossa motivação agonística.
podemos entender o seu comportamento discursivo como uma vio- Muitos autores (entre eles Levinson'?) notaram a ligação en-
lação das regras do jogo conversacional. Portanto, o que se pressu- tre a pragmática de Leech e a teoria que Goffman expusera muito
põe aqui não é um maravilhoso irenismo ou que todos os homens antes sob o nome de Face threatening acts, com a ajuda da noção
são anjos; envolve, ao contrário, um pessimismo agonístico gene- de “face” (“cara”, “trabalho facial”, “figuração”). Assim podemos
ralizado: somos cooperativos, humanos, polidos e altruístas por ne- traduzir as máximas derivadas do princípio de polidez na lingua-
cessidade. Egoístas por natureza, altruístas por necessidade. Que tipo gem de Goffman: a falta de modéstia ameaça a “face” do outro; evitar
de necessidade? Aquela que é motivada pela comunicabilidade e ameaças contra o território do outro, contra a “face” do outro, poupa
pela vida em sociedade. o narcisismo do outro. Ou, do ponto de vista do próprio locutor: é
Olhemos mais de perto para alguns resultados empíricos que através da exigência de uma polidez “negativa” que o “auto-elogio”,
confirmam essa generalização. A retórica e a própria sintaxe dos ou a gabolice em geral, é proibida, da mesma forma que o é o maso-
diálogos e das conversações apresentam um modo enfraquecido, quismo, seja ele culto ou exibicionista. Goffman sustentava, em sua
litotizado ou parcialmente implícito. Tomem-se como exemplo as etnometodologia das interações discursivas, que o princípio lúdico
fórmulas de polidez, a denegação, a prática polida de indeterminar justifica-se pelo fato de que todo mundo tem direito a uma face e
(o uso polido do impessoal, por exemplo), as desculpas e os elogios, que a sociedade garante esse direito aos seus membros. A preserva-
a expressão indireta de ordens e outros atos de fala um pouco autori- ção das faces seria então a regra última do jogo. Uma “face”, de acor-
tários. Não há nada pior numa conversação do que manifestar a pró- do com a definição de Goffman, é uma imagem pública de si mes-
pria inclinação egocêntrica, o próprio narcisismo fundamental. Esse mo, que todos os membros de um grupo desejam preservar. A face
ritual de encobrir nosso egoísmo natural é a posição não-marcada negativa é a exigência de um território e sua proteção, é a liberdade
na interlocução. Relembremos as seis máximas que Leech deriva de ação, enquanto a face positiva é a personalidade consistente,
do princípio de polidez: a máxima do tato (“Minimize o custo para estável, com que cada um exige ser reconhecido. Há muitos atos que
o outro; maximize as vantagens dele”), a máxima da generosidade
ameaçam a face do interlocutor, como a acusação, a culpa, a queixa
(Cminimize os seus próprios benefícios, maximize as vantagens para e o insulto. Outros atos ameaçam a face do próprio falante: as des-
o outro, o custo para você mesmo”), as máximas da aprovação, da culpas ou o reconhecimento da sua própria responsabilidade ou
modéstia, da concórdia e da simpatia (“minimize a antipatia entre culpabilidade. Em situações de conversação bem específicas, como
o outro e você mesmo; maximize a simpatia entre o outro e você as entrevistas,! tem sido possível estudar certos mecanismos lingiiís-
mesmo”). A imodéstia, por exemplo, é socialmente inaceitável (ou ticos que permitem atenuar a ameaça às faces, porque cabe reconhe-
é assim apenas no Japão e na classe média britânica?).º Mesmo que cer que esse “trabalho de faces” exerce pressões sobre o próprio
as diferentes sociedades apresentem hierarquias específicas entre sistema lingiístico (até mesmo sobre certos mecanismos sintáticos,
as máximas (no contexto japonês, a máxima da modéstia precede como por exemplo, a prefixacão das interrogações amcaçadoras:
muito a máxima da concórdia, enquanto, ao que parece, na socie- “Posso perguntar-lhe...?”, “você acha que...?”"). O “trabalho de fa-
dade americana a máxima da simpatia é predominante), não é menos ces” é obviamente um trabalho recíproco, o que significa que os
verdade que o princípio de polidez parece governar universalmen- parceiros da conversação concordam em não “ameaçar a face um do
te o “bricolage” conversacional. No entanto, esse enfraquecimento
outro”. Cada um deles age altruisticamente por interesse pessoal,
ou essa litotização da interação conversacional, além da sua impor-
para que o outro tampouco roube do falante o seu território. Em

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resumo, todo mundo tem interesse em se comportar de maneira ci- Lembremos simplesmente que Grice começa sua série de
vilizada, e o egoísmo natural certamente está de algum modo inte- lectures dedicadas a John Locke, Some reasons of reason, por um
ressado nessa regulação. Aqui jogamos, de fato, o jogo da necessi- estudo dos diferentes tipos de argumentos e inferências que aduzem
dade e podemos nos perguntar se, com efeito, a comunicação e a razões, para concluir invocando tanto a desejabilidade e a eudai-
vida em sociedade seriam possíveis de outra maneira. Resta porém monia em Aristóteles, quanto a felicidade em Kant.!'* A “razão coo-
o fato de que nas pragmáticas de inspiração goffmaniana nos deba- perativa” é a razão que, desejando o obrigatório, encontra a
temos num pessimismo agonístico; estamos mesmo muito longe de felicidade no estado de legislação. Eris, o conflituoso, o polemo-
qualquer concepção angélica de humanidade. lógico, é instância da natureza. Philia, a lei moral, é instância de
legislação universal. Opera, portanto, em Kant e em Grice, um pes-
simismo agonístico, sempre que se referem ao estado de natureza,
O estado de natureza é um estado de guerra, o estado de que não tem em si nada de humano. O ser-em-comunidade, na vida
paz é um estado de legislação prática das sociedades, só é possível a partir do desejo comum do
obrigatório e é de fato esse desejo que pressupomos no outro quan-
Se Leech e seu princípio de polidez proclamam-se griceanos, do devemos descodificar a significação de seu discurso e de seu
Grice é um neokantiano, o que imediatamente empresta um tom mais comportamento.
nobre a sua problemática. O princípio de cooperação tem uma Essa tentativa de fazer de Grice um kantiano não agradará a
motivação que é completamente diferente daquela da necessidade todos, e minha posição não pode ser plenamente justificada a esta
da comunicação ou da vida em sociedade. Kant pensa com efeito altura. É somente no final da presente jornada que estaremos em
que o estado de natureza é o estado de guerra ou do conflito dos condições de reformular as máximas da qualidade, da quantidade,
egoísmos. Mas, como ele diz em seu Sobre a paz perpétua, “o estado da relação e do modo, com apoio nos quatro momentos lógicos da
de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natu- analítica kantiana do belo. Somente na conclusão o princípio de
reza (status naturalis) — o estado de paz deve ser fundado”. O es- cooperação poderá ser transformado em princípio fundamental da
tado de paz é um estado de legislação; é a esfera da razão prática, razão prática: “Julgue colocando-se a si mesmo no lugar de cada
engendrando o princípio de cooperação. Para relembrar a lei funda- um dos outros” e a seguir em princípio fundamental da apreciação
mental da razão prática: “Aja de tal modo que a máxima de sua estética: “Empregue o sensus communis, o senso comum a todos”.
vontade possa ao mesmo tempo valer sempre como princípio de uma No entanto, a vulgarização do princípio griceano em princípio de
legislação universal”.!º A cooperação griceana está enraizada filoso- polidez, bem como os esforços por reduzir o elemento kantiano pre-
ficamente na lei universal, e esse princípio, contrariamente ao de sente em Grice, precisam ser submetidos a uma crítica rigorosa. É
Leech, é portanto decididamente normativo. O egoísmo natural e o verdade que o princípio de cooperação, na formulação efetiva de
altruísmo necessário, cuja relação dialética engendra a polidez, são Grice, não revela claramente sua origem kantiana. Mencionemos
de fato duas descrições empíricas, enquanto o conflito original, em pelo menos um tipo de redução inaceitável — a redução do princípio
Kant e Grice, e a exigência de cooperação encarnam as posições do de cooperação a um princípio de racionalidade (econômica). É
estado de natureza, de um lado, e a lei moral de outro; um dado assim que A. Kasher, já em 1976, propunha submeter as máximas
empírico, de um lado e, de outro, um dado transcendental. Poder- conversacionais da quantidade, qualidade, relação e modo a um
se-ia pensar que fomos muito longe ao associar o princípio de coo- princípio de racionalidade, que ele definia, à maneira dos econo-
peração com a lei moral, e os lingiistas não precisam evidentemente mistas, como um princípio de meios eficazes: “Tendo visualizado
seguir-nos nisso para usar de maneira relevante a chamada “lógica o alvo desejado, deve-se escolher a ação que, da forma mais eficaz
conversacional” de Grice. e com o menor custo, alcance esse objetivo”.!º Nesta concepção do

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princípio de racionalidade, o agente racional é um ser a vel é, pelo que sabemos, a Escola de Genebra (em análise conver-
solipsista, já que seu comportamento só se justifica por suas ul sacional e argumentativa)! e o artigo mais instrutivo a respeito
é o
prias crenças sobre a eficácia dos meios para um fim. Não há medi- de Auchlin e Moescheler.?º Vejamos um pouco mais de perto
o gru-
ação de um interlocutor ou de uma comunidade. po das definições formais de estratégia oferecidas por esses
auto-
A economia dos meios com relação ao fim é julgada sem ne- res; seu tratamento nos ensina como a categoria de estratég
ia pode
nhuma restrição exercida por um conhecimento comum ou mútuo, adquirir coerência epistemológica.
“Economiciza-se” ainda mais a idéia de Grice ao reduzir-se a eficá- A estratégia manifesta-se como uma regularidade: ela é reco-
cia dos meios a sua utilidade. É assim que Gauthier vê a racionali- nhecida, antecipada e admitida ao menos até certo ponto.
É uma
dade da cooperação como maximização da utilidade individual e, regularidade que não é o fruto de uma generalização, nem a
conse-
portanto, uma ação é “racional” quando maximiza a utilidade, tendo quência do domínio de uma “gramática” de regras ou de
um siste-
em vista as ações dos outros.” Essa concepção de Gauthier ganha ma de leis naturais. Eis aqui o ponto essencial. As estratég
ias não
toda sua inspiração da teoria econômica dos jogos e das estratégias. governam um domínio de regularidades autônomas e indepen
den-
Poder-se-ia dizer que, na teoria de Gauthier, em oposição à de Kasher, tes, somadas parataticamente aos domínios governados pelas
regras
os co-agentes racionais medeiam as escolhas do agente. No entanto, e pelas leis. Algumas epistemologias afirmam isso e opõem,
em to-
a racionalidade dos seres humanos é coerentemente reduzida à ape tal disjunção, as regras e as estratégias como marcando duas concep-
ganização eficaz dos meios e do fim de uma ação. Retornaremos, é ções contraditórias da linguagem: a de Chomsky, e sua “gramát
ica
claro, a essa tendência à “economicização” da racionalidade na ter- de regras”, de um lado, e a “gramática profunda” de Wittege
nstein,
ceira seção deste capítulo, ao criticar a teoria dos jogos finitos. Mas de outro.?! É, antes, o contrário: a estratégia sobrede
termina ou, em
o que são estratégia e racionalidade estratégica? outras palavras, modifica a regra ou qualquer outro tipo de
restrição.
Para manter firme a idéia da força de sobredeterminação ou
modifi-
cação da estratégia, precisamos dispor de um mínimum epistem
oló-
2. O cálculo e a manipulação gico que se refira a esses domínios sobredeterminados ou
modifi-
cados.
As noções que apresentaremos agora foram tiradas de gramáti-
A estratégia em análise conversacional cas que têm hoje ampla circulação. Certos domínios são governa
dos
por restrições, outros, por regras, ainda outros, por normas?
As
No que concerne ao funcionamento da categoria da estratégia restrições são reguladoras, as regras são constitutivas e as normas,
nas ciências sociais, limitaremos o tratamento a ser dado aqui àprag- obviamente, são normativas. Poderíamos acrescentar
de forma breve
mática da conversação. É então imediato constatar que as proprie- algumas propriedades dessa trilogia. A restrição é satisfeit
a (de fato,
dades e características dessa categoria têm sido pouco tematizadas sempre é satisfeita até certo ponto) ou não satisfeita; a
regra é apli-
de um ponto de vista epistemológico. Nota-se uma desconfiança cada ou não aplicada; a norma é respeitada ou violada.
Já que a
obstinada para com toda teorização no domínio da pragmática norma é engendrada e motivada por uma instituição, a
violação da
(como é o caso de Schegloffe de seus seguidores) ou uma deficiên- norma acarretará sanções institucionais (nessa classifi
cação, a eti-
cia estarrecedora de conceptualização. Por exemplo, Discourse queta, por exemplo, o usar gravata, é uma norma). A não-apl
icação
strategies,'* de John Gumperz, não oferece qualquer definição Es de uma regra, ao contrário, não acarreta sanção, mas sim
o bloqueio
estratégia, conceito que nem mesmo aparece no índice daquele i- de uma interlocução, porque a regra não pertence a uma
institui-
vro. Assim, enquanto a idéia de comportamento estratégico é onipre- ção, mas, antes, a um sistema (“gramatical”): é nesse sentido
que a
sente, é quase ausente sua conceptualização. A única exceção notá- gramaticalidade, à maneira de Chomsky, é governada por
regras. A

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com a
satisfação gradual de uma restrição é relativa, em confronto e o bloqueio. Podemos mesmo dizer que uma estratégia é essencial-
a uma norma, € a única imposi- mente uma jogada a favor ou uma jogada contra outra jogada.
aplicação de uma regra ou a adesão
ão
ção” afetando o funcionamento de uma restrição é que sua satisfaç Além disso, a inclusão pode ser ativa (protensiva) ou reativa (reten-
idade e sua relativ idade (pen- siva). As jogadas estratégicas por inclusão são muito frequentes em
deve ser reconhecível em sua gradual
samos nas máximas de Grice acima de tudo como restrições, enquan- circunstâncias de alta competitividade, como as entrevistas: elas têm
exidiane
to o princípio de cooperação seria uma norma). Deve estar como efeito deliberado um certo relaxamento da tensão, ou melhor,
que esses domínios (governados respect ivament e pela a podem mascarar a seriedade da ameaça ao introduzir uma nova
regra e pela restrição) são osmóticos e admitem superposições. ameaça que é mais difícil de ser descodificada. Mas há outras estra-
A intuição central a ser defendida aqui é que a estratégia difere tégias que são ainda mais traiçociras, aquelas que funcionam por
to tem
categorialmente da norma, da regra e da restrição porquan bloqueio, portanto, por meio da penalização e do anulamento ou
funcion amento da norma, da regra au sa 188» suspensão de uma estratégia reconhecida. É assim que alguém pode
como objeto o próprio
e Moeschl er,” a estratég ia é uma Fes refutar as pressuposições de sua própria estratégia ou provocar um
trição. Como propõem Auchlin
ão de restriçõ es e a satisfaç ão netas bloqueio ligado à impossibilidade de satisfazer simultaneamente
lação que opera entre a imposiç
a,
ou, para generalizar levando em conta à trilogia supramencionad restrições impostas por duas estratégias contraditórias. O programa
opera entre a imposiç ão da norma, da estratégico de qualquer interlocução consiste em inverter continua-
a estratégia é a relação que
regra e da restrição e seu respeit o/viola ção, sua aplaaç aofafo mente a fonte e o alvo, em provocar continuamente novas jogadas
ivas
aplicação, sua satisfação/não-satisfação. As estratégias discurs (pela inclusão ou pelo bloqueio) e em mudar, de maneira imprevista
entre a imposiç ão do respeito , da apli- mas mesmo assim descodificável, o formato das estratégias (essen-
são responsáveis pelo desvio
um lado, e a violação , a não-apl icação e cialmente o formato interativo em formato interacional e vice-versa).
cação e da satisfação, de
regras € restriçõe s, de outro. O aleançe Para completar essa análise da estratégia em análise conversa-
a não-satisfação das normas,
(do ato
da trilogia é extensível: ele vai do ato ou da intervenção cional, dois comentários se impõem. Primeiro, a investigação do
o global ou troca em sua integral idade caráter estratégico das interações força-nos a distinguir entre um
de fala”-tipo) até a interaçã
atos. Portanto , uma primeira tipologi a das comportamento cooperativo e um comportamento colaborativo.
como encadeamento de
toda a sua simplic idade: há as estratég ias Tanto o comportamento colaborativo quanto o não-colaborativo são
estratégias emerge em
intera-
“intra-intervenções”, que podemos chamar de “estratégias igualmente cooperativos. O caráter cooperativo de uma interação
“interi nterven ções”, que nós chamam os de não é prejudicado pela não-colaboração. Nesse sentido é possível
tivas”, e as estratégias
As primeir as preside m a formaçã o de
“estratégias interacionais”. dizer que um ato estratégico, embora não-colaborativo, continua
s, a formaçã o de encadea mentos de inter- sendo cooperativo. Isso continua verdade em qualquer contexto de
intervenções e as segunda
o enun-
venções. A fonte da estratégia não deve ser identificada com jogo. Daí vem o segundo comentário: a estratégia permanece essen-
de, assim como o alvo não deve ser iden- cialmente lúdica na conceptualização precedente ou, melhor dizen-
ciador e sua intencionalida
que o enuncia dor se propõe a realizar. Fonte do, é a partir do paradigma do jogo que uma tal categoria de estra-
tificado com o objetivo
m conti-
e alvo se definem, antes, como variáveis que se desloca tégia pode ser entendida. Esse caráter lúdico da estratégia se mani-
o desenrol ar da interaçã o, present es a cada mo- festa particularmente no fato central de que a estratégia modifica
nuadamente durante
de marcado res ou de instruçõ es que O interloc utor ou sobredetermina as “gramáticas” ou os sistemas de normas, regras
mento na forma
o e restrições. De fato, comportar-se estrategicamente consiste em
pode descodificar.
sem entrar nos detalhes dessas tipologi as e sobredeterminar, pelo desvio, pela intensificação, pelo enfraque-
Pode-se apontar,
dade da noção de jogada estratég ica, que tem cimento, ou por colocar entre parentêses um sistema formal. Com-
distinções, a fecundi
a ver com a relação entre estratégias. Há dois tipos destas: a inclusão portar-se estrategicamente é operar formalmente sobre um sistema

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ou melhor, não mais da luta em função do jogo, mas do jogo em
já formalizado como uma “gramática” de normas, de regras e de res- função da luta. O modelo “actancial” generaliza, com sua visão
trições. Em suma, o protótipo do estrategista é o jogador de xadrez. conflitivo-contractual da intersubjetividade, a idéia de confronto e
de choque entre os actantes. O sujeito-estrategista dispõe de uma
competência estratégica que se deixa inferir a partir da concatenação
A estratégia em semiótica de desempenhos c de ações estratégicas, coordenadas “em vista de
uma vitória”. Os semioticistas insistem muito no fato de que o es-
No que a semiótica contribui para a determinação da catego- trategista é dotado de uma compreensão privilegiada da “história”
ria de estratégia? Algirdas J. Greimas formula em matéria de estraté- a ser realizada e do estado cognitivo do co-sujeito ou, de forma mais
gia duas intuições que valem a pena considerar. Primeiro, “a estra- genérica, de suas determinações essencialmente modais.À tipologia
tégia invade as instâncias da sintaxe narrativa” e, em seguida, “seria dos atos estratégicos é engendrada por uma quádrupla que combina
talvez mais conveniente reservar esse termo (estratégia) para a ins- duas relações de oposição. À primeira opõe o estrategista confron-
tância superior e final da organização narrativa”? Greimas não ela- tado com um sujeito-parceiro, cuja figura modal é essencialmente
bora tecnicamente esses procedimentos de invasão, reservados à
cognitiva, ao estrategista confrontado com um sujeito-parceiro cuja
instância superior e final da programação narrativa. Mas essa “in- figura modal é essencialmente pragmática. Aqui já encontramos
vasão” aproxima-nos da sobredeterminação ou modificação de que
duas classes de atuações estratégicas, as estratégias fiduciárias
falam os analistas da conversação. Seja como for, Greimas expõe seu (cognitivas) ou estratégias de manipulação de um lado e as estraté-
pensamento a propósito de estratégia num texto pequeno, mas bas- gias operacionais (pragmáticas) ou estratégias de manobra, de outro.
tante promissor, intitulado precisamente A propos du Jeu.* Aí ele A segunda relação opõe as atribuições modais que são estereotipadas
evoca a parassinonímia “jogo, facilidade e liberdade”, e declara que de acordo com a norma ideológica: reificar/naturalizar as pessoas
o sujeito lúdico está por natureza à vontade. A facilidade do jogo,
versus humanizar as coisas. Assim, a “machinetta” produz e situa
essa “maneira de ser livre”, garantindo a plenitude, parece introdu- quatro tipos de atuações estratégicas: do lado das estratégias fidu-
zir a idéia da felicidade do estrategista. A recompensa do jogo sendo ciárias ou de manipulação estão a ação política (a manipulação das
a vitória final, o jogo contém sua parte de alegria, ligada a um pessoas) c a ação mágica (a manipulacão das coisas “como se elas
savoir-faire jubiloso. Mas logo se descobre o lado obscuro desse fossem pessoas”). Do lado das estratégias operacionais ou estraté-
jogo. Greimas nota que: “a entrada (no jogo) é livre, mas a saída, gias de manobra está a ação técnica (manobrar as coisas) c a ação
não”, “o jogo... alimenta a ilusão de um pouco de liberdade”, “a tecnocrática (manobrar as pessoas “como se elas fossem coisas”).”
comunicação (lúdica) é uma confrontação de vontades e poderes; Uma outra distinção, entre estratégia e tática, tem sido inserida
ela se submete ao princípio da eficácia (ligado à incomunicabilidade no modelo semiótico.?* Tradicionalmente, dispomos em poleco-
e à figuratividade)”.2º Já estamos claramente nos inclinando para a mologia de muitos critérios para essa distinção, e Boudon escreve:
idéia de uma Kriegskunst, tão cara a Clausewitz. E devemos notar “(A estratégia) se distingue da soma de combates táticos pelo fato
que o duclo já não é de fato um jogo, mas uma luta cruel. Aquilo de de que, por sua amplitude e seu escopo, ultrapassa o quadro das
que trata Greimas é então a competência manipulatória do estrate- simples escaramuças particulares... Se a tática está empenhada numa
gista, que desenvolve uma representação global do conhecimento soma de batalhas mais ou menos simultâneas, supostamente depen-
que possui seu anti-sujeito. O estrategista explora então seu próprio dentes de disposições preparatórias, a arte da estratégia consiste
savoir-faire, que se transforma naturalmente num levar a fazer e,
em representar essas disposições a partir de um ponto de vista supe-
sobretudo, num fazer-crer. rior que as transforma em partes de um todo mais ou menos homo-
Eis aqui portanto desenvolvida uma concepção plenamente gêneo, mas obviamente não-linear, já que essa estratégia depende
polemológica do estrategista: ela exalta o discurso da guerra, da luta,

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de um adversário cujo fim como malin génie é destruir esse conjun- ridades. Em conseqiiência, a divergência na confrontação pressu-
to preestabelecido...”.?º Consegiientemente, três propriedades dis- põe a cumplicidade e, portanto, um mínimo de consenso; no míni-
tinguem a estratégia da tática: em primeiro lugar, as estruturas tem- mo, a causa e o motivo da discórdia são compartilhados por ambos.
porais da estratégia e da tática são diferentes: a estratégia é pros-
pectiva/retrospectiva; a tática é centrada no presente. Em segundo
lugar, uma tática sofre a limitação de disposições preparatórias, 3. A arte da guerra ou a Kriegskunst
entre as quais as possibilidades e limitações técnicas de manobra,
enquanto a estratégia independe até certo ponto dos meios contin- A estratégia como cálculo de um lado e a estratégia como
gentes de ação. Por último, e mais importante, a estratégia pressu- manipulação/manobra, de outro, são dois tipos pressupondo duas
põe uma racionalidade motivada politicamente e subordinada aos espécies de polemologias. As duas concepções de estratégia são de
motivos de uma coletividade, de uma comunidade. Em jargão se- fato derivadas de dois modos de pensar a guerra. Se A arte da guer-
miótico, poder-se-ia dizer que a tática é uma ciência de pôr em ato ra? de Maquiavel não é aqui levada em conta, é porque seu trata-
manobras, enquanto a estratégia opera no nível da virtualização mento concerne mais à guerra tática do que à guerra estratégica. As
dos programas narrativos ao manipular a competência decisional questões para Maquiavel são realmente táticas, como a seleção de
(cognitiva) do anti-sujeito. De fato, é somente no caso da estratégia soldados, sua idade ideal, o modo como devem ser treinados, “as
que se estabelece uma relação verdadeiramente intersubjetiva. armas e bastões a serem utilizados na guerra”, “os meios de pôr em
Em decorrência disso, sustenta-se que o estrategista dispõe de formação um batalhão de acordo com a intenção do general”; todos
uma competência verdadeiramente cognitiva, ou melhor ainda, esses tópicos pertencem à ciência polemológica da tática. Muitos
epistêmica. A racionalidade estratégica pressupõe o funcionamento dos tratados de polemologia se intitulam Arte da guerra — falare-
do conhecimento do estrategista e especialmente de suas crenças, mos mais tarde sobre as conotações semânticas disso. O mais anti-
intenções e desejos. O estrategista, tendo a dupla possibilidade de go dentre eles, o de Sun Tzu, data do século V antes de Cristo: esse
manipular ou de manobrar é, acima de tudo, uma competência epis- tratado desenvolve a concepção da guerra estratégica precisamente
têmica. Quando ele emprega uma estratégia manipulatória, é para como uma operação formal de cálculo.
exercer um impacto sobre os estados de crença do anti-sujeito, sua A Arte da guerra'! de Sun Tzu apresenta, dois mil anos antes
vítima. A doxa ou o sistema axiológico que ele impõe a sua vítima de Clausewitz, uma noção completamente confuciana das estraté-
funciona na realidade como um agente coletivo no qual participam gias de guerra. O título do primeiro capítulo é: “Aproximações, cál-
os duelistas, o estrategista e sua vítima. Essa doxa está continua- culos, planos, computações”. O tao ou modo correto consiste no
mente submetida à interpretação (a auto-interpretação do estrate- cálculo dos desvios: engano, teatralização, dissimulação. É isso que
gista e também à retrointerpretação, que resulta das resistências não- impede que a guerra degenere numa luta real, e a interação estra-
previstas do anti-sujeito). Daí sua flexibilidade: a luta se desloca tégica, num mecanismo destrutivo. A guerra não é uma ciência nem
continuamente. O que deve ser lembrado dessas análises semióticas uma política; é uma arte. A arte consiste no jogo do cálculo do jogo
do comportamento estratégico é que o estrategista e sua vítima que a estratégia se permite com as regras, as restrições e as normas.
encontram-se numa relação que pressupõe a interdependência dos Sun Tzu cristaliza assim uma idéia lúdica de guerra e conseqiiente-
dois programas de ação (os programas dos dois protagonistas da re- mente uma concepção formal da racionalidade estratégica. No en-
lação estratégica), de tal forma que o programa do anti-sujeito torna- tanto, é o tao ou modo correto que inspira essa racionalidade estra-
se um subprograma do estrategista. É dessa forma que uma estraté- tégica. Sun Tzu nos diz que a autoridade do general depende de suas
gia é participativa, ainda que adversária. Os dois protagonistas for- qualidades de “sabedoria, justiça, humanidade, coragem e severi-
mam um único agente coletivo em que participam as duas singula- dade”. A arte da guerra consiste em infligir ao inimigo o mínimo

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possível de perdas, em minimizar o sacrifício de vidas humanas. Aqui nós temos política e economia, não como um jogo de
Com efeito, a arte da guerra tem como finalidade prevenir a guerra. calcular, mas como uma luta. Raymond Aron enfatiza em seu livro
O estrategista habilidoso é capaz de subjugar o exército inimigo magistral sobre Clausewitz essa conjunção da política e da econo-
sem confronto militar, por meio do planejamento meticuloso, da mia segundo o parâmetro da luta. De fato, Clausewitz escreveu: “A
simulação e da dissimulação. “De forma que aqueles que são peri- decisão pelas armas está para as operações de guerra, grandes ou
tos na arte da guerra submetem o exército inimigo sem combate. Eles pequenas, como o pagamento em dinheiro está para o comércio a
capturam as cidades sem atacá-las...”** O horizonte do tao explica crédito”!% E a resolução de um conflito passa sempre pelo combate.
como e por que a racionalidade estratégica engendra então as táti- O que é a guerra se não luta, Kampf? E Aron comenta: “Os estados
cas mais eficientes de vitória. se opõem uns aos outros como combatentes. Ora, os estados que fa-
Clausewitz , é claro, apresenta-nos uma imagem completamente zem guerra possuem, por definição, forças armadas. O choque das
diferente da racionalidade estratégica. Seu livro intitula-se Vom forças armadas, que chamamos combate, constitui o meio por exce-
Krieg (Da guerra) e ele utiliza frequentemente o termo Kriegskunst lência, o único meio, se você quiser, da guerra”.
(arte da guerra) em sua obra. Mas Clausewitz explora o étimo que Mas o aspecto mais instrutivo do conceito de guerra de Clausewitz
está na origem de Kunst que, em alemão, tem a mesma raiz de kônnen, manifesta-se onde ele corrige explicitamente a comparação da guerra
“poder, força”. Kriegskunst é o poder guerreiro. O general von com a arte para assimilá-la ao comércio. Há, portanto, uma lógica
Clausewitz insiste fortemente no fato de que a racionalidade estra- do comércio-guerra que introduz as trocas na guerra, mas também
tégica nasce da continuidade entre a política e a guerra. Sua céle- introduz a violência, a luta e o polemos na economia. É, na verda-
bre fórmula diz que a guerra é a continuação da política por ou- de, nesse quadro clausewitziano que começamos a perceber os con-
tros meios. Sua idéia, frequentemente criticada, de guerra absolu- tornos do conglomerado política/comércio/guerra!
ta, é a de uma guerra que leva à vitória completa, sem a qual nenhu- Clausewitz foi um grande admirador de Kant.” Um grande ad-
ma paz é possível. Isso leva à idéia radical de que a guerra em si é mirador, sim, mas um mau leitor. É verdade que Kant chama o esta-
condição de possibilidade da política e da vida social. Sem luta, do de natureza um estado de guerra, mas isso é somente metade da
não há nenhuma sociabilidade. Clausewitz escreve: história. Para Kant, nada há de “natural” na política e no comércio.
Eles dependem intrinsecamente do estado de legislação e, portan-
Dizemos por isso que a guerra não pertence ao domínio to, da lei moral, que exclui claramente a violência e a luta como
das artes e das ciências, mas ao domínio da existência princípios de organização de uma comunidade. Kant reconhece que
social. Ela é um conflito de grandes interesses regulado a guerra é profundamente arraigada na natureza humana. Estas são
pelo sangue... Seria melhor compará-la não à arte, mas as palavras de Sobre a paz perpétua:* a guerra é a própria face da
ao comércio, que é também um conflito de interesses e natureza. À educação, a etnologia e a história ilustram esse fato. Kant
de atividades humanas; ela se parece ainda mais com a escreve extensamente sobre isso em sua Antropologia: há guerras
política, que pode ser considerada, guardadas as pro- animais (as abelhas em suas colméias são um exemplo), as crianças
porções, como um tipo de comércio em grande escala. têm uma inclinação para a briga e há, nota Kant, um traçado de lou-
Além disso, a política é a matriz na qual a guerra se de- cura, de vaidade pueril, de sede de destruição, que descobrimos per-
senvolve; seus traços, já rudimentarmente formados, aí correndo a história da humanidade. Mas a política para Kant não
se escondem como as propriedades dos seres vivos em se situa de forma alguma no nível desse estado de natureza, mas, ao
seus embriões.* contrário, no nível do estado de legislação que define a comunidade
dos humanos. Kant, evidentemente, não apreciava o cálculo ou a
luta como fundamento da comunidade.

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4. Os jogos de sociedade e os jogos de cultura cálculo. Rapoport enumerou, com relação ao diálogo, três desses
princípios, cujo status epistemológico é aparentado ao do princí-
As estratégias da razão são consideradas por alguns como cál- pio cooperativo de Grice, do princípio de caridade de Davidson e
culos e por outros como manipulações ou manobras. Essas duas do princípio de humanidade de Quine: 1) o jogador deve ter von-
determinações reaparecem nas definições clássicas de jogo na teo- tade de colaborar com seu parceiro (cooperação); 2) ele deve aceitar/
ria dos jogos e na teoria da decisão, nas quais os jogos são encara- inferir que a jogada de seu parceiro é válida (tem um certo mérito:
dos como estratégicos por natureza. “Jogo estratégico” e “estratégia caridade); 3) ele deve aceitar/inferir que ele e o parceiro têm al-
lúdica” são de fato sintagmas sinônimos. O estrategista-jogador, guns valores em comum e que o parceiro está consciente de com-
seja ele um general ou simplesmente um parceiro de conversa, seja partilhá-los com ele (humanidade). Como conseqiiência, mesmo os
ele interpretado como alguém que calcula ou como alguém que mais duros teóricos do jogo têm de admitir que o cálculo das esco-
combate, de acordo com as duas polemologias evocadas (a de Sun lhas seria parecido com uma máquina girando em ponto morto se
Tzu e a de Clausewitz), um jogo da sociedade. Pensar a comunida- não se aceitasse uma restrição extracálculo, que escapa tanto ao
de em termos de jogos estratégicos é reduzir a idéia de comunidade próprio cálculo quanto à pura faculdade de representação que re-
à de sociedade. Essa sociedade nada mais é então do que um agente trata as regras do jogo e as jogadas estratégicas possíveis. Eviden-
coletivo ou uma rede de divergências que repousa sobre uma cum- temente, representarem essas jogadas para manipular ou para ma-
plicidade que motiva a cooperação. É precisamente esse tipo dejogo nobrar de nada serviria se o estrategista não estivesse motivado pela
- 0 jogo da sociedade — que é objeto de toda aquela literatura em vitória como a resolução do conflito, mas também pela cooperação/
teoria dos jogos, disciplina que ao mesmo tempo fascina e aterrori- caridade/humanidade no sentido acima definido.
za as ciências sociais. Não é portanto suficiente afirmar a interdependência das de-
O horizonte polemológico explica na realidade por que é pos- cisões e das escolhas, porque se deve encaixar essa afirmação numa
sível resolver um conflito à maneira de um jogo de sociedade. Os visão mais “robusta” de jogo,* uma visão em que a reciprocidade
teóricos” mais sutis tentam elaborar uma “lógica das estratégias” dos jogadores é analisada e explicada em primeiro lugar pela ne-
que respeite uma certa indeterminação de limites ao admitir que as cessidade social da cooperação e, em seguida (e de maneira especi-
razões da racionalidade estratégica não são causas e que há espaço al), pela racionalidade da cooperação. Em uma só palavra, a teoria
para a indeterminação. Rapoport, grande estrela da teoria dos jo- dos jogos, para ser adequada e eficiente, precisa de uma meta-teo-
gos, usa sua concepção de interações sociais como uma arma contra ria. As brilhantes performances de formalização feitas pelos teóri-
a assim chamada “física social”, que é determinista e particularmen- cos dos jogos não eliminam a fraqueza epistemológica desse ponto
te inadequada para o que ele chama de “lógica das estratégias”. de vista tecnicista, já que ele é incapaz de produzir qualquer legi-
timação extracálculo, não-especulativa ou não-representacional.
Alguns autores, como Goffman, altamente sensíveis às sutile-
Aquém do cálculo e além da manipulação: princípios e zas do comportamento estratégico, esforçam-se para colocar a pers-
estilo dos jogos pectiva da teoria dos jogos num quadro que é mais amplo, mas tam-
bém mais próximo da realidade concreta das interações sociais.*
Um cálculo acurado, por exemplo, num diálogo não depende Os roteiros dos teóricos dos jogos em geral não levam em conta
somente da competência do jogador em calcular. Outras condições, certas categorias residuais, tão caras a Goffman, como o estilo de
independentes do valor do cálculo, determinam a otimização das jogar, a importância do jogo (gameworthiness) e sua avaliação pelo
estratégias. E fica rapidamente evidente que a teoria dos jogos, em parceiro, a integridade e a credibilidade do jogador com toda uma
sua definição da estratégia, pressupõe a priori princípios para todo tipologia de atitudes que resultam em desonra e o grau de confessa-

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bilidade do jogo. Em resumo, o jogo puro não existe para Goffman, cisamente esse tempo melódico dos jogos infinitos. Além do mais,
sobretudo porque as interações que parecem à primeira vista lúdicas o jogo de sociedade é governado pelos termos de um contrato que
são restritas por normas sociais específicas e contextualizadas. E o permite que os jogadores reconheçam de comum acordo um ganha-
que fazer das restrições sobre o próprio jogo? Nem todas as comu- dor: eis aqui a cumplicidade e o compromisso subjacentes dos jo-
nidades reforçam o jogo, e “perder o jogo” é certamente avaliado gadores-economistas. Compensa prosseguir neste assunto um pou-
de forma bem diferente segundo as culturas e as subculturas. Feitas co mais. O jogo finito não pode ser jogado sem uma certa serieda-
as contas, a teoria dos jogos parece por demais poderosa e, por isso de, porque o jogador tem que cumprir as exigências de seu “papel”.
mesmo, reducionista no que diz respeito às interações e aos com- Jogar pelo mero prazer de continuar traz consigo evidentemente um
portamentos estratégicos. Sua enorme influência e seu prestígio nas sinal de frivolidade. Torna-se portanto aparente que todo jogo finito
ciências humanas não podem mascarar por um lado sua incapacidade é contraditório: “Sendo o propósito de todo jogo finito terminar o
para se legitimar através de categorias extracálculo e não-repre- jogo com a vitória de um dos jogadores, cada jogo finito é jogado
sentacionais e, por outro lado, um certo reducionismo com relação para que o próprio jogo termine”.'* Como consequência, o jogo
às variações nas interações e portanto com respeito à inesgotável finito é um jogo contra o próprio jogo. O jogo infinito, por outro
riqueza das múltiplas formas de interactancialidade e intersub- lado, não é contraditório, mas paradoxal: “Como o propósito dos
jetividade. jogadores do infinito é continuar o jogo, eles não jogam por eles
mesmos. A contradição de um jogo finito é que os jogadores dese-
jam por eles mesmos pôr um fim no jogo. O paradoxo de um jogo
A finitude dos jogos de sociedade e a racionalidade infinito é que os jogadores desejam continuar o jogo nos outros. O
estratégica do bailarino paradoxo é precisamente que eles jogam somente quando os outros
continuam a jogar”.'* E assim por diante.
O projeto de uma estilística dos jogos, lançado por Goffman, A sociedade, onde se jogam os jogos finitos, é o reino da lei
coloca-nos claramente na direção certa, aquela que deve nos levar severa já discutida: egoísta por natureza, altruísta por necessidade.
a uma verdadeira estética dos jogos. Abandonamos, naturalmente, Os jogos de sociedade, afinal, são jogados à sombra da necessidade.
de uma vez para sempre, os jogos de sociedade pelos jogos de cul- Seria muito forte dizer que a cultura se opõe diametralmente à socie-
tura. Isso é ao mesmo tempo abandonar a economia — o cálculo, a dade. Talvez se chegasse a demonstrar que a sociedade é, ao invés
luta — para adotar a coreografia e a racionalidade estratégica do disso, uma cultura que contradiz a si mesma, esconde sua liberdade,
dançarino. “Há pelo menos dois tipos de jogos: uns poderiam ser é uma cultura que se esquece, se reprime. Mas o que podemos dizer
chamados de finitos, os outros, de infinitos. Um jogo finito se joga com certeza é que a “cultura não pode ser autêntica se for reduzida
com o propósito de ganhar, um jogo infinito, com o propósito de aos limites de uma sociedade”.“”” A cultura é um jogo infinito, que
continuar a jogar”** Um jogo finito — o que vimos chamando de jogo não pode ser definido por seus limites: ela é definida por seu hori-'
de sociedade — tem um começo preciso e um fim definido: ele tem zonte, que não se alcança, porque o horizonte não é uma linha e não
portanto limites espaciais, temporais e numéricos. No jogo infinito tem localização. O horizonte desloca-se de acordo com nosso ponto
ou o jogo de cultura, não há limites de tempo e de espaço, já que o de vista. À guerra é obviamente um fenômeno de sociedade: a pole-
tempo e o espaço são criados no próprio jogo e não são por isso mologia é um ramo da economia das sociedades. A estratégia dos
restrições aplicadas de fora para dentro. jogadores do infinito, voltada para o horizonte, devolve ao jogo os
A temporalidade dos jogos infinitos é aquela do “nascimento limites e as fronteiras, com poiesis c imaginação. Esse jogador do
eterno”. O jogador do infinito não gasta o tempo de um mundo: ele infinito é precisamente o poeta, o sonhador dotado de imaginacão,
o engendra como uma melodia. O próximo capítulo tematizará pre- que, sugeriu Platão, deveria ser expulso da República, da socieda-

48 49
de, por ser capaz de enfraquecer os guardiães, os soldados e de sub-
verter o fundamento polemológico da sociedade.
O que acabamos de dizer não pretende ser uma filosofia da
cultura, e o conceito de cultura utilizado nestas páginas permanece
bem rudimentar. A sugestão é antes que, além da finitude dos jogos
de sociedade, existe a racionalidade estratégica do jogador do infi-
nito. As estratégias do jogador do infinito não podem ser recupera-
das pelo modelo econômico, que reduz o ser-em-comunidade a um
ser-juntos dentro na sociedade. É assim que o jogador do infinito NOTAS
não é de fato um calculador nem um combatente pela vitória. O
jogador do infinito é muito mais como um dançarino. Deveria ha-
ver então uma concepção coreográfica da estratégia: o duelo dos
combatentes tornar-se-ia então o duo de dançarinos. Poderíamos ' Hesíodo, Teogonia, IV, pp. 224-29 (tradução inglesa de N. O. Brown,
Theogony. Indianapolis, Bobbs-Merrill, 1953.
evocar de novo o Antíloco razoável, herói de Ilíada, o estrategista
dotado de mêtis, essa inteligência-prudência (phronêsis), essa inte- ? Homero, Ilíada, Canto IV, pp. 440-45.
ligência imaginativa, que não é nem violenta nem calculadora, essa * Ibid., Canto IV, p. 440 e V, p. SI8.
inteligência conjectural que “vê corretamente” e faz de Antíloco *Ibid., Canto XI, pp. 3-5. Veja também Canto XI, p.73 e Canto XVIII,
p. 535.
alguém que joga com estilo, que seduz com bom gosto. Aristóteles,
como Homero, e contra Platão, muito apreciava o estrategista com * Essa é a posição de F. Jacques, L'espace logique de ['interlocution, Paris,
Presses Universitaires de France, 1985, 578 ss. Jacques analisa profundamente
sua inteligência fina e ágil, cujo protótipo não é o filófoso, mas a o problema em “Le consensus et le conflit: une réévaluation”. In H. Parret
parteira que, graças à precisão de uma boa vista (eustochia), efetua (ed.), La communauté en paroles; Ruptures, communication, consensus.
as incisões mais vitais. É segundo esse mesmo diapasão que devem Brussels, Margada, 1991, pp. 97-124.
ser entendidos os estratagemas do dançarino, que, como Antíloco, * Esse é o caso de J. Habermas e K. O. Apel (ver capítulo VII, a seguir).
mestre das bigas, ou como a parteira, dá conta de uma racionalidade ? Veja também o capítulo 7.
cujo fundamento é um ser-em-comunidade que não é nem econô- i a
Para uma excelente apresentação das posições em análise conversacional,
mico nem polemológico. Kant, na divisão das belas artes, que apre- ver Catherine Kerbrat-Orecchioni, Les interactions verbales. Paris, A. Colin,
senta em sua Crítica do juízo, aprecia a dança como arte sincrética, 1990.
que combina o jogo das sensações musicais com o jogo das figu- * Veja G. Leech, Principles of pragmatics. London, Longman, 1983. A.
ras.“* Ele menciona explicitamente esse “duplo jogo” (Spiel) sem Jucker usa a teoria de Leech de maneira exemplar em News Interviews: À
investigar mais a fundo sua natureza. No entanto, podemos enten- Pragmalinguistic Analysis (Amsterdam: J. Benjamins, 1986).
9 S. Levinson, Pragmatics. Cambridge, Cambridge University Press, 1983.
der melhor o que está em jogo nessa racionalidade estratégica, refe-
rindo-nos às estratégias desse jogo da dança, onde o ser-em-comu- IV, nota 9, Jucker.
nidade é profundamente sinestésico e motivado por um prazer que 21. Kant, Sobre a paz perpétua, 1795, segunda seção.
cresce até se tornar um afeto. Pensar a comunidade e suas razões, !3 Idem, Crítica da razão prática, 1788, parágrafo 7.
suas temporalidades e suas paixões, nesse ambiente coreográfico, “ Some reasons of reason, John Locke Lectures (1979), também chamadas
eis a tarefa que vem pela frente. de Immanuel Kant Lectures, 1977. Veja o comentário de R. E. Grandy ec R.
Warner, P. Grice, a view of his work, in philosophical grounds of rationality.
Oxford, Clarendon Press, 1986.

50 51
!5 “Faça a sua contribuição conversacional como ela é exigida, no momen- 3 Sun Tzu, The art of war. Traduzido com uma introdução por Samuel B.
to em que ela ocorre, de acordo com o propósito aceito ou com a direção da Griffith, Oxford, Clarendon Press, 1963.
troca-comunicativa, na qual você está engajado.” 32 Ibid., seção HI.
!º A, Kasher, “Conversational maxims and rationality”. In Language in fo-
» Ibid., seção III.
cus, foundations, methods, and systems. Dordrecht, Reidel, 1976, pp. 117-
3 C, von Clausewitz, On war. Editado e traduzido por Michael Howard e
216.
Peter Paret, Princeton University Press, 1984, v. I, capítulo |, pp. 24-6.
” D. Gauthier, “Maximization constrained, the rationality of cooperation”.
3 Ver Raymond Aron, Penser la guerre; Clausewitz. Paris, Gallimard, 1976,
In: R. Campell e L. Sowden (eds.), Paradoxes of rationality and cooperation.
The University of British Columbia Press, 1985.
p. 178.

!º John Gumperz, Discourse strategies. Cambridge, Cambridge University % Ibid., p. 180.


Press, 1982. ” Sobre essa questão, veja nota XXXI de R. Aron, ibid., p. 436.
'º Ver, entre outros, “Stratégies interactives et interprétatives dans le 3 Ver A. Philonenko, “Kant et le problême de la paix”. Essais sur la
discours”. Cahiers de linguistique française, Université de Genêve, 1986. Ver philosophie de la guerre. Paris, Vrin, 1976, pp. 4-42. Ver também o livro
também Stratégies discursives (Actes du Colloque du Centre de Recherches muito interessante de W. G. Gallie, Philosophers of peace and war; Kant,
Linguistiques et Sémiologiques de Lyon, 1977), Presses Universitaires de Clausewitz, Marx, Engels e Tolstoi. Cambridge, Cambridge University Press,
Lyon, 1978, onde a noção de “estratégia” não aparece de forma unívoca € 1978.
coerente. ” Veja P. Swingle, The structure of conflict. New York/London, Academic
2º A. Auchlin e J. Moescheler, “Stratégies interactives, interactionnelles et Press. E A. Rapoport, Fighis, games, and debates. Ann Arbor, University of
interprétatives”. Bulletin de la Section de Linguistique de la Faculté de Lettres Michigan Press, 1960 e Strategy and consciousness. New York/London, Harper
de Lausanne, 1987, pp. 197-257. Veja também A. Auchlin, “Dialogue et and Row, 1964.
stratégies, propositions pour une analyse dynamique de la conversation”. In: “ A. Rapoport, op. cit., 1964, 85ff.
J. Cosnier e C. Kerbrat-Orrechioni (eds.), Echanges sur la conversation. Pa- The strategy of conflict.
“! Para o nível referido aqui veja Th. C. Schelling,
ris, Editions du CNRS, 1990, pp. 33-43.
Cambridge, Harvard University Press, 1960.
“ Veja H. Parret, “Regularities, rules and strategies”. Journal of Pragmatics, New York, Basic Books,
“2 Ver R. Axelrod, The evolution of cooperation.
(8), pp. 569-92, 1984, trad. portuguesa em... Edunicamp.
1984. |
2 Em J. Moescheler, Argumentation et conversation, eléments pour une
“ E. Goffman, Strategic interactions. Philadelphia, University of Pennsylvania
analyse pragmatique du discours. Paris, Hatier, 1985.
Press, 1969, pp. 85-145.
2 Ver nota 18, ibid., p. 197.
“ James P. Carse, Finite and infinite games. New York, The Free Press, 1986,
2 A, J. Greimas e J. Courtés, Semiotics and language; an analytical p. 3.
dictionary, traduzido para o inglês por L. Crist e D. Patte, Bloomington, In-
“3 Ibid., p. 23.
diana University Press, 1979, p. 312.
“ Ibid., pp. 25-6.
2 A. J. Greimas, “A propos du Jeu”. Actes sémiotiques, (13), pp. 29-34,
1980. “ Ibid., p. 41.
% Ibid., pp. 29-34. 8 |. Kant, Crítica do juízo. Tradução para o inglês de Werner S. Pluhar,
Critique of judgment, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1987, pa-
” Veja E. Landowski, “Pour une sémiotique de la stratégie, figures et
rágrafo 52.
relations”. Actes sémiotiques, (25), pp. 5-17, 1983.
* Veja nota 21, Ibid., pp. 583-4.
2 Veja nota 26, Ibid., p. 13.
*º Niccolo Machiavelli, The art of war. traduzido por E. Farneworth, India-
napolis, Bobbs-Merrill, 1965.
H

O TEMPO, ESSE GRANDE ESCULTOR

O tempo, esse grande escultor é o título de uma coleção de


ensaios de Marguerite Yourcenar,! na qual ela combina sua paixão
pela arte com uma reflexão sensível e moral sobre o tempo. Esse
título coloca logo de início o problema da relação do tempo com o
espaço, já que a escultura é, juntamente com a arquitetura, uma arte
do espaço. Mas não é só isso. Yourcenar está se referindo essencial-
mente à função estética, ou melhor, ao funcionamento estético do
tempo.

No dia em que é acabada a estátua, começa em certo sen-


tido sua vida. A primeira etapa é alcançada, quando,
pelos cuidados do escultor, ela é transformada de um
bloco em uma forma humana; uma segunda etapa, que
se alterna ao longo dos séculos, de adoração, admira-
ção, amor, desprezo ou indiferença, por sucessivos graus
de erosão e de usura, a trará de volta pedacinho por pe-
dacinho ao estado de matéria informe do qual seu es-
cultor a havia tirado.?

Devemos então descobrir o lugar estético do tempo. Nenhum


filosofisma é mais difícil de capturar que o tempo. Observa-se com
frequência desde o Timeu que nenhuma filosofia do tempo foi capaz
de escapar da aporia. Seria tentador, a fim de contornar o gesto redu-

55
tor da metafísica ocidental, recorrer a outras tradições culturais e a
to a paixão pelo tempo, finalizam este capítulo sobre o funciona-
outros tipos de conceptualizações — o islã, o zen budismo — nos
mento estético do Tempo, esse grande escultor.
quais o instante e a duração, a permanência e o fluir, o agora e a
eternidade adquirem valores simbólicos muito diferentes dos nos-
sos.º No entanto, para evitar o risco de sermos acusados de exotismo
1. Dizer o tempo
intelectual, será melhor nos restringirmos a nossa própria tradição
intelectual e filosófica, não tanto aos grandes textos sobre tempo
O tempo físico e o tempo lógico-discursivo
que já pertencem ao establishment da filosofia: a Física de Aristó-
teles, a Crítica da razão pura de Kant, os textos de Husserl sobre a
O Demiurgo cria o tempo e muito depois do planeta, do sol e
consciência do tempo interno, o monumental O ser e o tempo de
dos quatro elementos. Está escrito no Timeu que tempo, espaço e
Heidegger, nem tampouco à Filosofia da duração de Bergson. Aqui-
número estão intrinsecamente ligados: o movimento no espaço é a
lo que elaboraremos são, ao contrário, algumas concepções margi-
medida do tempo e o universo é assim subordinado ao número. Aci-
nais que problematizam, dentro de nossa própria tradição, as con-
ma de tudo, o tempo nada mais faz do que imitar a eternidade ou, de
cepções paradigmáticas de tempo. Entendo, por exemplo, alguns
novo, O tempo é somente uma aparência, uma imagem móvel da eter-
escritos do pseudo- Aristóteles, como o Problematon sobre a músi-
nidade. Aristóteles, em sua Física, organiza sua concepção do tem-
ca ou escritos periféricos do Estagirita, como aqueles sobre a me-
po confrontando-a com a concepção de Platão. Ele separa o status
mória e a anamnésia. E a seguir consideraremos a maneira como
do tempo daquele da eternidade e propõe uma concepção totalmente
Schopenhauer “musicaliza” Kant em sua leitura da Crítica do juízo,
nova de número. É a partir de sua teoria original sobre a estrutura
e seu elogio da melodia. Depois disso, serão invocadas as investi-
hilemórfica que Aristóteles coloca o movimento não mais na alma,
gações de Carl Stumpf, cuja psicologia da fusão sonora foi de pri-
mas no corpo. Além disso, diz-se que o tempo segue ou acompanha
mordial importância para o Husserl das Investigações lógicas. Fi-
(akolouthein) o movimento. O texto da Física é muito sutil sobre
nalmente, nossas reflexões se voltarão para Bachelard enquanto crí-
esse ponto: “O tempo não é o movimento, mas só é movimento à
tico de Bergson e defensor da análise rítmica do tempo. Conse-
medida que admite a enumeração”:* ele acompanha o movimento e
quentemente, tudo neste capítulo será música, melodia e ritmo. Três
essa distinção só se torna efetivamente possível graças à concep-
partes e um epílogo compõem este capítulo: “Dizer o tempo, Sentir
ção aristotélica de número (arithmos), que é muito diferente da pla-
o tempo, Lembrar o tempo e, como epílogo, Sofrer o tempo”.
tônica. No entanto, Aristóteles reconhece que, mesmo do ponto de
O desvio entre a concepção lógico-discursiva do tempo e a vista físico, uma contradição ameaça surgir quando ele tem de de-
concepção física do tempo em Aristóteles deu à luz aporias que
finir o instante:
continuam a caracterizar as teorias contemporâneas do tempo. Evo-
caremos um grande número dessas aporias em “Dizer o tempo”. A
Da mesma forma que o movimento é uma sucessão per-
psicologia clássica da sensação do tempo será enriquecida combi-
pétua, também o é o tempo. Mas todo tempo simultâneo
nando a melodização do tempo em Schopenhauer com a problemá-
é idêntico a si mesmo, pois o “agora” enquanto sujeito é
tica da experiência fusional em “Sentir o tempo”. Apresentar-se-á
uma identidade, mas aceita diferentes atributos. O 'ago-
então por si mesma, em “Lembrar o tempo”, a oportunidade de reto- ra'mede o tempo, na medida em que o tempo envolve 'an-
mar o texto de Aristóteles sobre a memória e a reminiscência para tese “depois”. O “agora"num sentido é o mesmo, num outro
demonstrar que o tempo rítmico-melódico é de fato anamnésico e não é o mesmo. À medida que ele está em sucessão, é di-
fundamentalmente estético. Meditações sobre a nostalgia, enquan-
ferente, mas seu substratum é uma identidadeé

56 57
Essa contradição entre a essência e o sujeito do tempo deve-se sições que não implicam um sujeito real. Esse tipo de discurso ex-
precisamente ao fato de que a física do tempo parece estar em busca prime o ato mesmo de subjetivação do sujeito. Isso significa que
da lógica do tempo e suas aporias. Com efeito, como pode alguém lidamos, num discurso sobre o tempo, com a fraqueza do sujeito
“pensar” sobre o tempo senão segundo a estrutura sujeito/predicado, lógico. O sujeito é, realmente, um quasi-sujeito, um sujeito dimi-
e o que é o tempo a ser compreendido como um hypokeimenon? Isso nuído, quase capaz de fornecer ao verbo um ponto de apoio, mas
não é negligenciar, como diz Cassirer em algum lugar, que o logos muito fraco para ser o suporte de uma predicação.” O discurso
para os gregos evoca sempre e naturalmente o legein: o lógico e o temporalizado consagra a intrusão da prática de sofismar no pró-
discursivo não são verdadeiramente distintos.” A esfera da predi- prio legein. Dizer que o instante contém uma “sofística natural”, é
cação, do dizer, do logos, é, na verdade, o lugar natural da reflexão possível, já que as proposições sobre o instante não se relacionam
sobre o instante e o tempo. O instante e o tempo que o define não com um substrato estável.* As proposições sobre o instante, que
existem fora do “pensamento do tempo” no ato de predicação. O comportam o agora em posição de sujeito, são verdadeiros sofis-
estatuto paradoxal do instante é uma consequência da própria natu- mas: essas proposições não têm qualquer estabilidade semântica fora
reza da enunciação que expressa tempo. Na verdade, o sujeito da da situação determinada pelo logos discursivo.
enunciação é constituído pela predicação. Conseqiientemente a
estrutura sintática de uma enunciação marcada pela temporalidade
é muito particular. A enunciação “o agora é” (uma das traduções A boa aritmética do tempo
possíveis da célebre fórmula ho men pote on nun esti) exprime a
constituição, como sujeito, do sujeito da predicação, já que essa Há outro aspecto também muito importante da concepção
proposição estabelece aquilo que o sujeito deve ser para ser sujeito. aristotélica de tempo. É que “o agora mede o tempo na medida em
Isso diz respeito então a uma sintaxe bem particular: o predicado que tempo envolve o antes e o depois (no movimento) (to proteron
gramatical é de fato o sujeito lógico. Nada há de psicológico nesse kai husteron to en kinêsei)”.º O instante como sujeito é o anterior-
fenômeno, visto que ele obviamente nada tem a ver com a subjeti- posterior do movimento: ele é, em conseqiiência, sempre o mesmo,
vidade do sujeito, mas somente com sua subjetividade. Portanto, o ainda que seja em sua essência sempre diferente. A estrutura anteri-
sujeito está já constituído por um tipo de pré-predicação interna or-posterior não é em si mesma movimento, mas está em movimento.
ao próprio sujeito. De fato, dois fenômenos gramaticais apontam To proteron kai husteron (sem artigo diante de husteron) designa
para essa interpretação. Em primeiro lugar, a frase “É meio-dia (ago- um fenômeno singular e único, ou uma relação de dupla direciona-
ra)” (em grego: “Agora é meio-dia”) à primeira vista é constituída lidade onde as duas direções são inseparáveis. Aristóteles explica
apenas por um sujeito (onoma) e por um predicado (rhêma) conec- penosamente o status dessa relação com o movimento e portanto
tados por uma cópula. O termo “agora” não carrega algum sentido com o espaço. À atualização da estrutura anterior-posterior, no mo-
se nos mantivermos na concepção clássica de proposição. Os dois vimento, é o que, num dado instante, permite ao movimento ser
elementos da proposição são intercambiáveis: ambos podem ocu- movimento, sem que essa estrutura seja ela mesma movimento. Rapi-
par qualquer um dos dois lugares. É como se o enunciado contives- damente percebemos que é infundada a acusação de que Aristóteles
se somente predicados. Além disso, o verbo ser tem uma função reduz o tempo ao movimento, espacializando-o. A cada momento,
muito especial. Ele funciona como cópula, mas pode ter facilmente o movimento põe em relação um antes e um depois, mas a estrutura
um valor existencial: “Agora é meio-dia” pode significar “Agora é enquanto tal não é de forma alguma um movimento. É verdade que
meio-dia” (cópula), tanto quanto “Meio-dia existe agora” (valor Aristóteles não é claro quanto ao status ontológico dessa estrutura,
existencial). O que se deve concluir dessa especificidade sintática, porque ele não responde à questão se o instante enquanto estrutura
evidentemente, é que o discurso sobre o tempo se realiza em propo- anterior-posterior é pontual, durativo ou extensível. Mas essa falta

58 59
de explicação, afinal de contas, em nada afeta o status dessa rela- quer pela produção do discreto, quer pela dialética do discreto e do
ção, que deve ser vista como uma passagem do anterior para o pos- contínuo. É como se arithmos, enquanto articulação, fosse um e ao
terior, como o colocar em contato o antes e o depois. mesmo tempo muitos. A palavra articulação remete ao domínio da
Deve-se lembrar que essa estrutura anterior-posterior tem o lingiúística, e deveríamos lembrar, a respeito, que o próprio Saussure,
papel de sujeito da proposição que predica o tempo. A predicação em muitas passagens do Cours de linguistique générale, e especial-
subjuga essa relação anterior-posterior, porque é o predicado que mente nas Sources manuscrites, define a língua como o “domínio
fornece a própria relação mediante seu conteúdo apenas. O que esse das articulações”.!º Arithmos e logos se interdefinem, já que arithmos
predicado recebe é o que lhe permite ser depois de algo e antes de é estruturado logicamente da mesma forma que logos é estruturado
algo. Consegiientemente, estamos longe da proposição clássica onde aritmeticamente: a articulação é, nesse sentido, a intersecção dessa
o sujeito permanece estável, recebendo predicados variáveis; aqui, estruturação lógica e aritmética. O sentido do discurso, escreve
é o predicado que dá à estrutura anterior-posterior o peso de que cla Aristóteles em De interpretatione, implica que os sentidos parciais
precisa para ser sujeito. das palavras e das frases permaneçam distintos ainda que o sentido
Toda essa argumentação pressupõe evidentemente uma certa global seja percebido como um contínuo. O tempo é na verdade
concepção de arithmein. O tempo é uma “espécie de número”, mas lógico e aritmético, o que quer dizer: discursivo e articulado. Como
“número” é entendido de duas maneiras: há o número como nume- arithmos do movimento, o tempo discursivo é estruturado como um
rado e numerável e o número como meio para numerar. O tempo é o antes e um depois, mas a relação mesma entre o antes e o depois é
numerado e não meio para numerar (“o tempo é obviamente a coisa um e dois. Essa dialética do um e do dois cria uma tensão do antes
contada e não aquilo com que contamos: esses são dois tipos dife- e do depois. O tempo é uma pulsão de junção e divisão, e “dize-
rentes de coisas”).'º É sem dúvida neste ponto que Aristóteles mais mos” o tempo como uma atmosfera que, por meio do presente, ex-
difere de Platão, para quem essa distinção não tinha pertinência pulsa de uma vez o passado e o futuro.
alguma. Há em alemão um par de conceitos que exprime de forma A concepção aristotélica do tempo está longe de ser monolítica,
exata essa distinção: Anzahl, de um lado, denotando o ato de contar mesmo que seja extremamente coerente. Há, além da abordagem
e de enumerar sem algum foco sobre aquilo com que contamos (isto física do tempo, um outro componente que enriquece de maneira
é, os números), e Zahl, de outro lado, denotando aquilo com que essencial a concepção de tempo no Estagirita: a aritmética do tem-
contamos, isto é, o número.!! O ato de contar é a reprodução dessa po, embora seja bem compreendida (em termos de articulação), se
relação anterior-posterior, que forma o semantismo do instante e do acopla naturalmente à lógica discursiva do tempo. Um terceiro
agora. Deve-se insistir neste ponto: para Aristóteles, a relação ante- componente deve ser acrescentado: a abordagem psicológica do
rior-posterior não é um número senão um dispositivo, não definível tempo. Mas antes de avançar nessa direção, um intermezzo sobre as
numericamente, mas numericamente exprimível. Há uma profusão aporias das teorias do tempo em lingiística contemporânea pode
de textos de Aristóteles que são explícitos sobre o que dissemos aci- esclarecer certos pontos.
ma, ainda que muitos comentadores sejam incapazes de transmitir
esse ponto forte da teoria aristotélica do tempo.!? No entanto, encon-
tramos em Aristóteles muitas definições em que arithmos significa Intermezzo lingiiístico
um dispositivo: a harmonia (estrutura ordenada) ou o ritmo, em
Problematon 19,8 e ainda arranjo ou articulação em De anima. A Às lingiísticas contemporâneas do tempo reproduzem, de uma
passagem seguinte é particularmente interessante: “O número é per- forma ou de outra, as aporias da teoria aristotélica do tempo lógico-
cebido pela negação (apophasis) do contínuo”,!* onde Aristóteles discursivo. Essas aporias só surgem tendo por base uma hipóstase
dá a entender de que modo o arranjo ou a articulação é responsável, do tempo físico, que serve de norma e de ponto de partida para todas

60 61
as reflexões aristotélicas sobre a expressão do tempo na língua. tão: “Os marcadores temporais se referem a alguma coisa?”"º é por-
Podemos afirmar que ainda hoje as teorias lingiísticas do tempo que ele supõe, seguindo a visão aristotélica, que esses marcadores
continuam a outorgar certos privilégios ao tempo objetivo (natural, não têm referente. David Kaplan, em sua lógica dos demonstrati-
cósmico, ou do calendário), não no sentido de que o tempo lógico- vos, vê-se constantemente confrontado com esse problema da “de-
discursivo “imita” o tempo físico, mas, ao contrário, de que o tempo notação vazia” das expressões demonstrativas, mais particularmente
lógico-discursivo só pode ser analisado cientificamente como um as temporais. Ele inventa, como sabemos, soluções bem engenho-
desvio, controlado mediante uma relação com o tempo físico. Veri- sas para esse problema (as expressões demonstrativas não denotam
fica-se ser extremamente difícil, se não virtualmente impossível, do- um referente, mas um “caráter”). O lingiiista Kleiber, por exemplo,
mesticar as temporalidades nas teorias da linguagem. Onde o tempo insiste na irredutibilidade dos símbolos indiciais.?” Essa irredu-
e, de forma mais geral, a dêixis são submetidos à investigação cien- tibilidade é aceita como um fator de heterogeneização, o que atesta
tífica dois procedimentos são adotados: a dicotomização e a hete- uma atitude pragmática modesta, em contraste com a ambição dos
rogeneização. Dois exemplos ilustram esse duplo procedimento. A dicotomizadores e cognitivistas, como Guillaume. Este intermezzo
teoria da arquitetônica do tempo elaborada por Gustave Guillaume! linguístico meramente aponta como essas duas soluções propostas
é um excelente exemplo do tratamento dicotomizante do tempo. (dominar o tempo pela espacialização dentro de uma perspectiva
Guillaume distingue dois tipos de tempo: o tempo representado dicotomizante, de um lado, e dominar o tempo aceitando-o como
(“fato permanente da língua”), e o tempo expresso (“fato momentã- “buraco negro” ou fator de heterogeneização, de outro) aceitam as
neo do discurso”). aporias do tempo que Aristóteles já tinha tematizado em seus escri-
Além disso, diz-se que o tempo só é representável por meios tos sobre o dizer do tempo. O tempo lógico-discursivo, não sendo
espaciais e também que essa representação do tempo, liberada da tempo físico, cria particularidades sintáticas e semânticas das quais
condição do momento por sua permanência, pré-existe à expressão o Estagirita estava bem consciente.
do tempo.” Guillaume mostra-se dessa forma precursor do cogniti-
vismo atual, que aceitaria de bom grado a idéia guillaumiana de
que o tempo discursivo é um fato sucessivo de expressão e só é o 2. Sentir o tempo
resultado contingente do ato de representação. E o lirismo de
Guillaume dá a impressão de um cognitivismo verdadeiro quando
ele escreve: “A tarefa do lingiista é oferecer para si próprio, por meio Os cinco sentidos e o senso comum
do pensamento, o espetáculo interior de sua própria atividade”.'*
O espírito humano é então essencialmente representacional, desli- Contudo, o panorama aristotélico é ainda mais complexo. As
gado do discurso. O tempo lógico-discursivo é meramente um aporias do tempo repousam sobre um terceiro pilar, ao lado da física
epifenômeno, a ser prontamente reduzido por espacialização. O dis- e da lógica: a psicologia. O tema do tempo surge de um ângulo par-
curso é o momentânco, que não tem qualquer poder constitutivo ticular em De anima e seu compêndio Sobre a sensação e o sensível.
com respeito às imagens mentais. Nestes textos, Aristóteles reivindica a existência de uma “sensação
O outro procedimento consiste em aceitar o tempo como um comum” (aisthêsis koinê). Aisthêsis koinê prefigura a sinestesia, ca-
fator de heterogeneização entre outros fatores, como a enunciação, tegoria essencial para fundamentar a pragmática. Aristóteles discute
a subjetivização, como as rupturas enunciativas (a elipse, o silên- longamente a possibilidade de um sexto sentido para rejeitá-la. Os
cio, a metaforização). Os semanticistas, interessados na denotação, sentidos especiais podem formar um único sentido no momento em
considerarão as expressões temporais como “buracos negros” no que convergem sobre um mesmo objeto, isto é, um conglomerado
universo do discurso. De fato, se o semanticista se coloca a ques- de muitos sensíveis, tal como “a bílis percebida como amarga e

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amarela”.?! Diz-se que a sensação comum tem muitas funções. A numa experiência verdadeiramente sinestésica. É desse modo que
primeira é a convergência de várias sensações de origens sensíveis o tempo psicológico adquire relevância na paisagem aristotélica.?
heterogêneas. A segunda é tornar a sensação consciente: quando Passando do panorama aristotélico à catedral kantiana com seus
sentimos um mesmo objeto como um conglomerado de vários sen- “abismos, pontes e passagens”, parece interessante relacionar o tem-
síveis, é a sensação comum que faz o sujeito sentir que ele percebe po psicológico de Aristóteles com o sentido interno de Kant. Admi-
ou bem pela visão ou bem por um outro sentido. No entanto, é a te-se geralmente que a noção de sentido interno na crítica da razão
terceira função que mais interessa no que concerne ao tempo: a sen- pura é altamente complexa e mesmo de uma obscuridade insondá-
sação comum julga (krinein) os sensíveis e unifica o conhecimento. vel.” Discute-se geralmente o sentido interno, confrontando-o com
Ele funciona então como um princípio único que afirma (legein) as o tempo-forma da Estética transcendental. O tempo da intuição que
diferenças entre os sensíveis: “E, consequentemente, quando enun- temos de nós mesmos e de nossos estados internos não pode ser
ciamos, também o pensamos (noein) e percebemos (aisthanein)”.? determinado de fora para dentro: o sentido interno é o tempo do
É aqui que o tempo pode intervir como a condição sine qua non sujeito.?* Esse tempo do sujeito é o da auto-afeição na pura suces-
desse juízo que Aristóteles define como a tríade enunciar/pensar/ são, sem qualquer possibilidade de espacialização.”” Porque o tempo
perceber. é um “sentido”, poderíamos entender que é justificável ligar a sen-
Aristóteles coloca-se, em De anima, a seguinte questão sem sação comum aristotélica ao sentido interno kantiano, o que é obvia-
respondê-la: pode esse princípio judicativo ser dividido em sua mente perigoso, já que a sensação comum e seu tempo, para Aristó-
essência (já que percebemos sensíveis heterogêneos, como um con- teles, são completamente dependentes da sensação dos sensíveis ex-
glomerado do doce, do branco e do agudo) e continuar funcionan- ternos, enquanto o sentido interno de Kant é independente de toda
do num tempo que é imperceptível, sem que tenhamos a percepção exterioridade. Uma estratégia interpretativa admissível poderia con-
do tempo?? A resposta é dada em Sobre a sensação e o sensível, o sistir em ver o sentido interno como uma noção de tempo que nos
primeiro ensaio dos Parva naturalia. Aristóteles distingue dois ca- permite conectar a sensação comum que gera o tempo psicológico
sos. Dois sensíveis, objeto de um mesmo sentido, se misturam: esse em Aristóteles ao sensus communis na Crítica do juízo. Esse sensus
é o fenômeno da mistura dos corpos (miksis soomatoon) e os exem- communis ou senso comum a todos funciona como um a priori do
plos dados são o vinho misturado, o mel misturado e também as cores juízo estético e como fundamento da comunicabilidade e da inter-
colocadas lado a lado. Nesse caso, o tempo permanece imperceptí- subjetividade. Por que então não pensar o sentido interno, não como
vel (chronos anaisthêton).* No entanto, quando dois objetos são desviante e problemático com respeito ao tempo-forma, mas ao invés
objeto de dois sentidos diferentes (por exemplo, o branco e o agudo), disso, como se completando no sensus communis, categoria central
o tempo é percebido, e os dois sensíveis encontram-se em acordo e produtiva da Terceira crítica? A sensação comum aristotélica
(sumphonia).? Aristóteles pensa que, nesse caso, é impossível per- prefiguraria então a sinestesia temporalizante. Como conceber a
ceber as duas qualidades ao mesmo tempo: é impossível que alguém sinestesia de outra forma que não pressupondo a subjetividade? É
tenha aí uma unidade real nascida de dois sensíveis, objeto de dois claro que essa extensão é pós-aristotélica. Mesmo que Kant não ela-
sentidos diferentes, e é aí que o tempo psicológico entra em jogo. bore explicitamente a noção de tempo na sua Terceira crítica, po-
Sentimos portanto as entidades misturadas, simultaneamente, por- deríamos ainda assim invocar um sentimento do tempo que seria
que as percebemos como uma sensação única em ato, enquanto sen- responsável por engendrar as grandes paixões estéticas, como o
timos O tempo, no acordo (sumphonia) de dois sensíveis que são entusiasmo, a gratidão e a nostalgia. Pode-se pois tirar grande pro-
objeto de sentidos diferentes. Numa terminologia já pós-aristoté- veito da comparação entre Aristóteles e Kant: o tempo da sensação
lica, poder-se-ia dizer que o tempo é percebido pela sensação comum comum para Aristóteles “se afasta” do tempo físico, assim como o

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tempo como sentido interno “se afasta” do tempo-forma. Conquan- têm relação com a emoção musical e o seu afeto subjacente, elas
to seja verdade que o senso comum em Aristóteles é uma questão de são ainda assim a condição sine qua non da harmonia. Schopenhauer
sensação e que o sensus communis de Kant é uma questão de senti- radicaliza a esquematização, distinguindo na música dois aspectos
mento, a sinestesia poderia acabar funcionando como o elo entre o opostos. Um primeiro aspecto atua por intermédio de conceitos
tempo estésico (Aristóteles) e/ou o tempo estético (Kant). abstratos, pondo em jogo nosso entendimento discursivo; o outro
age sobre nossos sentidos e estimula sem mediação nossa faculda-
de de intuição. Temos então aí oposição entre o abstrato e o intui-
O tempo musical tivo, O distinto e o sentido, o entendimento e a vida, e, enfim, entre
a harmonia e a melodia. A harmonia pertence de fato à esfera do
Sentir o tempo se cristaliza na experiência do tempo musical. espaço: ela é determinada no espaço pela simetria. Quando ela está
A música, na hierarquia das belas artes, é a arte do tempo par presente na música enquanto arte do tempo, isso se dará sob a forma
excellence, diametralmente oposta à arquitetura, arte do espaço, ou, do ritmo: o ritmo tem na música o papel que a simetria tem na ar-
como diria Goethe, “música congelada”. Os românticos afirmaram quitetura e ambos são responsáveis pela harmonia. A melodia, por
com lirismo que a música é como o modelo da vida humana e a outro lado, não mantém qualquer relação com o calculável, o nu-
memória cultural de nossas coletividades. O Ursatz musical, concep- mérico, o espacial. E é, na verdade, na melodia, elemento musical
tualizado por Schenker, seria essa disposição, esse arranjo, esse par excellence, que o “mundo como Vontade” manifesta-se ideal-
arithmos que é o puro Devir vital. Schopenhauer mostrou como a mente, isto é, sem cair na representação. A concepção da música em
música e sua temporalidade são a expressão mais pura da Vontade, Schopenhauer é portanto um verdadeiro elogio da melodia. Ele faz
em sua tensão constitutiva com a Representação. O mundo como um esforço considerável para pensar a música em termos de melo-
Vontade se opõe ao mundo como Representação, da mesma forma dia sem harmonia: a melodia está voltada para o ético, nos diz
que a subjetivação à objetivação, e o tempo ao espaço.*! E como Schopenhauer, enquanto a harmonia está voltada para o físico. Fi-
leitor da Terceira crítica de Kant, Schopenhauer exalta o afeto, in- gurativamente, a melodia des-espacializa a música, introduzindo a
dicando que a música oferece a tradução mais íntima do ser interno, temporalidade pura, como o canto em voz aguda que progride li-
precisamente porque ela permanece alheia ao mundo do espaço. À vremente, exprimindo um “único pensamento" em toda a extensão
música sozinha manifesta a intuição do Ter Vontade (e portanto do de uma seqiiência musical. Defrontamo-nos aqui com o problema
Desejar) em sua plenitude. E, visto que nossa identidade fundamen- das inter-relações e interdependências dos três elementos essenci-
tal com o mundo se produz no tempo, é a música que será sua “có- ais da música: harmonia, melodia e ritmo (deixando de lado o quar-
pia”. A essência da música consiste portanto em “copiar” o mundo, to elemento, o tempo — que para evitar complicações podemos con-
mas sem “representá-lo”, o que é um momento essencial do juízo siderar como uma sobredeterminação ou “modificação” do ritmo).
estético segundo Kant. O lugar natural da música não é o arithmos É de grande interesse o status da melodia em suas relações com a
espacial ou, para retomar a distinção aristotélica que discutimos em harmonia e o ritmo. Isso não deve ser visto como um interesse ana-
detalhe acima, não é o Número, mas um certo dispositivo ou arran- crônico, num período que promove exclusivamente a hipóstase do
jo não-representável, o puro tempo do Devir. ritmo: é o caso em psicanálise, na qual o ritmo parece exprimir di-
Schopenhauer cita com satisfação a Antropologia de um pon- retamente as pulsões do inconsciente, e na música contemporânea,
to de vista pragmático do último Kant, onde está escrito que a ma- incluindo o jazz. Nosso ponto de vista é que a defesa da melodia
temática é estranha ao charme e à emoção que a música cria. Embo- não é necessariamente um ideal romântico e que seu elogio não ex-
ra seja verdade que Kant considera que as relações numéricas não prime necessariamente uma ambição obsoleta.

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A precariedade das melodias dominante e à cadência perfeita após uma suspensão. Schopenhauer
impõe esse quadro rígido, embora ele aceite atenuações às regras.
Schopenhauer pensa que não basta considerar a música a par- Mas ainda assim continua estranho que a metafísica schopenhau-
tir do seu lado “metafísico”, isto é, a partir da maneira como se diz riana, que se baseia totalmente na hipóstase da vontade e do desejo,
que a música é Devir, Vida e Mundo como Vontade. Há evidente- se traduza nessa “física” particularmente restritiva!
mente também a manifestação material da música: a melodia não é A teoria da melodia de Schopenhauer foi criticada pela maior
de fato nunca ideal, mas está sempre encarnada e presa a suas rela- parte dos musicólogos.* No entanto, sua importância não consiste
ções com a harmonia e o ritmo. A Vontade fundamental cai necessa- tanto em sua aplicabilidade, mas no modo como concebe as inter-
riamente nessa dupla restrição de ordem espaço-calculatória. Do relações da melodia, da harmonia e do ritmo e, sobretudo, na suges-
ponto de vista de sua encarnação nos meios musicais “materiais”, tão da precariedade do status da melodia. Mesmo que a melodia
a melodia consiste numa alternância e reconciliação contínuas dos seja primordial do ponto de vista “metafísico”, vemos, do ponto de
elementos rítmico e harmônico. Schopenhauer explicita essa posi- vista “físico”, que ela corre o risco de ser quase automaticamente
ção musicológica: “A discórdia entre esses dois elementos funda- reduzida. De fato, toda a história da musicologia ilustra a extrema
mentais consiste em que as exigências de um deles não são as do dificuldade de salvaguardar a especificidade do caráter melódico
outro; e sua reconciliação consiste em que as exigências de ambos da música, já que a melodia é continuamente ameaçada de ser redu-
sejam satisfeitas de uma só vez e conjuntamente”.?? Trata-se de re- zida a um epifenômeno sem importância constitutiva. Essa tendên-
conciliar ritmo e harmonia, o primeiro sendo de ordem quantitati- cia redutora já é evidente nas primeiras filosofias da música.
va (já que ele concerne à duração) e o segundo sendo de ordem qua- Melos é a canção como melodia ou alternância de sons do mais
litativa (porque concerne às freqiiências agudas e graves dos sons), agudo para o mais grave e vice-versa. Implícita no semantismo de
mas ambos são comparáveis no tempo (a duração dos sons, de um melos está a idéia de que a série completa das notas combináveis é
lado, e a velocidade relativa de suas vibrações, de outro). A síntese governada pela lei natural. Essa lei natural é a harmonia. A harmo-
entre a harmonia e o ritmo é possível na melodia porque os dois nia, na concepção grega da música, é a lei natural da melodia. Essa
elementos em conflito têm um único e mesmo substrato, o tempo. tese fundamental está muito presente nos dois escritos mais impor-
Numa terminologia mais tecnicamente musicológica, deve-se tantes da musicologia grega, o Problematon 19 do pseudo-Aristó-
dizer que a discordância entre os dois elementos da melodia faz- teles intitulado Problemas concernentes à harmonia e Os elemen-
nos sentir uma certa perturbação, porque não há coincidência entre tos de harmonia do aristotélico Aristoxeno. Evidentemente, encon-
o acento rítmico e a harmonia fundamental: experimentamos a fra- tramos a teoria da melodia em tratados sobre a harmonia, o que
se melódica como incompleta. Se, por exemplo, a tônica é dó e a poderia à primeira vista parecer surpreendente, considerando que
sucessão harmônica somente encontra a tônica do final da primeira os instrumentos musicais gregos eram monocordes e a música, não-
medida em diante, não haverá satisfação enquanto o acento rítmico polifônica.
coincidir com a batida mais fraca. Se, logo após a segunda medida, O Problematon 19 é dependente da doutrina defendida na Fí-
o acento rítmico cair sobre o tempo próprio, mas a série de sons sica de Aristóteles. Redigido na forma de um questionário, o Proble-
chegar apenas à sétima, o efeito será novamente insatisfação. Só maton 19 afirma que é em verdade a melodia que provoca o prazer
haverá melodia e portanto satisfação no momento em que a suces- (êdu) e dá à música seu caráter moral (ethos). No entanto, essa dupla
são trouxer a tônica na batida forte. Podemos concluir que, para qualidade depende do acordo ou da consonância (sumphonia). De
Schopenhauer, a melodia não é uma “voz”, como o é para Bach, nem um lado, somente as “ações” ou “movimentos” e portanto as melo-
um “tema” ou um “motivo”, como o é para Wagner, mas uma frase dias são sintomáticas da moralidade, mas, por outro lado, a própria
cíclica fechada que parte da tônica para retornar após uma pausa à melodia é definida como uma espécie de harmonia sintagmatizada.

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Diz-se desde o início que a consonância melódica (metron tês das duas faculdades mencionadas, a percepção pelos sentidos (ou
meloodias) é “bela” quando as proporções dos intervalos são com- pela sensação comum) e a memória. Embora essa intuição de Aristo-
postas de números inteiros,** como é obviamente o caso da oitava. xeno seja marginal em seu tratado, ela ainda demonstra como a re-
O que provoca o prazer — e o pseudo-Aristóteles afirma que isso é dução da melodia à harmonia pode ser evitada através do retorno às
experimentado pela alegria dos recém-nascidos — é a ação ou movi- chamadas “faculdades psicológicas”, como a memória e a sensação
mento melódico, mas esse movimento deve ser “natural” (kinêsis comum.
kata phusin): o que é “natural” é o arranjo numérico. Paradoxal-
mente, Aristoxeno parece ser mais “psicólogo” que o pseudo-Aristó-
teles. Ele afirma, é claro, da mesma forma que o pseudo-Aristóteles, 3. Lembrar o tempo
que “a harmonia é a ciência geral que trata da melodia”.* As tarefas
da harmonia, de acordo com Aristoxeno, são múltlipas: o estudo da A fusão melódica
mudança da voz e sua posição (e, desse ponto de vista, as diferenças
entre a fala e o canto), a diferenciação entre a tensão e o relaxamento Já vimos que Aristóteles introduz, em suas reflexões sobre o
da voz, o debate sobre os intervalos (princípio de divisão e classifi- tempo psicológico, a distinção fundamental entre a mistura (miksis)
cação dos intervalos), a reconstrução das classes naturais das esca- e o acordo (sumphonia). Devemos distinguir dois tipos de conso-
las, a investigação sobre a relação entre o tom, posição estacionária nância ou acordo: aquele que permite a fusão melódica e aquele
da voz, e O intervalo, o estudo das afinidades entre as escalas e as que possibilita a junção harmônica. Esses dois fenômenos foram
“regiões” das vozes — mas, acima de tudo, a definição da melodia e estudados por Carl Stumpf, cuja psicologia experimental foi forte-
de sua estética. mente inspirada e influenciada pelo jovem Husserl” e especialmente
Parece ser óbvio para Aristoxeno que a melodia está em concor- pelas análises deste sobre a matéria. Com a Tonverschmelzung ou
dância com as leis da harmonia, não porque ela é constituída por “fusão dos sons” na experiência musical e em outras experiências,
notas e intervalos, mas antes porque é organizada segundo uma es- confrontamo-nos de novo com a antiga problemática psicológica
trutura definitiva e global, que é essencialmente de ordem matemá- da sensação comum aristotélica: a fusão dos sons leva a uma só e
tica. Aqui nós estamos bem distantes de Schopenhauer e seu elogio única sensação a partir de dois ou mais sensíveis, pertencentes ao
da melodia. Aristoxeno demostra em detalhe que os três sistemas mesmo domínio sensorial: a audição. Stumpf avança três hipóteses:
harmônicos (as harmonias diatônica, cromática e harmônica) engen- a hipótese da rivalidade, segundo a qual, analisar a fusão consistiria
dram três tipos específicos de melodia. O que permanece primordi- em direcionar a atenção sucessivamente para os sons simultâneos
al é a calculabilidade e a racionalidade da lei natural. No entanto, o ou sucessivos, passando rapidamente de um a outro. De acordo com
Livro Il acrescenta um elemento um pouco divergente, mas de gran- a hipótese da pluralidade, a percepção de cada som discreto perma-
de importância teórica. A continuidade da melodia no tempo, diz neceria fundamental e a fusão só se produziria depois do fato, sob o
Aristoxeno, deve-se ao fato de que a capacidade de apreensão da efeito de um “hábito” adquirido de agrupar certas analogias (haveria
música depende de duas faculdades externas ao cálculo e à raciona- assim apenas uma unidade aparente e a fusão dos sons seria uma
lidade da lei natural: a percepção pelos sentidos e a memória, em ilusão). Finalmente, segundo a hipótese da unidade, a análise da
combinação recíproca.'*A memória aparece portanto como um fator fusão seria uma decomposição artificial ou “imaginativa” de um
importante da “melodificação” (meloodeinai). Aristoxeno aponta todo primitivo, decomposição que só se torna possível pela multi-
então na direção de uma teoria que reaparece de novo em Carl plicação de experiências, cada uma das quais apareceu em estado
Stumpf, a teoria da fusão dos sons: a fusão dos sons é, de fato, respon- de isolamento. É essa hipótese que reteremos no que concerne à fusão
sável pela continuidade melódica e é engendrada pela combinação melódica.

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Stumpf faz algumas descobertas bem interessantes. Por exem- é, pela semelhança. Podemos mesmo afirmar que a “melodificação”
plo, ele descobre experimentalmente que a análise de dois sons si- (meloodeinai) é um procedimento de autoparáfrase: o ato de parafra-
multâneos é muito mais difícil do que a de dois sons sucessivos e sear é, de fato, um ato de aproximação?” que pressupõe e, ao mesmo
que a medida dos intervalos ou distâncias é mais exata para os sons tempo, engendra a semelhança. Seja como for, parece evidente, espe-
simultâneos (superpostos) do que para sons sucessivos. É assim cialmente a partir da psicologia da Tonvershmelzung, que a fusão
que Stumpf é forçado a admitir que as leis da fusão harmônica não melódica é fundamentalmente dependente de uma temporalização
se aplicam ao domínio da fusão melódica. Entre essas leis psicológi- exterior a qualquer racionalidade calculatória. Em conclusão, a
cas que ele discute podemos mencionar as seguintes: o grau de fu- fusão melódica se distingue, por um lado, da mistura total (miksis)
são depende das proporções entre os números de ressonâncias artís- e, por outro, da junção harmônica de sons simultâneos. Já que a
ticas; o grau de fusão é independente da freqiiência absoluta dos temporalidade é constitutiva da fusão melódica, podemos aproxi-
sons em consideração; o grau de fusão é também independente da mar a fusão da aisthêsis koinê (ou sensação comum) de Aristóteles,
intensidade dos sons (em absoluto e um com respeito ao outro); a na qual o tempo é também a conditio sine qua non. Para que tenha-
fusão de dois sons dados não é influenciada pela adição de um ter- mos uma fusão de sons na percepção da continuidade melódica,
ceiro som; a duração dos sons em nada altera o seu grau de fusão, deve haver memória e antecipação. A experiência fusional torna o
etc. Essa divergência entre a psicologia da fusão harmônica e da tempo perceptível. Pode-se encontrar isso em Proust, para quem toda
fusão melódica já demonstra, sem possibilidade de dúvida, que a sinestesia, organizada ao redor do gosto e do tato, conota a musica-
teoria grega, segundo a qual a consonância explica a fusão, não pode lidade e seu tempo.“? Uma “lógica da fusão”, no entanto, nunca foi
ser correta. Ao contrário, é a fusão que explica a concordância ou desenvolvida. A fusão é um tipo de acordo ou consonância reali-
acordo. zada segundo o modo da melodia: ela está antes de toda bifurcação
As descobertas de Stumpf permitem ainda distinguir entre dois em com-fusão e di-fusão. O modo como a fusão se relaciona com a
tipos de concordância (sumphonia): aquela chamaremos de fusão junção e seus dois derivados, a conjunção e a disjunção, leva-nos
melódica, em contraste com aquela que denominaremos junção naturalmente na direção do domínio da aritmética e do cálculo, já
harmônica. Stumpf oferece argumentos elegantes que nos permi- que a junção realiza a sumphonia segundo o modo da harmonia.
tem pensar que a fusão melódica não depende de qualquer princípio
de racionalidade ou de lei natural exprimível em termos de cálculo
e de aritmética. Essa fusão melódica baseia-se numa temporalização Análise rítmica
muito específica, que combina a persistência das recordações com
o apelo das antecipações. É o temporalizador que “melodifica”. Essa Essas questões não estando resolvidas, precisamos complicar
tese difere essecialmente de outras hipóteses, como a dos musi- ainda mais a análise do tempo subjacente à fusão melódica com a
cólogos gregos, segundo a qual o Número domina o campo de fu- introdução do ritmo. Somente essa complicação permitirá que nos
são, ou ainda a do Ensaio sobre a Música cartesiano, onde a fusão é inteiremos sobre o que são o tempo rítmico-melódico e sua memó-
explicada pelo divertimento e pela euforia. Deve-se portanto pres- ria. À noção de um tempo rítmico-melódico pode ser desenvolvida
supor que a “fusão melódica” não engendra concordância alguma, a partir da dialética da duração e do instante tal como foi formulada
mas antes a semelhança. A semelhança é o sintoma rudimentar de por Bachelard em sua crítica à filosofia da duração de Bergson. De
uma atividade típica do espírito e da imaginação, já que ambos fato, Bergson hipostasiou a duração como uma “multiplicidade sem
acrescentam aos dados brutos dos sentidos uma relação. A ativida- quantidade”.*! Essa duração, não tendo qualquer aritmética, nem
de imaginativa é, em essência, temporalizadora e é esse tipo de sendo dominada pelo Número, situa-se fora de todo espaço: é a dura-
temporalização que responde por todas as relações que se põem, isto ção do “eu fundamental”. Bergson acredita que o que traz os nossos

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estados mentais de dentro para fora são as condições da vida social, teoria de Lipps nega que a sonoridade da música seja primordial e
o que abole, de uma certa maneira, a homogeneidade da duração chega a negar o poder constitutivo da percepção auditiva: a sono-
dos estados mentais. A duração “real” é o que sempre foi chamado ridade, para Lipps, é antes acidental, porque a experiência musical
de tempo, “mas o tempo percebido como indivisível". Bergson es- toma forma num nível muito mais profundo, o da “vida do espírito”
creve explicitamente que “percebemos a melodia como indivisível: (Grundtatsachen des Seelenleben).
um presente perpétuo, um presente que persiste”.'* Bachelard tem
boas razões para considerar essas concepções bergsonianas como
contendo uma filosofia da plenitude e apela para uma dialética da Memória anamnésica
duração e do instante.” A música não nos dá essa impressão de ple-
nitude e de continuidade, nos diz Bachelard: “No momento em que Bachelard inscreve-se portanto na tradição aberta pela Rythmus-
observamos a melodia em sua relação exata com o tempo, percebe- Theorie de Lipps. Ele se opõe rigorosamente à idéia de que a melo-
mos que os embelezamentos deformam a estrutura interna e que, em dia “joga consigo mesma, se perde para se reencontrar, sabendo que
conseqiiência, a música é uma metamorfose frequentemente enga- irá absorver-se no seu tema inicial”:** em resumo, que ela se autopa-
nosa para uma metafísica da duração”.“* Na audição de qualquer li- rafraseia. A melodia, ironiza Bachelard, é uma “tapeação” e é por
nha melódica simples, afirma Bachelard, funciona um princípio de essa razão que ele introduziu o ritmo na melodia: introduzirá bati-
atomização, que é de fato um princípio temporal fundamental, a das, sopros, patamares de concentração, limiares. Continua difícil
saber que a ritmicidade generalizada dá à música sua forma. É o rit- de ver como, introduzindo o ritmo, podemos salvaguardar a estéti-
mo que proporciona assim o elemento primordial de uma filosofia ca da melodia. Essa estética parece estar garantida desde que con-
dialética da duração e do instante. sideremos a melodia e o ritmo como duas vertentes do tempo musi-
Essa insistência no princípio rítmico atomizante não é obvia- cal, o tempo musical sendo a temporalidade específica da memória
mente nova na filosofia do tempo musical e é típica da tendência rítmico-melódica. O esboço dessa memória rítmico-melódica pode
contemporânea para privilegiar fortemente o ritmo na tríade harmo- ser encontrado, mais uma vez, em Aristóteles, em sua definição de
nia/melodia/ritmo. Essa hipóstase do ritmo deve-se essencialmente anamnésia nos Parva naturalia.*
à psicanálise e ao inventor da Rythmus-theorie, Theodor Lipps, ver- Segue-se da análise aristotélica da memória que não podemos
dadeiro precursor da concepção psicanalítica da música. Lipps lembrar o presente, que é sempre objeto de percepção, nem o futuro,
defendia, em seu Das Wesen der Musikalischen Harmonie und objeto de opinião ou de esperança. A memória portanto só se aplica
Disharmonie," que, de maneira geral, tudo na música vem do rit- ao passado: “Pois quando a memória de fato acontece, deve-se di-
mo, é ritmo. Na melodia, afirmava Lipps, o ritmo está simplesmente zer que o processo é tal na alma que a coisa foi previamente ouvida,
inconsciente. Os sons de uma melodia são percebidos no nível do percebida ou pensada”.'”A memória, como conseqiiência, não é nem
inconsciente como batidas descontínuas e periódicas e é somente uma sensação nem uma concepção da alma, mas é somente a “pos-
no nível consciente que são estabelecidas ligações. Essa Rythmus- se” (eksis) ou a “afeição” (pathos) de uma das duas, enquanto o tem-
Theorie constitui claramente uma reação contra o fisicalismo e o po flui. É bem importante notar que, para que haja lembrança, o pró-
acusticismo de Helmholtz no final do século XIX. Ela tem algumas prio tempo deve ser percebido como tempo, algo que somente os
consequências de poder explicativo não indiferente: ela explica, seres humanos são capazes de fazer. Mas, mais do que isso, deve
além de outras coisas, por que os elementos de uma sensação têm haver “imaginação” (phantasia), o que significa que devemos “pos-
tendência a perseverar neles mesmos e também esclarece a simpli- suir” imagens (phantasma). Aristóteles chama (figurativamente)
cidade de certas melodias, que seria de outro modo inexplicável essas imagens de impressões (graphê) e as compara a um selo num
(essa simplicidade deve-se ao ritmo subjacente e inconsciente). A anel ou ao esboço de uma figura. Essa dependência da memória com

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relação à imaginação é, de fato, uma verdadeira “afeição” (pathos) a análise que Jankélévitch dedicou à nostalgia parece ser inadequa-
da sensação comum e é por isso que a memória, mesmo que não seja da: a nostalgia, a seguir os argumentos desse autor, seria um arrepen-
uma sensação, ainda pertence à sensibilidade. A memória, podemos dimento ou um desespero ligado à irreversibilidade do tempo e
dizer, é gráfica, e todo aquele que realiza um ato de memória “con- portanto uma paixão pelo exílio, de origens perdidas, uma romaria
templa” (theoorei) uma “impressão” e a “percebe”. às origens. Borges escreve: “Eu já tenho nostalgia do momento em
Mais importante para o nosso argumento é a reminiscência ou que eu terei nostalgia deste momento”. Esse entrelaçamento de
anamnésia. À reminiscência passa a existir (sumbalei) e a lembrança prospecção e retrospecção, do futuro e do passado, faz da nostalgia
se segue (akolouthei).*' Há uma tripla condição na definição aristo- o entrecruzamento de um Êxodo e de uma Odisséia e conseqiiente-
télica de anamnésia. Em primeiro lugar, a reminiscência baseia-se mente uma paixão pelo eixo da temporalidade em sua totalidade. A
na faculdade motora, e portanto no movimento, tomando existên- nostalgia, enquanto paixão pelo tempo, é uma paixão completa-
cia quando um certo movimento vem naturalmente após outro. mente estética, assim como o é o entusiasmo. Problemática dupla-
Aqui nós não estamos tão longe de Proust e de sua Madeleine! Em mente fascinante, que nos impele na direção de uma reflexão mais
seguida, a anamnésia toma existência como uma inferência de na- adequada sobre as nossas paixões e de uma compreensão mais pro-
tureza abdutiva. Aristóteles escreve: “A reminiscência é um tipo de funda das nossas temporalidades.
processo silogístico. Na reminiscência, raciocinamos que anterior-
mente soubemos ou ouvimos alguma coisa ou tivemos tal ou tal ex-
periência da coisa em questão, e esse processo é uma espécie de
pesquisa”.* Finalmente, deve-se pressupor que a anamnésia não é
necessária, mas “natural”, um hábito.“ Esses três elementos juntos
— a faculdade motora, a inferência abdutiva e o hábito — fundamen-
tam a memória anamnésica (ou memória das reminiscências) en-
quanto oposta à memória gráfica (ou memória das lembranças), o
lugar do tempo rítmico-melódico. A “memória” anamnésica, que é
essencial para a música, não pressupõe, consequentemente, nenhu-
ma “imagem” (graphe). Ao contrário, deve haver uma faculdade de
imaginação sem imagens, correlata da sensibilidade, que nos faz
sentir o tempo nas experiências sinestésicas (de que Aristóteles fa-
lou em sua psicologia) e, sobretudo, nas experiências musicais, já
que a música usa e plasma nosso sentimento do tempo da maneira
mais exemplar.

4. Epílogo: sofrer o tempo

Dizero tempo, Sentiro tempo, Lembraro tempo: há, além disso,


Sofrer o tempo. O que é esse pathos pelo tempo, essa paixão pelo
tempo? A paixão pelo tempo leva o nome de nostalgia. A nostalgia
não é nem a melancolia nem a paixão pelo passado. É por isso que

76 77
3 Aristóteles, Problematon 19, 38, 920b33.
!s Idem, De anima, MI, 425al9.
15 Cf. H. Parret, Language and discourse. The Hague, Mouton Publishers,
1974, capítulo 3.
!6 Veja, entre outros, G. Guillaume, “La représentation du temps dans la
langue française”, In: Langue et science du langage. Paris, Nizet, 1964. E
“L'architectonique du temps dans les langues classiques”, Temps et verbe. Paris,
Champoin, 1970.
art. cit., p. 19.
NOTAS " “La représentation du temps dans la langue française”,

8 “La représentation du temps dans les langues classiques”, art. cit., p. 18.
19 Compare o título de um artigo de G. Kleiber “Les démonstratifs (dé)
montrent-ils? Sur le sens référentiel des adjectifs et pronoms démonstratifs”,
Le Français Moderne, 51, 99-117, 1985.
!M. Yourcenar, Le temps, ce grand sculpteur. Paris, Gallimard, 1983.
2 O título de um de seus artigos: “L'irréductibilité des symboles indexicaux”.
2 Ibid., p. 61. Actes du VII Congrês International de Linguistique et de Philologie Romanes.
* Veja-se, por exemplo, D. Tiffenau, Mythes et représentations du temps. Aix en Provence, 1983.
Paris, Editions du CNRS, 1985; Unesco, Le temps et les philosophies. Paris,
2 Aristóteles, De anima, 425b3-5.
Payot, 1978; H. Parret, Le sublime du quotidien. Paris/Amsterdam, J. Benjamins
1988, capítulo 6. 2 Ibid., I1, 426b20.
* Aristóteles, Física, IV, 219b2. Traduzido por W. D. Ross, Oxford,
23 Ibid, 425a3-7. Pode-se discutir a tradução de “tempo imperceptível” por-
Claredon indivisível, mas
Press, 1930. que, na perspectiva física, o que se está discutindo é o tempo
essa questão é marginal à argumentação desenvolvida aqui.
* Ibid., 219 b 10-15
é ç 2 Idem, Sobre a sensação e o sensível, 439b22-24.
O texto mais claro sobre esse assunto pode ser encontrado em De anima
II, 426 b 20: e “4 “É o mesmo princípio
. o. is , 23 Ibid., 447n20.
que afirma (legein) e, conseqientemen-
te, do mesmo modo como alguém o afirma, também o pensa (noei) e percebe 2 Para uma apresentação completa dessa problemática ver também D.
(aisthanetai).” Modrak, Aristotle; the power of perception. Chicago, The University of Chi-

Cf. R. Brague, Du temps chez


cago Press, 1987, capítulo 3.
Platon et Aristote. Paris, PUF , 198 2 PP ,
2 Para um tratamento do sentido interno, ver o excelente livro de H. E.
k, Sobre esse assunto ver as excelentes páginas de P. Aubenque, Le problême Allison, Kant's Transcendental Idealism. Yale University Press, 1983, pp. 255-
de l'être chez Aristote. Paris, PUF, 1962, pp. Ml.
135-40.
* Aristóteles, Física, 219b12 e 219b25. 2 |. Kant, Crítica da razão pura, A33/B49-50.

10 Ibid., 219b7-8. 2 Veja a análise de J. Havet, Kant et le problême du temps. Paris, Gallimard,
ii Rag g 1946, especialmente o capítulo 5, “Les insuffisances de Vesthétique”, pp. 82-
A
É essa distinção que G. Bohme usa ao sistematizar o conceito aristotélico 103.
de tempo, em seu livro Zeit und Zahl; Studien zur Zeittheorie bei
Platon.
Aristoteles, Leibniz, und Kant. Frankfurt, 1974. *» V. capítulo 7, seção 4.
2 Assim, E. Barbotin, na sua tradução para o francês de De anima (Paris » A. Schopenhauer, O mundo como vontade e representação. Tradução in-
Les Belles Lettres, 1966) traduz en too analogon kai too arithmoo por glesa de E. F. J. Payne, New York, Dover Publishing Inc., 1969, especialmen-
rs
porcional e numericamente”, quando deveria ter traduzido por “analógica e te o livro 1, parágrafo 52, e livro III, parágrafo 39.
esquematicamente”, para sugerir não a idéia de número, mas a idéia 2 Ibid., livro II, parágrafo 39.
de orga-
nização e unidade articulada (o esquema é de fato o modo por meio
do qual 33 Ver entre outros A. Fauconnet, L'esthétique de Schopenhauer. Paris, Alcan,
as coisas se mantêm juntas).
1935.

78 79
* Pseudo-Aristóteles, Problematon 19, 920a-921a.
* The harmonics of Aristoxenos. Traduzido por H. Steawart Macran, Hildesheim/
New York, G. Olms Verlag, 1974, no início do livro 1.
% Ibid., p. 53.
” Veja em especial as Investigações lógicas, Investigação 3, parágrafo 9.
* C. Stumpf, Tonpsychologie. Leipzig, 1890, dois volumes.
* Veja meu Prolégomênes à la théorie de l'énonciation; de Husserl à la
pragmatique. Berne, P. Lang, 1987, capítulo 11.
HI
*º Veja meu Le sublime du quotidien. Amsterdam/Paris, J. Benjamins, 1988,
capítulo 10; e Michel Serres, Les cinq sens; philosophie des corps mêlés. Pa-
ris, Grasset, 1985. A COMPREENSÃO ABDUTIVA
“! H. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, 1889.
Traduzido para o inglês por F. L. Pogson, Time and free will; an essay on the
immediate data of consciouness. London, McMillan, 1910, especialmente o
capítulo 2.
“2 Ibid., pp. 137-39.
A atitude pragmática, comojá foi dito, caracteriza-se pelo fato
de que o sentido dos discursos e de todos os produtos artísticos e
“In La pensée et le mouvant. Paris, Alcan, 1934, p. 185.
culturais é reconstruído por meio da transposição desse sentido, ato
“ Ibid., p.187 e seguintes.
realizado por um ser humano numa situação de co-subjetividade e
* Encontram-se críticas de Bachelard a respeito de Bergson em L'intuition
participando da vida de uma comunidade. Isso significa que a trans-
de l'instant. Paris, Stock, 1932 e especialmente em sua La dialectique de la
durée. Paris, PUF, 1950. posição do sentido pragmático é continuamente controlada, revi-
** G. Bachelard, La dialectique de la durée. Paris, PUF, 1950, p. 117.
sada e penalizada pela comunidade que funciona, no final das con-
tas, como o definiens último do sentido. O status dessa comunida-
“” Theodor Lipps, Psychologische studien. Heidelberg, 1887. Tradução in-
glesa Psychological studies. New York, Anno Press, 1973. de e seu impacto sobre o sujeito que transpõe o sentido dos objetos
** G. Bachelard, op. cit., p. 115. pragmáticos serão discutidos mais adiante. Convém, neste capítu-
lo, dar alguma substância à afirmação de que uma teoria do sentido
* O segundo capítulo dos Parva naturalia intitula-se “Sobre a memória e
a recordação”. Sobre esse assunto veja o comentário de Richard Sorabji, é de fato uma teoria da transposição do sentido ou uma teoria da
Aristotle on memory. London, Duckworth, 1972. compreensão. O pragmaticista dá, desse modo, à sua concepção de
*º Ibid., 449b25. linguagem uma orientação que não é ontológica nem gerativa, mas
*! Ibid., 453al0. heurística. A gramática de Chomsky é um exemplo prototípico de
“2 Ibid., 452a5. uma gramática que privilegia a geração ou produção de sequências
* Ibid., 453a10-15. sintaticamente bem-formadas, mesmo que o próprio Chomsky afir-
4 Ibid., 541b20.
me que os mecanismos gerativos são neutros e simétricos com rela-
ção à produção e à compreensão.
** Borges, Arlas. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1984, p. 76.
As teorias dos atos de fala de Austin e Searle formulam as con-
dições de satisfação dos atos de fala como condições de produção
(as condições de sinceridade, por exemplo). As formas mais repre-
sentativas de semântica determinam o sentido com base nas condi-
ções de verdade das expressões, posicionando-se desde o início fora

80 81
de qualquer perspectiva heurística. Não discutiremos a adequação É sabido que não foi na teoria da compreensão que Peirce introdu-
dessas opções, mas proporemos uma posição alternativa: a teoria ziu a categoria da abdução e, sim, na filosofia da ciência. O trata-
pragmática do sentido é uma teoria da transposição do sentido.? mento que formulamos aqui propõe que ampliemos e eventualmen-
O sentido do sentido é a transposição do sentido. O sentido te ultrapassemos as ambições essencialmente lógico-semióticas de
emerge de sua articulação, de sua análise — essa idéia já está presen- Peirce. Se a compreensão implica o sentimento, o faro, o tato e o
te na leitura que Hjelmslev faz de Saussure (quando Saussure des- bom gosto, a sensibilidade e a imaginação, então podemos ganhar
creve a linguagem como um “domínio das articulações”). Greimas, muito com as reflexões de Peirce sobre a abdução. Este capítulo
um neo-hjelmsleviano, persegue a mesma idéia: “A forma da lín- organiza-se ao redor de quatro esferas problemáticas, cuja sucessão
gua, enquanto totalidade de diferenças, resulta da articulação e do deveria revelar uma lógica facilmente discernível: intuição, assun-
funcionamento do insight." Para fins de exemplificação, distingui- ção, hábito e sensibilidade. Como se insere, nessa série, o raciocí-
remos aqui três tipos de transposição, que não são mutuamente ex- nio abdutivo? O caminho pelo qual seguiremos nos fará passar por
clusivos. A transposição através da paráfrase é exercida “natural” alguns marcos: zen-budismo, Bergson, Aristóteles e, é claro, Peirce.
e infinitamente pelo próprio discurso; a transposição por meio da
interpretação é a que é efetuada hermeneuticamente pelo ato de
leitura ou comentário sobre um texto; a transposição através da 1. Intuição
metalinguagem é o protótipo do insight científico. Há muitos tipos
de transposição que competem entre si: a estipulação, a explica- À teoria da compreensão deve levar em consideração a opaci-
ção, a tradução e a própria definição. De fato, uma das tarefas pri- dade das expressões que se apresentam ao interlocutor como enig-
mordiais da epistemologia consiste em qualificar adequadamente máticas e não-evidentes: o interlocutor é convidado a realizar um
todos esses parassinônimos e suas delimitações recíprocas. esforço inferencial. Há, no entanto, aqueles que sustentam que a
Também compreender acrescenta-se a esse grupo de parassinô- transposição efetuada pela compreensão não se realiza através do
nimos e o primeiro problema que se coloca é saber como a compre- raciocínio, mas através da intuição. Lidamos aqui com um concei-
ensão é parafrásica, interpretativa ou metalingiiística. Sendo trans- to que tem dominado a psicologia especulativa desde Aristóteles e
posição de sentido, a compreensão pode ser as três coisas ao mesmo que transcende a nossa própria tradição intelectual.
tempo, já que ela se encarna facilmente numa seqiiência discursiva Os antigos mestres zen impunham aos seus discípulos o exer-
(a resposta a uma pergunta, por exemplo, mostra que a pergunta foi cício do Koan: os jovens noviços deveriam ter “insight” a respeito
compreendida), como um gesto hermenêutico de interpretação (por- de um problema ou anedota desprovidos de qualquer lógica super-
que o objeto da compreensão apresenta-se ordinariamente como um ficial. Alguns poucos exemplos bem conhecidos são apresentados
quebra-cabeças, um enigma, um problema a ser decifrado) e como abaixo. Um monge pergunta ao mestre Tung-Shan: “Quem é Buda?”
uma avaliação metalingiiística (onde a compreensão busca concluir, e ele responde “três onças de cera.” Ou de novo, a questão: “Qual é
como num Juízo Final, a reconstrução de um dado sentido). Há restri- a orientação da visita do patriarca à China?”; a resposta: “A árvore
ções lógicas, psicológicas e psicossociológicas que afetam a compre- no fim do pátio” O koan faz com que os discípulos realizem um
ensão e, finalmente, a compreensão tem uma conotação patêmica exercício de “compreensão” que exclui qualquer raciocínio infe-
intensa: compreender é uma verdadeira paixão. A vontade de com- rencial. O koan faz apelo somente à intuição, que na tradição zen
preender, mesmo que tente ser pura e modesta diante do objeto a exige uma co-naturalidade entre o sujeito e o objeto, produzida por
compreender, é intensamente “trabalhada” pelos desejos e pelas uma emoção criadora.º Essa emoção chama-se 1-Ching e os mestres
crenças. Por todas essas razões, parece que a teoria da compreensão zen a comparam à experiência estética. É intensamente afetiva e sur-
poderia ser construída a partir da categoria peirceana da abdução. ge como um tremor, um choque, uma iluminação.

82 83
Não podemos evidentemente limitar esse fenômeno particu- parência da mente (em Descartes, entre outros). Na segunda, a in-
lar da “compreensão intuitiva” à espiritualidade oriental: pergun- tuição é chamada sensível se denota o sentido da presença concreta
tamo-nos se ele é ou não exportável. Poder-se-ia afirmar que a con- e fatual da realidade (em Kant, especialmente). Ambas as concep-
cepção de intuição em Bergson está em perfeita continuidade com ções têm origem em Aristóteles, onde o status da intuição é multi-
a intuição do zen: Bergson é admirador de Plotino, o mais oriental forme: a intuição é, de um lado, o conhecimento dos princípios que
dos pensadores gregos. O autor de La pensée et le mouvant opõe a justificam a épistémê; de outro, a intuição formaliza ou estrutura a
intuição ao conhecimento conceitual, que abstrai, generaliza e ar- experiência." Mas é mais importante entender que Aristóteles atri-
gumenta. Esse conhecimento conceitual uniformiza as realidades bui uma terceira função à intuição, a de guiar a dialética, ao menos
dadas, imobilizando-as. A intuição, ao contrário, é imediata e não- num certo caso: nesse caso ela é chamada de apagogê, precursora
discursiva: ela sempre dá conta daquilo que há na realidade de da abdução. Dessas três abordagens da intuição — a intuição inte-
único e original, assim como a sua continuidade, sua mobilidade, lectual ou o conhecimento dos princípios fundadores da épistéme,
sua atividade e a contigência do seu futuro. A intuição nos coloca a intuição sensível coroando a sensação estruturante e a intuição
em contato com o individual e o qualitativo. Mais tarde veremos lógico-discursiva, que possibilita certas dialéticas que são margi-
que o individual qualitativo está também muito presente na episte- nais à indução -, é claramente a última que nos interessa porque ela
mologia da abdução em Peirce. A intuição, de acordo com Bergson, ilumina a compreensão dialética ou baseada no raciocínio. É prin-
é O insight da existência de uma realidade individual” obtido sem cipalmente o conceito de intuição sensível que foi explorado na
racionalização nem conceptualização. Qual é então a relação entre história do pensamento moderno, de Kant a Husserl.!! Nós retor-
a intuição e as outras funções mentais?A intuição não é nem instin- naremos a esse conceito no final deste capítulo, porque a compre-
to nem inteligência. A inteligência questiona a intuição, mas não ensão enquanto atividade do raciocínio dialético baseia-se numa
tem qualquer impacto sobre ela. Além disso, a intuição recorre a ima- certa sensibilidade que só pode se relacionar com o sentimento
gens, a comparações, a metáforas e a símbolos para veicular seus (Gefiihl).
conteúdos: por isso Bergson afirma que há uma analogia entre a
imagem ou metáfora presente e o objeto da intuição. Veremos que a
analogia retorna com insistência na definição da compreensão 2. Assunção
abdutiva. O tanto que cada imagem se assemelha ao objeto da intui-
ção ou difere dele não pode ser determinado conceitualmente com
precisão absoluta: tendo uma orientação comum corrigindo-se umas De Galeno a Sherlock Holmes
às outras, as imagens dão origem à intuição. Para Bergson, é ine-
gavelmente, sub specie durationis, que a intuição tem “insight” de O próprio Peirce!? refere-se à noção de apagogê que aparece
seu objeto, a duração sendo essencialmente identificada com a pró- nos Primeiros analíticos de Aristóteles para introduzir a assunção
pria vida em toda sua atualidade concreta: a intuição, escreve ou a abdução. O Estagirita discute, nos Primeiros analíticos," a es-
Bergson, é a simpatia com a vida.* E aqui e ali a intuição é chamada trutura do silogismo e, sob a rubrica de “Discussões suplementa-
de bom senso, de senso da vida e mesmo de “esprit de finesse” e res”, alude a um tipo de raciocínio em que o raciocinador dispõe de
faro uma “teoria problemática” que é verificada a posteriori por meio
Para nos orientarmos no campo das conceptualizações da in- da indução. Conseqiientemente, nós estamos em plena dialética: a
tuição, oferecidas pelos grandes paradigmas filosóficos, estão dis- apagogê é um tipo de raciocínio discursivo, no qual o “problemato-
poníveis duas abordagens predominantes. Na primeira, diz-se que a lógico” é a fonte da atividade inferencial. Há em primeiro lugar um
intuição é intelectual se ela denota o sentido da evidência e da trans- dispositivo interpretável e, em seguida, a verificação pela indução.

84 85
A apagogê nos coloca no clima da semiologia médica e do enigma nos devolver o individual qualitativo. Peirce introduz a abdução
policial. para contrapor-se ao que prescrevem os escolásticos: individuum est
Desde Galeno, a semiologia designa a parte da medicina que ineffabile. Aquele que raciocina por abdução realiza uma operação
concerne ao estudo dos sintomas. Ao praticar a medicina, o médico próxima da do médico: é importante para o médico reduzir todos os
está muito próximo do detetive. O próprio Peirce, tendo tido uma detalhes a uma “assunção” ou uma hipótese sobre a organização
formação completa em medicina, é muito consciente do parentesco individual. E é na direção da estética que se deve procurar a solu-
entre sua lógica abdutiva e a semiologia médica!! e, como nos con- ção para esse enigma fundamental, esse buraco negro de toda episte-
ta Max Fisch, ele era excelente em diagnósticos médicos.!* Há al- mologia e de toda teoria da ciência: a elaboração da hipótese. A
gumas passagens na obra de Peirce em que ele demonstra sua capa- ciência do individual e do qualitativo terá sempre um caráter conjec-
cidade de detecção: ele conta que teve de atuar como um detetive, tural, ela fará sempre apelo a uma vista e a um faro perceptivos: tal-
conduzindo um inquérito policial verdadeiro, quando o seu reló- vez O sentimento seja esse aspecto da razão que torna possível a
gio foi roubado num barco a vapor.!* Há também uma passagem em ciência do qualitativo. Granger afirma que “a criação estética en-
que ele exprime seu empenho em “reconstituir” alguns fragmentos quanto trabalho é... uma das tentativas humanas de ultrapassar a
dos Primeiros analíticos, nos quais justamente aparece a noção de impossibilidade de uma apreensão teórica do individual”.!* Aqui,
apagogê". Os paradigmas médico e detetivesco dominam a origem de novo, a estética será apontada como o fundamento dessa busca
da teoria da abdução. É o conhecimento indeterminável dos médicos pelo individual qualitativo que se manifesta no logos abdutivo.
e o savoir-faire dos Watsons e Dupins que nos ajudam a compreen-
der a assunção ou abdução, à qual Peirce devota tanta atenção.
Há, em primeiro lugar, a surpresa que se experimenta diante de A logica utens da abdução
um fenômeno “surpreendente”: a surpresa e o espanto são as emo-
ções que estão no centro do raciocínio abdutivo. Em seguida, há a Comecemos pelos próprios textos de Peirce antes de introdu-
individualização qualitativa do fenômeno observado com sensibi- zir a abdução na teoria da compreensão. Peirce, antes de 1891, opõe
lidade e gosto. Essa identificação do individual qualitativo e sua a abdução à indução. A indução é a inferência do geral a partir do
capacidade de compreender pressupõem uma dialética explorando individual, enquanto a abdução é uma inferência que leva um corpo
a hipótese que foi imposta. Quando há raciocínio abdutivo, não há de dados a uma hipótese explicativa. Depois de 1891, a abdução
qualquer sentido preestabelecido, mas somente um dispositivo torna-se a lógica da descoberta e por esse tempo Peirce hesitará em
interpretativo. Não há sistema algum a descodificar, mas apenas uma adotar qualquer posição sobre se a descoberta abdutiva de uma hi-
rede de caminhos que tornam possíveis homologias, transcodifi- pótese é uma verdadeira inferência ou não. É neste ponto que ele
cações, traduções. No momento em que começamos a estudar os me- introduz algumas considerações psicológicas afirmando que a
canismos cognitivos subjacentes ao raciocínio abdutivo, somos abdução é “um insight das leis da natureza” ou, ainda, que a abdução
induzidos a substituir a metalinguagem pela interface, a gerativi- é um “apelo ao instinto”. A abdução é chamada logica utens, oposta
dade pela modularidade, a descodificação pela interpretação, o à logica docens ou lógica científica. A logica utens do raciocinador
paradigma pelo protótipo, o signo pela figura e nenhuma dessas é essa lógica implícita que serve de base para os seus raciocínios.”
substituições afronta a ortodoxia peirceana. A inferência abdutiva O raciocinador inventa as hipóteses sacando no saldo de sua logica
permanece sensível à unidade do fenômeno e sobretudo à sua figura- utens e o faz por hábito. É aqui que a abdução encontra sua justifi-
ção. É hora de entender melhor essa (con)figuração que nos permi- cação no pragmaticismo. Mas antes de prosseguirmos, retornaremos
te inferir abdutivamente. É suficiente neste momento acentuar o fato por um momento à estrutura epistemológica da abdução e a sua opo-
de que a individualização realizada pelo raciocínio abdutivo deve sição em relação à indução.

86 87
Num silogismo, raciocinamos com a ajuda das três categorias correm da hipótese. 2) O aspecto em relação ao qual se
seguintes: a regra, o caso e o resultado. A abdução é uma inferência notam semelhanças e dissemelhanças deve ser tomado
de um caso. Tomemos o exemplo desenvolvido por Peirce. Imagine- aleatoriamente, sem privilegiar um tipo particular de
mos um pacote de feijões sobre uma mesa e ao lado dele um punha- predição para a qual a hipótese é sabidamente boa. 3) É
do de feijões soltos. A dedução apresenta-se da seguinte maneira: necessário tomar notas honestamente, não somente do
todos os feijões do pacote são brancos (Regra); e os feijões espa- sucesso das predições, mas também dos seus fracassos.
lhados vêm do pacote (Caso); eu tenho o direito de inferir (sem ter Todo esse procedimento deve ser leal e imparcial.”
necessidade de olhar, isto é, dedutivamente) que os feijões espalha-
dos são também brancos (Resultado). Agora, a inferência indutiva: A primeira prescrição diz que o raciocínio abdutivo deve pro-
eu sei que os feijões que estão sobre a mesa vieram do pacote (Caso); ceder por questionamentos: ele é fundamentalmente problemato-
eu observo que: os feijões são todos brancos (Resultado); eu infiro, lógico. O ponto de partida de um raciocínio abdutivo não é a afir-
com um certo grau de probabilidade e por meio da indução, quetodos mação de uma ou duas premissas, mas a apresentação de um con-
os feijões do pacote são brancos (Regra). A inferência abdutiva fun- junto de perguntas alternativas. Hintikka acentuou a natureza
ciona como segue: eu sei que todos os feijões do pacote são bran- problematológica da lógica abdutiva: um ingrediente primordial
cos (Resultado); e além disso eu vejo que os feijões que estão sobre dessa lógica consiste em “abduzir' as perguntas mais frutíferas num
a mesa são brancos (Resultado); nesse momento eu infiro abdutiva- jogo estratégico entre o jogador e a natureza.” A lógica da abdução
mente que os feijões que estão sobre a mesa vieram do pacote (Caso). exige uma estratégia que se arrisca para fora e em seguida retorna a
Esse tipo de inferência é um sofisma quando o afirmamos apoditi- um raciocínio que, por conseguinte, é em essência dialógico: o
camente, mas ele é válido quando é apresentado como uma hipótese interlocutor que compreende desdobra-se constantemente num jogo
a ser verificada (indutivamente). Peirce descreve a forma da infe- íntimo de perguntas e respostas.
rência abdutiva da seguinte maneira: “Observamos o fato surpreen- Para esclarecer ulteriormente esse tema, realçamos duas pro-
dente C; seÀ fosse verdadeiro, C seria o esperado; portanto, é razo- priedades constitutivas do esquema inferencial da abdução. Em
ável suspeitar que A é verdadeiro”.?! primeiro lugar, deve haver um fato surpreendente, um resultado
O grau de probabilidade da abdução permanece baixo e Peirce inesperado: a abdução nada mais é do que um procedimento que
insiste no fato de que a abdução, na ciência empírica, pode levar vem normalizar esse fato aberrante. A razão, cujos hábitos foram
somente a um tipo de individuação qualitativa provisória, que então quebrados por esse fato, reencontra a paz nessa normalização. De
deve ser ulteriormente melhor verificado pelo método indutivo-de- fato, através da inferência abdutiva reduzimos o resultado ao norma-
dutivo. A abdução não é portanto um meio para o conhecimento tivo. Mas contrariamente à indução, essa normalização não aparece
certo e definitivo. Mas, uma vez que se tenha decidido usar a cate- no momento em que uma lei geral (mesmo universal) é formulada.
goria da abdução numa teoria da compreensão, podemos conside- E a questão será como explicar o fato de que nós nos sentimos cons-
rar a abdução como a estratégia que é, de longe, a mais adequada. trangidos por uma suposição, que é razoável, é claro, mas não ne-
As três recomendações que Peirce dá como regras práticas da ab- cessária. Peirce invoca “a existência de um instinto natural para a
dução são de fato três estratégias de compreensão. Peirce escreve: verdade, último recurso para a ciência”,?* mas esse recurso à nature-
za é uma opção antropológica que seria melhor evitar. A segunda
1)A hipótese deve ser claramente proposta como uma per- propriedade importante do esquema inferencial da abdução é que a
gunta antes de se fazerem observações para verificar a inferência abdutiva corresponde ao nosso sistema de antecipações.
sua verdade ou, dito de outra forma, devemos tentar As rupturas e as surpresas pedem que as esclareçamos mediante
apreciar quais serão os resultados das previsões que de- hipótese: elas se definem em relação às nossas antecipações. Con-

88 89
siderar que “o que uma coisa significa são simplesmente os hábitos prio Grice, no entanto, preferiu a solução esquizofrênica: separar a
que ela envolve”? é obviamente uma solução fundamentalmente semântica da pragmática de maneira precisa, e o domínio da prag-
pragmaticista: as expectativas não são, nesse caso, de ordem pura- mática (essencialmente as implicaturas) passou a não ter mais qual-
mente subjetiva. Elas tampouco são motivadas por fatores pura- quer afinidade com a verdade e suas funções ou com as condições
mente objetivos. As crenças, na medida em que são hábitos, pressu- semânticas. Essa posição é muito antipeirciana, já que a máxima
põem sem dúvida uma afinidade entre o raciocínio (mesmo o abdu- pragmaticista em Peirce domina todo o raciocínio e, portanto, tam-
tivo) e a verdade, mas não podem ser determinadas pelas condições bém o raciocínio que produz as proposições verdadeiras. A abdução
de verdade. A surpresa e a antecipação de quem raciocina engajado também não se exerce fora da verdade, mas em afinidade com ela: a
numa inferência abdutiva não são nem puramente subjetivas nem verdade, para Peirce, está em todos os lugares e em lugar nenhum.
simplesmente verifuncionais. O espaço em que ele raciocina é prag-
maticista e seus mecanismos cognitivos estão em perfeito isomor-
fismo com as exigências da máxima pragmaticista. É esse isomorfis- 3. Hábito
mo entre a cognição da abdução e sua motivação pragmaticista que
será examinado agora.
O breve intermezzo que apresentamos a seguir é simplesmente A arte da caça e a profecia retrospectiva
para afirmar que a exploração da lógica abdutiva poderia ser útil a
muitas teorias conversacionais ou narrativas. Podemos pensar na Peirce, em seus últimos escritos sobre a abdução, não mais dis-
narratologia de Greimas e na lógica conversacional de Grice. A te- tingue entre os pontos de vista lógico e psicológico quando invoca
oria narrativa de Greimas tem sido frequentemente acusada de ser a capacidade natural do homem para “ter insight sobre as leis da
natureza” e “o instinto humano para a verdade”. Como entender
naturalista, causalista e automatista. É verdade que Greimas se serve
apenas perifericamente de termos como inteligência narrativa ou esses hábitos de raciocínio? Peirce propõe uma resposta parcial a
racionalidade sintagmática.?* Fazer tal coisa é transcender defini- essa questão, relacionada ao conceito de crença. Enquanto pragmati-
tivamente o naturalismo da morfologia do conto de Propp e admitir cista, ele define a crença como um hábito consciente de ação: “... O
que a progressão da narrativa pressupõe a integração de segiiências que nós pensamos deve ser interpretado nos termos do que estamos
narrativas numa trama ou numa configuração por meio da “inteligên- preparados para realizar”.?* A dúvida surge quando um hábito de
cia”, da “racionalidade” ou simplesmente do “raciocínio”. Dizer que funcionamento factual é suspenso. Uma vez que um hábito de cren-.
o texto não é um sistema mas uma trama é admitir que o texto é ga é interrompido, o homem é compelido a chegar a um novo hábi-
inerentemente incompleto e solicita o trabalho da razão abdutiva. to de crença que deve se estabilizar para “levar à supressão de toda
Esses aspectos pragmático-cognitivos internos ao texto têm sido surpresa e ao estabelecimento de um hábito de expectativa positiva
por muito tempo negligenciados pela narratologia estrutural. O que não será contrariado”.?? Peirce dá o nome de “pesquisa” (inquiry)
texto é um dispositivo interpretativo fundamentalmente incomple- a essa atividade de resolver a dúvida original e de guiar na direção
to. A configuração textual toma forma pro meio dos procedimentos de um novo hábito de crença estável. A surpresa e a expectativa são
de raciocício, especialmente a abdução. No que concerne à lógica necessárias para que haja uma pesquisa por abdução.'º Essa pesquisa
conversacional de Grice e à geração de implicaturas conversacionais, é sempre inferencial: a descoberta de uma hipótese é uma inferência;
e uma inferência, nos diz Peirce, é “a adoção consciente e controla-
também podemos invocar frutiferamente a abdução como o proce-
dimento inferencial adequado. As “razões da razão”,? como as cha- da de uma crença como a consegiiência de um outro conhecimen-
ma Grice, inscrevem-se numa silogística extremamente complica- to”.*! Nesse sentido, um juízo perceptual não envolve nenhuma
inferência: “Um juízo perceptual é um juízo que se impõe absolu-
da, onde florescem o embaçado, o vago e o não-decidível. O pró-

90 91
tamente ao meu assentimento por um processo que escapa totalmente Na primeira perspectiva, a indicialidade nos força a formar hipóte-
ao meu controle e que, em consegiiência, não tenho como criticar”.?? ses e a testá-las em seguida. Podemos então pensar a abdução como
Resta que, para Peirce, a pesquisa por abdução continua a carregar a “arte de caçar”, já que a descoberta da identidade de um animal se
em si um enigma verdadeiro. A crença por inferência não é gerada faz a partir de seus índices, isto é, de seu rasto. Na segunda perspec-
causalmente pelo que se compreendeu anteriormente: as premissas tiva, a iconicidade do sentido se impõe a nós, despertando nossa
não “causam” a conclusão pertinente. Com isso, já não se pode faculdade de compreensão abdutiva.
qualificar quem raciocina de máquina lógica: embora a abdução
tenha uma “forma lógica perfeitamente definida”, ela é, por sua
própria natureza, “muito pouco atrapalhada pelas regras lógicas”.” A indicialidade de figuras e configurações
A abdução não aplica o conhecimento, mas o descobre.
A solução desse enigma epistemológico só é satisfatória se Acuar 0 homem como se fosse um animal, a partir de seus ín-
aceitarmos a antropologia subjacente ao seu pragmaticismo. O dices e de seu rasto: essa é a tarefa do detetive ce o motivo de suas
pragmaticismo é o critério do sentido. Enquanto máxima de toda abduções. A abdução do detetive consiste em inscrever fenômenos
forma de análise, o pragmaticismo afirma que uma hipótese só tem surpreendentes numa configuração. Conceber a abdução de acordo
valor se ela tem conseqiências práticas (e/ou empíricas): a totali- com o modelo do inquérito policial é dar razão aos cognitivistas
dade dessas consegiiências é o sentido global dessa hipótese. É por em sua determinação da figura. Vejamos, portanto, mais de perto
isso que a regra principal da abdução diz que a hipótese deve ser como o cognitivismo nos restitui uma organização plausível capaz
formulada de tal forma que poderíamos deduzir dela algumas con- de preencher todas as exigências da figura. Os conceitos interdepen-
sequências que em seguida podem ser controladas indutivamente dentes desse paradigma são: modularidade, indicialidade, protóti-
por meio da observação.*! O pragmaticismo se torna assim “nada po, trama e, obviamente, espaço mental. Poderíamos acrescentar a
mais que a lógica da abdução”.º Peirce, muito coerentemente, nada essa taxonomia alguns outros termos da inteligência artificial, tais
vê de misterioso na abdução: ele não crê nos “milagres”? e a lógica como esquema, frame, script e plano. Nosso ponto de partida aqui
da abdução não é “inexplicável”.*” No entanto, se nos recusarmos a é saber como um fenômeno surpreendente pode integrar-se numa
entrar na lógica pragmaticista, veremos que o mistério epistemo- configuração. Defrontando-nos com textos, diremos que se trata de
lógico continua presente: de onde vem essa “iluminação” abdutiva? identificar ou, mais exatamente, de individuar as figuras e não os
Como explicar a surpresa e a expectativa sem as quais não há moti- signos, os conceitos ou as coisas. Por isso, a compreensão abdutiva
vação abdutiva? Como entender essa “quase-lógica” que domina não pode apoiar-se numa semântica de designadores rígidos (à
todo ato criador na arte e na ciência? Há uma “luz natural” em al- maneira de Kripke) nem numa semântica de dicionários ou enciclo-
gum lugar — a natureza ou a lei natural iluminando nossas ativida- pédias, porque o que se detecta nessas teorias são as coisas, os con-
des criativas na ciência e na arte — ou devemos, ao contrário, acre- ceitos e os signos e não as figuras.
ditar numa “luz cultural" e, nesse caso, toda criação se reduziria à A psicologia cognitiva, em conexão com as teorias de inteli-
explicitação de esquemas culturalmente determinados? Essas po- gência artificial, explora uma teoria do sentido que lança mão da
sições radicais do naturalismo e do culturalismo, em sua radica- noção de protótipo. Quando alguma categoria emerge diante de
lidade, são esforços de redução a um fundamento, que não expli- nosso espírito, há, naturalmente, associações mentais. Essas catego-
cam de forma alguma a natureza do funcionamento abdutivo. Uma rias não são unidades delimitadas semiológica e logicamente, mas,
explicação só pode se apresentar segundo uma dupla perspectiva: a enquanto categorias naturais, são estruturadas internamente em tor-
perspectiva indicial,”
de um lado, e a perspectiva icônica, de outro. no de um protótipo (o melhor exemplo, o caso mais notável) dessas
É esta última que nos levará na direção de uma estética da abdução. categorias.” Não estamos muito longe da idéia wittgensteiniana de

92 93
“semelhanças de família” cristalizada em torno de entidades repre- abdução da figura se apóia sobre a tipicidade de certas categorias
sentativas. Um protótipo não é um arquétipo porque se mantém no privilegiadas. Além disso, as figuras se dispõem numa constelação
nível do concreto (os arquétipos são ao contrário “objetos ideais”). ou configuração que podemos chamar de trama, uma dimensão que
O protótipo comporta traços cujos número e pertinência são variá- engloba a figura. A sintaxe narrativa de Greimas, para os cog-
veis. À produção de sentido a partir de protótipos deve ser conside- nitivistas, poderia ser vista como uma trama ou uma configuração
rada como um “percurso instável” porque não há nenhuma estru- discursiva. Se, como afirma o próprio Greimas, a narratividade é tra-
turação sistemática das interconexões entre as categorias proto- balhada pela racionalidade narrativa ou pela inteligência narrativa,
típicas. O protótipo não é propriedade exclusiva de um ou outro então apresentar-se-á não como um sistema sintagmatizado estável
módulo (um módulo forte, como o científico ou o jurídico, ou um e imutável, mas ao invés disso como um percurso figurativo. O cog-
fraco, como qualquer tipo de módulo lingúisticamente encarnado). nitivismo contemporâneo dispõe de ferramentas conceituais para
O resultado é que o individual inalienável guarda seu espaço: é o analisar percursos figurativos. O termo esquema faz apelo à memó-
individual que orienta os percursos e não há nisso tudo qualquer ria; compreender o individual depende então do funcionamento da
determinismo. Evidentemente o protótipo não é o primeiro referen- memória. O termo frame evoca ao invés disso uma rede de dados
te de um signo nem é um designador rígido: o protótipo e o nome representando uma situação estereotipada (o frame permite visua-
próprio funcionam de maneiras opostas. Não é tampouco o sentido lizar e imaginar, suprindo o que não vemos pelo mecanismo que
padrão de uma palavra ou expressão. O protótipo de um grupo de Minsky chama “assignation by default”). O termo script ou cená-
categorias pode ser de natureza muito diferente: pode ser a entida- rio, tipo particular de frame, refere-se a uma estrutura que descreve
de mais ficcionalizada e romanesca, mas também pode ser a mais uma sequência apropriada de eventos num contexto particular. O
definicional ou descritiva. termo plano permite a operação de lançar pontes (bridging) — as
Mas, qualquer que seja a sua natureza, é certo que o protótipo pontes inferenciais que devemos atravessar para apreender uma
é a entidade mais figurativa. Poderíamos até substituir simplesmente constelação como um todo. Uma trama englobaria tudo isso: é uma
protótipo por “figura” e sustentar que o gesto abdutivo mais inicial macroestrutura que inclui sua própria memória, possibilitando a
consiste na abdução da figura. A figura tem um valor qualitativo e operação interpretativa de “completamento”. A trama permitiria a
é perfeitamente individualizável. Deve-se pensar nela como as integração das figuras em todas as direções possíveis e funcionaria
cinzas de cigarro deixadas na cena do crime e examinadas atenta- como um dispositivo fundamentalmente instável e flexível, apro-
mente por Holmes com sua lente de aumento. O olhar abdutivo ini- priado para a expansão criativa. Essa flexibilidade e “vagueza” con-
cial focaliza necessariamente a individualidade qualitativa da fi- trastam com a natureza canônica da narratividade na semiótica clás-
gura de acordo com uma memória que é o depósito das figuras do sica, na qual a previsibilidade é quase-dedutiva. No caso da trama,
mundo. A abdução do protótipo é uma operação dinâmica que tem a apreensão depende totalmente da elaboração abdutiva que recons-
sua origem na surpresa que sentimos diante de uma figura que tem trói seu objeto como uma configuração móvel e flexível.
algo de “catastrófico”, nunca banal ou trivial. É essa figuração A grande vantagem dessa epistemologia cognitivista tem sido
catastrófica que exige uma explicação e, portanto, a formulação de que, transformando os sistemas em tramas; os paradigmas, em pro-
uma hipótese. O individual deve ser explicado a partir de uma cons- tótipos; a analiticidade, em indicialidade; os signos, em figuras; e
telação figural e, desse modo, a compreensão é o procedimento de as narrativas, em configurações, torna-os dinâmicos. O que ganha-
saturação de uma constelação significante, que começa com a es- mos com essas tranformações é a idéia de que o texto é uma prática
colha de um protótipo. individualizada."! A compreensão do sentido textual implica a apre-
Essa primeira etapa da abdução consiste na individuação de ensão do qualitativo individual e, portanto, de sua figuratividade.
figuras. Deve-se agora completar o caminho lógico da abdução. A Isso só pode ser o resultado de uma atividade mental ou cognitiva,

94 95
mais exatamente a atividade inferencial da abdução, que busca in- plos: a existência de um estado de vigília a partir do estado de estar
tegrar a figura na trama ou configuração que a torna inteligível. A dormindo, a faculdade da visão a partir dos olhos fechados, a exis-
abdução é uma “profecia retrospectiva”,*? que abduz em primeiro tência de materiais brutos a partir de produtos acabados.“A esse
lugar a figura e depois a configuração. Ela se realiza, de acordo com tipo de raciocínio por analogia Aristóteles chama de indução, mas
o modelo cognitivista, de um modo indicial ou metonímico, como ele poderia tê-lo chamado de “abdução”, se dispusesse dessa no-
a “arte de caçar”: acuar o sentido a partir de seu rasto e de seus indí- ção.“ Na República, Platão menciona um caso bastante sugestivo
cios. A relação entre o rasto do animal e o animal individual é uma de analogia: a analogia entre o bom que causa o entendimento por
relação metonímica: como a fumaça é um índice do fogo, o rasto é meio da iluminação da alma, e o sol, que causa a percepção visual
um índice do animal. A configuração e a figura como índices do pela iluminação dos olhos.'*
sentido: eis a opção cognitivista enquanto epistemologia da abdu- É claro a partir desse exemplo que a analogia cria a metáfora,
ção. É hora agora de deixar a arte de caçar e os índices e de passar- tese tematizada explicitamente por Aristóteles na Poética. De anima
mos aos ícones, de deixar para trás a metonímia para falarmos em e sobre a sensação e o sensível — os escritos psicológicos do Esta-
metáfora. girita — declaram explicitamente que a analogia é uma relação entre
qualidades sensíveis. Em Sobre a sensação e o sensível, Aristóteles
analisa as qualidades sensíveis — as cores, os sons, os cheiros, os
A analogia e a semelhança sensível sabores e as sensações táteis — como dispostas numa escala numé-
rica e afirma haver analogia entre uma cor composta e um gosto com-
Outra estratégia consistiria em pensar a integração da figura posto que ocupam o mesmo lugar nessa escala (que vai do branco
na configuração segundo o princípio da analogia. A ação da analo- ao preto, do doce ao acre). Certas cores e certos gostos são também
gia produz uma sintagmática configuracional a partir da qual a com- análogos a certos sons musicais.” Aristóteles nota que essas analo-
preensão abdutiva pode apreciar o qualitativo individual. O texto, gias, por exemplo, entre os sons, os cheiros e os gostos, são expres-
nesse novo paradigma, é um dispositivo de analogias cuja resso- sas pela linguagem desde que falamos da doçura, da riqueza e da
nância é perfeitamente inteligível à apreensão abdutiva. Podemos amargura dessas sensações.'* De anima afirma que a qualificação
imaginar o texto como um espaço vibratório, no qual a qualidade de agudo e não-cortante fora de seu domínio próprio, que é o das
dos sons individuais ressoa analogamente. Em que consiste a ana- sensações táteis, em música, torna o agudo e o grave em verdadei-
logia e como deve ser vista sua relação com a metaforização, pres- ras metáforas, já que a relação entre as qualidades táteis e as quali-
supondo haver semelhança sensível entre as entidades? dades auditivas de agudo/cortante e grave/não-cortante é claramen-
Um breve retorno à doutrina aristotélica da analogia nos for- te analógica: “Parece haver um tipo de paralelismo entre o que é
nece dois elementos definicionais de primeira importância para esta agudo ou grave ao ouvido e o que é afiado ou cego ao toque; o
apresentação da compreensão abdutiva. A apreensão analógica está agudo como o que fere, e o grave como o que empurra”.*”
presente em toda indução e o conhecimento (de substâncias, por Acabamos de aprender sobre um tipo muito sugestivo de analo-
exemplo) torna-se possível pela analogia com as coisas sensíveis. gia: a analogia de natureza metafórica, porque os dois termos analó-
Vamos reter aqui dois elementos da lógica da analogia em Aristó- gicos têm uma relação de semelhança sensível. Consequentemente,
teles. Podemos ler na Metafísica" que a existência factual de certas o ato de metaforização baseia-se no insight de uma analogia entre
substâncias pode ser pressuposta por analogia com substâncias dois sensíveis, linha de pensamento que será seguida aqui. Na enor-
antitéticas e virtuais; e podemos concluir pela existência da capaci- me literatura dedicada à metáfora, notamos uma tendência cada vez
dade de construir a partir da existência de construções reais. Exem- maior para negligenciar o elo intrínseco entre a metaforização e a

96 97
sensibilidade. Acentua-se cada vez mais a “função explicativa da plano e cenário,) deve ser considerado como uma estrutura de
metáfora”,*º as potencialidades da metáfora para formar modelos.*! Gestalt, que apela a uma sensibilidade imaginativa capaz de abdu-
Em resumo, a ênfase recai sobre todos os tipos de fatores epistêmicos ção. Mark Johnson, em The body in the mind,* explica o caráter
e cognitivos da metaforização, excluindo assim a relevância da icônico desses esquemas pelo fato de que nossos corpos, enquanto
metáfora no que apela à sensibilidade em diversos tipos de raciocí- princípio de organização do mundo ao nosso redor, estão sempre
nio, como a abdução. E, no entanto, a semelhança sensível, interna
presentes e com um papel de impor restrições quando produzimos e
à metáfora, só pode ser apreendida pela abdução. Gregory Bateson percebemos a significação do discurso. Poder-se-ia dizer que essa
nota: “A metáfora, o sonho, a parábola, a alegoria, toda a arte, toda presença de corpos e de sua sensibilidade gera o trabalho inferencial,
a ciência, toda a religião, toda a poesia são instâncias ou conglo- que é essencialmente abdutivo. Johnson analisa, como o fizera an-
merados de instâncias da abdução, na esfera mental do homem”.*? teriormente em seu trabalho sobre a metáfora,** as figuras do equi-
líbrio, da balança, da compulsão, do bloqueio, da atração; todas elas
atestando a presença do corpo no sentido a ser transposto quando
4. A sensibilidade compreendemos abdutivamente. Em forma de slogan, seria dizer que
nós compreendemos (abdutivamente) com nossos corpos a presen-
ça do corpo no sentido a ser transposto ou, em termos mais sutis,
Iconicidade e sensibilidade que compreender é sentir (introceptivamente, como corpo) um cor-
po iconicamente presente. Essa sensibilidade para o sensível icô-
Se a razão abdutiva é, de fato, uma operação do pensamento nico pode ser chamada de capacidade abdutiva de todo aquele que
analógico e se a analogia, de acordo com os escritos psicológicos compreende “razoavelmente”.
de Aristóteles, consiste em relacionar dois sensíveis em função de Duas emendas devem ser acrescentadas para evitar mal-enten-
sua semelhança, segue-se que a compreensão abdutiva é a apreensão didos. A hipóstase da iconicidade não neutraliza de forma alguma a
da semelhança sensível de figuras numa configuração. Se as figuras, abordagem cognitivista: ela a refina. O retorno ao esquematismo e
como consegiiência, conseguem integrar-se numa configuração (dis- ao gestaltismo reforça a importância da (con)figuração, condição
cursiva, por exemplo), elas se ecoam umas às outras como ícones. A de possibilidade de toda compreensão abdutiva. Mas, ao invés de
figuratividade que torna possível a abdução é acima de tudo icô- dar um status indicial à figura, o compromisso é o de dar-lhe um
nica: a configuração não é uma coleção de índices contíguos, mas status icônico. Uma figura não se explica como o índice de um sen-
ao contrário, uma unidade de ícones semelhantes uns aos outros. A tido a ser transposto, mas ao contrário, como seu ícone. Fazer com
abdução pressupõe, em suma, uma sensibilidade afinada para a seme- que o sensível entre na figuração e a sensibilidade, na abdução já
thança. E essa sensibilidade podemos simplesmente chamá-la ima- é “iconicizar” essa figuração. O cognitivismo deve colocar-se essa
ginativa. nova tarefa: reconstruir os mecanismos da figuração icônica (ou
A iconicidade tornou-se um dos assuntos prediletos das teorias diagramática).
contemporâneas da linguagem. E com boa razão porque o interesse A segunda emenda consiste simplesmente em notar que esse
pela iconicidade pode corrigir certas simplificações equivocadas retorno à sensibilidade nada tem de obscurantista:* é, de fato, um
do cognitivismo predominante. Trata-se de redefinir a estrutura retorno a Aristóteles e a Kant, à sensação aristotélica (aisthêsis) em
esquemática que possibilita a abdução de uma configuração discur- combinação com o sentimento (Gefiihl) kantiano. É esse entrela-
siva. Esse esquema (a partir do qual podem ser derivadas todas as çamento que nos dá a melhor possibilidade de pensar a (con)figura-
noções correntes em linguística cognitiva, tal como frame, script, tividade e sua “apreensão abdutiva”.

98 99
A sereia estética to um sonho puro — nenhuma existência particular e
tampouco uma existência geral. Naquele momento, nós
A abdução, como salientamos inúmeras vezes, caracteriza o estamos contemplando um ícone.”
raciocínio que se preocupa com o individual qualitativo. “A criação
estética”, diz Granger (e nós poderíamos acrescentar, a compreensão Além disso, a abdução exprime as qualidades icônicas da se-
estética, o modus aestheticus de compreender) -, “é uma tendência miosis através do raciocínio imaginativo e é dessa forma que a
de ultrapassar a impossibilidade de insights teóricos do indivi- abdução é uma resposta primordial e espontânea do homem à
dual”.%º O individual qualitativo é precisamente esse sensível que semiosis ou à vida do sentido que se impõe iconicamente a ele.*! A
se oferece à compreensão abdutiva. A Gestalt, a figuratividade desse lógica da abdução depende da estética do ícone, e é mera extensão
sensível, só pode ser recuperada pela abdução ou pelo “raciocínio da semiótica de Peirce dizer que a compreensão abdutiva nada mais
imaginativo”. À imaginação, como sabemos desde Kant, é uma fa- é do que nossa sensibilidade para os ícones que nos cercam e nos
culdade impregnada de sensibilidade e é responsável por uma mul- forçam a raciocinar com imaginação.
tidão de funções: o reconhecimento dos conceitos, a produção de
representações e suas sínteses, a identificação da consciência como
lugar das figuras, a esquematização das figuras, a criatividade ou
Darstellung dos simbolismos.”” É sem dúvida a imaginação que
caracteriza a razão enquanto responde pelos juízos estéticos, como
Kant demonstrou em sua Crítica do juízo.
À sereia estética motiva profundamente Peirce quando ele “in-
venta” a abdução. A estética foi sempre, para Peirce, uma grande fon-
te de frustração. Fascinado pelos Aesthetische Briefe de Schiller du-
rante toda a sua juventude, ele se considerava “um perfeito igno-
rante em estética”.*” No entanto, Peirce apresenta a estética como
uma ciência normativa, do mesmo modo que a lógica: ela recons-
trói os sentimentos inerentes ao mundo objetivo. A beleza, kalós,
está presente como uma qualidade e em sua imediaticidade. Duas
intuições estéticas muito pouco exploradas por Peirce sustentam
completamente a argumentação desenvolvida nas páginas anterio-
res. Em primeiro lugar, a apreciação estética iconiza a semiosis.
Peirce escreve:

Eu chamo de ícone um signo que está no lugar de algo


meramente porque se assemelha a esse algo. Os ícones
substituem tão bem seus objetos que são dificilmente
distinguíveis deles... De forma que ao contemplarmos
uma pintura há um momento em que perdemos a consci-
ência de que não se trata da coisa, em que a distinção
entre o reale a cópia desaparece e é por aquele momen-

100 101
15 M. Frisch, citado por Th. Sebeok em U. Eco e Th. Sebeok, Il segno dei
Tre. Holmes, Dupin, Peirce. Milão, Bompiani, 1983, p. 48.

16 Ch. S. Peirce, 7.36-7.48.


Y Ch. S. Peirce, 7.232-7.255.
8 G. G. Granger, Essai d'une philosophie du style. Paris, Colin, 1968, p. 8.
19 Ch. S. Peirce, 2.754, 1.630 e 6.416. Fui enormemente influenciado pela
excelente apresentação de Ivan Almeida da concepção peirciana de abdução
NOTAS e de uma possível recuperação dessa noção num quadro cognitivista, in La
sémiotique abductive, “Analytica e Poetica”. University of Aarhus, 1988
(mimeo). Estou particularmente em débito com aquele autor por ter me apon-
tado a direção para essa expansão. No entanto, eu me afasto de suas propostas
porque, como se tornará claro mais tarde, e diferentemente do que sugere
!V. os capítulos 6 e 7. Almeida, a iconização parece ser mais constitutiva do raciocínio abdutivo
' 2 çe H. ERERER; Contexts of understanding. Amsterdam/Philadelphia, que a indicialidade.
J. Benja-
mins, 980; e H. Parret and J. Bouveresse (eds), Meaning and Understanding 2 Para o desenvolvimento da idéia peirceana de abdução, veja A. W. Burks,
Berlin/New York, Walter de Gruyter Verlag, 1981. “Peirce's Theory of Adbuction”. In: Philosophy of science, 13, 1946, pp. 301-
5 A (The Hague, Nijhoff, 1970).
Cf. A. J. Greimas, Du sens 1. Paris, Editions du Seuil, 06 e K. T. Fann, Peirce's Theory of Abduction
1970; Introdução.
ge
Tradução Re)inglesa de Paul Perron, +, O On meaning,
i g select
ected writings Peirce, Pragmatics and abduction, 5.189.
ti ini semiotic
joti a Ch.S.
2 Ch.sS. Peirce, ibid., 2.634.
* Ibid., p.10 da edição francesa.
5 cr. o 33. eM. Hintikka, “Sherlock Holmes confronts modern logic”, reimpresso
H. Parret, Prolégomênes à la théorie de Vénonciation; de
Husserl à la em U. Eco e Th. Sebeok (eds.), Il segno dei Tre. Holmes, Dupin, Peirce. Mi-
pragmatique. Berne, Peter Lang Verlag, 1987, capítulo lão, Bompiani, 1983, p. 197.
11.
é Ee
auto o estudo muito interessante de Minoru Yamaguchi,
The intuition of zen 2 Ch. S. Peirce, 7.220.
; ergson; comparative intellectual approach to zen; reason
of divergencies 25 Ch. S. Peirce, 5.400.
etween East and West. New York, Herder Agency, 1956.
2 A. J. Greimas, Du sens Il. Paris, Editions du Seuil, 1983.
F. . Gré 4 oire, , L'intuit ion on seton
selon Be rgson
SO
» , etude critique.
q o Louva
uvain,
2” Vejam-se, por exemplo, as Lições Kantianas (Immanuel Kant Lectures),
Nauwela ert Ss,

*H. Bergson, La pensée et le mouvant. de Paul H. Grice, intituladas Some aspects of reason. Stanford University,
Paris, PUF, 1934. (mimeo), onde o autor, sem mencionar Peirce, desenvolve uma variante do
? L'évolution créatice, A 1907. - T Tradução inglesa
i Creative pragmaticismo, que é muito útil como metateoria para a teoria das implicaturas.
E j
em La pensée et le mouvant, 1934,
RE 8 Ch.sS. Peirce, 5.35.
já ie
A bibliografia sobre esse assunto é enorme. Veja P. Aubenque,
Le problême 2 Ch. S. Peirce, 5.197.
de vê tre chez Z Ariste
stote. Par Is , 1962
6 , eD.w
.
30 Sobre esse assunto veja A. W. Burks, “Peirce's theory of abduction”, art.
. Haml y n, Aristotle's De anima, books

cit., pp. 302-3.


gi ” Para
8
o conceito
i
de intuição
1 1
em Husserl, ver E. Levinas, La théorie de
intuition dans la phénoménologie de Husserl. Paris, PUF " Ch. S. Peirce, 2.442.
1963
2 Ch. Do
no S. Peirce,
irce, Collected papers. i ,
Cambridge
2 Ch. S. Peirce, 5.157.
Harvard i
University Press,
3 Ch. S. Peirce, 5.188.
“ Aristóteles, Primeiros analíticos, livro H, p. 25. ” Ch. S. Peirce, 2.776.
* Ch. S. Peirce, 2.192. 3 Ch. S. Peirce, 5.196.

102 103
** Veja a passagem em que ele se opõe expressamente à idéia de um “mila-
*? Veja mais uma vez M. Johnson, op. cit., pp. 147-72, onde a concepção
gre do salto indutivo” defendida pelo padre Gratry (2.690). kantiana de imaginação é usada como fundamento de toda metaforicidade e
iconicidade.
” Ch. S. Peirce, 1.139.
88 Cf. J. K. Feibleman, An introduction to Peirce's philosophy. London, Allen
* “Luz cultural” e “luz natural” é a terminologia que M. Bonfantini usa em
and Unwin, 1972, p. 388.
seu artigo “To guess or not to guess?”. In: U. Eco e Th. Sebeok, Il segno del
tre. Holmes, Dupin, Peirce, art. cit., pp. 154-55. *º Ch. S. Peirce, 5.111, ver também 2.120.
*” O termo é de Carlo Ginzburg, em seu artigo “Spie; radici di un paradigma 9 Ch. S. Peirce, 3.362.
indiziario”. In: U. Eco e Th. Sebeok, op. cit., pp. 95-136. *! Veja uma interpretação similar em K. O. Apel, Ch. S. Peirce: From
*º Cf. E. Rosch, “Classification of real-world objects: origins and represen- pragmatism to pragmaticism. Amherst: University of Massachusetts Press, 1981,
tations in cognition”. In: P. N. Johnson-Laird e P. S. Wason (ed), Thinking: p. 105. Em Peirce, veja 5.171, 5.181, 6.475-77.
readings in cognitive science. Cambridge University Press, 1977, p. 218.
“ G. G. Granger, op. cit., p. 12.
* De acordo com o termo de Ginzburg. In: art. cit.
** Aristóteles, Metafísica, O 1048 a 35-b8.
“ Veja M. B. Hesse, Models and anulogies in science. Notre Dame University
Press, 1966, pp. 101-29.
“O apagogê que Peirce menciona (veja acima) poderia funcionar como
uma determinação intuitiva desse tipo especial de indução, na qual a relação
entre a conclusão e as premissas só pode ser uma “relação de aproximação”.
Sobre esse tópico veja G. G. Granger, La théorie aristotélicienne de la science.
Paris, Aubier, 1976, pp. 161-66.
** Platão, República, 508 ss.
“” “Sobre a sensação e os sensíveis”. In: Parva Naturalia, 439b.
“* Ibid., 443b.
*º Aristóteles, De anima, livro II, 420b2-4.
* Veja o artigo de M. Hesse, op. cit, “The explanation function of metaphor”,
pp. 157-77.
3! Vejam as várias contribuições na coleção de artigos de A. Ortony, Metaphor
and thought. Cambridge University Press, 1979.
* G. Bateson, Mind and nature. Fontana Books, 1979, p. 157.
* M. Johnson, The body in the mind; the bodily basis of meaning, imagination
and reason. The Chicago University Press, 1987.
* G. Lakoff e M. Johnson, Metaphors we live by. The Chicago University
Press, 1980.
** Sobre esse assunto, veja as excelentes páginas de N. Goodman, Language
of art; an approach to a theory of symbols. New York, Bobbs-Merrill Company,
1968, pp. 245-51.
* G. G. Granger, op. cir., p. 8 e pp. 204-16.

104 105
IV
O PATHOS RAZOÁVEL

O sujeito, produtor de discurso, de cultura e de sociedade, é


um ser de paixões. Sua vontade de transmitir a verdade, sua inten-
ção de comunicar, suas crenças e suas convicções são motivadas pela
paixão de conhecer, e pela propensão a viver em comunidade, a criar
o belo e a transformar a natureza num lugar habitável. O pathos
subjetivo é responsável por uma opacidade que torna as relações
intersubjetivas dignas de serem vividas e os discursos dignos de
serem interpretados. A paixão — teórica, prática, estética — “infla as
velas do barco, sem o que nós não poderíamos navegar”, escrevia
Voltaire. Os românticos vão conferir ao homem da paixão a auréola
de criação e de gênio. Mesmo assim, o pathos, em sua relação de
tensão com o logos, sempre ficou em segundo lugar — nossa tradição
intelectual identifica quase automaticamente o pathos ao patético
e ao patológico. É uma história muito antiga: a paixão para os gre-
gos é frenesi, morbidez e perturbação; ela é, de acordo com Zenão,
“contrária à natureza” e é imediatamente situada num quadro mé-
dico. Pathein conota a dor e a desgraça, o sofrimento e a doença.
Pathos predica a morte, a loucura, a obscuridade, o caos, a desarmo-
nia, o submundo, a variabilidade, a diferenciação e o indistinto, en-
quanto o campo do logos é aquele da razão, da vida, da claridade,
do cosmo, da harmonia, do celestial, da universalidade, da regula-
ridade e da distinção.

107
Todos os clássicos da história da filosofia incluem uma refle- emoção afeta nossa saúde como um ataque apoplético; a paixão,
xão sobre o tema da paixão, mas sempre à margem da direção essen- como o definhamento ou a progressiva fraqueza”. Ribot se prende
cial de suas obras. A Retórica de Aristóteles, Les passions de 'âme à mesma idéia:
de Descartes e a Antropologia de um ponto de vista pragmático de
Kant dão exemplos dessa marginalidade. Outros autores encaixam Distingo a emoção da paixão, como se distinguem em pa-
sua teoria das paixões em sínteses amplamente abrangentes, como tologia as formas agudas das crônicas. Entendo por
Tomás de Aquino em sua Summa theologica ou David Hume em seu emoção um choque abrupto, às vezes violento, intenso,
Tratado sobre a natureza humana. Podemos dizer que a margina- acompanhado por um aumento ou uma interrupção dos
lização das paixões enquanto tema de uma reflexão teórica, na filo- movimentos: o medo, a ira, o coup de foudre do amor, etc.
sofia e nas ciências sociais, e a expulsão das paixões para os domí- Dizendo isso, estou em conformidade com a etimologia
nios da criatividade artística e da intimidade interpessoal são dois da palavra 'emoção' que remete fortemente ao movimento
gestos complementares. Essa precariedade do pensamento sobre as (motus, Gemiitsbewegung, etc). Por paixão, entendo uma
paixões tem sido frequentemente notada, e faz muito pouco tempo emoção que se tornou fixa e por isso passou por uma me-
que as paixões foram reintegradas à antropologia filosófica,! à tamorfose. Seu caráter particular é o de uma obsessão
semiótica estrutural? e à teoria da argumentação.? A “psicologia permanente ou intermitente e daí se segue o trabalho da
afetiva”, uma linha de reflexão muito viva na década de 1920 (mas imaginação. Assim a timidez é uma paixão que provém
esquecida a seguir), foi redescoberta muito recentemente e dela do medo.”
podem ser derivadas muitas lições valiosas.
A terminologia relativa à vida afetiva é confusa: tendência, Como a paixão é considerada por Ribot uma emoção intelectua-
sentimento, inclinação, afeição, emoção, paixão e mesmo sensação lizada, a emoção é o estado rudimentar, bruto e primário, enquanto
são alguns dos muitos termos em concorrência. Descartes, por exem- a paixão é uma formação secundária de maior complexidade. A
plo, escreve: “Podemos definir as paixões da alma (...) em geral como emoção seria então um produto da natureza, o resultado imediato
percepções, sentimentos ou emoções da alma”.º De acordo com o de nossa constitutição; enquanto a paixão seria um produto da re-
Dicionário Robert, “em psicologia, a emoção é um estado mental flexão ou, ao menos, da imaginação, aplicado às nossas tendências.
complexo, geralmente abrupto e momentâneo, acompanhado por Não é esse o nosso ponto de vista, pois preferimos concordar com
distúrbios fisiológicos; em sentido mais amplo, emoção refere-se a Dugas quando ele escreve, contra Ribot, que “a emoção pode ser
todas as sensações consideradas, do ponto de vista afetivo da vida, uma imagem, um precedente ou uma etapa da paixão, mas ela não é
como sendo agradáveis ou desagradáveis” enquanto o sentimento o seu princípio, não a engendra”. Isso seria dizer que as emoções
é definido como sendo “a capacidade de sentir, de apreciar um ar- são mais como manifestações explosivas ou modos exteriores das
ranjo de coisas, um valor moral e estético; é menos violento do que paixões. A paixão não é uma emoção que degenerou pelo hábito —
a emoção ou a paixão”.º Deixando de lado que os elementos se inter- há uma diferença de natureza entre a paixão e a emoção.
definem, releva lembrar sobretudo a conexão da emoção com o movi- Não vamos esgotar o problema da delimitação definicional de
mento e com a momentaneidade e o vínculo do sentimento com uma paixão, sentimento, emoção e de toda a gama de termos concor-
ou outra forma de entendimento, intuitivo mas sempre consciente. rentes;” tentaremos, neste capítulo, apenas uma caracterização
Tem-se recaído frequentemente na distinção entre a paixão e mínima. À paixão situa-se no nível do jogo das faculdades: imagi-
a emoção feita por Kant na Antropologia: “A emoção age como a nação, entendimento, desejo. É complexa, mas sistemática, porque
água que rompe sua barragem; a paixão trabalha como uma corren- está confinada à subjetividade modalizada. O sentimento é a pai-
teza que escava sempre mais e mais profundamente seu leito. A xão assumida, que se desdobra na esfera da auto-sensibilidade; é

108 109
por isso que o sentimento é reflexivo e, em princípio, controlável. isso: a retorização e a performativização das paixões no discurso.
A emoção manifesta a paixão e o sentimento: é simples e homogê- O retórico Bernard Lamy já afirmava no final do século XVII que
nea, imediata e direta, embora seja sintomática de uma estrutura “as paixões têm alguns sinais particulares por meio dos quais se ma-
nifestam no discurso”.!º O elemento importante é “que as entidades
passional subjacente. Nesse quadro conceitual, devemos conside-
que as paixões gravam no discurso são figuras.” Lamy explica por
rar a ira e o ciúme como emoções porque manifestam uma multidão
de paixões distintas. A esperança e o ódio seriam então verdadeiras que as figuras são úteis c necessárias. Eis aqui apenas um de seus
argumentos:
paixões, enquanto a alegria e a tristeza seriam provavelmente pro-
tótipos de sentimentos.
As pessoas só podem notar que nós estamos sendo mo-
A oposição do pathos ao logos se presta a ser dramatizada além
vidos por algo se perceberem as marcas das emoções de
do necessário, o que resultaria em correr o risco de uma idealização
nossas almas em nossa fala. É necessário que o discurso
da racionalidade, de um lado, e, de outro, em excluir a paixão da
vida em comunidade governada pela lei moral. Deve-se demonstrar,
carregue as marcas das paixões que nós sentimos e que-
em contraste com essa dicotomização dramática do pathos e do lo-
remos comunicar dessarte âqueles que nos escutam. É
claro que, para tornar nosso discurso mais eficaz, é pre-
gos, que todo pathos tem o seu logos, e toda paixão, suas razões. Em
consegiiência, deve-se discutir o pathos razoável, isto é, o pathos ciso figurá-lo; isto é, temos que dar a ele algumas das
características de nossas afeições que estão sendo comu-
que não é patológico. Numa primeira seção, algumas considerações
concernentes à regulação das emoções serão introduzidas apelando-
nicadas.”
se para algumas descobertas muito específicas da psicologia das
Conseqgiientemente, o discurso figurativo tem uma função ex-
emoções. A idéia de uma lógica dos sentimentos será formulada a
pressiva e comunicativa com respeito às paixões que lhe subjazem.
seguir, a partir da questão de como os sentimentos nascem e morrem
Fontanier, na mesma tradição retórica, isola uma classe de figuras
e, ainda, de como pode ser concebida a sintagmática ou “sintaxe”
de paixão, que ele se recusou a distinguir, em outro lugar, das cha-
dos sentimentos que se engendram e se ligam intra e intersubjetiva-
madas “figuras de imaginação”. Se o homem das paixões está pre-
mente. Uma terceira seção será dedicada às razões da paixão, essen-
cialmente a relação entre o juízo e a crença, de um lado, e o juízo e sente em seu discurso, não é porque as paixões se materializam nas
a paixão, de outro. Uma evocação do entusiasmo arremata este capí- figuras do dircurso, mas porque a força figurativa modifica o texto
tulo. O entusiasmo, essa paixão pela paixão, que parece à primeira e o discurso em sua totalidade. Todo discurso é objeto de um inves-
vista tão estranha à razoabilidade, é no entanto inspirada pelos inte- timento de pathos e, portanto, figurativizado. A figuratividade
resses mais elevados da razão, como paixão estética par excellence.
discursiva indica a presença das paixões do sujeito, mas ao mesmo
tempo - e esse ponto deverá ser retomado — toda figuratividade eco-
nomiciza o pathos ao estruturá-lo e ao submetê-lo às restrições gra-
maticais. Se a figura tem função expressiva e comunicativa é por-
Prolegômenos: a economia discursiva do pathos
que insere as paixões num dispositivo “razoável”, numa economia
na qual o pathos torna-se comunicável.
Admitiremos, à guisa de prolegômenos, que manifetar o pathos
Uma outra característica do discurso revela exemplarmente o
no discurso já constitui uma organização, uma estruturação do pas-
sional e portanto uma certa domesticação lógica. A paixão que é sujeito passional. Toda atitude proposicional, toda modificação de
um conteúdo proposicional por um operador epistêmico ou erotético
expressa ou comunicada já é sempre uma paixão razoável porque
entrou numa gramática restritiva, que domestica o pathos caótico ou por qualquer modalização já constitui a introdução, no discurso,
e não-estruturado. Duas ilustrações são suficientes para demonstrar de um pathos subjacente. Não é aconselhável nos aventurarmos

11
110
agora na questão epistemológica espinhosa de saber se a expressão claramente finitos e reduzidos desde o início. No entanto, deve-se
de uma emoção ou de uma paixão implica também sua afirmação — sublinhar o fato de que podemos optar estrategicamente por simpli-
problema discutido por Ogden e Richards, Stevenson e Hampshire.” ficar a descrição de nossas emoções: dizer que estamos amedron-
Bastará por ora constatar que toda e qualquer modalização e toda tados ou desesperados não cobre, na maioria dos casos, a complexi-
atitude proposicional comporta sempre um certo grau de força. De dade de uma emoção; e podemos ter quaisquer tipos de razões para
Frege a Austin, o operador de força, condição pragmática para a sa- simplificar, sejam elas modéstia, preguiça ou polidez. Há também a
tisfação dos enunciados significativos, introduz uma performa- estratégia da denegação com respeito a uma emoção fortemente sen-
tividade cujo caráter é variável: o grau de força funciona como o tida. Um ciumento afirma estar “chocado e indignado”, apresentando
operador “com paixão” e exprime portanto intensidade passional. dessa forma a sua emoção não como existencial, mas como moral.
Aqui, de novo, é a própria estrutura dos enunciados, sujeita a essas Há muitas estratégias cuja intenção pode ser a de provocar um efei-
operações de força codificada e perfeitamente comunicável, que to de cooperação interativa ou nada mais que uma auto-satisfação
restringe o pathos e faz com que ele entre numa lógica de “razões” social. A experiência de uma emoção é uma coisa e sua expressão é
gramaticais. De fato, a performatização, assim como a figurati- outra. A racionalidade das emoções não é necessariamente interna:
vização (na medida em que ambas são técnicas retórico-gramaticais), ela já está presente nas estratégias de sua expressão ou designação.
possibilitam que a economia discursiva do pathos torne-se expri-
mível e comunicável.
A ambivalência das emoções

1. A regulação das emoções Passando agora à racionalidade da vida emotiva, a primeira


constatação a fazer é que, em geral, os indivíduos não são vítimas
de suas emoções: eles as organizam em função de objetivos preesta-
A expressividade das emoções belecidos; as apreciam ou não, as provocam ou as evitam. Se há al-
guns mecanismos de regulação,“ os indivíduos se apóiam no auto-
A expressividade das emoções é, de fato, já e sempre uma di- controle dos sujeitos e em sua avaliação razoável das emoções em
mensão fundamental de sua racionalidade. A psicologia das emo- função dos princípios de prazer e de realidade. Mas seria ir muito
ções conseguiu estabelecer que essa racionalidade é decididamen- longe dizer que as emoções são conseqiiências de uma escolha: essa
te estratégica, mesmo quando concerne à expressão das emoções. racionalização é precisamente o que rompe o elo das emoções com
Dar nome às próprias emoções, numa situação comunicativa, é às as paixões subjacentes. À regulação das emoções não se deve apenas
vezes uma sutil estratégia de engano e de manipulação." Etiquetar à procura de um equilíbrio interno pelo organismo, mas também a
a própria emoção possibilita manobras de polidez, mas também dá fatores reguladores externos: o controle social, as ideologias domi-
ensejo a motivos menos inocentes. Vale a pena mencionar uns pou- nantes, a projeção de responsabilidades e de valores morais, etc.
cos exemplos das técnicas discursivas que instauram um desvio Todos esses fatores podem ser cobertos pela análise psicossocial das
entre a experiência emocional e sua expressão em situação dialógica emoções. No entanto, a ambivalência das emoções com relação à
e comunicativa. Em primeiro lugar, há a estratégia de simplifica- racionalidade é mais promissora do que isso. São três os aspectos
ção: o episódio emocional complexo é reduzido a um slogan ou a dessa ambivalência: as próprias emoções são justificáveise algumas
uma formalidade: uma declaração de amor, por exemplo. Mas não vezes até mesmo desejáveis; as emoções podem ter um valor argu-
podemos esquecer que o vocabulário de palavras afetivas e a taxono- mentativo num contexto puramente epistêmico; muitas vezes, o sur-
mia dos termos de que dispomos para exprimir nossas emoções são gimento de emoções depende radicalmente de um raciocínio inferen-
cial.!5

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Para começar, é perfeitamente aceitável que alguém avalie suas avaliações: as emoções mantêm ou ao menos parecem manter uma
próprias emoções e as dos outros como normais, gerais e mesmo apro- semelhança com os juízos ou crenças de valor. Essa ênfase na função
priadas. Isso tem a ver com a recuperação das emoções em pleno avaliativa das emoções (Brentano, Scheler, Sartre) faz justiça, de uma
funcionamento da organização da vida comunitária e intersubjetiva. forma exemplar, à diversidade dos aspectos que apresentamos ao
Isso significa que é razoável não apenas tolerar as emoções, mas discutir a racionalidade das emoções. Um problema surgiria se ex-
tomá-las como modelos de arranjo ao menos em certos subdomínios plicássemos apressadamente essa função avaliativa pela intenciona-
da vida social. Além disso, as emoções podem ser utilizadas como lidade do sujeito que encara o mundo das coisas — isso poderia le-
justificativa ou desculpa de certas ações. É uma questão muito inte- var a uma idealização das emoções, o que nos colocaria evidente-
ressante perguntar se as emoções podem também justificar as cren- mente na trilha errada. A opção avaliativa será considerada e redis-
ças: voltaremos a essa questão, invocando a opinião favorável de cutida na terceira seção deste capítulo.
Hume. E enfim, inversamente, certas emoções dependem de um ra-
ciocínio ou pensamento discursivo. Elas são apenas reações a uma
informação de que o sujeito dispõe por raciocínio: chegar a uma 2. A lógica dos sentimentos
conclusão proposicional por meio de um silogismo pode nos colocar
num estado emocional incontrolável. Há também um movimento de
vaivém interessante entre a proposição e a emoção no caso em que
Como as paixões acabam
a emoção projeta uma pseudoproposição que serve então de justifi-
cativa para aquela emoção. Pensemos por exemplo na pseudopro- Que a vida afetiva é razoável, que o pathos tem um logos, ma-
posição “Ela é a mulher mais perfeita do mundo” que é ao mesmo nifesta-se novamente pelo fato de que o nascimento e a morte dos
tempo a projeção e a justificação de minha emoção de ternura amo- sentimentos estão sujeitos a restrições formais que transcendem a
rosa. Minhas pseudo-proposições são, na verdade, “simulacros de contingência do que é experimentado como fato único, e do que é
provas”, segundo a expressão feliz de Ribot.!é inarredavelmente existencial. A história dos sentimentos, suas su-
Deve-se admitir que a racionalidade das emoções não é aceita cessões e transformações, sua transmissão no interior do próprio
com a mesma facilidade por todas as teorias da emoção. A teoria sujeito e entre os sujeitos são perfeitamente reguladas segundo me-
fisiologista, à maneira de James, ou behaviorista, à maneira de canismos que escapam à vontade dos indivíduos. Essa sintagmá-
Darwin, têm muito pouco a dizer sobre essa regulação das emoções.” tica ou sintaxe dos sentimentos é um molde que determina narrato-
Por outro lado, a concepção das emoções em Hume é um excelente logicamente a possibilidade de desenvolver uma vida afetiva. Ribot
exemplo de teoria em que as emoções são concebidas como radi- dedica assim em seu Essai sur les passions todo um capítulo a “Como
calmente dependentes da sensação (teoria da sensação) e nela o as paixões acabam”. Entre as cinco causas principais para o desa-
impacto das crenças tem certamente um papel importante. Aristó- parecimento das paixões, deixaremos de lado a loucura e a morte,
teles e sobretudo Spinoza preferem uma teoria cognitiva das emo- para nos concentrarmos melhor nos mecanismos mais formais de es-
ções,!* pois demonstram que a emoção só é possível a partir de uma gotamento: hábito, transformação ou substituição.
cognição ou de uma crença. Mas, nesse panorama de paradigmas
teóricos, são certamente as chamadas teorias “avaliativas” que dão O estado de esgotamento se traduz psicologicamente
maior peso à racionalidade das emoções. Uma teoria avaliativa das pela aversão ou pelo desaparecimento do desejo: a pai-
emoções afirma que o que nós amamos ou odiamos e aquilo de que xão é assim cortada em sua fonte. O esgotamento ou sa-
nós nos envergonhamos ou orgulhamos são avaliados como tendo ciedade significa portanto que a tendência expansiva
tal e tal valor. As emoções são então logicamente dependentes das ou repulsiva, antes efetiva, não pode mais ser suscitada

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por um estímulo inconsciente ou subconsciente nem pela que indica que a transformação foi concluída. Ribot pensa que a
representação ou percepção de seu antigo objeto. Em substituição ou troca de uma paixão por uma outra, de natureza
termos mais exatos, essa inexcitabilidade consiste na im- totalmente diferente, não é um fenômeno muito comum. Podemos
possibilidade do surgimento espontâneo de sensações mesmo perguntar se a substituição integral é possível, se podemos
orgânicas.” continuar apaixonados após termos mudado totalmente de orienta-
ção. De fato, a paixão concerne ao homem como um todo e, no caso
Como conseqiiência, escreve Ribot: “O estado de inexcitabi- da substituição de uma paixão por outra, seria preciso que também
lidade consiste em que os elementos nervosos, quaisquer que sejam o homem se tornasse totalmente diferente. A conversão é sem dúvi-
e por qualquer modo que se agrupem e se coordenem para determi- da um caso de substituição, mas é difícil descrever seu mecanismo
nar uma tendência específica (...) são incapazes de agir e estão como subjacente e dar outros exemplos.
que desaparecendo por anestesia”.?! Para Ribot, uma paixão que está Essas análises de Ribot são sem dúvida alguma rudimentares,
constantemente viva não pode ter qualquer relação com o hábito. datadas e influenciadas por suas convicções fisiologistas na linha
Se há repetição e permanência, a paixão tem sua origem interna e de William James. Porém, não são tanto os conteúdos definicionais
sua fonte numa tendência que vai sempre no mesmo sentido. No en- o que interessa aqui, mas antes a idéia de uma tipologia de mecanis-
tanto, toda paixão é de fato incompleta e só persiste graças a uma mos por meio dos quais os sentimentos (Ribot fala de paixões, mas
causa externa a ela: o hábito, princípio de automatismo, e a rotina, isso não muda nada esse princípio) “acabam”. Uma “lógica dos senti-
enfraquecimento e aniquilação da consciência. mentos”, atestando a razoabilidade da vida afetiva, nos permite
Passemos agora aos dois mecanismos que regulam a evolução reconstruir os mecanismos do nascimento e da morte dos sentimen-
de uma paixão em outra: a transformação e a substituição. No caso tos, de seu esgotamento, transformação e substituição. Essa lógica
da transformação, há entre as paixões uma base comum, enquanto, deveria tornar-nos capazes de predizer a história dos sentimentos,
no caso da substituição, elas são inteiramente diferentes. Para que seus percursos, sua sintagmática. É porque os sentimentos têm uma
haja transformação, deve haver no indivíduo um excedente de ener- sintagmática previsível que o pathos resulta razoável. Essa sintaxe
gia que precisa ser descarregado e um objetivo ou idéia diretriz deve ou esse percurso das paixões não é uma disposição linear e ordena-
aparecer. Essa idéia não é um conceito puro, mas a encarnação de da, mas essencialmente uma perspectiva dinâmica, sugerindo uma
certas tendências latentes e não-orientadas. Se, no entanto, a idéia progressão de um ponto a outro.? A “lógica dos sentimentos” apre-
diretriz é substituída por uma outra sob a influência de circunstân- sentada por Ribot é o esboço de uma sintagmática performativa: o
cias ou de fatores externos, a paixão inicial persiste com outras fei- nascimento e a morte são performances da narrativa da vida. No
ções. Um modo de transformação particular é aquele em que a paixão entanto, é possível ainda uma outra sintagmática, que também dá
se transforma em seu oposto: amor, em ódio, paixão pelo prazer, prova de razoabilidade: a sintagmática configurativa. Uma ilustra-
em ascetismo. Mas para que haja duas paixões antitéticas, é neces- ção exemplar de uma sintagmática configurativa é a ira. Por isso,
sário que haja “um fundo comum, uma identidade essencial que se introduziremos as concepções de ira de Alain, Aristóteles, Greimas
exprime através da permanência da idéia: elas só são contrárias uma e Tomás de Aquino.
à outra nessa condição”.?? Assim, o objeto da paixão permanece o
mesmo, mas há uma inversão de valor porque há causas que provo-
cam uma transformação no sujeito. Isso significa que a idéia domi- Reflexões sobre a ira
nante cessa de ser um centro de associações agradáveis e atrativas
para o sujeito. À oscilação entre as duas posições deve se seguir a Alain observa, em Les passions et la sagesse, que a ira nasce
instalação de uma síntese sólida, de uma sistematização completa, frequentemente do medo e, dado que a ira é uma forma de escape, é

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também esperança de alívio. Como os efeitos da ira supõem discer- delimita um núcleo de significação, que se desdobra sintagmati-
nimento e auto-controle, ela pode ser posta a serviço da coragem. camente. A ira é uma sintaxe apaixonada: ser desprezado, desafiar
Alain acrescenta que o ódio é mais o efeito do que a causa da ira, o outro, restaurar uma ordem inicial. Essa sintagmática é intensa-
mas os sábios não dão jamais esse salto da ira para o ódio.” Eis aqui mente patemizada pelo desejo de vingança e pela busca do prazer.
um belo exemplo de sintagmática da ira: Alain apresenta um progra- Também Tomás de Aquino põe em movimento uma verdadeira
ma inteiro no qual algumas paixões ou sentimentos são conectados máquina sintagmática em seus escritos sobre a ira.?º Ele nota imedia-
uns aos outros por algum tipo de necessidade. O estudo detalhado tamente que a ira não tem um contrário (à diferença das outras enti-
que Tomás de Aquino dedicou à ira é da mesma natureza: mostra dades do sistema passional: amor contra ódio, desejo contra evasão,
magistralmente como a ira pode fazer com que os sentimentos osci- esperança contra desesperança, alegria contra tristeza). Além disso,
lem e demonstra a posição central da ira no sistema passional como a ira é produzida pela convergência de várias paixões. Tomás diz
um todo. Tomás de Aquino retoma evidentemente a análise aristoté- que “a ira contém várias emoções, não do modo como um gênero
lica feita em De anima, onde se diz que a ira é uma afeição da alma, contém as espécies, mas antes como o efeito abrange a causa”. É
mas da alma enquanto presa na matéria do corpo. A ira é uma paixão dessa forma que a ira pode se ampliar em ódio. A ira está também
da parte da faculdade sensitiva do homem que o habilita a enfrentar ligada à tristeza de ter sido contrariado, ao desejo, à ousadia e à
as dificuldades e superá-las e a realizar o seu desenvolvimento vital. esperança; em resumo, está relacionada com todas as entidades de
Os meios dessa parte sensitiva da alma são as cinco paixões: aespe- todo o sistema passional. As relações de causa e efeito funcionam,
rança e a desesperança, o medo e a audácia e finalmente a ira. O escreve Tomás, segundo o ordo consecutionis, que não é necessa-
longo capítulo que Aristóteles dedica à ira na Retórica proporciona riamente um ordo intentionis. Por exemplo, para as paixões concu-
uma definição “dialética” da ira; ele desenvolve aí toda uma sintaxe piscíveis, o ordo intentionis é: da alegria ao desejo e então ao amor,
a respeito. A definição aristotélica de ira é a seguinte: “Pode-se de- enquanto que o ordo consecutionis é: do amor ao desejo e então à
finir a ira como um desejo penoso de uma vingança notória por um alegria. Mas a função capital da ira — e essa é a única paixão capaz
desprezo notório que nos é imposto por pessoas que não têm motivo disso — consiste na possibilidade de regenerar as paixões. A ira nos
para desprezar-nos ou a nossos amigos”. A ira nasce do desprezo coloca em condições de recomeçar o ciclo passional desde o início
pelo outro como força aniquiladora. A ira é a reação de um ser cuja e assim ela confere mobilidade ao sistema. Essa idéia não foi retoma-
existência foi injustamente contestada e que tenta manifestar essa da por Descartes em seu Les passions de |'ame, no qual a ira aparece
reação.?” Aristóteles acrescenta que, para que a vingança seja com- numa taxonomia simples, destituída de qualquer função específica.
pleta, o outro deve sofrer com o meu ato e, principalmente, deve Mesmo assim, a “lógica” da ira está no fato de que ela é o motor do
estar consciente desse ato: a ira é o desejo de uma vingança pública. sistema passional, o princípio do dinamismo sintagmático das pai-
A ira é, portanto, um desafio que revida: desafiamos o outro e dessa xões.
forma nos reafirmamos. É a restauração (katastasis) de uma certa Também Greimas analisa a ira como uma sintagmática confi-
ordem e por essa razão é acompanhada de prazer.* O que importa gurativa:'! a ira é de fato em si mesma uma micronarrativa e a se-
nessa bela análise é seu estatuto “dialético”: Aristóteles não aborda mântica lexical da ira nos dá toda uma sintagmática canônica das
a ira somente enquanto fisíco (como faz em De anima quando coloca paixões. Greimas não conhece nem os escritos de Aristóteles nem
o problema da relação da afeição da alma com a matéria corpórea) os de Tomás de Aquino sobre a ira e mesmo assim sua análise é muito
ou enquanto pragmaticista-retórico (em cuja perspectiva a paixão similar. O estado a quo é a antecipação: o caráter contratual das
é considerada principalmente como uma tática de persuasão e é relações intersubjetivas instila confiança e nos dá direito à espe-
importante saber se há ira ou não em contextos bem específicos). O rança. Aparece então uma forma de disforia, de descontentamento
status da análise aristotélica da ira é também “dialético”: Aristóteles ou de insastisfação: o objeto de valor não é atribuído e a relação

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intersubjetiva é substituída por uma relação polêmica: aqui, tam- concerne à osmose da epistémê e do pathos, Hume atribui às crenças
bém, o desejo de vingança é resposta a uma ofensa. Mas a ira com- o poder de competir com as impressões, conferindo-lhes uma in-
porta uma agressividade diferente daquela da vingança: “no caso fluência análoga sobre as paixões.” Basta que as crenças se igualem
da ira, o poder de agir, exacerbado, domina inteiramente o sujeito, em força e vivacidade às impressões para que tenham esse mesmo
de tal modo que ele passa a fazer coisas sem que um programa de poder: a simples concepção vigorosa e intensa de uma idéia já é
ação tenha sido definitivamente elaborado”*? (enquanto, no caso suficiente. Mas o inverso também é verdadeiro. Hume escreve que:
da vingança, a competência modal do sujeito produz um percurso “Se a crença é quase absolutamente necessária para despertar nossas
narrativo apropriado, que aparece como um programa sincopado). paixões, também as paixões, por sua vez, favorecem grandemente
Há portanto uma lógica por trás do nascimento e da morte dos as crenças.” Uma arguta passagem de Hume explicita essa interde-
sentimentos. Mas qual é o princípio que governa essa lógica do pendência:
nascimento das paixões? Há pelos menos duas respostas a essa ques-
tão difícil.'* Um primeiro princípio poderia ser o da restauração do - Não os fatos que nos trazem emoções agradáveis, mas
equilíbrio dos valores do pathos e de sua intensidade: podemos aqueles que fregiientemente nos causam dor é que, preci-
pensar aqui no equilíbrio dos sofrimentos, no equilíbrio entre as samente, se tornam com maior facilidade objetos de fé e
dores e os prazeres, no balanço e na compensação das vantagens de opinião. Um covarde, cujo medo é facilmente desper-
entre os agentes. O outro princípio seria a exploração exaustiva de tado, cede prontamente a qualquer índice de perigo que
todas as possibilidades modais do sujeito dominado pelas paixões: encontra; uma pessoa de disposição sofredora e melan-
a realização ideal da subjetividade dependeria então da realização cólica é muito crédula de tudo o que alimenta sua pai-
de todas as suas potencialidades passionais. Esses dois princípios xão predominante. Quando um objeto capaz de afetar é
são sem dúvida complementares, servindo de fundamento a essa apresentado, ele dá o alarme e desperta imediatamente
“lógica dos sentimentos”, que regulamenta o nascimento, o enca- a paixão correspondente. Por uma transposição fácil,
deamento, a transformação e a substituição dos sentimentos, assim essa emoção passa para a imaginação e, difundindo-se
como a morte dos sentimentos ou sua reciclagem. É uma lógica de sobre a idéia do objeto que nos afetou, leva-nos a formar
uma sutileza extrema e que está longe de ser compreendida. essa idéia com mais força e vivacidade. A primeira sur-
presa, que acompanha naturalmente as suas milagrosas
relações, se espalha sobre a alma inteira e vivifica e
3. As razões da paixão aviva a idéia a ponto de torná-la parecida com as infe-
rências que retiramos da experiência.

A osmose da epistémê e do pathos Por essa razão, a paixão do artista cria ao mesmo tempo uma
falsificação de crença e uma espécie de visão. Crença e paixão, para
Em conseqiiência, a razoabilidade das paixões consiste no fato Hume, são os dois lados da mesma moeda.
de que as paixões sintagmatizam-se canonicamente ou de acordo Podemos dizer a mesma coisa do juízo e da paixão” Aristóteles
com um percurso que sob muitos aspectos é forçado. Há um outro tem a perspicácia de notar na Retórica que “as paixões são todos
aspecto que deve ser introduzido nesse ponto, e que concerne à os- aqueles sentimentos que alteram os homens, a ponto de afetar seus
mose da epistémê e do pathos. Trata-se da função quase judicativa juízos, e vêm acompanhados de dor e prazer, como a ira, a com-
da paixão. As razões da paixão são valores e a paixão sempre regula- paixão, o medo e seus opostos”.** Da mesma forma que as nossas
menta os “estados de coisas” que são objeto de valoração. No que paixões influenciam nossos hábitos judicativos, nossos juízos de-

120 121
; : : ; a tribuem para a cristalização do amor.“ A certeza e a dúvida suce-
terminam os estados e o desenvolvimento de nossa vida passional.”
dem-se conflitivamente enquanto o amante realiza um trabalho de
Mesmo que Descartes não discuta explicitamente essa interdepen-
eliminação e de abstração a partir de um impulso, rumo a uma ideali-
dência do juízo e da paixão em seu Les passions de l'âme, parece
zação onde a paixão se torna semi-intelectual, mais e mais racional.
ainda assim admitir que o judicativo e o passional são osmóticos.
Ribot percebe que os ciúmes seguem esse mesmo esquema. O pri-
Tomemos a sua definição de amor, cuja essência é o consentimento:
meiro momento no ciúme é uma suspeita, um juízo de desconfian-
ça e “depois os atos, as falas e até o silêncio, tudo é tomado como
O amor é uma emoção da alma causada pelo movimento
sendo prova que justifica a suposição, o primeiro julgamento”.*! Não
dos espíritos que a incita a se juntar por sua própria
basta dizer simplesmente que o juízo exerce sobre as paixões um
vontade aos objetos que lhe parecem agradáveis. Pela
poder constante de censura, de controle e de bloqueio.” A posição
palavra vontade, eu não tenho a intenção aqui de falar
que defendemos aqui é, antes, que o próprio juízo é passional, que
sobre desejo, mas sobre consentimento por meio do qual
o próprio raciocínio é afetivo. Essa argumentação leva à conclusão
nos consideramos a partir desse momento unidos âquele
de que o juízo e o raciocínio realizam-se a partir de conceitos-valo-
que amamos, de sorte que imaginamos um todo do qual
res, que têm assim a aparência de uma demonstração e, mais preci-
nós nos concebemos como constituindo apenas uma par-
samente, de uma justificação. Os conceitos-valores são constituí-
te, enquanto a coisa amada constitui uma outra parte.**
dos pelas disposições da paixão e por suas avaliações.
Essa prioridade da valoração, que recobre tanto a razão quanto
Coloquemos a pergunta em sua forma mais transparente: ama-
a paixão, é o ponto de partida do esforço pelo qual buscamos com-
mos porque temos certas crenças sobre uma determinada pessoa ou
preender em que o pathos é razoável. As paixões são avaliativas:
é o amor que gera as crenças, o mérito sendo uma delas? Qual des-
toda paixão é juízo, mas um juízo anterior a toda reflexão e delibe-
sas duas perspectivas têm prioridade para Descartes? Não há uma
ração. Dizer isso é certamente mais do que dizer que as paixões são
resposta clara dada em Les passions de l'âme, mas a idéia de con-
intencionais e desenvolvem programas em função da realização de
sentimento, essência do amor, sugere que o amor-consentimento
um objetivo reconhecido (como o objeto ou causa da paixão). É in-
enquanto tal é avaliativo. Descartes transforma a vontade numa fa-
clusive mais do que simplesmente afirmar que a paixão pressupõe
culdade avaliativa e a valoração pode assumir múltiplas formas:
um certo conhecimento, crenças e juízos. A “luz” em que o sujeito
“Decidir, julgar, amar são, de fato, atos da vontade, porque levam o
de uma paixão “vê” o objeto inclui uma avaliação que dá ao sujeito
indivíduo a descobrir valor no mundo: decidir é descobrir o bom
a possibilidade de utilizar uma escala de medidas somente no caso
numa linha de conduta; julgar é achar o verdadeiro numa idéia; amar
mais “objetivo”. Mas a avaliação permanece mais subjetiva do que
é achar o mérito, a beleza, numa pessoa”.” É assim que em Descar-
objetiva, o que está ligado ao caráter de apetite que é inerente à
tes os valores são as razões da paixão, o que é especialmente evi-
paixão e ao fato de que a emoção é dirigida por um desejo, o que
dente na sua definição de amor, porque é na avaliação que o juízo
obscurece imediatamente qualquer cognição pura.
e a paixão se encontram.
Não é a cognição preexistente que dá à luz os programas de
ação de um sujeito, mas a avaliação apaixonada. Como devemos
então definir esse juízo avaliativo, inerente ao pathos? É um juízo
Os valores como razões da paixão
que combina todas as modalidades, não somente o conhecimento e
a crença. Trata-se de um juízo com uma dimensão pragmática: um
Mesmo no caso do amor, vemos aparecer um juízo de valor num
Juízo cuja força está investida num programa de ação (e, como conse-
estágio inicial. Foi de novo Théodule Ribot quem estudou essas
quência, num ser-capaz-de-fazer). Há paixões que julgam e avaliam
afirmações e negações, esses juízos basicamente afetivos que con-

123
122
pela afirmação, pela recusa, pelo acatamento e pela dúvida (depen- siasmo não é divina e a discussão dos numerosos casos de entusias-
dendo de elas se fixarem nas posições epistemológicas da certeza, tas “demonstra não somente quão pouco fundamento eles têm, mas
da exclusão, da probabilidade ou da incerteza). Esse juízo-paixão também o perigo desse tipo de obstinação”.“* É reconhecido que os
que avalia e atua é ao mesmo tempo fundamentalmente erotético: Novos ensaios sobre o entendimento humano comentam e criticam
ela é o desejo em seu querer, seu saber, seu ser-capaz e seu dever. Se o Ensaio de Locke e é portanto apropriado dar uma olhada na con-
a paixão tem suas razões — e as razões para avaliações são valores — cepção lockiana de entusiasmo, que parece ser tão disfórica quanto
é porque o desejo, esse “não estar à vontade” (uneasiness), de que a de Leibniz. “Refiro-me ao entusiasmo que, posta de lado a razão,
fala Locke, é o que há de mais razoável. O universo do pathos, pen- estabeleceria a revelação sem ela. Com isso, na realidade, ele des-
sava Locke, contra os cartesianos, é atravessado por inteiro pelo trói tanto a razão como a revelação e põe em seu lugar as fantasias
desejo, e é isso que torna o pathos fundamentalmente razoável. infundadas da cabeça do próprio homem”.“º
Caímos no paradoxo? Locke inicia sua análise do entusiasmo referindo-se ao amor
pela verdade, a curiosidade, e salientando que a prova infalível
desse amor consiste em “não considerar nenhuma proposição com
4. As razões para desejar a paixão maior segurança do que o que permitem as provas com base nas quais
foi constituída”.*? Os argumentos que conduzem a assentir a uma
proposição devem estar isentos com relação a todas as inclinações
O entusiasmo e a Schwirmerei e paixões que poderiam ser responsáveis por um excesso de con-
vicção. O entusiasmo é considerado por alguns como sendo um fun-
A questão da razoabilidade do pathos se coloca ao extremo damento de assentimento, uma autoridade igualmente atribuída à
para o entusiasmo, o desejo da própria paixão. Quais são as razões razão e à revelação. Locke descreve a fonte do entusiasmo em ter-
do entusiasmo? “Entusiasmo era no começo um nome favorável”, mos particularmente críticos. Os homens em quem a melancolia se
observou Leibniz em seu Novos ensaios sobre o entendimento hu- mistura à devoção concluem que seu impulso é um chamado do céu.
mano:** “Entusiasmo significa que há uma divindade dentro de nós” É como se essa gente tivesse acesso imediato à divindade, enrai-
e “Sócrates pretendia que um Deus ou Demônio dava a ele adver- zando-se dessa forma em suas imaginações a idéia de uma ilumina-
tências interiores, de tal forma que o entusiasmo seria um instinto ção ou de uma vocação que eles são obrigados a seguir. No final
divino”.** Mas Leibniz logo começa a mudar de toada. Os homens das contas, o entusiasmo é um “princípio falso”, e “a razão está
sacralizaram suas paixões e seus sonhos como algo divino, e seu perdida”! para aqueles que são afetados pelo mesmo.
entusiasmo começou a significar “um distúrbio da mente atribuído Também Kant critica ferozmente um certo tipo de entusiasmo,
à influência de alguma divindade naqueles que se dizem tocados aquele que é equivalente à Schwirmerei (fanatismo). É a liberdade
por ela”. Desde então, “nós atribuímos o entusiasmo àqueles que de pensamento que é ameaçada pela Schwéirmerei, e o resultado prin-
acreditam sem fundamento que seus impulsos vêm de Deus”.“º E cipal do entusiasmo é confirmar a maldição de Babel. “Nós, homens
Leibniz cita Virgílio: “São os deuses que suscitam esse ardor em ordinários, chamamos pelo nome de Schwármerei a máxima que ad-
nossas mentes ou seu feroz desejo se torna um Deus para cada um mite a invalidez de uma razão legislativa soberana, mas esses privi-
de nós?”"*” Os entusiastas de sua época — e Leibniz cita muitos exem- legiados da boa natureza o nomeiam “iluminação” (Erleuchtung)."*
plos — acreditam que os dogmas que os iluminam foram recebidos Enquanto o esforço da racionalidade kantiana é totalmente orien-
de Deus. Fala-se de uma luz ou inspiração que os atinge, mas isso tado para a instrução numa linguagem universal, os entusiastas fo-
realmente vem neles de uma forte imaginação animada pela paixão. gem da comunicabilidade e da compreensão. “Guerra e incompre-
Para o bom racionalista que é Leibniz, a alegada evidência de entu- ensão são dois fatos que não podem ser pensados separadamente:

124 125
não compreender os outros de fato é não deixar outro recurso que habilidade e a compara aos efeitos de um ímã transmitindo sua for-
não a força, na qual triunfa a abolição de todo respeito pelos outros. ça ao longo dos anéis de uma cadeia de ferro:
Isso mostra que a Schwármerei é o avesso da razão — cada um quer
impor a todo mundo sua própria verdade”. O entusiasmo, na me- Assim é a musa. Primeiramente ela torna alguns homens
dida em que é Schwiirmerei, é dementia, un-Vernunft. E Kant se opõe inspirados e então, por intermédio desses inspirados,
ao entusiasmo e, por conseguinte, à exaltação do gênio. É sobretudo outros provam o entusiasmo e uma corrente se forma.
com relação à liberdade que os perigos do entusiasmo aparecem: Assim acontece com os bons poetas líricos e, portanto,
“Portanto, não só o conceito de liberdade, sob a lei moral, desperta os poetas líricos não estão de posse de seus sentidos
uma afeição que é chamada entusiasmo; a representação sensível quando fazem esses maravilhosos poemas épicos. Não,
da liberdade exterior, por analogia com o conceito de lei, suscita a eles se lançam na harmonia e na cadência. Pois os poetas
tendência de se persistir nela ou de estendê-la até o ponto da pai- nos dizem (não é?) que as melodias que nos trazem foram
xão violenta.”* A Crítica do juízo menciona em certas passagens o reunidas de regatos que escorrem mel. E o que eles dizem
entusiasmo com essas mesmas conotações pejorativas.”” No entan- é a verdade: pois um poeta é uma coisa leve e alada e
to, nessa Crítica, Kant estabelece sistematicamente a distinção entre sagrada e nunca capaz de criar antes de ter sido inspira-
o entusiasmo e a Schwáirmerei. Ele escreve: “Se o entusiasmo é com- do, antes de estar fora de si, e de não ter mais a sua pró-
parável à loucura, é à mania que deve ser comparada a Schwéirmerei pria razão; enquanto guarda esta faculdade, nenhum ser
(fanatismo). Delas é a loucura que pode menos se comparar ao su- humano é capaz de fazer poesia ou cantar em profecia.
blime, porque é ridícula de modo sombrio; pois no entusiasmo —
um afeto — a imaginação não tem rédeas, na Schwérmerei, uma pai- Esse belíssimo texto opõe a inspiração à técnica e diz que o
xão firmemente estabelecida e longamente gestada, ela é sem-re- entusiasta está fora de si mesmo (ekphroon) e que ele não tem mais
gras”.** O entusiasmo surge, antes, da faculdade da imaginação e do sua razão (ho nous mêketi).*º No Fedro, Platão não fala mais de en-
desejo, e “esse estado mental parece a tal ponto sublime que se diz tusiasmo com relação à inspiração, mas simplesmente como uma
usualmente que nada de grande pode ser realizado sem ele”. Em loucura (mania). Essa divergência está na origem da atitude ambí-
conseqiiência, há em Kant uma atitude muito ambígua com relação gua com relação ao entusiasmo até Kant. É apenas em Hegel que o
ao entusiasmo, e o caminho a ser seguido é o da abordagem do en- entusiasmo recebe um status dialético positivo: a Begeisterung ou
tusiasmo como um afeto que surge da faculdade do desejo imagi- entusiasmo, na Estética hegeliana, mediatiza o salto da criatividade
nativo. É evidentemente o entusiasmo nesse sentido que nos leva inspirada para a existência objetiva do belo.“?
na direção da estética do sublime. Conseqgiientemente, o entusiasmo, para Platão, não se mani-
festa através de um savoir-faire (não é uma técnica e tampouco im-
plica uma competência). Sobretudo, o entusiasmo não é razoável,
A corrente dos entusiastas e as fontes de mel da poesia ainda que ele inspire o poeta tão logo este “se lança na harmonia e
na cadência”. Propomos, como conclusão, uma solução kantiana a
É no Jon, o diálogo sobre a Ilíada, que Platão introduz o entu- essa dupla qualificação do entusiasmo apresentada em Platão: sua
siasmo para explicar a inspiração poética. Aqui está uma passagem não-razoabilidade e sua implantação músico-estética. Isto não quer
desse texto, que, no cerne de toda uma tradição filosófica, expressa dizer que perdemos de vista a desconfiança com relação ao entusi-
ao mesmo tempo fascínio e repulsa pelo entusiasmo. Sócrates diz asmo que Kant expressou na Antropologia. Mas, como se mostrou,
que a inspiração poética não tem nada de uma técnica nem de uma nem todo entusiasmo pertence ao domínio da Schwârmerei para

126 127
Kant: há um entusiasmo de “tipo nobre” que deve ser atribuído à me parece uma prova in vivo de que o pathos do pathos, ou entusi-
faculdade do desejo imaginativo*! e que tem por objeto o sublime.*? asmo, tem suas razões. O desejo da paixão é razoável.
E o entusiasmo pelo sublime é altamente razoável já que ele se pro-
jeta não a partir do desejo pelas coisas sensíveis ou intelectuais,
mas a partir do desejo pela paixão, e não há nada mais razoável do
que desejar a paixão. Desejamos a paixão quando, nas palavras de
Platão, “nos lançamos na harmonia e na cadência”, na poesia e na
música. É a afeição estética que nos faz desejar a paixão.

As melodias de Olimpos

A Crítica do juízo indica a relação entre o entusiasta e o gê-


nio.º O gênio exprime e torna universalmente comunicável o que é
indizível na alma. É de fato essa relação privilegiada do gênio com
o desejo que transforma o entusiasta em gênio. Deixemos a palavra
a Kant: “Esteticamente, o entusiasmo é sublime porque ele é uma
prova imposta às nossas forças por idéias, que impõem à mente um
impacto cujos efeitos são bem mais poderosos e duradouros que os
de um impulso produzido por representações dos sentidos.”** Por
conseguinte, encadearemos a esta reflexão sobre o entusiasmo en-
quanto desejo pela paixão, no próximo capítulo, uma análise aten-
ta da estética do sublime.
Também Aristóteles fala sobre o entusiasmo, precisamente na
passagem em que analisa as emoções provocadas pela música. Já
dissemos que o entusiasta, de acordo com Platão, “se lança na har-
monia e na cadência”. Eu cito o fim da Política sobre “o canto, a
coisa mais doce aos mortais”: “Ela (a música) precisa ter essa influ-
ência, se os caracteres são afetados por ela. E que o são, prova-se de
muitas maneiras, entre as quais não é de somenos importância a
influência que exercem as melodias de Olimpos, pois, na opinião
de todos, elas tornam as almas entusiastas, e o entusiasmo é uma
afeição (pathos) do caráter da alma.” Para Aristóteles, não se trata
de expulsar o entusiasmo da esfera da razoabilidade, já que o entu-
siasmo é uma afeição da parte moral da alma. Em si mesmo, o fato
de que as melodias de Olimpos, esse músico frígio do século VII,
célebre por suas melodias lastimosas, entusiasmavam Aristóteles,

128 129
3 Cf. N. H. Frijda e V. Zammuner, “Labelling one's Emotions”. University
of Amsterdam, Department of Psychology, 1989.
m Cf. N. H. Frijda, The Emotions. Cambridge University Press, 1986, espe-
cialmente o capítulo 8.
'S Uma abordagem analítica, mas infelizmente não muito convincente des-
ses problemas, foi proposta por R. de Souza em The Rationality of Emotions.
Cambridge, Mass., 1987.
! Th. Ribot, La logique des sentiments, op. cit., p. 61.
7 Para uma boa apresentação das alternativas, veja W. Lyons, Emotion.
NOTAS Cambridge University Press, 1980; e Ch. Calhoun e R. C. Salomon (eds), Whar
is an emotion? Oxford University Press, 1984.
8 Cf. W. Lyons, op.cit, 33 e ss.
19 Th. Ribot, Essai sur les passions. Paris, Alcan, 1970, a partir da p. 137.
* Numa perspectiva existencial por R. C. Solomon, The passions; the myth Para a problemática do nascimento e da morte dos sentimentos, veja também
F. Paulhan, Les phénomênes affectifs et les lois de leur apparition. Paris, Alcan,
and nature of human emotion. Anchor Press, 1976; ou numa perspectiva
“personalista” por R. M. Unger, Passion; an essay on personality. New York, 1933.
Free Press, 1984. 0 Ibid., p. 146.
2 Cf. H. Parret, Les passions; essai sur la mise en discours de la subjectivité. “2 Ibid., p. 147.
Brussels, Mardaga, 1987. 2 Ibid., p. 159.
* Cf. M. Meyer e A. Lempereur, Figures et conflits rhétoriques. Brussels, 3 A, J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie
Presses Universitaires de Bruxelles, 1990. du language. Paris, 1979, p. 269.
* R. Descartes, Les Passions de l'âme, 1, p. 27. Tradução inglesa de E. 2 Alain, 81 “Les passions et la sagesse”. In: Chapitres sur ['esprit et les
Haldane e G. R. T. Ross, The passions of the soul, v. 1, p. 344. passions.
* P. Robert, Dictionnaire alphabétique et analogue de la langue française. 23 Aristóteles, De anima, 403a-b.
Paris, 1966.
%6 Aristóteles, Retórica, livro Il, 1378 a 12.
“1. Kant, A antropologia de um ponto de vista pragmático, 1798. Tradução
2 Para uma boa análise do conceito de ira em Aristóteles, ver P. Aubenque,
inglesa de Mary J. Gregor, Anthropology from a pragmatic point of view. The
“Sur la définition aristotélicienne de la colêre”, Revue Philosophique, (83)
Hague, Martinus Nijhoff, 1974, parágrafo 74, p. 120.
pp. 299-317, 1957.
? Th. Ribot, La logique des sentiments. Paris, Alcan, 1905, pp. 66-7.
2” Aristóteles, ibidem, 1380 a 9. É interessante atentar para a interpretação
* L. Dugas, “Les passions”. In: Nouveau traité de psychologie, de G. Du- que Senault dá à teoria aristotélica da ira para ver como um excesso de mora-
mas, v. VI: Les fonctions systématisées de la vie affective. Paris, Alcan, 1939, lismo pode destruir totalmente a idéia central dessa teoria. Veja J. F. Senault,
pp. 19-53 (citação às pp. 26-27). De l'usage des passions (1645), Corpus des vevres de philosophie en langue
* Veja também o artigo de A. O. Rorty, “From Passion to Emotions and française. Paris, Fayard, 1987, parte II, quinto tratado, “De la colêre”.
Sentiments”. In: Philosophy 57. 1982, pp. 159-72. 2» Tomás de Aquino, Summa Theologica, Questão 46. Para uma apresenta-
'º B. Lamy, La rhétorique ou l'art de parler. Amsterdam, Marret, 1699, Pp. ção dessa concepção tomista da ira, veja o livro um tanto banal de J. Gardair,
108. Les passions et la volonté. Paris: Lethellicux, 1892.
" Ibid., p. 14. *o Tomás de Aquino, op. cit.. questão 46.
' Para um resumo das posições veja O. H. Green, “The Expression of 2 A, J. Greimas, “De la colêre”. In: Du sens II. Paris, Seuil, 1983, pp. 225-
Emotion”. In: Mind, 79, 1970, pp. 551-68 e W. Alston, “Emotive Meaning”. 46.
In: P. Edwards (ed), Encyclopedia of philosophy, London e New York, 1967, 2 Ibid., p. 245.
v. 2, pp. 468-93.

130 131
» Cf. H. Parret, Les passions. Essai sur la mise en discours de la subjectivité, entusiasmo. O melhor exemplo disso é Shaftesbury, em sua “Letter concerning
op. cit., pp.120-23. Enthusiasm”,1708. In: Complete works. Stuttgart, Raomann-Holzboog, 1981,
* David Hume, Treatise on Human Nature. Oxford University Press, 1978, pp. 302-72.
v. 1, livro I, seção X. 53 1. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 29, p. 136.
* Ibid., p. 120. 5 Ibid., paragráfo 29, p. 136.
* Aristóteles, Retórica, 1377 b, pp. 19-20. 5 Ibid., paragráfo 29, p. 132.
” Cf. W. Lyons, Emotions. Cambridge University Press, 1980, 33ss. 58 Platão, Jon, 533d-534c.
* R. Descartes, The passions of the soul, 1, 79. Traduzido por Haldane e 5º? Platão, Fedro, 245a.
Ross, 1, p. 366. 9 G.W.F. Hegel, Estética, lições sobre as belas artes. Traduzido por T. M.
” A. Gombay, “Amour et jugement chez Descartes”. Revue Philosophique, Knox, Lectures on fine art. Oxford, Claredon Press, 1975, p. 280.
n. 4, 1988, p. 445. “1. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 29, p. 132.
*º Th. Ribot, La logique des sentiments. Paris, Alcan, 1905, 105a, d pp. 66- “2 Ibid., p. 136.
75.
& Sobre esse assunto, ver J. F. Lyotard, L'enthousiasme; la critique kantienne
“ Ibid., p. 77. de l"histoire. Paris, Galilée, 1986, p. 59.
* Sobre essa problemática, ver A. Joussain, Les sentiments et ['intelligence. % Ibid., parágrafo 29, p. 132.
Paris, Flammarion, 1930, pp. 70-85. Veja também L. Dugas, Nouveau traité
* Aristóteles, Política, livro VIII, | 340a 7-10
de psychologie, v. IV. In: Les fonctions systmématisées de la vie affective et de
la vie active. Paris, Alcan, pp. 19-53. Para comentários básicos sobre esse
assunto, ver também J. A. Romy, Les passions. Paris, PUF, 1961, passim.
“ Veja H. Parret, Les Passions; essai sur la mise en discours de la subjectivité,
op. cit., pp. 34-40.
“4 G. W. Leibniz, Novos ensaios sobre o entendimento humano, 1703, capí-
tulo 19. Traduzido e editado por Peter Remnant e Jonathan Bennett, New essays
on human understanding. Cambridge University Press, 1981, p. 504.
“ Ibid., p. SOS.
“ Ibid., p. 505.
“ Ibid., p. 505.
“ Ibid., p. 509.
*º J. Locke, An essay concerning human understanding, resumido e editado
por A. S. Pringle-Pattison. Oxford University Press, 1950, p. 360.
SO Ibid., p. 359.
S! Ibid., p. 361.
s2 |
Kant, “What is orientation in thinking?”, 1786. In: The critique of
practical reason and other writings on moral philosophy. Traduzido por Lewis
W. Beck. Chicago University Press, 1949, p. 145.
53 A. Philonenko em I. Kant, Qu'est-ce s'orienter dans la pensée? Paris,
Vrin, 1967, p. 43.
* 1, Kant, Antropologia de um ponto de vista pragmático. Ver nota 6, pará-
grafo 82, p. 136. Kant reage contra a concepção romântica e subjetivista do

132 133
V

O SUBLIME E A AMBIÊNCIA
DA SEDUÇÃO

Um filósofo, que mais tarde se tornaria famoso, escrevia em


1764: “Na minha opinião, entre todos os povos de nosso continente,
os italianos e os franceses distinguem-se sobretudo pelo sentimen-
to do belo; os alemães, os ingleses e os espanhóis pelo sentimento
do sublime. A Holanda pode ser considerada o país onde o bom gosto
se torna raro.”! Para continuar a citá-lo e a parafraseá-lo, o sublime,
conforme o caráter nacional, é ao mesmo tempo terrível (nos espa-
nhóis), nobre (nos ingleses) e magnífico (nos alemães). Essa distri-
buição também confirma o gosto específico que cada uma dessas
nações tem nas artes: “Na Inglaterra, os pensamentos são de con-
teúdo profundo, tragédia, poema épico e, em geral, o ouro maciço
da genialidade, que, sob os martelos franceses, se afina e alarga em
delicadas folhas de ouro. Na Alemanha, o engenho ainda brilha
bastante através da folha de metal.”? Vemos ainda nosso filósofo si-
tuar a diferença do belo e do sublime em relação aos sexos. O sexo
feminino é belo, o sexo masculino, sublime. Felizmente, ele acres-
centa, com um pouco mais de sutileza:

Não se deve entender com isso que à mulher faltam


qualidades nobres ou que o sexo masculino deve dis-
pensar por completo a beleza. Espera-se, ao contrário,
que qualquer pessoa de um ou outro sexo reúna essas
duas qualidades, de tal forma que na mulher todos os

135
outros méritos concorram para exaltar o caráter do belo, belos loiros estão mais próximas da beleza. A idade avançada com-
que é o ponto de referência apropriado, enquanto o su- bina melhor com o sublime, a juventude corresponde melhor à be-
blime deve sobressair-se entre as qualidades masculinas, leza. Os temperamentos também comportam uma afinidade parti-
com esse papel. cular com o belo ou com o sublime. Se o sentimento da beleza do-
mina o temperamento sanguíneo, o melancólico é particularmente
As mulheres têm o senso da beleza, da elegância, do ornamen- sublime. A amizade, porque também é sublime, é um sentimento que
to, o gosto pelo enfeite: “O belo sexo não tem menos entendimento condiz com o melancólico. O melancólico, de fato, cultiva um sen-
que o sexo masculino, mas é um entendimento belo, enquanto o timento elevado que dignifica a natureza humana e faz do homem
nosso deve ser um entendimento profundo, o que significa identi- um ser digno de respeito: esse sentimento profundo faz do melan-
ficação com o sublime.” Já que sua virtude é a beleza (a dos homens cólico um representante virtuoso do espírito sublime.
sendo a nobreza), as mulheres evitam o mal não porque ele é injus- O leitor terá adivinhado que essas observações Sobre o belo e
to, mas porque ele é feio; “não fale a elas nem de dever, nem de o sublime são obra “desse sensualista com vocação para maus há-
compulsão, nem de obrigação”. A vaidade e o amor próprio são in- bitos dogmáticos” como dizia Nietzsche, desse Shaftesbury da Ale-
clinações femininas que exploram mais o bonito do que o belo: uma manha, desse novo La Bruyêre, desse “gordo chinês de Kônigsberg”
mulher bonita não inspira mais que uma fria admiração, tanto quan- (outra maldade de Nietzsche). Immanuel Kant se propunha em seu
to um buquê de flores, e tem tendência para o amor próprio. Uma pequeno ensaio de 1764 a observar mais do que a filosofar, e pode-
mulher charmosa, em oposição à bonita, reflete uma sensibilidade mos facilmente medir o enorme caminho que ele percorreu entre
delicada: o charme feminino nos preenche, sempre de acordo com o 1764 e 1790, o ano da publicação da Crítica do juízo, com as suas
nosso filósofo, com ternura e com constante estima. Já que o espíri- brilhantes Analíticas do belo e do sublime. É obviamente questio-
to sublime do homem o torna capaz de sublimação, é a tez pálida, nável que se condene o pensamento monumental de Kant a partir
mas saudável da mulher (não a face vermelha e vigorosa), que exci- de certos escritos de sua juventude ou de sua velhice, de escritos
ta o sentimento do sublime no homem. Nosso filósofo, evocando marginais ou periféricos — por exemplo, as observações que prece-
os diferentes efeitos que a aparência de uma mulher produz sobre o dem ou a Antropologia de um ponto de vista pragmático, como fa-
gosto dos homens, não falará, por delicadeza, “daquilo que nas im- zem certos psicanalistas.' Exageraram-se, frequentemente, o racis-
pressões toca de muito perto o impulso sexual e pode formar um mo e a misoginia de Kant, da mesma forma que se apontaram suas
todo com a idéia sensual particular”. Além disso, as qualidades do concepções educacionais arcaicas. Mas tudo isso foi feito abstrain-
belo e do sublime também caracterizam o ser humano em geral, suas do-se o contexto nacional e cultural — a sociedade do norte da Ale-
faculdades e suas paixões. É assim que a inteligência é sublime; o manha da segunda metade do século XVIII — de onde Kant tirou seus
espírito, belo; a audácia é sublime; a astúcia, bela. As qualidades esquemas de avaliação e de apreciação. Não serão obviamente as
sublimes inspiram respeito, as qualidades belas inspiram amor. A Observações de 1764, mas a Analítica do sublime que servirá de ins-
amizade tem o caráter do sublime, o amor, o caráter do belo. A tra- piração para o presente capítulo.
gédia excita o sentimento do sublime; assim a ira de um homem O caminho a ser tomado aqui é o seguinte: como explorar a
terrível — a ira de Aquiles, por exemplo — é sublime, ao passo que a Analítica do sublime Kantiana para formular uma melhor fenomeno-
afetação é mais cômica e, tanto quanto as preocupações de quem logia da ambiência da sedução, na qual está imersa toda a intersub-
seduz e encanta, é bela. jetividade digna de ser vivida, todo discurso digno de ser produzi-
Mesmo as características físicas das pessoas emanam de um do e interpretado? Algumas sugestões a esse respeito são retomadas
desses dois sentimentos: as pessoas de cabelos castanhos e olhos sob o título de Hipóstase e crítica do sublime, na primeira seção
escuros têm mais afinidade com o sublime, as de olhos azuis e ca- deste capítulo: discutiremos aqui o modo como o sublime foi

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concebido desde o pseudo-Longino até Kant e o encantamento do ção, assim como o pico, o topo e, figurativamente, o píncaro, o mais
pós-modernismo pelo sublime kantiano. Concentraremos nossa aten- alto grau de uma dada ordem.º
ção nas linhas de força do próprio texto kantiano, para dele destilar Portanto, a sublimidade concerne particularmente ao estilo,
as intuições centrais. Na segunda seção, O diagrama dos valores como em Do sublime (Peri Hupsous) de pseudo-Longino,? que estu-
estéticos, examinaremos certas teorias estéticas, tais como as de da as diversas maneiras através das quais a inspiração se traduz em
Lalo, a de Bauer e a de Souriau. Esses autores caracterizam o subli- obras reais. É, na verdade, dentro da tradição helenística que o
me em sua relação com o belo e com todo um grupo de categorias pseudo-Longino evoca as relações do sublime com a paixão, o entu-
menores, como o bonito, o gracioso e o elegante. Em termos muito siasmo e a exaltação da alma. Encontramos em Do sublime algumas
genéricos, a terceira parte deste capítulo coloca em relação dialética reflexões sobre a grandiosidade no discurso e sobre as provas da
o sublime e a sedução, sublimando a sedução, sem dúvida, mas tam- inspiração: a inspiração pode ser reconhecida por certas caracterís-
bém “seducificando” o sublime. O elogio da elegância sublime será ticas formais ligadas à expressão da paixão (essa afirmação diz res-
uma outra defesa — com efeito, a elegância, que à primeira vista é peito, por exemplo, à métrica pindárica). Ela pode ser reconhecida,
somente fluidez, flexibilidade e continuidade, alcança a sublimi- diríamos, “patemicamente”, à maneira plotiniana, por um abalo de
dade tão logo promove a fraturação e heterogeneização progressi- estupor ou por um horror sagrado como pode suscitar em nós a
va de seus espaços. aparição de um deus ou o estalar do trovão: o sublime, nos diz
Longino, se abate sobre nós como um raio. Foi Boileau quem pri-
meiro traduziu para o francês o tratado sobre o sublime de Longino,
1. Hipóstase e crítica do sublime e o livro exerceria uma influência ponderável até o final do século
XVIII. La Bruyêre e especialmente a Enciclopédia o utilizaram. É
interessante notar que Diderot, como Kant em seu Do belo e do su-
De pseudo-Longino a Kant blime, define o sublime como um “sistema de deformidades”. Ele
chega inclusive a qualificar de sublimes obras de povos cuja civili-
A etimologia de sublime é incerta, mas três propostas devem zação ou barbárie se perde na névoa da origem das raças. Também
ser levadas a sério: 1. sub-limus, de uma maneira oblíqua (sub: logo Kant escreve que “Entre todos os selvagens não há nação que mos-
abaixo, perto de, levemente); 2. sub-limen (limen:limiar), quase no tre um caráter tão sublime quanto os da América do Norte!”*
limiar, ou, ao contrário, onde o limiar está logo abaixo e, portanto, Foi precisamente por volta de 1750 que vários autores come-
logo acima do limiar; 3. sub-limes (limes: fronteira, limite), levan- çaram a desenvolver uma verdadeira estética do sublime em sua
do até o limite, muito alto, muito longe; ou ainda, suspenso no ar, relação com o enorme e o disforme. O sublime torna-se uma catego-
planando no ar, transportado através do ar. Ovídio chamava as co ria estética cuja importância se equipara à do belo e, para alguns, a
lunas cujos topos desaparecem nas nuvens de “sublimes”. Parece ultrapassa. Esse movimento se passa simultaneamente na França
que essa terceira etimologia (sub-limes) preserva a maioria das res- (Turgot), na Inglaterra (Burke e Home) e na Alemanha (Kant). As
sonâncias da história da noção, mas devemos guardar também o idéias de Home nos Elements of criticism (1762-65) são muito va-
espírito das duas outras. Em particular, a idéia da proximidade dos gas e largamente moralizantes; elas foram de menor importância para
limiares ganha muito rapidamente a conotação de elevação moral Kant, que as de Burke e especialmente Rousseau. Edmund Burke
e, no domínio da estética, de um estilo elevado que nos transporta publicou A philosophical enquiry into the origin of our ideas of
nos arrebata, nos arrasta para as alturas. Traduzido para o latim cómo the sublime and beautiful em 1757, poucos anos antes de Do belo e
sublimis, o termo retórico grego hupsos designa a altura, a eleva- do sublime (1764). Como Kant, Burke opõe o belo ao sublime. O
belo está do lado do amor e portanto do lado das paixões sociais,

138 , 139
enquanto o sublime está do lado do terror e das paixões individuais. Os grandes carvalhos e as sombras solitárias num bos-
Do terror sagrado nasce um “arrepio agradável”, nas palavras de que sagrado são sublimes; os leitos de flores, as peque-
Burke, visto que o espetáculo sublime (aterrorizante) só pode ser nas cercas vivas e as árvores podadas em forma de figu-
apreciado por aqueles que estão abrigados contra ele. Para Kant tam- ras são belos. A noite é sublime, o dia é belo. Os tempera-
bém, a sublimidade de uma tempestade aprecia-se da terra firme; é mentos que possuem o sentimento do sublime são leva-
com os dois pés firmemente plantados no chão que podemos nos dos gradualmente aos sentimentos mais elevados da
deleitar numa espécie de vôo selvagem rumo ao espaço celestial. amizade, da eternidade, do desprezo pelo mundo, da
Essa descoberta é desenvolvida mais tarde por Kant como uma aporia: quietude silenciosa de uma tarde de verão quando a luz
da emoção do sublime nasce a idéia de uma dor ou de um perigo a trêmula das estrelas atravessa as sombras pardas da noite
que nós não estamos realmente expostos. Burke, em seu Philoso- e uma lua solitária aparece no horizonte. O dia reluzen-
phical enquiry, apresenta-nos não só a fisiognomonia corpórea do te inspira, com o fervor do trabalho, um sentimento de
belo e do sublime, mas também uma descrição psicofisiológica das alegria. O sublime abala, o belo encanta. À expressão
sensações que acompanham o sentimento do belo (o relaxamento) daquele que está plenamente tomado pelo sentimento do
e o sentimento do sublime (a tensão nervosa).º É sobretudo a essas sublime transpira seriedade, às vezes rigidez, enquanto
reflexões psicofisiológicas que Kant alude em sua Crítica do juízo. o sentimento vivo do belo se traduz por um olhar de uma
Ele diz apreciar as pesquisas de Burke em “antropologia empírica” felicidade brilhante, pelo sorriso e, fregiientemente, por
e admite que todas as representações do belo e do sublime afetam o uma alegria ruidosa. O sublime, por sua vez, é de dife-
sentimento da vida e assim proporcionam o prazer ou a dor, que são rentes tipos. Seu sentimento é às vezes acompanhado por
essencialmente de ordem corpórea. O que Kant reprova em Burke é um certo pavor ou melancolia; em alguns casos, apenas
que essas reflexões psicológicas ou “antropológicas” não podem ir por uma admiração silenciosa; e em outros ainda por
além da confirmação empírica dos juízos estéticos e que elas negli- uma beleza triunfando num plano sublime. O primeiro
genciam o essencial: os princípios a priori do gosto a partir dos eu chamarei de sublime aterrador, o segundo, de nobre, e
quais se fará a dedução transcendental da Terceira crítica. o terceiro, de esplêndido. Uma solidão profunda é subli-
No entanto, o Kant de 1764 está ainda muito próximo de Burke, me, mas de forma a inspirar terror. É por isso que os de-
mesmo nos exemplos, a maioria dos quais será retomada, em outro sertos imensos, como os de Komul no país dos tártaros,
lugar, trinta anos mais tarde, na Crítica do juízo. Eis a taxonomia estiveram desde sempre povoados, nas imaginações, de
de exemplos que aparecem em 1764: uma cadeia de montanhas cujos espíritos medonhos, de duendes e de fantasmas. O subli-
picos, cobertos de neve, erguem-se acima das nuvens, um furacão, me deve sempre ser grande, o belo pode ser pequeno. O
ou um reino infernal, como o que foi descrito por Milton, são essas sublime requer a simplicidade, enquanto que o belo pode
coisas que provocam em nós o prazer que marca o sentimento do ser ornado e enfeitado. Um cume não é menos sublime
sublime. Esse sentimento nasce quando a alma é confrontada com do que um abismo. Uma longa duração é sublime.
situações caóticas, com as desordens e as devastações mais violen-
tas da natureza, desde que possamos perceber sua magnitude ou sua É a partir dessa combinação de terror, simplicidade, grandio-
força. O sentimento do belo, por outro lado, é excitado pela visão sidade e longa duração ou eternidade que emergem os dois grandes
de uma várzea coberta de flores, de vales por onde serpenteiam ria- exemplos arquitetônicos de Kant: as pirâmides do Egito ca catedral
chos e pastam rebanhos, pelas descrições dos Campos Elísios ou pela de São Pedro em Roma. A hipóstase do sublime no escrito de 1764
descrição que “Homero faz da cintura de Vênus”.!! Citemos por ex- é evidentemente a etapa pré-crítica, que serve apenas de prelúdio à
tenso as palavras de Kant, por uma vez lírico: Analítica do Sublime de 1790, para a qual nos voltamos agora.

140 É 141
A imaginação subjugada excepcionais e a uma dominação sobre nós que é total e irresistível.
E finalmente, já que podemos dizer que o sublime se abre sobre uma
De maneira muito simplista, poderíamos dizer que o belo e o infinitude de ordem qualitativa, parece que ele estabelece um con-
sublime, segundo Kant, correspondem à harmonia ou ao antago- tato com a supra-existência ou o supra-sensível e, portanto, com o
nismo de duas faculdades, o entendimento e a imaginação. O senti- religioso. Muitos filósofos identificaram, sem dúvida demasiado
mento do belo provém da harmonia entre essas duas faculdades, prontamente, o sentimento do sublime como sentimento religioso.!
enquanto o sublime resulta de seu conflito. Quando o objeto sublime Hegel é um exemplo: ele trata da sublimidade, citando pseudo-
impressiona os sentidos, o entendimento desperta e revela-se a idéia Longino, em suas Lições sobre a Filosofia da Religião."
do infinito ou de um poder supra-sensível que nos ultrapassa. A O sublime violenta a imaginação, ele desencaminha a imagi-
imaginação, de seu lado, não consegue formar uma representação nação, pois ela não é capaz de apreender seu objeto uno intuitu. O
dessa infinitude. Por conseguinte, uma luta se estabelece entre a céu estrelado, tanto quanto a cúpula de São Pedro, deve ser visto
imaginação e o entendimento. A Idéia da infinitude nos faz provar como uma vasta abóboda, “que compreende tudo”, como a idéia de
o sentimento de uma ameaça ou de um terror que se faz acompa- infinito. A imaginação deve fazer um esforço para alcançar a medi-
nhar em nós pela inibição de nossa natureza sensível. No entanto, a da da grandiosidade absoluta, isto é, a unidade ou a totalidade das
alma se entusiasma diante do objeto ou evento sublime, pois expe- diversas intuições. O sublime nasce justamente desse malogro em
rimenta a mais alta alegria de que ela é capaz, já que participa do apreender a imensidade absoluta.'! Segue-se então que, na emoção
infinito, do divino e do moral em sua própria essência. do sublime, a imaginação é “atirada no abismo”, e o livre jogo
E sabido que Kant acrescentou uma distinção entre o sublime das faculdades resulta transtornado. Como diz Chédin: “Na presença
matemático e o sublime dinâmico. No sublime matemático, a infi- do belo, a imaginação entra de alguma forma “num jogo de iguais”
nitude aparece como grandeza e no sublime dinâmico, como força. com o entendimento; ela “imita” a submissão do entendimento a
De fato, não é o objeto ou evento em si que é sublime, pois o senti- normas na (e através de) regularidade de sua própria manifestação.
mento do sublime depende de um juízo reflexivo: o sublime nasce Ao contrário, em face do sublime, a natureza lhe impõe uma tarefa
do jogo de nossas faculdades. Mas aqui surge inescapavelmente um impossível, que excede absolutamente sua capacidade de compre-
problema epistemológico: por que Kant reconstrói o sentimento do ensão”.!º É com uma imaginação “subjugada”, na verdade uma ima-
sublime a partir de experiências da natureza (as pirâmides tanto ginação que “ficou sem a fala”, que nós apreciamos o sublime. No
quanto a catedral de São Pedro são exemplos derivados)? Acaso o entanto, esse desabar da faculdade de imaginar, esse fracasso em
belo qualifica a arte e o sublime, a natureza? conseguir imaginar a totalidade ilimitada, não é disfórico. É bem
Antes de propor uma alternativa ao dualismo do belo e do su- aí, nesse dilaceramento, que nasce o prazer e mesmo a felicidade.
blime, e em função da formulação dessa alternativa, é tempo de lem- Essa euforia da imaginação é criada por um paradoxo. A imaginação
brar agora as três características do sublime de que Kant faz amplo hiperativa, necessariamente em ruínas, pois ela não consegue apre-
uso em sua Analítica. Em primeiro lugar, sua valoração negativa: ender o infinito, é ao mesmo tempo a faculdade que faz sentir a
ao definir o sublime, é preciso apelar para a transcendência, o ex- infinitude da alma, o poder de uma liberdade que é impossível de
cesso, a inibição e a participação. Se o belo é definível de maneira ser representada. É dessa forma que o sentimento do sublime nos
canônica, o sublime pressupõe mecanismos que só recebem seu valor traz ao mesmo tempo pavor e prazer extremo: a própria impossibi-
negativamente. Em segundo lugar, há a intensidade emocional que lidade de imaginar o infinito, o ilimitado e a totalidade é expe-
não só é constitutiva do sublime como é inerente a ele. O sublime rienciada como a possibilidade da infinitude da alma. Sentir que a
leva a paroxismos da experiência estética; a embriaguez intensa do imaginação foi necessariamente ultrapassada é sentir a alma em sua
sentimento do sublime parece devida a circunstâncias existenciais liberdade ilimitada. O sentimento do sublime vive esse dilacera-

142 143
mento, esse paradoxo, e é sem dúvida isso que explica por que o comparáveis, sua relação não é de coexistência indispensável. A
sublime não tem medida comum com o belo. leitura pós-moderna que Lyotard e outros filósofos propuseram para
a Crítica do juízo sustenta esse esforço de uma dissociação radical
do belo e do sublime.'* O sublime, para Lyotard, cria afetos, como o
Para restabelecer a autonomia das duas analíticas entusiasmo, que nada tem a ver com a esfera do belo.” O “interes-
se” pelo sublime é bem diferente do “interesse” pelo belo, que per-
A relação entre a analítica do belo e a analítica do sublime é de manece fundamentalmente formal e intelectual. O interesse pelo
grande complexidade arquitetônica e aqui só podemos esboçá-la sublime é muito mais próximo do desejo; o que ele faz não é nada
esquematicamente. A analítica do sublime foi incorporada mais tar- menos que chamar em questão a plena heterogeneidade das facul-
de, é verdade, mas isso não explica tudo. Provavelmente, Kant teve dades: a heteronomia do entendimento e da imaginação cria abis-
a ocasião de utilizar depois vários elementos definicionais da ana- mos que instigam prazeres aterradores. Podemos acrescentar que não
lítica do sublime para enriquecer o foco original do sentimento do há ponte entre o belo e o moral, enquanto a ponte entre o sublime e
belo. Alguns foram tentados a interpretar a analítica do sublime como o moral é essencial: o sublime gera a Achtung, diz Kant, o respeito,
tornando mais profunda, de maneira radical, a analítica do belo. É alguma coisa que não está nunca lá em sua totalidade, como a ima-
verdade que o belo e o sublime têm muitas coisas em comum: ambos ginação subjugada pode comprovar. Esse debate arquitetônico, que
agradam por si mesmos; eles são independentes dos juízos que os concerne à relação do belo e do sublime, não será levado adiante
determinam; pretendem ser universais. Mas há também diferenças aqui.?º Ao invés disso, voltemos nossa atenção para dois aspectos
claras. O belo toca a forma do objeto (em sua delimitação), enquan- da concepção kantiana de sublime que têm sido muito pouco ex-
to que o sublime aparece quando o espírito é confrontado com o plorados e que permitem enriquecer, no que se segue, a idéia do
informe (precisamente onde a ausência de delimitação é apresenta- sublime como a ambiência da sedução.
da). E ainda, enquanto o belo faz nascer diretamente por si mesmo
o sentimento de uma intensidade vital crescente (Beforderung) di-
ante dos atrativos do objeto belo, o sentimento do sublime é um O tempo do sublime e seus limiares
prazer que só brota indiretamente, a saber, de forma a ser produzido
pelo sentimento de uma inibição repentina (Hemmung) das forças Tem sido dito frequentemente que a estética kantiana do su-
vitais seguida por uma descarga (Ergiessung), esse movimento blime contém os fundamentos de uma estética da arte que é muito
paradoxal da alma que resulta do desabar da imaginação já mencio- contemporânea, uma forma de arte informal, não-representativa, que
nado. busca a formação de uma (re)presentação (Darstellung) do tempo e
Isso deve ser entendido como a defesa de uma dissociação ra- do espaço sem a mediação de figuras ou imagens. Essa hipóstase do
dical do belo e do sublime como duas categorias estéticas equiva- sublime consagraria então o massacre da arte acadêmica e seria o
lentes e complementares e, portanto, de uma dissociação das duas culto do apocalíptico e do caótico. O objeto desaparece, mas tam-
analíticas. Kant insiste em outra passagem que a dedução dos juízos bém desaparece a forma do objeto, até onde é harmonioso e pro-
estéticos não se orienta para o sublime, mas somente para o belo.” porcional. Kant insiste muito no caráter formal do objeto belo: por
Para sugerir o “abismo” entre os dois, Kant exagera mesmo a tranqiii- exemplo, no desenho (que tinha para Kant uma prioridade eminen-
lidade do belo, o que dá um realce ainda mais marcado à violência te entre as artes plásticas), o que é apreendido no sentimento do belo
do sublime. Não pode haver então continuidade entre o belo e o é o esboço de uma forma. No entanto, Kant, de acordo com suas
sublime: uma beleza “perfeita”, muito bela, não se transforma ne- reflexões sobre o sublime, parece ser levado para uma arte totalmente
cessariamente em sublime. Mesmo que o belo e o sublime sejam livre, na qual a imaginação é confrontada com o informe-ilimitado,

144 º 145
ou mais precisamente, para uma arte que permite à imaginação fruir, mento do sublime. Onde o heterogêneo se presentifica (Darstellung),
por causa da resistência da infinitude do informe, do sentimento da o sublime emerge. No entanto, o vazio que pressentimos, a infinitude
infinitude da alma. enquadrada e evocada por meio de grades é acima de tudo um vazio
A arte ideal é, por consegiência, uma arte totalmente livre, temporal ilimitado e infinito. O fracasso da imaginação é o fracasso
genuinamente abstrata e é por isso que se diz frequentemente, com da temporalidade da imaginação: o exercício temporal da imagina-
razão, que a estética de Kant está à frente de seu tempo.?! É sem dú- ção é desencaminhado. Aqui estão algumas poucas passagens do
vida difícil interpretar certos exemplos particularmente “frívolos” importante parágrafo 27 da Crítica do juízo, na qual Kant analisa o
mencionados por Kant e compreender por que ele vê uma cumplici- exercício temporal da imaginação juntamente com a experiência do
dade entre o sublime e o decorativo (os “trabalhos acessórios” ou sublime.
parerga que Derrida avalia tão positivamente em seu texto sobre a
Crítica do juízo).2 A ausência de motivos e de figuras, a ausência Ao apresentar o sublime na natureza, a mente se sente
de toda configuração natural, o ambiente decorativo — a folhagem agitada (bewegt), ao passo que no juízo estético do belo
ornamental, as tatuagens, os jardins — caprichos, os floreios tudo ele está em contemplação calma. Esse movimento (prin-
isso deve levar a uma arte verdadeiramente livre, abrindo-se sobre cipalmente em seu início) pode ser comparado a uma
a estupefação de um espaço infinito, de um vazio ilimitado. A deco- vibração, isto é, uma rápida alternância de repulsões e
ração é, de fato, uma grade, um padrão estranho que cria a perspec- atrações por um mesmo objeto. O transcendente (das
tiva sobre o ilimitado e o disforme — nesse contexto, pensamos ob- Ueberschwengliche) é para a imaginação um tipo de
viamente no Teatro Palladio, em Vicenza. Mas não é só isso: a fo- abismo no qual ela tem medo (fiirchtet) de se perder.
lhagem ornamental, tanto quanto o ajardinamento (inglês e rous- Medir um espaço (enquanto meio de apreendê-lo) é ao
seauista, diametralmente oposto ao jardim francês), manifesta mais mesmo tempo descrevê-lo e, é portanto, um movimento
a musicalidade do que a plasticidade. Kant diz explicitamente que objetivo na imaginação e uma progressão. Por outro
ele pressente a arte livre na “livre improvisação musical sem tema”:? lado, compreender uma multiplicidade (de intuição mais
é a música improvisada, completamente decorativa, que induz o que de pensamento) e por conseguinte compreender num
pensamento a sonhar, como quando está diante das chamas de uma só instante aquilo que é apreendido sucessivamente é
lareira, despertando o sentimento da longa duração, do tempo infi- uma regressão, que por sua vez suprime a condição tem-
nito. É a partir da idéia da musicalidade do sublime que se cristali- poral na progressão da imaginação. Assim (já que a su-
zam os dois componentes frequentemente mal compreendidos da cessão temporal é uma condição do sentido interno) ela
concepção kantiana do sublime. é um movimento subjetivo da imaginação, pelo qual faz
O sublime, em primeiro lugar, é o sentimento do heterogêneo, violência ao sentido interno.”
das grades e dos padrões, das rupturas e fraturas, dos limiares. Certos
comentadores têm sustentado erroneamente que o sublime está in- Há portanto um desencaminhar do tempo da imaginação e
trinsecamente ligado ao colossal e à magnitude, mesmo que o colos- uma violência exercida sobre o sentido interno, o tempo da sucessão.
sal (por exemplo, as pirâmides e a catedral de São Pedro, em Roma) As fraturas e as heterogeneidades que instilam em nós o sentimento
evoque claramente o espaço infinito. É ao contrário a moldura, o do sublime, em conseqiiência, agridem a temporalidade da imagi-
enquadramento, abrindo-se sobre o assombro do vazio, que desen- nação e é dessa forma que a imaginação perde toda possibilidade
caminha a imaginação. A perda de consciência e o estremecimento de coordenação com o entendimento. O sublime desencaminha o
são estesias que sentimos diante desse enquadramento do vazio, tempo da imaginação e impõe sobre ele limiares frívolos. Esse tem-
pois combinam a ansiedade e a alegria extrema que marcam o senti- po do sublime e seus limiares são o que dá substância à “ambiência

146 , 147
da sedução”, que é acima de tudo movimento — Kant emprega a pa- podemos ver ocorrendo aí um jogo de etiquetar, especialmente se
lavra Reiz (atração) e Riihrung (emoção) para falar da sedução, dois nos contentarmos com uma simples enumeração entusiasmada. É
termos que se referem ao movimento. Antecipando a terceira parte melhor não prosseguirmos nesse debate metodológico e impor duas
deste capítulo, fala-se de sedução quando a imaginação coloca o restrições à reflexão sobre as categorias estéticas: em primeiro lu-
tempo em movimento — o sublime nada mais é do que a ambiência gar, deve-se partir de uma intuição central, servindo de princípio
da sedução. de organização de todo o diagrama dos valores estéticos; além dis-
so, deve-se fazer com que o fundamento de uma categorização esté-
tica seja utilizável para “fenomenologias” ou “pequenas ontolo-
2. O diagrama dos valores estéticos gias”. Nem o método dedutivo nem o dogmático, nos quais a tabela
de categorias é deduzida de um raciocínio fechado, nem o método
indutivo e o que procede por ensaios, os quais só podem levar a
Os estetas e os prazeres da classificação uma taxonomia intuitiva sem nenhuma importância, são particular-
mente satisfatórios. Seria melhor, sem dúvida, refletir sobre as rela-
As categorias, desde Aristóteles, são os principais instrumen- ções, afinidades, transições, c abandonar a idéia das exclusões cate-
tos do juízo classificatório e, desde que Baumgarten publicou a goriais (qual é o oposto do belo: o feio ou o sublime?). Para ilustrar
primeira Estética de todos os tempos em 1750, usamos e abusamos a estagnação nesse domínio, é suficiente apresentar três exemplos:
do termo “categoria estética”. O belo e o sublime são pensados por a sistematização das categorias estéticas de acordo com Lalo, Bayer
Burke, Home e Kant, na segunda metade do século XVIII, como duas e Souriau.
categorias irredutíveis e fundamentais. Um verdadeiro pluralismo Charles Lalo, em suas Notions d'esthétique,** constrói sua ta-
do valor estético instalou-se rapidamente e a lista dos atributos es- bela combinando dois princípios. O primeiro deriva da tendência
téticos nunca mais parou de se expandir. Charles Lalo, escrevendo fundamental na direção da harmonização e unificação que, segun-
na virada deste século, enumerou nove: o belo, o sublime, o espiri- do Lalo, é comum a todas as atividades do pensamento; por outro
tual, o grandioso, o trágico, o cômico, o gracioso, o dramático e o lado, essa harmonia ou unidade é encontrada/possuída, procurada/
humorístico. Etienne Souriau contará 24 “sabores” estéticos — vol- desejada ou perdida, de acordo com uma divisão ternária. O segun-
taremos a este ponto mais tarde. Assistimos desde Baumgarten a uma do princípio baseia-se na divisão tradicional das nossas faculda-
verdadeira desintegração por dispersão da idéia de categoria esté- des, que é também ternária: inteligência, vontade e sensibilidade.
tica. Toda Stimmung, tão logo temos uma etiqueta à disposição, pode Combinando essas duas tripartições, obtém-se uma tabela com nove
se tornar categoria estética (o estranho, o ardente, o selvagem, o categorias estéticas. Veja abaixo.
solene, o sereno, etc....). A categoria estética está certamente em cri-
se e muitos estetas pensam agora que a estética não deve mais ofere-
Harmonia
cer especulações sobre o sistema de categorias estéticas, mas deveria
apenas tornar-se uma filosofia da arte, o que ela nunca foi em Procurada Possuída Perdida
Baumgarten, Kant, Schelling, Schiller, Hegel.
Em conseqiiência, o que se viu foi antes a expulsão metodoló- Inteligência Sublime Belo Espiritual
gica da noção de belo e de sublime, da mesma forma que assistimos Vontade Trágico Grandioso Cômico
em arte contemporânea à Falência da beleza, título de um pequeno
livro bastante provocativo de Lalo (1923).% De fato, apontou-se Sensibilidade Dramático Gracioso Ridículo
algum dogmatismo um pouco vazio da categorização estética e

148 149
Várias qualificações estéticas são distribuídas do topo à base do, sem muita consideração pela lógica, noções antinômicas (o feio
entre essas nove categorias. Lalo reúne, na esfera do gracioso: o assim como o cômico são — por quê? — antinomias do belo) e todos
bonito, o elegante, o refinado, o sedutor. Eu cito sua definição des- os tipos de Stimmungen, como o fantástico, o maravilhoso, o ingê-
se campo: nuo, o sentimental, etc. E ele às vezes chega a formulações que são
mais surpreendentes do que pertinentes, como: “o barroco é um
O gracioso, o bonito, o elegante, o refinado e o sedutor sublime fracassado” ou, ainda, “esse sublime fracassado é um su-
inspiram uma simpatia protetora pelos seres ou objetos blime que se revela gracioso”.”!
pequenos e fracos; uma solidariedade social ou cósmi- O terceiro exemplo, de longe o mais coerente dos três, é o fa-
ca fundada, para nossa vantagem, numa hierarquia que moso diagrama das categorias estéticas segundo Etienne Souriau.
se torna espontaneamente aceitável, lisonjeando nossa Contando com 24 ramos, esse diagrama inclui (1) os valores de es-
vida afetiva. É dessa forma que ele nos proporciona um tilo clássico (o cômico Aristófanes opõe-se diametralmente ao su-
agradável crescimento de nosso sentimento de nós mes- blime Píndaro; o bonito Anacreonte opõe-se ao trágico Ésquilo),
mos: o charme.” enriquecidos pelo (2) sistema romântico de valores: enfático, paté-
tico, dramático, irônico, fantástico, poético. Procedendo dessa vez
Aparecem relações entre categorias vizinhas: o trágico é o por puro formalismo, Souriau intercala ainda em todo lugar (3) uma
sublime da ação (vontade), assim como o sublime é a tragédia da estação entre esses dois vizinhos, obtendo assim 12 estações com-
inteligência e o dramático é o sublime da sensibilidade! Obviamen- plementares: é aqui que encontramos o nobre, o grandioso, o espi-
te, tudo nessa classificação é problemático: a velha divisão das fa- ritual, o pitoresco, o gracioso, etc. Souriau propôs seu diagrama em
culdades é escolástica e obsoleta; e é duvidoso que o ridículo seja 1933,% mas não se referiu mais a ele em suas conferências após a
um valor estético; os valores classificados como “harmonia perdi- guerra. Ele desenvolve, no entanto, uma estratégia que não é sem
da” são arbitrários; a tabela é claramente construída a partir das ar- interesse: os valores indicados sob as rubricas 1 e 2 originam-se di-
tes literárias e assim por diante. retamente nos dois paradigmas estéticos mais importantes de nossa
Passamos agora a um outro exemplo, a classificação de Bayer, civilização: o ideal clássico e o ideal romântico. Mas o diagrama
autor de uma volumosa Esthétique de la grâce.? A tripartição fun- ainda é prejudicado pelo excesso de artifício e Souriau mudará,
damental é muito simplificadora: o belo se situa entre o sublime de felizmente, de opinião sobre dois pontos importantes: primeiro, o
um lado e o gracioso de outro. O sublime, como já acontecia em poético e o sublime não são simples categorias estéticas entre ou-
Burke, é a categoria-mãe: Ibsen, Caravaggio, O Juízo Universal da tras, e, além disso, as categorias estéticas chamadas menores, como
Sixtina, bem como a musculatura extravagante das obras de Mi- o bonito, o elegante e o gracioso, têm inter-relações estruturais in-
chelangelo e a poética da energia são evocados. A graça, para Bayer, teressantes a detectar. Pode-se dizer que o poético é, de fato, um a
está do lado da forma e do acabamento técnico; ele a define como priori de qualquer axiologia estética: sem o poético, nada de beleza,
facilidade — a graça opõe-se diametralmente ao esforço — e com um nada de sublime, nada de gracioso, etc. Não é desejável entrar nessa
movimento que é “fácil e inesperado”.” A graça — e a dança a corpo- discussão aqui. O sublime, estando ligado ao sentimento de trans-
rifica mais do que qualquer outra arte — é econômica e flexível, cla cendência e de excesso, pode modificar qualquer valor estético e
é a qualidade dos ritmos de que se tem experiência, é a encrgética não apenas o belo. Mas antes uma palavra sobre as categorias me-
harmoniosa e íntima. O belo, enfim, é o equilíbrio encontrado entre nores, que são menores como as ontologias “pequenas”, são sem
as duas estruturas do sublime e do gracioso: “É por isso que ele dúvida periféricas, mas constituem uma força poderosa por trás da
pende, em seus efeitos sobre nós, na direção de um lirismo do per- constituição de tensão entre sujeitos.
feito."*º Estranhamente, Bayer enriquece seu sistema acrescentan-

150 151
elegíaco belo nobre outro lado, vastas paisagens podem também ser bonitas. O bonito
corresponde a uma pausa durante a qual a violência do universo é
poético WI enfático suspensa (a vasta paisagem do mar, por exemplo, enquanto o irrom-
per de suas forças aterrorizantes cessa temporariamente). É na ver-
gracioso grandioso
dade a fragilidade do objeto que faz nascer a idéia de que o bonito
bonito H sublime é precário, bastando um nada para destruí-lo. Se fizéssemos uma
morfologia do bonito na natureza (uma gota que brilha ao sol, uma
pitoresco 5 lírico
florzinha descoberta na relva), ficaríamos mais provavelmente ma-
extravagente patético ravilhados com as exigências que esse resultado surpreendente, que
é o bonito, precisa satisfazer. Fragilidade, precariedade e também
espiritual heróico
gratuidade: o domínio do bonito parece escapar à ordem da neces-
cômico trágico sidade. O bonito carrega consigo sua própria morte espetacular.
Pensemos na delicadeza das flores de gelo do orvalho numa vidra-
satírico pírrico ça: ela é efêmera, só floresce por acaso. Há certamente um sublime
irônico dramático do bonito: Mozart, por exemplo, exprime sempre o patético do fim,
da fragilidade, da precariedade.
caricatural grotesco melodramático A Graça é outro valor menor. Ela se manifesta especialmente
nos movimentos e baseia-se então numa temporalidade constitutiva.
As categorias estéticas menores É sempre em relação a uma dança virtual que apreciamos a graça.
Se colocamos o gracioso nas artes plásticas, na escultura, por exem-
Há uma hierarquia entre as categorias estéticas? O belo, o su- plo, é sempre prefigurando um movimento possível: a posição gra-
blime, o trágico e o dramático são inegavelmente valores que reco- ciosa é como um ponto de inflexão de uma posição do corpo. A
brem um importante conteúdo filosófico e existencial. Eles são as Esthétique de la grâce de Bayer dá alguns detalhes suplementares
categorias que geram e pressupõem emoções fortes, sentimentos interessantes. Como diz Bayer, o movimento real ou virtual deve
nobres e profundos e estados mentais intensos. Vamos agora decres- dar uma impressão de facilidade e de leveza, por sua continuidade,
cendo na direção dos valores mais fracos, mais leves, mais agradá- por sua calma e sua medida. A graça é essencialmente melódica,
veis para os sentidos. Se preferisse, por exemplo, o bonito ao subli- legato e cantabile. Num certo sentido, podemos dizer que a graça
me, isso revelaria que temos uma alma frágil, pouco apta a tomar nos seduz por estar em acordo com nossas aspirações íntimas.
posições, e um coração preguiçoso. O bonito, como o elegante, não Bergson já notou que “a verdade é que nós acreditamos discernir
nos leva aos cumes mais altos, por assim dizer, mas sim às amáveis em tudo o que é gracioso, e também na agilidade que é marca da
colinas. Certos estetas, como Cuvelier, querem demonstrar que o mobilidade, a indicação de um movimento possível em nossa dire-
bonito é uma forma inferior do belo (“é o belo nas coisas pequenas: ção, de uma simpatia móvel, sempre a ponto de se dar, que é a essên-
nós sorrimos para o bonito”).** Em oposição à maioria dos estetas, a cia da graça superior”.* Se há um sublime da graça, será no nível
posição adotada aqui é de que as categorias estéticas menores são dessa simpatia móvel, dessa vida introspectiva animada, dessa in-
verdadeiramente intrigantes. É tentador apresentar-se como o de- timidade eurrítmica de nosso corpo. É interessante estudar as for-
fensor do elegante contra o belo! mas degeneradas da graça: o afetado e o exagerado, por exemplo, e
Para começar, é verdade que o bonito se alia necessariamente determinar o que há de específico no gracioso barroco, para menci-
à pequenez física? Uma certa pequenez favorece o bonito, mas, por onar apenas um tipo muito importante. Isso não será desenvolvido

152 153
aqui, para que possamos discutir uma última categoria menor: o sante é constatar que o primeiro Tratado estético da história, o de
elegante. Baumgarten (1750), introduz a elegância para qualificar um certo
tipo de entendimento ou uma propriedade da alma: um “espírito
elegante” tem o que Baumgarten, que inspiraria Kant, chama de
A esteticidade da elegância “estética natural”.”” Baumgarten acrescenta ainda que a elegância
da alma faz do filósofo um “esteta feliz”; acrescentando uma deter-
O elegante não deve ser confundido com o gracioso. No reino minação ao semantismo da elegância: inteligência, justeza, discri-
animal, o jaguar, a serpente e o galgo mostram uma elegância natu- ção, simplicidade e ... felicidade.
ral, Há um velho debate na filosofia da pintura sobre a elegância
não das formas, mas das cores. Existem cores elegantes? Souriau
afirma que certas pinturas de Veronese e da Escola Veneziana mos- 3. (Sublime) Ambiência da sedução
tram uma elegância extraordinária de cores, na qual o essencial é
transmitido por uma gama de matizes (cinzas, prateados, amarelos
tênues, etc.). A elegância das cores — tendo em mente Veronese, em A sedução pelo sublime
oposição a Ticiano — seria produzida por uma busca pelos matizes,
mas com simplicidade, precisão e em particular pela estilização. O sublime não é uma categoria estética a ser colocada entre
Parece que a sobriedade e a discrição, a recusa de toda ênfase, de outras ou no mesmo nível. Alguns autores têm dito que o sublime é
toda redundância são também inerentes à elegância. A categoria da a convergência de todas as emoções estéticas, mas a posição adota-
elegância é também uma das mais propensas a intelectualizar-se: da aqui é que o sublime leva qualquer emoção ao seu paroxismo.
fala-se de uma “demonstração elegante” na matemática, de uma “so- De modo extremamente simplista, pode-se dizer que, quanto mais
lução elegante”, aquela que é ao mesmo tempo a mais eficiente e a forte a intensidade do sentimento com que a experiência estética
mais simples. É evidente que a categoria da graça não aceita essa nos afeta, tanto mais forte será o nosso pressentimento do sublime.
extensão para o domínio intelectual. Além disso, “a elegância mo- Souriau também chega à mesma conclusão em seus últimos escri-
ral” aplica-se a ações que não são utilitárias, mas no entanto atestam tos: “É apropriado conceber o sublime, diferentemente de qualquer
uma grande economia de meios. Na arte, poderíamos evocar os ara- outro valor estético particular, como o topo que os valores alcan-
bescos elegantes de Leonardo da Vinci: é sua surpreendente preci- çam no momento de sua realização mais elevada. Todas as catego-
são que cria o efeito da elegância. A medida exata e a discrição se rias estéticas são caminhos para o sublime, e só alcançam sua au-
impõem ao raciocínio e ao comportamento elegante. Essa medida tenticidade plena em relação a ele.”*º Seria inútil retomar aqui essa
justa já foi invocada quando falamos da mêtis e da parteira como projeção de autenticidade, bastando-nos a idéia (indubitavelmente
Aristóteles as apresenta, símbolos dessa inteligência elegante que muito simples) de que o sublime seria um grau superlativo não ape-
foi referida como “razoabilidade”. Podemos portanto descobrir aqui nas do belo, mas de todas as categorias. Consegiientemente, foram
um conglomerado de conotações que remontam até o De cultu aqui mencionados sem hesitações o sublime do bonito (Mozart), o
feminarum de Tertuliano e o Traité de la vie élégante de Balzac:” sublime do gracioso (prototipicamente a dança) e o sublime do ele-
inteligência, justeza, discrição, simplicidade e razoabilidade. É gante (a Escola Veneziana, Veronese).
nesses termos que se concebia a elegância na época em que Kant A analítica kantiana do sublime, separada da análitica do belo,
redigiu seu Do belo e do sublime (1764). Burke dedica um pequeno nos deu as determinações mais poderosas do sublime, O sublime
capítulo à elegância, em seu Enquiry,** onde reaparecem as quali- desencaminha a imaginação, já que a defronta com o disforme-ili-
ficações suave, polido, forma regular e especioso. Mais interes- mitado, com o heterogêneo, com rupturas e fraturas. Numa palavra,

154 155
o sublime é o sentimento dos limiares. No entanto, o desabar da O flerte, o elegante, o dândi
imaginação é o desabar da temporalidade da imaginação: o senti-
mento do sublime violenta o tempo; isso, como diz Kant, é “imagi- Esta seção é uma última palavra sobre a elegância e, em forma
nar compreender num instante” aquilo que é apreendido como su- de hors d'oeuvre, sobre o flerte. Georg Simmel apresenta-nos em sua
cessivo.*! Em conseqiiência, o sublime é o que seduz. Seduzir, como Philosophy of love” algumas reflexões pertinentes sobre o flerte.
já foi dito, é colocar o tempo em movimento com a imaginação, e os Ele escreve: “Um olhar oblíquo com a cabeça parcialmente virada
dois termos que Kant utiliza para falar sobre sedução evocam bem é típico do flerte. Há nesse gesto uma insinuação de aversão; mas
essa ambiência da sublimidade: Reiz, crescer e diminuir (como o mar ele indica ao mesmo tempo uma submissão passageira, uma aten-
agitado, por exemplo), e Rúhrung, turbilhão e tumulto. O sublime é ção momentaneamente voltada para o outro, que é ao mesmo tempo
a ambiência da sedução. Seduzir vem de se-ducere, onde se- signi- repelido pela inclinação do corpo e da cabeça.” O flerte joga na
fica “à parte, separado”, capturando um sentido de separação. Poder- antítese: o movimento de voltar-se saindo, virar-se, a atração do
se-ia dizer que seduzir é guiar, conduzir à parte. Um sentido suple- secreto e do segredado, a ritmicidade lúdica de uma alternação con-
mentar é aquele de desviar ou trazer para si, como o dux atrai aque- tínua, o gesto duplo de concordar e de recusar, o selo do provisório
les que o seguem. Não há sedução sem uma relação de deflexão, sem e do incerto, o charme do frívolo, a misteriosa imbricacão do sim e
um movimento de alteração de rota. A sedução esboça um caminho do não, todos são mecanismos regulando uma intersubjetividade
num tempo-espaço paradoxal. O objeto sedutor joga no nada, o que bem sutil. Podemos nos perguntar se o flerte pode se elevar à subli-
explica seu propósito teatral e suas amplificações estratégicas.” midade. Parece que o flerte não é verdadeiramente um valor estético:
Pode-se ver por que a “seducificação” do sublime é algo per- se isso estiver correto, não se pode dizer que o sublime modifica o
feitamente natural. O belo não seduz nem seduzem o bonito, o gra- flerte.
cioso ou o elegante; o que seduz é o sublime do belo, o sublime do O caso da elegância é outro. A estética da elegância do dândi
bonito, o sublime do gracioso, o sublime do elegante. Na termino- sugere que a elegância nada tem a ver com o belo, isto é, com o
logia kantiana: até onde o jogo das faculdades do entendimento e estático, o perfeito, o harmonioso. Nada sobre as práticas do dândi
da imaginação permanece harmonioso, até onde a imaginação não será aqui mencionado nem sobre a história do dandismo através do
é livre, não pode haver sedução, já que não haverá sublimidade como século XIX, de Brummell a Baudelaire e Wilde. Só será menciona-
ambiência da sedução. O sublime instaura um percurso de abismos do que certos autores, como Kleist e mais recentemente Lyotard,
e fraturas, um campo de limiares ou de enquadramentos abrindo-se derivaram o dandismo diretamente da estética de Kant, em particu-
sobre o pasmo do ilimitado ou do nada — um paradoxo onde nada é lar de sua analítica do sublime, o que conduziu muitos românticos
belo, perfeito nem harmonioso e onde o temor engendra o mais in- para a procura da transcendência, de um alhures, e mesmo para a
tenso dos prazeres. No entanto, os limiares são fundamentalmente busca da loucura. O dandismo, como uma filosofia de vida, poderia
temporalizados. Há Reiz e Riihrung, ascenção/queda e tumulto, o se revelar o lugar preciso onde a sublimidade e a elegância se en-
cataclismo da linearidade, a temporalidade desencaminhada: eterna- contram. Foi notado a propósito do dandismo que “o dândi se mos-
lização, elasticidade, concentração e ruptura do tempo, tudo isso tra marcado pela incerteza de ser. Ele reforça a instabilidade inevi-
constituindo o sublime mozartiano do belo, do elegante veneziano. tável daqueles que seguem a moda mediante uma obrigação de in-
O sublime é a ambiência da sedução. certeza. Por meio dessa incerteza, o dândi afirma sua vocação filo-
sófica”.“ Para o dândi, a dúvida é elegante e sua vida, uma obra de
arte. Não uma obra bela, harmoniosa ou perfeita, mas uma obra su-
blime e sedutora. O olhar boquiaberto para o ilimitado, o nada, o

156 157
vácuo, dizem alguns, é onde o dândi sofre e se diverte. Compreen-
de-se como a analítica do sublime, transformando-se numa filoso-
fia do dandismo, leva a um niilismo estético.
Que a elegância — que é inteligência, justeza, discrição, sim-
plicidade, razoabilidade — tenha seu paroxismo no sublime — que é
fraturas e limiares — apresenta-se como um enigma intrigante da
estética. Ele consiste no fato de que a elegância se sublima e se
modifica num caminho paradoxal de limiares: ela desencaminha a
NOTAS
imaginação e instaura uma temporalidade sincopada. É aí sem dú-
vida que se forja a experiência estética da elegância sublime, que
só desfrutamos com temor e respeito.
' Do Belo e do Sublime. Tradução para o inglês de John T. Goldthwait, The
beautiful and the sublime. Berkeley, University of California Press, 1960, p.
97.
? Ibid., p. 94.
2? Ibid., pp. 76-7.
*M. Edelman, La maison de Kant. Paris, 1987.
3 Cf. H. Parret, Le sublime du quotidien. Paris/ Amsterdam, Benjamins, 1988,
pp. 229-30.
* Ver em Platão o termo hupsos amatheas, o “píncaro da ignorância”.
? Longino, Peri hupsous: veja o comentário e a tradução inglesa de J. A.
Arieti e J. M. Crossett, Longinus; on the Sublime. New York/Toronto, The
Edwin Mellen Press, 1985. Diz-se que Longino viveu de 213 a 273 d.C.; outros
comentadores consideram que o Tratado data de muito antes de Longino.
Afirma-se que seu autor deve ser um neoplatônico, um estudante seguidor de
Plotino, e a obra é repleta de misticismo, o que a aproxima de certos ale-
xandrinos; é provável que Longino tenha sido membro de uma escola em
que o hebraismo tinha influência maior: no Tratado descobre-se uma citação
bíblica como exemplo do sublime: “Deus disse: faça-se a luz. E a luz se fez.”
*1. Kant, Of the beautiful and the sublime, op. cit., p. 111.
* E. Burke, A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the subli-
me and beautiful, editado com uma introdução e notas de J. T. Boulton. Lon-
dres, Notre Dame University Press, 1958, ver, por exemplo o capítulo 19.
9 1. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 29.
WI. Kant, Of the beautiful and the sublime, op. cit., p. 47.
2 V., por exemplo, A. Lazaroff, “The kantian sublime: aesthetic judgement
and religious feeling”. In: Kantstudien (71): 202-20, 1980.
" G. W. Hegel, Lectures on the philosophy of religion. Tradução de P. C.
Hodgson. University of California Press, 1987, v. II, pp. 433 ss.

158 159
“1. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 29. Trad. inglesa de Pluhar, Critique * H. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, 1889.
of judgment pp.l24 ess. Tradução inglesa Time and free will; an essay on the immediate data of
3 V. O. Chédin, Sur l'esthétique de Kant. Paris, Vrin, 1982, especialmente consciusness, London, McMillan, 1910, pp. 11-13.
o capítulo 2. “ Tertuliano, De cultu feminarum. Opera, Brepols, 1954; H. de Balzac, Traité
!6 Ibid., p. 253. de la vie élégante, 1833, edição de Paris, Delmas, 1952: aqui Balzac conde-
na o dandismo e dá um tratamento anedótico e psicossociológico à “vida ele-
7 1, Kant, op. cir., parágrafo 30.
gante” enquanto ideal do século XIX.
"3, F. Lyotard, L'enthousiasme; la critique kantienne de [histoire. Paris,
* E. Burke, A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the su-
Galilée, 1986 e a compilação de artigos entitulada Du sublime. Paris, Belin,
blime and the beautiful, 1757, livro III, seção XVIII.
1988, com a colaboração de M. Deguy, J. L. Nancy, E. Escoubas, Ph. Lacoue-
Labarthe, J. F. Lyotard, J. Rogozinski, J. F. Courtine e L. Marin. 9 A. G. Baumgarten, Aesthetica, seção 1, parágrafos 24 a 30.

Idem, op. cit., pp. 59-61. *º E. Souriau, Les catégories esthétiques, pp. 99 e 107.

2º Veja em especial o artigo de J. L. Nancy em Du sublime, op. cit., pp. 35- “1 T. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 27.
75: “ Veja o capítulo sobre sedução em H. Parret, Le sublime du quotidien. Paris/
2 Para a mesma opinião, ver O. Chédin, Sur ['esthêtique de Kant, op. cit., Amsterdam, Hadês-Benjamin, 1988.
243 ess. “3 G. Simmel, Philosophy of love, in George Simmel on women, sexuality,
2 Em The truth in painting. Traduzido por Geoff Bennington e Ian MacLeon, and love. Traduzido por Guy Oakes. Yale University Press, 1984, pp. 133-52.
Chicago University Press, p. 87. Theodor Adorno menciona a teoria do subli- “ Op. cit., p. 134.
me de Kant e sua estética, mas de uma maneira mais simplista em Aesthetic
“ F. Coblence, Le dandysme; obligation d'incertitude. Paris, PUF, 1989,
theory. London, Routledge and Kegan Paul, 1970, pp. 280-84.
p. 20.
2 |. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 16, p. 77.
* Idem, op. cit., parágrafo 27, pp. 115-16.
2 Ch. Lalo, La faillite de la beauté. Paris, Ollendorff, 1923. M. Dufrenne
escreve em seu The Phenomenology of aesthetic experience. Evanston,
Northwestern University Press, 1973, p. LVIII: “Devemos evitar invocar o
conceito de belo, pois é uma noção que, dependendo da extensão que lhe
damos, parece ou sem utilidade para nossos propósitos, ou perigosa.”
2 Idem, Notions d'esthétique. Paris, Alcan, 1925, pp. 57-66.
” Op. cit, p. 58.
“* R. Bayer, L'esthétique de la grâce. Paris, Alcan, 1934.
2? Idem, Traité d'esthétique. Paris, A. Colin, 1956, pp. 223-30.
» Op. cit., p. 227.
“ Ibid., p. 229.
2 In: “Art et verité”, Revue philosophique, 1933, pp. 186-89.
“ Veja R. Blanché, Des catégories esthétiques. Paris, Vrin, 1979, capítulo 5.
* A, Cuvelier, Précis de philosophie, citado por E. Souriau em seu Catégories
esthétiques. The Courses at the Sorbonne, University Documentation Center,
Paris, (mimeo.), sem data.
* Para detalhes sobre a concepção de graça, ver R. Blanché, op. cit. Des
catégories esthetiques, pp. 107 e ss.

160 161
VI

A ATITUDE DE BOM GOSTO

1. Compreender o aceitável

Se a semântica filosófica e a maioria das gramáticas dão um


certo privilégio aos mecanismos de produção do sentido (como são
produzidos os enunciados verifuncionais, como são geradas as fra-
ses sintaticamente bem-formadas), a pragmática toma posição, de-
cididamente, do lado dos mecanismos de compreensão. A apreen-
são do sentido só é possível porque há regularidades que governam
toda transposição do sentido. Essas regularidades não são estatísti-
cas: a predição do que será o valor semântico de um enunciado não
se faz com base na probabilidade, mas com base na necessidade,
que não é passível de ser falseada por contra-exemplos, desvios, mar-
ginalidades, exceções. Apreender o sentido é compreender o aceitá-
vel. No entanto, a aceitabilidade de uma sequência discursiva só se
justifica a partir de um esquema de razões que nada devem à fre-
qiência ou à probabilidade dos fenômenos, mas devem tudo a cer-
tas normas pragmáticas que não são de forma alguma de ordem
empírica e positiva. Se queremos avaliar o valor semântico de uma
sequência discursiva a partir da especificidade dos mecanismos de
sua compreensão, é necessário determinar a aceitabilidade do que
compreendemos como uma rede de razões. Essas razões têm sido
chamadas de princípios e máximas (Grice) ou condições (Searle) —
podemos chamá-las de “regras constitutivas”. De onde vem a norma-
tividade dessa rede de razões que torna possível a apreensão do

163
sentido e, portanto, a interlocução? Para introduzir essa problemá- ser desonesta? No entanto, a idéia geral pós-austiniana da insince-
tica epistemológica, deter-nos-emos por um momento na condição ridade dos atos de fala é que essa insinceridade depende de um con-
de sinceridade (Austin/Searle) e no princípio de cooperação (Grice). flito entre o estado mental (leia-se: estado psicológico) do falante e
sua ação linguística. É assim que a mentira aparece quando há con-
tradição entre o conteúdo de uma crença e o conteúdo da asserção
A sinceridade e seus acidentes expressando essa crença. Essa contradição é a conseqiiência da
racionalidade específica do mentiroso, de sua intenção de “enga-
A partir da segunda conferência de How to do things with nar”. É possível estabelecer toda uma gama de gradações sobre esse
words,! Austin introduz o que ele chama de “a doutrina das infelici- eixo da não-sinceridade: basta pensar na continuidade entre suges-
dades”, a doutrina sobre o que pode estar ou dar errado, o que faz tão, manipulação e sedução, que são atitudes de insinceridade. Se
com que um enunciado seja “infeliz” (infelicitous). Há o caso muito introduzirmos um outro eixo, o do tempo, teremos uma nova oposi-
claro de um ato vácuo: uma pessoa não-autorizada, que pronuncia ção: a não-sinceridade é sincrônica e, portanto, se opõe à desleal-
a fórmula clássica “eu vos declaro marido e mulher”, não terá su- dade, que é essencialmente diacrônica, pois pressupõe uma mudança
cesso em casar nenhum par. Mas há também o caso interessante do de opinião ou uma transformação do objetivo inicialmente visado.
abuso: alguém realiza um ato de linguagem sem ter a atitude psico- A condição de sinceridade é a pedra angular da teoria dos atos
lógica requerida ou sem se comportar da maneira que é expressa- de fala. Austin subestimou, sem dúvida, quão profundamente enrai-
mente exigida por esse tal ato de fala. Nesse caso, o ato é um abuso, zada é a exigência de sinceridade na estrutura ético-antropológica
ele é oco (hollow). Quando eu digo “eu prometo aparecer” sem real- — O fato é que ele foi essencialmente influenciado pela contra-
mente ter a intenção de vir, meu ato de fala é insincero. Quando eu tualidade judicial. É dessa forma que a intenção de alguém que pro-
prometo sem ir, meu ato de fala é uma quebra de promessa. Austin, duz sinceramente um ato de fala pode ser adequadamente determi-
inspirado aqui pela teoria legal anglo-saxônica, nem sempre apre- nada a partir das convenções aceitas pela comunidade. Isso é, de
sentou a mesma classificação. E sua “doutrina das infelicidades” fato, conseqiiência de uma abordagem judicial da interlocução. Se,
adquire um escopo mais amplo quando ele introduz a noção de força por outro lado, separarmos a existência de uma intenção desse con-
ilocucionária, a partir da qual uma tipologia dos atos de fala será junto de convenções para reconduzi-la à faculdade ético-política
proposta. ? dos seres humanos, os conceitos de sinceridade, engano e lealda-
Outros filósofos? e lingiiistas desenvolveram análises mais de ganharão conotações diferentes, mais abrangentes. O que preci-
detalhadas no domínio da insinceridade. Dessa forma, algumas dis- sa ser notado aqui é o papel cardinal que a promessa desempenha
tinções suplementares foram introduzidas. Se aceitarmos uma tipo- na teoria dos atos de fala (podemos afirmar, em certo sentido, que a
logia onde se distingue a asserção exprimindo crença, a ordem, a teoria searliana da estrutura dos atos ilocucionários é, de fato, uma
pergunta e a promessa exprimindo intenção/vontade e a exclama- teoria da estrutura do ato de promessa).º A promessa é um ato de
ção exprimindo emoção (essa tripartição corresponde à tripartição fala cujo sucesso depende mais de sua condição de sinceridade do
assertivo/injuntivo/exclamativo e cognitivo/volitivo/afetivo),? que de sua condição essencial. O locutor que promete “A”, tem a
poderemos então distinguir também três casos de insinceridade: a intenção de fazer “A” (condição de sinceridade) e quer/aceita que a
mentira (que se opõe intencionalmente à asserção e à crença), a enunciação de sua promessa o coloque na obrigação de fazer “A”
desonestidade (opondo a intenção declarada à intenção real) e a (condição essencial). Uma análise minimamente crítica desse par
simulação (que opõe, também intencionalmente, as exclamações à de condições mostraria que as duas condições são de fato tauto-
emoção subjacente). É claro que a categoria de “desonestidade” é lógicas e que a condição de sinceridade comporta em si a condição
heterogênea e problemática: como, por exemplo, uma ordem pode essencial.

164 165
A lógica das condições dos atos de fala em Searle tem sido A cooperação e suas violações
frequentemente contestada. Para a presente argumentação, basta
constatar a centralidade da exigência de sinceridade nessa teoria: Logic and conversation* de H. Paul Grice tem sido principal-
todas as formas de ação indireta no discurso (da sugestão à sedu- mente utilizado por lingiúistas” que nem sempre estão cientes das
ção) são explicadas como variantes da insinceridade (a mentira, a raízes filosóficas desse texto. O interesse pragmático pelas pressu-
desonestidade, a simulação) ou da deslealdade (que, de fato, é uma posições semânticas lucrou muito com uma noção altamente opera-
não-sinceridade prolongada no tempo). O problema da tradição cional que Grice propôs a partir de seu quadro de referência kan-
austiniana, que culmina com a teoria dos atos de fala de Searle, con- tiano. Trata-se da noção de implicatura que, distinta da implicação
siste no fato de que a noção de sinceridade baseia-se num conceito e da pressuposição semântica, qualificou certas reguralidades do
de intencionalidade empobrecido e geralmente superficial (a inter- sentido a partir da aplicação ou da violação de máximas derivadas
definição de intenção e de convenção). Em filosofia da linguagem, de um princípio de cooperação. A apresentação das implicaturas
a sinceridade jamais se desvencilha do juridismo e do conven- conversacionais deu um tremendo estímulo à pragmática: fenôme-
cionalismo. nos difíceis de capturar, como a ironia e a metaforização, e todo um
No entanto, em nossa história das idéias deveria haver outras domínio da produção/compreensão do implícito e do sugerido pode
idéias, em alternativa à concepção jurídica da sinceridade. Por exem- agora ser reconstruído. Mas qual é o status epistemológico desse
plo, o ideal de sinceridade poderia ser pensado como uma simples princípio de cooperação e de suas máximas?
sobredeterminação do ideal de espontaneidade, do ideal de transpa- Em primeiro lugar, o princípio cooperativo griceano não fun-
rência e mesmo do ideal de autenticidade ou de integridade. Certo, ciona do mesmo modo que a exigência de sinceridade de Austin e
constatamos que o convencionalismo de Searle e Austin (não se pode Searle. A intencionalidade subjacente ao discurso, de acordo com
perder de vista o fato de que a teoria dos atos de fala toma como seu Grice, não é definida por convenções ou traços lingiiísticos. Ao con-
ponto de partida uma teoria de fórmulas performativas) dá algum trário: diz-se explicitamente que as implicaturas conversacionais
privilégio à transparência, mas a uma transparência que não é reali- são não-convencionais.? Diz-se que não podemos considerar a coo-
zada e nem mesmo desejada teleologicamente: sinceridade e trans- peração como um componente do sentido de qualquer tipo de se-
parência são para eles valores sem raízes ético-políticas, precisa- quência discursiva, ao passo que a sinceridade constitui parte inte-
mente por causa de seu vínculo intrínseco com o convencional e o grante do semantismo de “promessa” em Searle. A combinação da
jurídico. Por conseguinte, a “doutrina das infelicidades” em Austin análise semântica de “promessa” com a reconstrução em bases socio-
e em seus sucessores só pode ser estreita: analisar os fenômenos de jurídicas do ato de prometer gera uma noção de sinceridade que se
ação indireta no discurso a partir da norma da sinceridade, sobrede- torna, em seguida, condição geral para a produção de qualquer ato
terminação da combinação espontaneidade/transparência, nunca de fala. A cooperação, para Grice, é de ordem totalmente diferente.
levará a uma axiologização profunda, que envolva uma verdadeira Na verdade, é por meio da análise das condições de possibilidade
justificação ética. O ideal de autenticidade ou integridade poderia da comunicação (ou interlocução) que Grice é levado a postular um
ainda contornar a ingenuidade epistemológica, mas em todo caso princípio cooperativo e a derivar dele suas máximas.* É, portanto,
elas são duas normas que apontam para uma “moralização” das ra- verdade que a noção griceana de cooperação é sobredeterminada
zões que estão na base da aceitabilidade das segiiências discursivas. por uma opção antropológica, felizmente mais abrangente do que a
Essa transição da sinceridade/transparência para a autenticidade/ que opera na perspectiva sociojurídica de Austin e Searle: o que
integridade torna-se mais inteligível se compararmos o quadro de parece ser transmitido pela exigência de cooperação é a autentici-
referência de Austin e Searle àquele da lógica conversacional de dade/integridade. No entanto, seria falso e perigoso pensar que a
Grice. cooperação é meramente um termo teórico reconstruído, que servi-

166 167
ria apenas para explicar o resultado de uma interlocução. A coope- torna possível, certamente, pelo desenvolvimento de tais princípios.
ração é uma categoria transcendental: ela não é derivada da análise Compreender o aceitável, transpondo o sentido para que ele tenha
linguística ou discursiva enquanto tais, mas caracteriza primordi- sentido, é compreender a aceitabilidade de seqiiências discursivas
almente a estrutura da subjetividade em posição de interlocução. A com base nas exigências formuladas por esses princípios. Eles ob-
cooperação griceana nos fala do sujeito na posição dialógica ou viamente nos permitem deixar o empírico e o observável, o conven-
comunicacional. Em consegiiência, seria melhor não esquecer o cional e o discursivo.
hiato que há entre a cooperação segundo Grice e a sinceridade se-
gundo Austin. Para nos persuadirmos disso, bastará que observemos
um outro princípio bem conhecido em filosofia da linguagem, o A gramática natural e suas estratégias
chamado princípio da expressibilidade de Searle.º Dado esse prin-
cípio, não há como fugir da imanência da linguagem. O princípio Podemos evocar, como confirmação, um outro ponto de vista
de expressibilidade formaliza radicalmente esse imanentismo, pois que esclarece como a pragmática não pode passar sem esses princí-
declara que a existência do sentido depende radicalmente de sua pios, que valorizam, justificam e legitimam o discurso em função
encarnação discursiva. da própria compreensão e portanto da comunicação. Wittgenstein
Há uma conseqiiência interessante que interessa notar com menciona, em suas Investigações filosóficas, uma “gramática natu-
respeito à epistemologia específica que encontramos em Austin e ral”, muito diferente daquela que os lingiistas, aceitando o para-
Searle, de um lado, e em Grice, de outro. A sinceridade tem seus digma formalista (de que a escola de Chomskyé protótipo), cha-
acidentes: a in-sinceridade (a mentira, a desonestidade, a simula- mam gramática. Sabemos que a gramática dos formalistas é uma
ção) e a des-lealdade só são interpretáveis a partir da sinceridade. A gramática “profunda” e que o gesto democritiano (a essência das
mentira, por exemplo, é uma violação da sinceridade, mas essa vio- coisas está escondida atrás das aparências) domina de fato essa gra-
lação nunca questiona a própria comunicação. O princípio da coo- mática profunda. O essencialismo e o formalismo são dois mitos
peração é um caso totalmente diferente: a violação (por exemplo, gêmeos, como afirma Wittgenstein. A essência, a forma estruturante,
no caso da ironia, da tautologia aparente, da hipérbole) nunca toca nunca está na superfície, mas sempre nas profundezas. Esse gesto
no próprio princípio de cooperação, mas sempre nas máximas que democritiano que caracteriza as linguísticas formalistas associa-se
são derivadas dele. O sentido continua a ser interpretável, mesmo então ao estilo galileano a que Chomsky vem se referindo mais e
quando uma máxima é violada ou quando várias máximas são neu- mais em suas publicações recentes. O estilo galileano é marcado pela
tralizadas pela contextualização de seqiiências a interpretar, abstração, idealização e matematização.
precisamente com base no princípio de cooperação. É assim que São exatamente esse mito e suas heurísticas que Wittgenstein
não escapamos do princípio de cooperação sob pena de abolirmos ataca ferozmente em suas reflexões sobre a língua e sua gramática
a comunicação e de nos isolarmos da comunidade comunicativa. natural. Essa gramática wittgensteiniana da vida do discurso é não-
Deveria estar claro, após essas considerações, que a sinceridade teleológica e lúdica. Ela respeita a variedade e a riqueza das super-
enquanto razão (tornando possível a compreensão de um sentido fícies, a multifuncionalidade, o nebuloso, o vago, a opacidade do
aceitável) não tem o mesmo escopo que a cooperação enquanto sentido, a heterogeneidade e o caráter elíptico da significação, as
razão. Trata-se de duas razões diferentes: a primeira, semântica e rupturas da fala. Essa gramática não é uma gramática de regras,
discursiva, a segunda, pragmática e transcendental. Numa termino- reconstruídas pelos gramáticos que idealizam o natural e mate-
logia mais rigorosa, diremos que a sinceridade é uma condição ver- matizam a experiência, mas, antes, uma gramática de estratégias."
dadeira (sociosemântica) enquanto a cooperação é um princípio Se observarmos mais de perto a epistemologia dos gramáticos for-
verdadeiro (transcendental).'º A axiologização da pragmática só se malistas, notaremos que as regras são de fato leis interiorizadas que

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não são de modo algum assumidas por sujeitos falando e atuando Aristóteles relega a reflexão filosófica sobre essa racionalidade
em situação de interlocução. Totalmente diferente é uma gramática fundadora da vida prática a suas obras mais propriamente éticas,
das estratégias, que são operacionais tanto na análise semiótica principalmente a Ética a Nicômaco.
quanto na análise conversacional.!'? Comportar-se estrategicamen- Para Aristóteles, a questão do valor do valor ou, aproximan-
te é colocar em prática as razões, o que só é possível se aceitarm do-nos de sua própria terminologia, da valoração da virtude, não é
os
a investidura exercida por uma comunidade que pesa razões. A um problema que possa ser tratado pela própria retórica. Seríamos
es-
tratégia não precisa de nenhuma objetividade referencial para per- assim levados de volta à sofística, essa prática tão combatida por
manecer comunitária e uma enunciação sutilmente estratégica não Platão? Na verdade, os sofistas rejeitam toda a problemática da jus-
constitui evidentemente traição da comunidade comunicativa. tificação e da legitimação da retórica. Aristóteles não deriva sua
A
categoria de estratégia é extremamente fértil em pragmática e além retórica de uma ética qualquer, mas ainda assim certas posições éti-
disso aponta com grande insistência para a necessidade de uma cas estão presentes nele. Aqui estão alguns aspectos que, para
busca dos fundamentos: como vamos justificar e legitimar o com- Aristóteles, servem de trampolim para uma justificação pelo êthos.
portamento estratégico? Já que colocar em prática as estratégias O primeiro passo de Aristóteles é situar a retórica na esfera do
não
nos expulsa da comunidade de interpretação, mas ajuda a consti- prático, separando-a explicitamente do tecnológico. O deliberativo,
tuí-la, é necessário se perguntar, num momento ou noutro, onde deve modo retórico que caracteriza o político assim como o judicial,
ser encontrada a fonte das valorações que essa comunidade exerce. caracteriza a ação humana, a práxis motivada pela manutenção e
pela realização da conduta virtuosa dos cidadãos da pólis. O equi-
líbrio entre os interesses dos cidadãos, o cosmos ou a ordenação dos
2. Desejar o obrigatório projetos individuais só pode ser produzido por uma práxis de deli-
beração política e de julgamento justo e honesto. A arte oratória do
político e do juiz, sua retórica, manifestam-se em atos de persua-
Justificar por êthos, legitimar por aisthêsis são. A conseqiiência direta do status praxeológico da retórica é que
a intencionalidade prática do político e do jurídico determinam uma
A questão da valoração do valor ocupou desde sempre a filo- qualidade cognitiva bem particular: nem à política nem ao direito
sofia. Ela alcançou um ponto alto já em Aristóteles, que tentou é dado ser uma ciência rigorosa, uma épistémê. A própria forma das
se-
parar da ética a retórica dos diferentes tipos de artes oratórias — o estratégias propostas em retórica já é marcada pelo fato de que as
deliberativo, o jurídico e o epidítico,'' dando assim à retórica estratégias retóricas são nebulosas, vagas e aproximativas. O polí-
sua
autonomia e sua independência. Dirigida essencialmente contra tico e o jurídico são, por essência, domínios da interpretação. E a
à
tendência da doutrina platônica de uma simbiose entre a retórica interpretação justa e útil repousa sobre a faculdade proto-ética do
e
a ética, é óbvio que a tentativa de separar a retórica da ética não homem virtuoso, a phronêsis, a prudência que interpreta as situa-
é
totalmente bem-sucedida. O orador (por exemplo, o juiz, ções, variando de acordo com os parâmetros da práxis. A prudência,
quando
aplica a técnica jurídica) persuade a audiência inculcando-lhe portanto, é a máxima que regulamenta a retórica prática do políti-
“pai-
xões” a partir de um êthos que, para Aristóteles, é da
ordem das vir- co e do juiz. É claro que a prudência não pode funcionar como a
tudes. Os oradores são assim limitados pela exigência de um máxima de uma epistémê, mas somente como o princípio regulador
com-
portamento virtuoso que deve se transformar num hábito regulador
.!* das ações humanas."
No entanto, podemos relutar em caracterizar os hábitos virtuosos Pode vir a ter algum interesse lembrar que a maioria das filo-
como verdadeiras razões éticas subordinadas a uma racional sofias políticas e das filosofias do direito se contrapuseram a essa
idade
capaz de organizar a vida prática das comunidades. O doutrina aristotélica, precisamente absorvendo a esfera prática na
próprio

170
esfera técnica ou mesmo tecnológica. Desde Hobbes, o problema
adequar-se às estratégias de compreensão ou de interpretação por
prático da vida virtuosa dos cidadãos da pólis transformou-se num
parte da audiência. Essa discursivização do político e do jurídico
problema técnico-administrativo de coordenar o bem-estar dos in-
acrescenta um elemento importante à praxeologia aristotélica. Ela
divíduos na sociedade. A tecnização da retórica da deliberação po-
sugere que toda ação política ou judicativa, por essa necessidade
lítica e legal distingue radicalmente a retórica da persuasão de qual-
de empregar uma argumentação, apela para a idéia de uma comuni-
quer proto-ética possível. Além disso, ela só gera uma deontologia
dade discursiva.'* O a priori da argumentação precisa ser suplemen-
que não tem outra justificativa a não ser a perfeição do conheci-
tado por um a priori do discurso. Não se pode negar, é claro, que, de
mento e das técnicas. Mais ainda, essa tecnicização baseia-se numa
acordo com Aristóteles, não há persuasão sem argumentação e toda
proposicionalização extrema das seqiiências discursivas do homem
argumentação deve ser persuasiva. Mas é muito menos claro em
político e do juiz. Nesse modelo tecnicista, há uma hipóstase do
Aristóteles que o a priori da argumentação introduz uma opacida-
poder de predição dos processos deliberativos e judiciais. Esse
de que enfatiza a paixão daquele que argumenta ou interpreta um
proposicionalismo levará à glorificação da verdade no que diz res-
argumento. A paixão dos sujeitos, fator de opacidade, aparece pre-
peito à natureza do homem, à sociedade e ao Estado, como estando
cisamente na discursivização das interações: é dessa forma que ar-
na origem da predição daquilo que será ou mesmo que deverá ser.
gumentar e discursar se juntam num só e mesmo ato, o do ser apai-
Esse modelo proposicionalista e tecnicista insere o político e o le-
xonado, membro de uma comunidade comunicacional.
gal na esfera da especulação e do especular. Em oposição aos
Deve ser creditado à Escola de Frankfurt - no domínio especí-
ensinamentos aristotélicos sobre a vida virtuosa, a idéia cientifica-
fico da pragmática da vida discursiva, especialmente pelo trabalho
mente motivada das relações sociais na modernidade deve levar
ao de Karl Otto Apel — o fato de ter posto insistente e repetidamente a
comportamento desejado dos indivíduos na sociedade pela simula-
questão da legitimação do discurso. É verdade que os “filósofos
ção das condições naturais desse comportamento ou, em outras No en-
críticos” têm dado atenção especial ao discurso da ciência.”
palavras, através da simulação especular das leis da natureza. A
ten- tanto, alargar o campo para incluir todos os tipos de discurso, mes-
tativa de justificar valores que se faz neste livro não se apóia evi-
mo os da vida cotidiana, é não só possível como relevante. É uma
dentemente nessa concepção proposicionalista e tecnicista do po-
história conhecida: para Apel, a combinação da hermenêutica com
lítico. É em Aristóteles que podemos ler como a arte da persuasã
o a pragmática está na origem da “transformação da filosofia”. Essa
enquanto prática se justifica por valores e normas que nada têm a
transformação não aponta de modo algum para uma filosofia trans-
ver com a técnica e a verifuncionalidade.
cendental da consciência: é, ao contrário, a semiótica transcenden-
tal que ganha o status de uma prima philosophia, substituindo qual-
quer filosofia da consciência possível. Apel critica Kant por ter
Além de Aristóteles: as restrições do discurso e da excluído toda reflexão sobre a linguagem: a reflexão transcendental,
argumentação de acordo com Apel, deve articular-se não com a unidade da cons-
ciência e da autoconsciência, mas com a unidade intersubjetiva da
No entanto, convém completar a ambição aristotélica: a retó- interpretação do aceitável. A semiótica transcendental, insiste Apel,
rica não é totalmente justificada apenas por uma praxeologia.
É torna-se assim uma crítica do sentido, tomando como ponto de par-
mérito da Escola de Frankfurt ter-nos sensibilizado sobre esse pon-
tida oa priori da discursividade e da argumentatividade. Essa trans-
to. A ação do político e do juiz é de fato uma inter-ação e, em par-
formação da filosofia kantiana em crítica transcendental do senti-
ticular, uma interação discursiva e argumentativa. Aristóteles,
na do é levada a cabo com a ajuda de toda uma série de heurísticas: a
Retórica, alude ao feedback da audiência ou do auditório sobre
o semiótica de Peirce, a filosofia analítica da linguagem (Searle e
próprio orador. As estratégias de produção oratória devem, de fato,
Grice, entre outros) e a teoria da argumentação da Nova retórica.

172 173
No entanto, mesmo se aceitamos a necessidade de ir além do Kant que Wittgenstein sugeriu à sua maneira tipicamente aforística em
da Crítica da razão prática, podemos ainda pensar num retorno ao On certainty. A certeza, segundo Wittgenstein, será o ponto de par-
Kant da Crítica do juízo, o Kant que reflete sobre a comunicabi- tida desse esforço por legitimar a valoração. O que é essa margem
lidade e o Mitmenschsein. É bem nele que descobrimos a esfera que do rio que consiste parcialmente em pedra dura??! Como é bem co-
interessa aqui: não mais a da justificação através do êthos, mas a da nhecido, On certainty continua a discussão que Moore tinha intro-
legitimação pela aisthêsis. É por esse caminho oblíquo que se con- duzido sobre o senso comum. Há, de acordo com Moore, critérios
segue compreender exatamente o que é o desejo do obrigatório. que servem para identificar proposições contendo um valor epistê-
mico de base, na realidade proposições de senso comum (lembran-
do alguns exemplos de Moore: “Eu tenho um corpo”; “Estou vivo
A evidência e a certeza há vários anos”, “O mundo continuará a existir depois de minha
morte”; “Percebo o mundo por meio dos meus sentidos”, etc.). Em
Podemos então compreender por que Apel, em sua investiga- primeiro lugar, trata-se de proposições que são expressas universal-
ção sobre a legitimação última de todos os valores que marcam mente. Elas não são necessariamente conscientes; mesmo que os su-
nossos discursos e nossos argumentos, rejeita o critério da evidên- jeitos tenham atitudes diferentes com relação a essas crenças bási-
cia fenomenológica tal como o formulou Husserl.'* De fato, se acei- cas, eles não podem deixar de tê-las; mesmo que elas não sejam ex-
tarmos que a semiótica transcendental instaura um paradigma que plicitamente expressas, elas são sempre exprimíveis. Em segundo
ultrapassa todas as filosofias da consciência, teremos que negar ao lugar, as proposições de senso comum não podem ser evitadas. Não
mesmo tempo a função fundadora da evidência. A evidência refle- temos escolha nesse domínio e a volição pessoal não afeta o fato de
xiva da força indefinida da consciência em si mesma, isto é, a evi- que admitimos essas proposições. Outras crenças pressupõem o fun-
dência que emerge da auto-reflexão, não pode legitimar um discur- cionamento de proposições contendo um valor epistêmico de base:
so axiológico. Embora seja verdade que, mesmo para Husserl, a é assim que, para dar um exemplo, um sujeito que teve essas propo-
evidência não pode reduzir-se a um mero sentimento psicológico sições de senso comum varridas de sua memória não pode continu-
de evidência, por outro lado, nenhuma sanção intersubjetiva é ne- ar suas atividades reatando com o passado.
cessária para que a evidência esteja presente na intuição dos fenô- Uma terceira característica é que a evidência suplementar não
menos ou na auto-reflexão. Como diz Apel, Husserl é “o último clás- melhora de modo algum o funcionamento dessas proposições. Elas
sico de uma filosofia solipsista da consciência metodologicamente não necessitam de evidência suplementar. E, finalmente, o critério
motivada”.!? Se continuarmos a aceitar um conceito de evidência que nos parece ser o mais importante: as proposições de senso co-
fenomênica pura ou de uma evidência que se daria sem interpreta- mum são as condições de toda ação e de toda interação. Sem o fun-
ção, independentemente do discurso e da argumentação, não pode- cionamento delas, não poderíamos nem agir nem interagir. Não ha-
remos jamais alcançar o nível do novo paradigma, o da semiótica veria deliberação, nem argumentação, nem veridicção, se não dis-
transcendental. Mas, substituindo o fundamento da evidência pelo puséssemos desse conjunto de proposições de senso comum.?
da certeza, conseguiremos satisfazer essas exigências. É claro que A defesa do senso comum em Moore deve ser considerada como
a certeza não será definida nem com base na evidência fenome- uma bateria de argumentos contra o ceticismo que nega a possibili-
nológica nem pela auto-reflexão da consciência: ao invés disso, será dade de predicar sobre qualquer realidade exterior à mente. Mas se
necessário recorrer à valoração legitimadora dos discursos e das esse conjunto de proposições de senso comum que concerne ao
argumentações. princípio de realidade é mais bem conhecido e mais fregiiente-
É preciso manter, conseqgiientemente, a conexão da evidência mente usado, desde os filósofos escoceses até Moore e, além deles,
com ojogo de linguagem que lhe corresponde.” É precisamente isso até Wittgenstein, podemos corretamente acrescentar outra lista de

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proposições que têm a ver com o princípio de comunicabilidade. de Wittgenstein, especialmente os que se referem à certeza, leva a
Esse princípio gera um conjunto de proposições contendo um va- uma etapa final, a que se refere à via real.
lor epistêmico de base, determinando as condições da interação (e
como caso específico desta, da interlocução). Essas são conseqiien-
temente proposições de senso comum que podemos usar como uma 3. A via real
bateria de argumentos contra o solipsismo. A defesa do senso comum
deve resultar na superação do ceticismo e do solipsismo. Essa dupla
função do senso comum não foi considerada por Moore, mas feliz- O senso comum e o bom gosto
mente Wittgenstein, em seu comentário a Moore, desenvolve a de-
fesa do senso comum nessa direção. Essas proposições de senso co- O que é essa pedra dura e estável que impede o rio de erodir
mum são reguladoras com respeito à vida prática, da mesma forma suas próprias margens? O que é o fundamento que legitima o êthos
que são reguladoras com respeito a tudo o que é da vida discursiva. de nossas comunidades? Esse fundamento não pode estar nem na
A crítica de Wittgenstein da teoria do senso comum proposta por natureza nem na cultura. Além disso, nenhuma ética alcança legiti-
Moore é muito pertinente. Com efeito, Moore não distingue entre o mar-se a partir de seu interior: toda consideração ética requer uma
jogo de linguagem da crença ou do conhecimento (proposicional), meta-ética para legitimar as razões justificatórias que propõe. Há,
de um lado, e a certeza, do outro. Falar de proposições no domínio com efeito, uma via real que se refere às precondições de qualquer
das certezas não é nem mesmo uma terminologia aceitável. Se al- ética. Essas precondições são as condições de possibilidade dos a
guém tem uma certeza, não é sobre uma proposição que ele está certo. priori justificadores que governam a vida ética na comunidade. A
Wittgenstein questiona a natureza “dessa margem do rio que con- arquitetura kantiana oferece-nos uma via real em vista da determi-
siste parcialmente em pedra dura”, atacando assim a questão da nação das razões legitimadoras. A estética, peça central da catedral
natureza da certeza; ele responderá naturalmente dizendo que a kantiana, é o ponto de partida com base no qual são geradas as con-
certeza é o fundamento, embora constituir fundamentos seja, por dições do conhecimento válido e de uma vida boa e justa em comu-
sua vez, um jogo de linguagem entre outros. A aceitação de um fun- nidade. Esse papel cardinal da estética centra-se na idéia de senso
damento regulador que torna possível toda ação e toda interação é comum (sensus communis). Para Kant, nada é mais razoável do que
em si mesma uma prática. É, de fato, essa prática que cria a possibi- o senso comum. A geometria, exemplificando a razão teórica, e a
lidade de que sobrevivamos no mundo, de que a comunidade de moral, cujas condições de possibilidade são autônomas com respeito
seres humanos sobreviva, de que se criem e transcendam os limites às da ciência (devido à especificidade de seus domínios, a natureza
das comunidades empíricas. A crítica wittgensteiniana da posição e a liberdade, respectivamente), têm como precondições comparti-
de Moore é uma etapa necessária para qualquer esforço relevante lhadas as avaliações do senso comum. Que haja apenas uma geo-
em direção à legitimação. O fundamento legitimador é algo que metria possível, e apenas uma moral, não é a consequência de suas
aceitamos ativamente. É na ação entre e com os outros, consegiien- condições de possibilidade separadas, mas do fato de que há uma
temente na interação (mais especificamente, na interação discursiva, única razão, cuja razoabilidade reflete-se nas avaliações do senso
ou seja, na interlocução), que a certeza guia toda (inter)ação argu- comum, fundamento comum da teoria e da prática.
mentativa e discursiva, não como um conteúdo proposicional, mas Eis o que Kant declara:
como um princípio legitimador. Se a evidência é o que fica para ser
visto, para voltar à citação de Wittgenstein, a certeza só existe na Ao contrário, pela expressão sensus communis, deve-se
prática de uma vida, mas de uma vida em comunidade. É assim que entender a idéia de um sentido compartilhado por todos,
o esforço de legitimação que lança mão naturalmente dos recursos isto é, a idéia de uma faculdade de julgar, pela qual, ao

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refletirmos, tomamos em consideração (a priori), em nos- tisfação, eis os quatro momentos lógicos que definem o princípio
so pensamento, o modo como todas as outras pessoas re- legitimador e fundador a partir do qual toda ética deve ser formula-
presentam uma determinada coisa, como que para com- da.?A relação legitimadora da estética à ética é apresentada por Kant
parar nosso juízo à razão humana em geral... Ora, faze- em seu célebre parágrafo 59 da Crítica do juízo, que tem como títu-
mos assim: comparamos nosso juízo não tanto com os lo: Da beleza como símbolo da moralidade. Ela não trata apenas do
juízos efetivos dos outros, mas sim com os juízos mera- fato de que o juízo moral atesta também uma universalidade que só
mente possíveis de outros e assim nos colocamos no lu- pode ser a conseqgiiência das exigências do bom gosto. A analogia
gar de qualquer outro, na medida em que simplesmente de Kant vai bem mais longe do que isso: o juízo moral simula os
abstraímos as limitações que acidentalmente aderem ao momentos lógicos do juízo estético: o belo funciona como norma
nosso próprio julgar. do moralmente bom ou, para usar uma fórmula um tanto bárbara, a
norma da beleza serve de norma para a norma do moralmente bom.
Em conseqiiência, o sensus communis é um sensus communalis, O belo não é nem o exemplo nem o esquema do bem moral, é o seu
um sentimento de estar-com-os-outros (Mitmenschsein). Esse juízo, símbolo. Para citar Kant de novo:
que se apóia sobre os juízos de outros, chama-se juízo estético ou
juízo de bom gosto (Geschmacksurteil) que, além disso, é um juízo Ora, eu afirmo que o belo é o símbolo do moralmente bom;
universalmente comunicável sem mediação de conceitos. Deve-se e é somente porque referimos o belo ao moralmente bom
ter presente que o juízo estético, em oposição aos juízos teórico e (todos assim fazemos naturalmente, e também exigimos
prático, não tem qualquer outro interesse além do estar-com-os- que os outros assim o façam, como um dever) que o fato
outros, o Mitmenschsein (esse interesse não é portanto nem o inte- de que o belo nos apraz inclui uma exigência do assen-
resse por entender, nem o interesse pela vida boa e justa). Julga- timento de todas as outras pessoas, ao mesmo tempo que
mos esteticamente a partir do ou em função do sensus commun a mente tem consciência de ser enobrecida por essa re-
(al)is, ou da “idéia de um sentido comunitário” (die Idee eines ferência, para além da mera receptividade do prazer de-
gemeinschafiliches Sinnes)" rivada das impressões dos sentidos e estabelece também
A máxima de bom gosto poderia ser formulada assim: “Use o o valor das outras pessoas, com base no fato de terem
seu sensus commun(al)is, seu senso comum, em todos os casos, jul- uma máxima semelhante em sua faculdade do juízo (es-
gando ou “criticando” a natureza e a cultura, voltando-se para o seu tético).”
estar-com-os-outros, que não é nem uma posição de natureza nem
uma posição de cultura.” A estética não é nem natural nem cultural Desse modo, a axiologização pelo belo é completamente legiti-
e a felicidade da atitude de bom gosto depende dessa crítica cons- madora. Em consequência, o bom gosto funciona como a legi-
tante de toda redução da razão ao natural e ao cultural (embora a timação de valores que marcam a discursividade em interação. Não
natureza pudesse ser considerada como a base da razão e a cultura podemos ir mais longe nisso, já que encontramos finalmente a “pe-
como sua tradução).** dra dura” a que Wittgenstein se referia. O longo caminho funda-
cional que parte da filosofia analítica (Austin/Searle ou Grice) e da
retórica aristotélica vai dar então na estética kantiana. O êthos
O sentimento de existência concerne a aceitação de nossa adesão a uma comunidade comuni-
cativa (discursiva e argumentativa). Esse primeiro passo na busca
A ausência de interesses, a impossibilidade de conceptuali- pelos fundamentos deve ser seguido por um segundo, que concerne
zação, a finalidade não-representável, a necessidade de prazer e sa- ao fundamento do próprio êthos: passamos então da fase da justifi-

178 179
cação para a fase da verdadeira legitimação. O ponto de chegada é
estético. A estética, eixo de toda razoabilidade, relaciona a beleza e
a comunidade, uma relação que produz felicidade, imperativo ca-
tegórico por trás de todo esforço de socialização e vida comunitá-
ria. A felicidade universal — permanecendo uma lei formal — é, de
fato, a finalidade de qualquer comunidade, de seus discursos e suas
razões. O sentimento de existência, isto é, o sentimento de estar-
entre-outros ou sensus commun(al)is precede o sentimento de va-
lor: a estética precede a ética porque é o seu fundamento. A atitude NOTAS
de bom gosto consiste em aceitar nossa universalidade e em fazer
de nosso sentimento de existência a força constitutiva de todas as
práticas de socialização, tanto na vida de todos os dias quanto na
vida das instituições pelas quais somos responsáveis. 13. A. Austin, How to do things with words. Oxford, Clarendon Press, 1962.
? Veja G. Falkenber, “Insincerity and Disloyalty”, in: Argumentation, nú-
mero especial Lying, editado por H. Parret, (2) 1, 89-88, 1988.
3 Cf. J. Searle, Speech acts. Cambridge University Press, 1969.
* Ibid, Speech acts, op. cit., capítulo 3.
*In Studies in the way of words. Harvard University Press, 1989, parte I.
* Veja o excelente livro de S. Levinson, Pragmatics. Cambridge, Cambridge
University Press, 1983.
? Deve-se notar que elas não são nem mesmo “conversacionais”, já que es-
tão presentes em todo comportamento interpretado, não apenas nas seqiiên-
cias conversacionais ou discursivas.
* De acordo com o esquema das quatro categorias kantianas da Qualidade,
da Quantidade, da Relação e do Modo.
* In: Speech acts. Cambridge, Cambridge University Press, 1969.
1º Grice tem sido frequentemente criticado por hipostasiar a cooperação em
detrimento de outros princípios transcendentais, como o princípio de carida-
de (Davidson) ou o princípio de humanidade (Quine). Houve também tenta-
tivas de converter o princípio cooperativo num princípio de racionalidade
(ver H. Parret, Prolégomênes à la théorie de l'énonciation; de Husserl à la
pragmatique, Berne, P. Lang, 1987.
" Veja H. Parret, “Regularities, rules and strategies”. Journal of pragmatics,
(8): 569-592, 1984. Tradução brasileira em... Editora da Unicamp.
2 Cf. capítulo 1.
3 Aristotles, Retórica, livro 1, pp. 58a-59a.
4 Ibid., livro I, pp. 68b-69b.
3 Ibid., livro 1, pp. 55b-58b.

180 181
'º Muitas conceitualizações de comunidade comunicativa e da necessidade
de trazer o político e o jurídico para o discurso são possíveis. Para Habermas,
basta limitar-se à pragmática universal, pois a comunidade comunicativa não
transcenderia de nenhum modo a generalidade empírica. Para Apel, é neces-
sário voltar-se para uma pragmática transcendental, já que a própria comu-
nidade comunicativa tem necessidade de um a priori. Esse a priori só pode
ser a racionalidade de qualquer comunidade que comunica (dialogicamente)
num universo de discursividade generalizada.
!” Karl Otto Apel
sobre o a priori da comunidade
publicou textos importantes
comunicativa
a esse respeito,
e dos
por exemplo,
fundamentos éticos do
VII
discurso científico (de 1967 em diante).
* Em “Le problême de I'évidence phénoménologique à la lumiêre d'une COMUNICAR POR AISTHÉSIS
sémiotique transcendentale”. Critique, 1986, pp. 464-65, pp. 79-113.
Ibid., p. 91.
2 Ibid., p. 90.
* E a margem do rio é feita parte de pedra dura, que não sofre alteração A estética nunca serviu verdadeiramente de filosofia primeira
alguma ou somente alterações imperceptíveis, parte de arcia, que ora aqui
ora acolá é levada pela água ou depositada. (Protê philosophia) distinguindo-se nisso da metafísica, da episte-
mologia e da ética. No entanto, desde que Baumgarten fundou a
aa Veja meu artigo “Common sense and basic beliefs: from certainty to
happiness”. In: H. Parret (ed), On believing, epistemological and semiotic
estética, em 1750, como uma disciplina filosófica, com seu objeto
approaches, Berlin/New York, Walter de Gruyter Verlag, 1983, pp. 216-28. próprio e delimitável e, sobretudo, depois que Kant, brilhantemen-
2 1, Kant, Crítica do juízo, parágrafo 40, p. 160. te crítico, propôs em 1790 uma concepção de juízo estético, podem-
“ Ibid. se observar certas tentativas feitas no sentido de estetizar a proble-
2 Ver H. Parret, “Common sense and basic beliefs; from certainty to
mática filosófica. Schiller, movido pelo entusiasmo da especulação
happiness”, op. cit. romântica, desejou certamente estetizar o monumento kantiano em
2 Veja capítulo 7. sua totalidade. Essa estetização levou em alguns casos a um este-
21. Kant, Crítica do juízo, parágrafo 59, p. 228. ticismo quasi-niilista. Assistimos hoje em dia a uma nova onda de
estetização no pós-modernismo. É, naturalmente, a ética em primeiro
lugar que se torna “filha da estética”.! O gosto transforma-se assim
numa categoria estético-ética, que preenche rapidamente o vazio
deixado pelo naturalismo, pelo historicismo e pelo positivismo nas
questões éticas.
Lemos no Tractatus: “A ética e a estética são uma só e mesma
coisa” (na verdade, o texto alemão não afirma essa identidade com
a mesma força: “Ethik und Aesthetik sind Eins”).? Esse aforisma de
Wittgenstein aparentemente continua a exercer sua fascinação so-
bre toda uma corrente na filosofia anglo-saxônica contemporânea.
Richard Rorty, protagonista da estetização da ética, advoga uma
busca estética de novas experiências e uma vida de “curiosidade
perpétua”,? sem nenhum “centro estruturante” e sem nenhum “rela-

182 183
to legitimador”. Rorty defende a privatização da moral a partir do mais abrangente de comunidade afetiva ocupará nossa atenção,
gosto faustiano pela auto-realização em todo o seu esplendor. Não levando-nos, mais uma vez, às posições kantianas da Crítica do
podemos deixar de pensar na filosofia do dândi, que teve, no século juízo. Uma quarta seção será dedicada a relacionar afeto e aisthêsis,
XIX, teóricos como Brummell e Baudelaire, ambos altamente apre- apelando para a syn-aesthesia (Aristóteles) e para a intercorpo-
ciados por Rorty e Lyotard. A própria vida deve ser sentida e perce- reidade (Merleau-Ponty).
bida como uma obra de arte, dizia Oscar Wilde, outro dândi notá-
vel.º O gosto pós-moderno e sua “histeria pelo sublime” é, de fato,
iconoclasta com relação a todo projeto científico e moral, cuja ori- 1. Busca e crise dos fundamentos
entação seria totalizante e dialetizante. A estetização baseia-se en-
tão na hipóstase do prazer individual e na recusa total de qualquer A filosofia, desde sempre, indaga os fundamentos do entendi-
fundamento para a práxis — um fundamento que, para excitar o sen- mento. Suas controvérsias têm essencialmente girado em torno do
timento de sublime, precisa ser disseminado, dispersado, fraturado entendimento objetivo (em geometria, em mecânica e nos sistemas
como as fagulhas dos fogos de artifício, prefigurando a obra de arte formais) e do status da razão teórica responsável pela produção desse
que a vida pós-moderna deveria ser. entendimento objetivo. É assim que Descartes e Husserl, cada um à
Este capítulo pretende demonstrar que a estetização da vida sua maneira, demonstraram que há dados e certezas indubitáveis que
não implica necessariamente a privatização, o individualismo e o servem de garantias últimas desse entendimento objetivo. No en-
ensimesmamento. Essa estetização, gerando uma verdadeira ética tanto, os próprios cientistas, por exemplo, Gôdel, colocaram em
do ser-em-comunidade, não domestica em nada as experiências do dúvida esse fundamento último, e os lógicos levaram muito a sério
heterogêneo e da fraturação — ela as integra na própria estrutura do o paradoxo dos enunciados auto-referenciais que proíbe todo cálcu-
ser-em-comunidade. Muitos dos temas desenvolvidos nas páginas lo do valor de verdade. Wittgenstein se opõe a esse questionamento
precedentes — a racionalidade estratégica, a temporalidade melódi- sobre o fundamento último: ele defende em On certainty que não
ca, a criatividade abdutiva, o pathos e seu desejo, a “sedutificação podemos nem mesmo dar conta da dúvida última sem pressupor, ao
do sublime — nos guiam para o ponto central deste livro: como pen- mesmo tempo, em princípio, uma certeza indubitável: “Quem qui-
sar 0 ser-em-comunidade, não como um jogo de xadrez ou como uma sesse duvidar de tudo não chegaria nem mesmo a duvidar de coisa
informática generalizada (embora o paradigma dominante tenda a alguma. O próprio jogo da dúvida pressupõe a certeza” e “aquele
isso), mas como modo aesthetico? As “franjas estéticas” do ser-em- que não está certo de nenhum fato não pode nem mesmo estar certo
comunidade, tais como se manifestam na racionalidade do estrate- da significação de suas palavras.”* As fórmulas de Wittgenstein
gista Antíloco, na temporalidade nostálgica de Penélope, na expe- concernem claramente às práticas cotidianas e à linguagem ordiná-
riência de fusão de Albertine, nos ensinam sobre a natureza do ser- ria, não à aquisição do entendimento objetivo, de onde surgiu toda
em-comunidade, precisamente o tipo de ser-em-comunidade que de- a problemática dos fundamentos. Em On certainty, Wittgenstein an-
veria servir de fundamento da pragmática. tecipa um fundamento suficiente que concerne não mais à evi-
É inegável que o pós-modernismo estetizante se opõe a toda dência cognitiva, mas à validade intersubjetiva das sequências
busca de fundamentos; devemos pois tomar posição com respeito a discursivas.
essa oposição na primeira seção desse capítulo: como orientar a A questão de um “fundamento último da razão” — título de um
busca pelos fundamentos e como contornar sua crise? O corpo do artigo notável de Apelº — dominou a filosofia das ciências desde
capítulo acompanha as linhas seguintes: na segunda seção, será que Karl Popper e Hans Albert, em seu Traktat iiber Kritische Vernunft;
evocada e discutida a idéia de uma comunidade argumentativa e criticaram toda tentativa de honrar a idéia de uma fundamentação
consensual, tão cara aos filósofos de Frankfurt; na terceira, a noção filosófica última do entendimento, com base na lógica intrínseca

184 185
do assim chamado “trilema de Miinchhausen”. Segundo Albert, o ca intersubjetivadora, mostra, atesta uma valoração que é inerente
filósofo em busca de fundamentos é forçado a escolher entre as três tanto aos mecanismos de produção como aos de interpretação.* Está
possibilidades seguintes: 1. a regressão infinita (caminhar conti- claro que os filósofos de Frankfurt tomam em primeiro lugar uma
nuamente para trás na busca das razões, o que é impossível na prá- posição dentro da epistemologia (a filosofia da ciência) e que eles
tica); 2. 0 círculo lógico (quando, na dedução do fundamento últi- consideram a atividade discursiva como uma mediação da aquisi-
mo, recorremos a asserções que precisam elas mesmas de fundamen- ção de conhecimento — essa tendência situa-se inteiramente na pers-
to); 3. a interrupção do processo por uma decisão arbitrária, decla- pectiva de Peirce. A busca dos fundamentos deveria concernir ao
rando que tal ou tal enunciado tem sua razão própria. Segundo conjunto das axiologias, isto é, ao conjunto das práticas valoradas
Albert, foi isso o que fez Descartes com seu postulado da evidência. da vida cotidiana.
Apel se opõe a pôr em crise dessa maneira a busca pelos fun- Um segundo aspecto distingue formalmente nosso projeto
damentos, mesmo na esfera da razão teórica, precisamente porque daquele de Habermas e Apel. A busca pelos fundamentos, de acordo
todo entendimento objetivo também está sujeito a condições prag- com nossa posição, materializa-se em dois movimentos: a justifica-
máticas, isto é, a condições de possibilidade de um conhecimento ção e a legitimação. O que dá valor ao valor? Justificamos o valor
que seja intersubjetivamente válido. Deve-se, portanto, persistir na da prática humana, das relações intersubjetivas, da produção dis-
formulação dos fundamentos do conhecimento a despeito dos céti- cursiva, apelando para categorias éticas que, por sua vez, só podem
cos (como Popper e Albert), que reduzem toda epistemologia a uma ser legitimadas por meio de categorias estéticas. Então, como já foi
pura descrição das práticas científicas, e contra os solipsistas (a fi- estabelecido, é a categoria estética do sensus communis que nos serve
losofia cartesio-husserliana), que dão prioridade a mecanismos di- de valoração legitimadora de toda prática intersubjetiva da vida
tos cognitivos e totalmente incomunicáveis. Apel, consegiiente- cotidiana. Não devemos esquecer que a marginalização da Crítica
mente, recorre a uma pragmática que, num primeiro movimento, é do juízo de Kant pelos filósofos de Frankfurt já é um sinal da
de inspiração peirciana: não há conhecimento objetivo ou razão teó- incompletude do projeto destes. A busca dos fundamentos para eles
rica fora de uma comunidade de interpretação e de argumentação. é acima de tudo a tentativa de uma justificação ética do entendi-
Ele rejeita portanto a idéia de uma crise generalizada dos funda- mento objetivo mediada pelo discurso.” O fundamento, para Haber-
mentos, assim como todo ceticismo e toda epistemologia, e recorre mas e Apel, nunca transcende as necessidades da justificação pela
a Wittgenstein e a Peirce como fontes de inspiração de uma prag- ética e a idéia de comunidade que esse projeto pressupõe permane-
mática (da argumentação e da interpretação) que constrói a teia das ce essencialmente ético-antropológica. No entanto, de nosso ponto
condições de possibilidade da validade intersubjetiva dos jogos de de vista, é a legitimação por meio da estética que coroa toda busca
linguagem, sobretudo, o do entendimento objetivo. de fundamentos.
Notemos de saída duas características do modo como pode-
mos conceber de forma pertinente a busca pelos fundamentos. Não
há, obviamente, qualquer possibilidade de neutralizar a idéia bási- 2. A comunidade argumentativa e comunicativa
ca de comunidade. No entanto, essa necessidade não resulta de uma
busca do fundamento do entendimento, mas de uma busca dos fun-
damentos do valor. O que governa as razões e as paixões da intersub- O a priori discursivo e a hipoteca hegeliana
Jetividade cotidiana não é o entendimento objetivo nem a razão
teórica, mas a existência de múltiplas axiologias ou sistemas de Lembremos que, para Habermas e Apel, o entendimento só é
valores. O funcionamento teórico e prático da razão é necessaria- possível a partir de uma certa racionalidade da comunicação e que
mente valorado e a interação discursiva, sobretudo enquanto práti- a comunicação só é possível a partir do uso humano do discurso. As

186 187
condições pragmáticas da razão teórica concernem à validade inter- nalidade que funciona com vistas a um fim — é, ao contrário, uma
subjetiva dos enunciados argumentativos. Um primeiro ponto forte racionalidade auto-reflexiva. Essa auto-reflexividade preserva a
da pragmática de Apel consiste em demonstrar que a ética é consti- racionalidade contra toda tentação estratégica e é a conditio sine
tutiva da própria racionalidade da comunicação. Essa racionalidade qua non da ética da discussão e do consenso que a discussão pode
da comunicação baseia-se diretamente na ética da discussão e da estabelecer.
argumentação." Entrar numa discussão já é reconhecer as normas É na verdade essa auto-reflexividade da racionalidade que Apel
da razão argumentativa. Rejeitar o princípio da argumentação é se ilumina, quando transforma a pragmática em metapragmática ou em
colocar imediatamente fora da comunidade de seres razoáveis. Des- pragmática transcendental (termo que Habermas nunca utiliza, já
se ponto de vista, Habermas e Apel desenvolvem uma crítica cons- que a racionalidade consensual para ele só reinvidica uma pragmá-
tante da ética em Kant, que eles qualificam de “puramente deon- tica universal). Apel defende que a racionalidade “faz sua própria
tológica”, “formalista” e “monológica”, visto que “a ética kantiana pragmática” pela auto-reflexividade efetiva e isso é inclusive a con-
coloca a priori o indivíduo isolado na posição de ter que descobrir dição de possibilidade da própria comunicação (discussão, argumen-
em seu pensamento quais, dentre as máximas de ação, são as mais tação)."* Não pode haver qualquer contradição interna à raciona-
aptas para servir de base a uma lei universal, válida para todos os lidade, como é o caso nas teorias que generalizam a racionalidade
homens”.!! A universalização das normas, para Habermas, direciona- estratégica (Apel frequentemente cita Grice como exemplo de uma
se não para um imperativo categórico mas para um princípio proce- abordagem que é incapaz de ir além dessa limitação). Não enten-
dural de discussões práticas e de segiiências argumentativas. deremos a posição de Apel se não aceitarmos a importância de seu
Esse impacto direto da ética da discussão sobre a racionalidade “princípio metodológico”, chamado princípio de auto-integração
da comunicação tem como conseqiiência a condenação da assim da racionalidade.'* À defesa da racionalidade da interação comu-
chamada racionalidade estratégica, que Apel define muito disfori- nicativa e consensual, que Habermans desenvolve contra os defen-
camente como “a racionalidade abstrata mínima que implica a apli- sores da racionalidade estratégica ou teleológica, Apel acrescenta
cação recíproca refletida da racionalidade instrumental à interação um componente suplementar: o postulado da auto-integração
e à comunicação humanas”'2 A ética da comunicação e da discus- (Selbsteinholung), que diz que “toda teoria da racionalidade deve
são situa-se fora da racionalidade estratégica, que, segundo Apel, ser compatível, isto é, consistente, com a reconstrução de sua pró-
caracteriza necessariamente a auto-afirmação e a auto-realização dos pria racionalidade pressuposta enquanto discurso argumenta-
indivíduos. A racionalidade estratégica só deveria ser atualizada tivo”.!S Conseqiientemente, é uma pré-condição da racionalidade da
quando aplicada às regras restritas do jogo. Com efeito, as estraté- argumentação não cair numa autocontradição pragmático-trans-
gias só são aceitáveis no interior de um Jogo cujas regras são co- cendental. Da mesma forma que condena a ética de Kant, Apel de-
nhecidas e aceitas pelos jogadores. Não há possibilidade alguma fenderá sua “metodologia” transcendental. É somente aceitando a
de qualificar as estratégias como derivando de uma racionalidade possibilidade da auto-reflexão transcendental da racionalidade
ampliada, eufórica e inteligente, aquela, por exemplo, da mêétis, discursiva (argumentativa, comunicacional) da própria teoria que
de
Antíloco ou da parteira glorificada por Aristóteles. Todo desenvol- evitaremos reduzir a racionalidade ética a uma racionalidade es-
vimento de uma relação polemológica ou toda razoabilidade estra- tratégica, redução que domina a história da filosofia de Hobbes a
tégica é condenada pelos filósofos de Frankfurt. De acordo com cles, Rawls. Podemos perceber, portanto, qual idéia de comunidade emer-
é necessário separar a racionalidade consensual e comunicativa (que ge dessa filosofia: é uma comunidade de sujeitos cuja racionalidade
apontam para uma ética da responsabilidade), da racionalidade es- depende, de um lado, do a priori da comunicação (argumentação,
tratégica. A racionalidade da comunicação ou da argumentação não discussão) e, de outro, da auto-reflexividade dessa racionalidade.
é teleológica (no sentido da teoria dos jogos): não é uma racio- O suplemento transcendentalizante tem a vantagem de liberar o

188 189
consenso de todos os perigos do convencionalismo; mas ele intro- supõe necessariamente competências comunicacionais, como pro-
duz, ao mesmo tempo, uma pesada hipoteca hegeliana, sobre a qual vam precisamente certas experiências de fusão. É o paradigma do-
é necessário dizer algumas palavras. minante que nos força a identificar o ser-em-comunidade à comu-
nicabilidade discursiva. Em segundo lugar, a hipóstase, tanto em
Apel quanto em Habermas, da argumentação transparente nos faz
Salvar a ocasião e o heterogêneo perder de vista uma propriedade fundamental de toda discursividade
sobre a qual os filósofos de Frankfurt nunca falam: o dêitico, o de-
Passando à crítica da posição de Apel, poderíamos dizer que monstrativo, a própria corporeidade da própria linguagem, quer
ela se situa em pleno logocentrismo e, o que é mais grave, que ela dizer, a construção espaço-temporal do ato de discursar. O tempo e
nos mergulha num hegelianismo incontrolável. O fundamento últi- o espaço funcionam, em certo sentido, como o exterior da esfera da
mo depende da auto-reflexividade da racionalidade, que só pode se transparência argumentativa, que pode ser considerada neutra com
manifestar na esfera de uma discursividade mediadora. Primeiro, respeito aos mecanismos espaço-temporais da enunciação (tanto na
uma palavra sobre o aspecto totalizante e hegeliano desse empre- produção quanto na interpretação). É verdade que o pragmaticismo
endimento. O conceito de reflexividade em Apel é hegeliano, não é interpretativo de inspiração peirciana marca a origem do projeto de
de modo algum kantiano. Mais adiante veremos como o juízo refle- Apel, mas a interpretação para este nunca aborda aqueles aspectos
xivo é definido e usado por Kant — ele nada tem a ver com a auto- enunciativos. O realce dado ao valor comunicacional dos enuncia-
reflexividade a que Apel se refere. O juízo reflexivo em Kant é um dos logo nos faz esquecer que a enunciação está ancorada na pre-
juízo de “ocasião” (kairos) no qual a imaginação produtiva “presen- sença mínima de um tempo-espaço, que deveria ser um obstáculo à
tifica” (Darstellung) um “objeto” sob a forma de um sentimento reflexividade transparente da racionalidade argumentativa. Por to-
imediato, desinteressado e não-conceitual. Em Apel, assim como em das essas razões, devemos concluir que a idéia de comunidade
Hegel, é na dialética argumentativa, e portanto através da negação argumentativa e consensual, que os filófosos de Frankfurt propuse-
conceitual, que a razão exerce a auto-reflexão. Na concepção kan- ram como o fundamento último e como justificativa ético-antropo-
tiana, O juízo reflexivo (apreciação, avaliação) precede a possibili- lógica, deve ser ultrapassada e aperfeiçoada!* e a partir desse ponto
dade de toda argumentação (comunicação, discussão): ele se mani- nos voltamos para outro tipo de fundamento último, o da legiti-
festa, como nós veremos, numa esfera de afeto que precede toda mação estética.
atividade comunicacional e discursiva. A reflexividade, segundo
Apel e na trilha de Hegel, “acompanha” e funciona numa dialética
com oa priori discursivo-comunicacional. Além disso, ela é radical- 3. A comunidade afetiva
mente independente do kairos afetivo. A auto-reflexividade, nessa
perspectiva, afasta-nos totalmente do heterogêneo, do conflitivo,
do eris (a luta), do indecidível, de tudo aquilo que, na esfera do O belo e seu sublime: a comunidade e sua crise
afeto, é ingovernável, por ser não-conceitualizável, imediato e sin-
gular. A legitimação estéticaé uma busca de fundamentos, mas ao
Ainda uma palavra sobre quão essencialmente logocêntrica é mesmo tempo ela consagra a crise dessa busca. A Crítica do juízo
a pragmática transcendental. Para Habermas e Apel, a racionalidade inclui uma analítica do belo e uma analítica do sublime. O gosto é
passa necessariamente pela discursividade (comunicação, discus- caracterizado por sua receptividade, comunicabilidade e reflexi-
são, argumentação em função do consenso). Há dois comentários a vidade, num sentido que precisará ser definido em oposição a Apel.
fazer sobre essa posição. Primeiro, o ser-em-comunidade não pres- Sua receptividade se relaciona com uma dádiva não-conceptua-

190 191
lizável e sua comunicabilidade decorre da universalidade do juízo do sublime, que precisa, consequentemente, ser encarado como o
de gosto. Essa receptividade é um sentimento puro: a transitividade : : a jo
momento essencial da crise de comunidade.
da dádiva é imediata e é impossível debater e dialetizar o gosto.
Nada há de afirmativo ou apodítico nessa dádiva, já que a transi-
tividade precede a constituição de um sujeito como lugar apropri- O coro comunitário
ado da dádiva. No que concerne à comunicabilidade de um juízo
de gosto, há acordo universal, porque a modalidade do juízo de gosto Mas a que se refere esse sensus communis que, desde os estói-
é a da necessidade. Deve-se lembrar que a especifidade desse juízo cos e Cícero, passando por Vico e pela filosofia escocesa até Moore
de gosto depende essencialmente da produtividade da imaginação. e Bergson, permitiu ter domínio sobre tantas reflexões epistemo-
A analítica do belo demonstra a estrutura do juízo de gosto. O lógicas e éticas?” É somente no século XVIII que o senso comum
Juízo estético do sublime revela uma estrutura que é quase o oposto foi incorporado numa teoria do juízo. O judicium é tradicionalmente
disso: o sentimento do sublime emerge quando a imaginação é de- considerado como a virtude intelectual básica, mas os moralistas
sencaminhada ou “sobrepujada”. Assistimos, aí, ao eclipse da comu- ingleses proclamam que os juízos morais e estéticos são marcados
nicabilidade, à retirada da dádiva, ao declínio da receptividade." A pelo (bom) gosto ao invés do intelecto. A questão é discutida lon-
relação do belo e do sublime é análoga à relação do fundamento e gamente entre os Aufkléirers. Tetens, cuja obra Kant conhecia pro-
de sua crise. Tentemos apreender a natureza dessa relação. Lyotard fundamente, introduz em seus Philosophische Versuche iiber die
. Situa O sentimento do belo na esfera da aesthesia, enquanto o sen- menschliche Natur und ihre Entwicklung, de 1777, o sensus com-
timento do sublime pertence à esfera da an-aesthesia ou da supres- munis como um “judicium sem reflexão”.?! Na realidade, o juízo do
são da aesthesia. Dever-se-ia entender essa dupla figuração como senso comum não é muito apreciado pelos Aufklirers, que o consi-
paralela a dois tipos de funcionamento da imaginação. Debruçan- deram de importância menor. É interessante notar que nessa pré-
do-nos de novo sobre uma análise de Lyotard, que introduz sugesti- história direta da teoria do gosto de Kant, situa-se Baumgarten, que
vamente o termo “plasma espaço-temporal”,!* poderíamos com efei- escreve em 1750, no seu Tratado de estética, que o juízo estético é
to dizer que a imaginação concebe as formas emanadas por esse um judicium sensitivum, também chamado de juízo “de gosto”, na
plasma espaço-temporal ou bem como constitutivas, excitando O medida em que só reconhece o individual sensível “como perfeição
sentimento do belo, ou bem como desestabilizadoras, despertando ou imperfeição”.
o sentimento do sublime. Essa instabilidade deve-se, no caso do A idéia de um elo entre o juízo de (bom) gosto e a sensibilida-
su-
blime, ao conflito dramático das faculdades, o entendimento e a de (aisthêsis), que Baumgarten expõe, está profundamente arraiga-
imaginação, e à impotência da imaginação em face da dádiva origi- da na tradição aristotélica. Mas Kant também está consciente de uma
nal. Da mesma forma que o caráter da receptividade é profundamente outra tradição, a do humanismo, de Vico a Shaftesbury, na qual se
diferente, conforme diz respeito ao belo ou ao sublime, sua comuni- diz que o sensus communis enquanto Gemeinsinn ou “senso da co-
cabilidade também será bem diferente: a comunidade afetiva é de munidade”, está na origem da solidariedade cívica e da moral sa-
solidariedade diante do belo; está em crise diante do sublime. O que dia. Kant, como era previsível, exclui de pronto o sensus communis,
pensar dessa crise ameaçadora, dessa convulsão, que apaga a possi- enquanto “sentimento moral”, mas dois outros componentes — o elo
bilidade de qualquer fundamento pelo juízo de gosto? A analítica com a sensibilidade (o componente aristotélico) e o Gemeinsinn ou
do sublime nos mostra como a comunidade afetiva pode ficar senso da comunidade (o componente humanista) — são retomados
suspensa no nada: se a olharmos de muito perto, a comunidade não em seu equilíbrio difícil. Acrescentando a essa complexidade uma
parece dispor de um sensus communis para sustentar o sentimento conotação suplementar, o sensus communis tem também uma fun-
ção de Bildung ou educação social. O (bom) gosto deve ser apren-

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dido como uma faculdade de sutil diferenciação, operando numa como todas as outras pessoas representam uma determinada coisa
comunidade que sanciona, mas não determina (e é nisso que o gos- como se tivesse (gleichsam) que comparar nosso juízo à razão hu-
to difere de toda “moda”). mana em geral”.?
Podemos então resumir dizendo que, em Kant, culmina uma Esses textos revelam uma grande inquietação por parte de Kant
multiplicidade de tradições e começa um novo episódio na história em relação aos paradoxos da intersubjetividade, dos quais apenas
do conceito de sensus communis: o sensus communis é introduzido alguns aspectos serão tratados aqui.?' Fichte queixava-se, em 1796,
numa crítica do juízo estético e vai determinar aí a qualidade seis anos depois da publicação da Crítica do juízo, de que Kant nun-
transcendental do gosto. É o sensus communis que será responsável ca explicou satisfatoriamente a questão epistemológica de “como
pela universalidade do gosto enquanto resultado do jogo livre das posso admitir fora de mim outro ser racional”: “Na Crítica do juízo”
faculdades, essencialmente o entendimento e a imaginação, e en- nota Fichte, “onde (Kant) fala das leis da reflexão de nosso enten-
quanto liberado de qualquer forma de condição “privada”, como a dimento, ele se aproxima desse problema”.?* Philonenko nota, como
emoção ou qualquer tipo de motivação pessoal da parte daquele que o fez Cassirer em seu comentário sobre a Crítica do juízo, que o ato
julga “com gosto”. Assinalemos, para evitar confusão, que tudo aqui- estético é par excellence aquele em que se revela a intersubjeti-
lo que concerne à cultura do bom gosto, ao bom gosto como um vidade. Kant estabelece a possibilidade da comunicação no enten-
fenômeno de sociedade, é tratado por Kant na seção Metodologia dimento teórico e científico, mas ela é indireta, já que se apóia na
do gosto. Para Kant, essa metodologia é só um apêndice, sem ne- mediação do conceito e do objeto. Na Crítica da razão prática, Kant
nhum impacto sobre a dedução transcendental. estabelece a possibilidade da comunicação de pessoa a pessoa en-
Nota-se que, na lógica dessa dedução, Kant introduz o famoso quanto se trata de seres racionais, mas aqui também a relação per-
parágrafo 40 (Vom Geschmack als einer Art von sensus communis — manece indireta, já que é mediada pela lei moral.
Do gosto como uma espécie de sensus communis) depois de ter dis- É somente na Crítica do juízo que ele vislumbra uma comuni-
cutido, no Parágrafo 39, o problema da comunicabilidade de uma cação direta de pessoa a pessoa sem passar pelo desvio do conceito
sensação (Von der Mittelbarkeit einer Empfindung). Uma inter- ou da lei. Philonenko não hesita em ver na Terceira crítica kantiana
pretação adequada desses textos célebres baseia-se na seguinte uma “lógica da intersubjetividade”. Essa interpretação parece apon-
intuição: a comunicabilidade (Mittelbarkeit) só torna manifesta a tar na direção correta, mas ela se mostra perigosa. Kant não concebe
Einstimmigkeit ou eufonia, que é acordo entre Stimme (vozes) e, ao a comunidade afetiva — aquela em que a eufonia atesta o sensus
mesmo tempo, acordo entre Stimmungen (sentimentos). Há comuni- communis — como uma comunidade de sujeitos: a redução da comu-
cabilidade quando há eufonia e não o inverso: a Mittelbarkeit pres- nidade afetiva à intersubjetividade nos confronta imediatamente
supõe a Einstimmigkeit. É essa isotopia musical, utilizada com coe- com todos os paradoxos intransponíveis que Kant conhecia bem. O
rência pelo próprio Kant, que deve nos ajudar a apreender o que é juízo de bom gosto é um juízo reflexivo que não implica qualquer
essa comunidade afetiva, na qual reina a eufonia. É com base nessa individualidade: o indivíduo só é responsável pelos juízos subjeti-
relação entre a Mittelbarkeit e a Einstimmigkeit que é preciso en- vos ou juízos “do agradável”. “Essa mesa é redonda” é um juízo
tender, em toda a sua profundidade, as frases kantianas: “O gosto é objetivo; “esse vinho é bom”, um juízo subjetivo; “Essa flor é bo-
nossa faculdade de julgar a priori a comunicabilidade dos senti- nita”, um juízo reflexivo. Outro aspecto do paradoxo consiste no
mentos”; “o gosto é a faculdade de julgar que torna o sentimento fato de que, no momento em que eu pareço reencontrar o apoio de
universalmente comunicável sem a mediação de conceitos”; “por minha singularidade, por enunciar um juízo de gosto, eu me sinto
sensus communis deve-se entender a idéia de um senso comparti- universal e eu nem mesmo preciso da aprovação de outros sujeitos.
lhado por todos nós, isto é, de uma capacidade de julgar que, em Além disso, a comunidade do Mitmenschsein, onde se encontra a
sua reflexão, considera (a priori) em nosso pensamento o modo Einstimmigkeit, não é uma comunidade de sujeitos empíricos. É a

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comunidade humana de jure que — e aqui está o paradoxo mais in- subjetivados — os sujeitos de “ocasião” (kairos), poderíamos dizer
quietante — só existe em e por meio da fruição (Lust im Gemeinschaft). — são afetados (Kant usa o termo ansinnen, impor) ou “tocados”,
Há falta de coincidência entre a comunidade afetiva e qualquer no sentido estético, e é no afeto e por meio dele que estão em acordo.
sociedade dada, assim como há falta de coincidência entre o O afeto, nesse contexto, não tem evidentemente nada de psicoló-
Mitmenschsein eufônico e algum tipo de co-subjetividade empírica. gico ou antropológico.A ausência do elemento psicológico é mesmo
A comunidade afetiva é, de fato, um estar-em-comunidade de não- uma conditio sine qua non para que haja o afeto.?*
sujeitos. Se não há mais qualquer conteúdo psicológico, o sensus sen-
timental puro “se sente” a si próprio. O sensus sentimental, ou sensus
communis, é a auto-afeição por meio do tempo puro, que precede
Eufonia, polifonia e sinfonia qualquer heteroafeição. O afeto, o ser-imposto, que leva ao coro
comunitário, é, no final das contas, a auto-afeição por meio do tem-
Os quatro momentos lógicos da definição de belo são precisa- po puro. A Einstimmigkeit, a proporção das vozes, o acordo dos tim-
mente o que nos mostra como entender esses paradoxos. A máxima bres, a cufonia dos sentimentos, são “como uma espécie” (Kant em-
da Qualidade diz: é belo aquilo que é o objeto de um sentimento de prega frequentemente a expressão gleichsam ou einer Art von) de
satisfação desinteressada (Kant preferiria dizer: aquilo que não melodia pura. Como pensar musicalmente o enigma da auto-afei-
corresponde a um interesse teórico ou prático); a Quantidade: é belo ção? É aqui, neste ponto da argumentação, que podemos invocar a
aquilo que é representado sem conceitos como um objeto de satis- sinestesia e o intercorpos.
fação universal; a Relação: é belo aquilo que é a forma da finalida-
de de um objeto, enquanto é percebida sem a representação de um
fim; o Modo: é belo aquilo que é reconhecido sem conceitos como 4. Socializar o sensível, sensibilizar o social
sendo o objeto de uma satisfação necessária. A ausência de interes-
ses, a impossibilidade de conceitualização, a finalidade não-repre- A partir deste ponto, tomaremos um novo caminho a partir do
sentável, o caráter necessário da satisfação: esses são os quatro sensus communis, a sensibilidade comum a todos. Já distinguimos
momentos lógicos do sentimento do belo que conduzem ao ser-em- os dois aspectos dessa idéia: de um lado, o assim chamado compo-
comunidade modo aesthetico. O Mitmenschsein da comunidade nente aristotélico do sensus como aisthêsis, sensibilidade e, de
afetiva é plenamente eufônico: as vozes e os sentimentos estão em outro , o componente humanista (de Vico a Shaftsbury) do communis
consonância. em termos de sociabilidade. Para que a idéia seja homogênea, é pre-
Há vários aspectos constitutivos da Einstimmigkeit.'* Em pri- ciso dispor de uma técnica que permita ao memo tempo socializar a
meiro lugar, há o acordo de vozes e sentimentos no livre jogo das aisthêsis e sensibilizar o social. A idéia de sensus communis levará
faculdades. A síntese entre as faculdades é espontânea, imediata e sempre as marcas dessa origem dupla. No entanto, a dialetização
fecunda. Mas em particular, a imaginação não se sente bloqueada dessas duas vertentes se impõe. O sensus communis é o sensus de
por nada:?* é ao tornar possível o juízo estético que a faculdade de uma comunidade que, como já foi dito e se dirá novamente, não é
imaginação pratica efusivamente apresentificação ou Darstellung, nem argumentativa nem consensual: ela é afetiva.
sem ser “subjugada”, como é o caso com o sentimento do sublime A afetividade, para Kant, sustenta-se sobre três pilares: a comu-
— momento em que precisamente a Einstimmigkeit entra em crise.” nicabilidade (por meio da universalidade do juízo de gosto), a re-
No entanto, não há somente, no termo sugestivo de Lyotard, “noi- ceptividade (com relação a uma dádiva original) e a reflexividade
vado” (“fiance”, “fiançailles”) das faculdades, mas também eufo- (que a distingue de maneira essencial de qualquer outra afetividade,
nia, das vozes/sentimentos do coro comunitário. Os sujeitos des- psicológica ou antropológica). Essa reflexividade — em oposição a

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Hegel e Apel — não exige a auto-integração como conditio sine qua tésica. O que temos aí é então uma prefiguração bem evidente da
non de todo afeto, mas a auto-afeição. Essa auto-afeição é a afeição
idéia kantiana de sensus communis: o sensus communis enquanto
pelo tempo puro como a forma da subjetividade, esvaziada de todo aisthêsis koinê ou syn-aesthesia. A sinestesia nos faz “sentir” o tem-
conteúdo psicológico, e lugar do livre jogo das faculdades do en-
po: ela é sinfônica, portanto, eufônica e, é claro, polifônica. O
tendimento e da imaginação. O sensus communis é constituído por
Einstimmung dos sentimentos (Kant) e a syn-aesthesia das sensa-
uma tensão entre o sensível e o social — essa tensão tem uma dupla ções (Aristóteles) apontam para uma estruturação análoga. Sociali-
direcionalidade e resolve-se por um duplo movimento: a socializa- zar a sensibilidade é de fato o efeito da Einstimmung tanto quanto
ção do sensível e a sensibilização do social. Consequentemente, po- da aisthêsis koinê.
demos dizer que, de um lado, o sensus communis é uma sinestesia (é O fato de que essa socialização do sensível obedece àquela
o movimento de socializar o sensível) e, de outro, é intercorporeidade
condição necessária — a temporalidade — não surpreenderá ninguém.
(o movimento de sensibilização do social). É somente nesse duplo A comunidade afetiva, em sua dependência do sensus communis, é
movimento e por meio dele que conseguimos resolver a tensão en- fundamentalmente temporalizada, algo que, para dizer de novo, não
tre o social e o sensível e pensar a fusão, modo pelo qual a comuni- é verdadeiro com respeito à comunidade argumentativo-consensual.
dade afetiva se realiza. A eufonia de vozes e de sentimentos depen- Não é surpreendente que certos comentadores dos escritos aristo-
de de sua fusão. Essa fusão é melódica, já que ela é essencialmente télicos sobre a aisthêsis tenham falado em psicologia político-éti-
temporalizada. Lembremos que, ao discutir a Tonverschmelzung,? ca -? não há, de fato, um abismo entre a psicologia da aisthêsis e a
opusemos a fusão melódica à junção harmônica. A comunidade política da comunidade em Aristóteles. Por que, então, não estetizar
consensual é uma comunidade de junção, enquanto a comunidade o político a partir da idéia de temporalidade essencial da comuni-
afetiva é uma comunidade de fusão. Para os filósofos de Frankfurt, dade afetiva?
a comunidade é toda harmonia — para Kant, ela é toda melodia.

A intercorporeidade
A sinestesia
Citaremos, à guisa de transição, umas poucas frases dessa bíblia
A socialização do sensível, nós a vimos em Aristóteles, preci- da sinestesia que são Les cinq sens, de Michel Serres: “O corpo sabe
samente onde ele discute a aisthêsis koinê, a “sensação comum”, dizer o eu por si só. A sinestesia diz o eu por si mesma. Ela sabe que
nos Parva naturalia.”º Lá o Estagirita distingue dois tipos de “sen- eu estou dentro, cla sabe que cu existo. O sentido interno protesta,
sações comuns”. Há o caso dos dois sensíveis, objeto do mesmo sen- chama, anuncia e algumas vezes grita o eu. O senso comum é a coisa
tido, que os mistura: é o fenômeno da mistura de corpos (miksis som- do mundo que melhor divide o corpo”.* Les cing sens constitui um
matoon), de que dá como exemplos o vinho misturado, o mel mis- elogio da sinestesia, mas também reivindica a sensibilização do
turado e também as cores colocadas umas ao lado das outras. Nesse social, insistindo sobre a corporeidade da sociabilidade. A comuni-
caso, o tempo permanece imperceptível (chronos anaisthêton). O dade afetiva, que só pode existir no modo da fusão, é uma intercor-
outro tipo de “sensação comum” é muito mais interessante: é quan- poreidade. Essa intercorporeidade “se sente” a si própria nessa auto-
do dois sensíveis são objeto de sentidos diferentes (por exemplo, o afeição essencialmente temporalizada que é a sinestesia. Para citar
branco e o agudo); então o tempo é percebido e os dois sensíveis se Serres de novo: “Sem o retraimento, sem contato meu comigo mes-
encontram em acordo (symphonia).* Podemos considerar que essa mo, não haveria na verdade um sentido interno, nenhum corpo pró-
mistura “sinfônica” provoca uma sensação verdadeiramente sines- prio a ninguém; sem sinestesia, nenhum esquema corporal real.

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Quando eu levanto minha mão e toco meus lábios, eu sinto a alma caso que a amizade — o ser-em-comunidade por meio da solidarie-
que passa de uma parte a outra do contato, a alma transbordando ao dade — sirva de fundamento para a justiça. Seria insustentável e frí-
redor de si mesma na contingência.” volo legitimar o político pelo estético? Mas é bem isso o que
É Merleau-Ponty que, em seu O visível e o invisível (especial- Hannah Arendt propõe: a crítica kantiana do juízo estético ou juízo
mente nas notas de trabalho do final desse livro esquecido dema- de gosto seria então o complemento e quiçá o coroamento do pen-
siado rapidamente), elaborou uma fenomenologia da intercorpo- samento político de Aristóteles.” O “noivado” de Aristóteles e Kant
reidade que se apresenta como uma verdadeira fenomenologia da poderia nos ajudar a pensar apropriadamente —- com conhecimento
fusão. “A sensação que sentimos, o ver que vemos, não é pensamen- e bom gosto — sobre aquilo que está além da pragmática: a estética
to de ver ou de sentir, mas visão, sensação, experiência muda de um da comunicação valorizando, na pólis, a solidariedade no afeto.
sentido mudo — o redobramento quase “reflexivo”, a reflexividade
do corpo, o fato de que ele se toca tocando, se vê vendo, não con-
siste em surpreender uma atividade de ligação por trás do ligado,
em se reinstalar nessa atividade constitutiva”, diz Merleau-Ponty,
modo aesthetico, opondo-se rigorosamente a qualquer projeto
hegeliano de totalização.' É na experiência do aperto de mãos — e
também do beijo — que a idéia da comunidade fusional encontra
sua representação ideal. Aqui, onde “o tocar é tocar a si próprio”
emerge a comunidade de fusão. A idéia social é, em conseqiiência,
o fruto do estar-em-comunidade na experiência fusional. O sensus
communis, tal como a ele fez referência Kant na Crítica do juízo, é
a sensibilidade, universal e comunicável, dessa comunidade afetiva
que só podemos conceber no modo da fusão. Sin-estesia e intercor-
poreidade: Aristóteles e Merleau-Ponty, um mesmo projeto de socia-
lização do sensível e/ou sensibilização do social.

Estetizar o político

“Nós vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade”,


essas são as palavras de abertura da Política.”A koinoonia gera as
relações legais, mas também os laços de solidariedade, de amizade
(philia). Essa comunidade não é uma associação: a Gemeinschaft
não é uma Geselischaft.” Para que haja comunidade, é preciso que
haja algo em comum entre os membros dessa comunidade.?* O polí-
tico é o entrelaçamento do social e do sensível - o político é o di-
namismo do sensus communis (onde o social é sensibilizado e o sen-
sível socializado). Se é verdade, como afirma Aristóteles, que deve
haver amizade e justiça para que haja uma comunidade, pode ser o

200
18 F, Jacques formulou algumas críticas com relação ao projeto filosófico
de Habermas e Apel, em L'espace logique de l'interlocution. Paris, PUF, 1985,
pp. 374-82.
17 Para uma excelente análise, veja o artigo recente de J. F. Lyotard, “Argu-
mentation et présentation: la crise des fondements”. L'Encyclopéaie philoso-
phique universelle, livro I: L'univers philosophique. Paris, PUF, 1989, pp.
738-50.
18 Art. cit., p. 747.
!º Veja, para a mesma opinião, J. F. Lyotard, art. cit., p. 747.
NOTAS 2% Veja a excelente ontologia de F. van Holthoon e D. Olson (eds.), Common
sense; the foundations for social science. New York/London, Lanham, 1987,
contendo revisões históricas e sistemáticas a propósito da idéia de senso comum.
2 Veja, para um esboço dessas fontes do conceito kantiano de sensus
communis, H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode. Tibingen, Mohr, 1960,
! Veja R. Shusterman, “Postmodern aestheticism; a new moral philosophy?”
pp. 7-39.
Theory, Culture and Society, (5), 337-55, 1988.
2 Extratos do parágrafo 40 da Crítica do juízo, pp. 160 e 162.
? L.Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus. London, Routledge and
Kegan Paul, 1961. 2 Veja G. Lebrun, Kant et la fin de la métaphysique. Paris, Colin, 1970,
todo o capítulo 17.
? R. Rorty, “Freud and Moral Reflection”. In: J. H. Smith and W. Kerrigan
(eds.), Pragmaticism's Freud; the moral dispositions of psychoanalysis. 2 Citado por A. Philonenko, “Introdução” à tradução francesa da Crítica
Baltimore, John Hopkins University Press, 1986, pp. 11-12. do juízo. Paris, Vrin, 1965, p. 10.

* O. Wilde, The works of Oscar Wilde. London, Collins, 1987. 25 Kant fala de um allgemeine Stimme a ser postulado a partir do julgamen-
to de gosto, no parágrafo 8 da Terceira crítica, pp. 57-60.
* L. Wittgenstein, On certainty. Oxford, Blackwell, 1974, parágrafos 115 e
lI4. 2 V. John Sallis, Spacings of reason and imagination. University of Chica-
go Press, 1987. Sobre o livre jogo das faculdades no juízo estético, veja tam-
$K. O. Apel, “La question d'une fondation ultime de la raison”. In: Criti-
bém o excelente livro de G. Deleuze, La philosophie critique de Kant. Paris,
que, (413): 895-928, 1981.
PUF, 1963, capítulo 3.
7H. Albert, Traktat iiber kritische Vernunft. Túbingen, 1968.
“ Sobre o Darstellung, na Terceira crítica de Kant veja também o excelente
* V. também o capítulo 6. artigo de J. Beaufret, “Kant and the notion of Darstellung”, em seu Dialogue
º V. capítulo 6, nota 17. avec Heidegger. Paris, Editions de Minuit, 1973, pp. 77-109.
!º Veja em especial K. O. Apel, “L'éthique de la discussion: sa portée, ses “ Veja o notável artigo de J. F. Lyotard, “Sensus communis”, em Les Cahiers
limites”. Encyclopédie Philosophique Universelte, livro |: L'univers philo- du Collêge International de Philosophie, (3): 67-68, 1987.
sophique. Paris, PUF, 1989, pp. 154-65. ” V, o capítulo 2.
N K.0O. Apel, art. cit., p. 160. 30 Aristóteles, Sobre a sensação e os sensíveis, 439b pp. 22-4.
2 Art. cit., p. 160. 3 Sobre os problemas da aesthesia em Aritóteles, ver D. K. Modrak,
Bv. nota 6. Aristotle; the power of perception. Chicago University Press, 1987; W. Welsch,
Aisthêsis; Grundziige und perspektiven der aristotelischen Sinnelehre. Stuttgart,
'* Para uma análise mais completa e mais recente, veja K. O. Apel, “La
Klett-Cotta, 1987 e M. Wedin, Mind and imagination in Aristotle.Yale
rationalité de la communication humaine dans la perspective de la pragmatique
University Press, 1988.
transcendante”, Critique, (493-4): 579-603, 1988.
2 Cf. W. W. Fortenbaugh, Aristotle on Emotion. New York, Barnes and Noble,
3 Art. cit., p. 583.
1975, pp. 23-44.

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2 M. Serres, Les cing sens. Paris, Grasset, 1985.
* Op. cit., p. 23. :
*º M. Merleau-Ponty, The visible and the invisible. Evanston, Northwestern
University Press, 1968, p. 249.
* Aristóteles, Política, 1252a.
? Sobre essa distinção, veja, entre outros, R. G. Mulgan, Aristolle's political
theory. Oxford, Clarendon Press, 1977, capítulo 2.
* Aristóteles, op. cit., 1328a pp. 25-27.
* Cf. H. Arendt, Lectures on Kant's Political Philosophy.The University
of
Chicago Press, 1982, pp. 65-77 e passim. Para comentários sobre essa posi-
ção, ver J. M. Perry, Haberma; l'éthique de la communication. Paris, PUF,
1987, pp. 110-13.

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