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CAPITULO I GENESE DA SOCIEDADE GRIS" A ALTA IDADE MEDIA MESMO SE © PRESENTE LIVRO tem por tema principal o desenvolvimento da dade Média Central, & imposstvel jgnorar os processos fundamentals de desor- ganizacdo e de reorganizag2o que caracterizam 0 meio milénio anterior € que sfo, a este titulo, indispensaveis para a compreensio da dinimica medieval INSTALAGAO DE NOVOS POVOS | E FRAGMENTAGAO DO OGIDENTE Invasées barbaras? A tradicional expresso “invasbes bérbaras” (que eram, normalmente, julgadas responsaveis pela queda do Império Romano do Ocidente) convida a uma dupla critica, “Bérbaro’: na origem, a palavra designa apenas os nio gregos e, depois, (9s ndo romanos. Mas a conotacao negativa adquirida por este termo toma di cil empregé-lo hoje sem reproduzir um julgamento de valor que faz de Roma 0 padrao da civilizagao e de seus adversatios os agentes da decadéncia, do atraso € da incultura. Com efeito, os povos germanicos — expresso aceitavel em sua neutralidade descritiva — que se instalam pouco a pouco no terrtério do Império decadente, e mais tarde arruinado, ignoram de infcio toda a cultura turbana tio estimada pelos romanos, ndo se entregam aos arcanos do diteito e da administraglio do Estado, desconhecendo a pritica da escritura, No entanto, sua coestio social politica em torno de seu chefe ou, ainda, sua habilidade em ‘matéria de artesanato e, principalmente, do trabalho com metais, superior & do mundo romano, asseguram-lhes algumas vantagens e permitem que eles se aproveitem das fraquezas de um Império em dificuldade. O termo “invasoes” ino é mais satisfatério do que o terma “barbaros”, Houve vitios episddios san- grentos, conflitos militares, incursdes violentas e ocupagdes de cidades — cer- tamente, aqueles aos quais as narrativas dos cronistas deram maior relevo. Entretanto, a instalagio dos povos germanicos deve ser imaginada sobretudo ‘como uma infiltragio lenta, durando virios séculos, como uma imigragio pro- gressiva e muitas vezes pacifica, durante a qual os recém-cheyados se instala- am individualmente, aproveitando-se de seus talentos artesanais ou pondo sua forca fisica a servigo da armada romana; ou também em grupos numerosos, beneficiando-se entio de um acordo com o Estado romano, que lhes concedia © estatuto de “povo federado”. O Império soube, entdo, em um primeiro momento, absorver essa imigracio ou compor com ela, antes de desaparecer sob © efeito de suas proprias contradigies, exacerbadas a medida que a infiltragao cstrangeira se ampliava A historiografia recente demonstrou-o bem: a zona de fronteira (limes) 20 norte do Império teve um papel marcante, menos como separagao, como se imagina com frequéncia, do que como espaco de trocas e interpenetracao. Do Jado romano, a presenca de exércitos consideriveis e a implantacto de um cor- dio de cidades importantes na retaguarda (Paris, Tréves, Col6nia) estimulam a atividade dessas regies e aumentam seu peso demogréfico, langando assim, sem dtvida, as bases da importaneia adquirida pelo Noroeste da Europa a par- tir da Alta Idade Média. Quanto aos grupos germédnicos que vive préximos do Times, eles deixam de ser ndmades e tornamse camponeses, vivendo em aldeias ¢ praticando o pastoreio, o que Ihes permite também serem guerreiros mais bem nutridos que os romanos. Devido a sua sedentarizacdo, seu modo de vida & menos diferente do que se poderia crer daquele dos povos romanizados, que, ali, comercializam de bom grado com eles. Assim, quando as razias dos hunos,, vindos da Asia Central, se abatem sobre a Europa, os visigodos que pedem auto- rizagio para entrar no Império sao agricultores to inquietos diante desse novo perigo quanto 0s préprios romanos. A fronteira foi, entdo, 0 espago em que romanos e nao romanos habituaram-se a se encontrar ea fazer trocas, comegan- do a dar & luz. uma realidade‘intermedisria; ela torna-se “o eixo involuntério em torno do qual os mundos romanos e barbaros convergiam” (Petet Brown). fe, cedendo 0 Mais tarde, a unidade imperial desloca-se definitivament lugar, no decorrer dos séculos V e V1, uma dezena de reinos germanicos. Desde 429-39, os viindalos instalam-se no Norte da Africa com o estatuto de povo federado; depois 6 a ver dos visigodos na Espanha e na Aquitinia, dos oxtrogo: enemas — dos na Iidlia (com Teodotico, que reina a partir de 493), dos bungtindios no Leste da Galia, dos francos ao norte desta ¢ na Baixa Rendnia e, finalmente, a partir de 570, os anglos e os saxdes, que estabelecem na Gra-Bretanha (com excegao dos terrtérios da Escécia, da Irlanda e do Pafs de Gales, que permane- ‘cem celtas) os numerosos reinos que se dilacerario no decorrer da Alta Idade Média (Kent, Wessex, Fssex, Anglia Oriental, Mercia, Northumbria). Sem con- seguir, de qualquer modo, inverter a fragmentagio que caracteriza entio 0 Ocidente, um fendmeno notavel desse periodo é 0 aumento do poderio dos francos, conduzidos pelos soberanos da dinastia merovingia, fundada por Clovis (F511) e ilustrada por Clotério ( 561) e Dagoberto (+ 639). Os francos conse: guem, com efeito, expulsar os visigodos da Aquitania (na batalha de Vouillé, 1 507), incorporar os terrt6rios de outros povos, especialmente aquele dos bur- atindios, em 534, para finalmente dominar 0 conjunto da Glia (salvo a Armé- rica celta). ‘que reforga ainda mais o peso, jé dominante demograficamente, da Galia. Um 's adquirem, assim, uma primazia no seio dos reinos germanicos, pouco mais tarde, no decorrer do século Vt, 0s tltimos dos povos germanicos a chegarem, os lombardos, instalam-se na Itélia, contribuindo para arruinar a reconquista de uma parte do antigo Império do Ocidente, levada a cabo pelo imperador do Oriente, Justiniano (+ 565). Mesmo apés a instalagio dos povos germénicos, o Ocidente alto-medieval continua a ser marcado pela instabilidade do povoamento e pela presenca dos la Thérica © poe manos avangam recém-chegados. A expanso mugulmana submerge a Pent fim ao reino visigético em 711, enquanto bandos armados mu até 0 centro da Gélia com a intengio de pilhar Tours, até serem vencidos em Poitiers, em 732, pelo chefe franco Carlos Martel, o que os obriga a bater em retirada para além dos Pireneus. Depois, na segunda parte da Alta [dade Média, € preciso mencionar as incursées tumultuosas dos hingaros, no século x, e, sobretudo, dos povos escandinavos, também chamados vikings ou normandos (literalmente “os homens do Norte"). Guerreiros valentes ¢ grandes navegadores, estes tiltimos atacam incessantemente as costas da Inglaterra desde o fim do século Vill e submetem os reinos anglo-saxdes ao pagamento de um tributo, até que o dinamarqués Cnut se imponha como rei de toda a Inglaterra (1016-35). No continente, os homens go Norte aproveitam-se do enfraquecimento do Império Carolingio e, a parti dos anos 840, nao se contentam mais em atacar as regides costeiras, mas penetram profundamente em todo 0 oeste dos territérios francos, evocando suas divindades pagiis e semeando pinico e destruigao. o obrigados a ceder, ¢ 0 Tratado de Saint- Glairssur-Epte (911) concede aos normandos a rey Finalmente, os soberanos carolingios io que, no Oeste da Franca, tem ainda hoje seu nome, Mas o expansionismo dos vikings nfo para por af €, a partir desta base continental, 0 duque da Normandia, Guilherme, © Conquis- tador, se langa sobre a Inglaterra da qual ele se torna tei na sequéncia da vit6ria obtida em Hastings (1066) sobre Haroldo, que se esforcava para reconstruir um reino anglo-saxdo. Por outro lado, a familia normanda dos Hauteville arisca-se ainda mais longe, conquistando o Sul da Ilia com Roberto Guiscardo, em 1061 @, depois, a Sicflia, em 1062, até que Roger il, reunindo o conjunto desses terri t6rios, termine por obter o titulo de rei da Sicilia, da Apiilia e da Calabria, em 1130, Finalmente, os vikings da Escandindvia, sob a condugio do legendério Erico, o Vermelho, implantam-se, a partir do fim do primeito milénio e por muitos séoulos, nas costas da Groenlandia (que eles jé denominam “pats verde"). A par- tir dali, Leif Eriksson ¢ seus homens aventuram-se, no inicio do século XI, até os rios do Canadi e, sem dtvida, da Terra Nova, mas sio logo expulsos pelos seus hhabitantes. Eles foram, assim, os primeiros europeus a pisar em solo americano, ‘mas sua aventura sem continnidade nao teve o menor efeito histérico. A fustio romano-germanica Voltemos um pouco atrés para sublinhar os efeitos da fragmentacdo da unidade romana e da instautagao dos reinos germanicos, O conjunto desses movimentos contribui para 0 deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental, do Mediterraneo para o Noroeste da Europa. Aos fatores jé evocados (papel da antiga fronteira romana, peso demogrifico da Gélia, expansio dos francos), & preciso juntar a conquista duradoura da Espanha pelos muculmanos, que con- trolam igualmente o conjunto do Mediterraneo ocidental, ea desorganizagao da Itdlia, esgotada pelo insustentavel projeto da reconquista justiniana e pela epi- demia da peste que a devasta a partir de 570 e durante o século vil. Desde centio, o papel principal na Europa crista transfere-se para 0 Norte. Outra con- sequéncia da desagregagio do Império do Ocidente € 0 desaparecimento de todo o verdadeiro Estado. Uma vez quebrada a unidade de Roma, seu sistema fiscal desaba com ela. O ocaso da estrutura fiscal romana é, na verdade, um dos fatores que favorecem a conquista pelos povos germanicos. Mesmo se a domi- ago “bérbara’ Ihes custa do ponto de vista cultural, as cidades percebem muito bem que ela 6 preferfvel ao peso crescente do fisco romano, ao mesmo tempo que “os reis germanicos se dao conta de que 0 pr conquista facil 6 muitas veres o de outorgar aos proprietitios romanos privilé go a ser pago por uma gios fiscais to amplos que o sistema fiscal foi destruido a partir do interior” aera — (Chris Wickham). © desabamento da estrutura fiscal fez. do Ocidente, a partir do meio do século Vi, um conjunto de regiBes sem relagiio entre si; e os reinos ‘germanicos, mesmo quando levam mais longe a conquista, permanecem atrela- dos a essa profunda regionalizacao. Eles sio incapazes de restaurar 0 imposto ‘ow mesmo de exercer um verdadeiro controle sobre seus territérios e sobre as elites locais. Assim, se 0s reis germanicos tém uma intensa atividade de codifi- cacao juridica, redigindo cédigos e editos onde se misturam brevidrios de direi- to romano e compilagdes de costumes tradicionais de origem germénica (lei salica dos francos, leis de Etelberto, editos de Rotério etc.), esse frenesi juridi- co corresponde a auséncia de todo o poder real efetivo e toda tentativa séria de aplicagdo se revela um imenso fracasso, A forga de um rei germanico € essen- cialmente um poder de fato: protegido por uma corte ligada a ele por um lago pessoal de fidelidade, ele € um guerreiro inconteste, conduzindo seus homens a vitGria militar e& pilhagem. O proceso que confunde a coisa piblica com as possessdes privadas do soberano, iniciado desde o século mi, conduziu, no caso dos reis germanicos, a uma completa confusio, Resulta disso um patrimonialis- mo do poder que permite, notadamente, recompensar servidores fis através da concessdo de um bem piblico, Em resumo, é impossivel considerar Estados os reinos da Alta [dade Média, Entretanto, seria um engano erer que 0 fim do Império signifique a substi tuigdo completa das estruturas sociais ¢ culturais de Roma por um universo importado, préprio dos povos germanicos, Mais do que isso, constata-se um pro cesso de convergéncia e de mistura do qual as elites romanas locais so, sem nenhuma diivida, os atores principais. Elas compreendem que Ihes é possivel manter suas posigdes sem o apoio de Roma, desde que consintam em compor ‘minimamente com os chefes de guerra germAnicos. E claro, custa-lhes negociar com esses “barbaros’, vestidos de peles de animais e de cabelos longos, que tudo ignoram dos refinamentos da civilizagao urbana. Mas o interesse prevale- ce e os chefes bétbaros recebem sua parte da riqueza romana — terras e escra- vos —, a ponto de tomarem-se membros eminentes das elites locais. Pouco a pouco, ¢ inicialmente na Espanha e na Gélia, as diferengas entre aristocratas romanos e chefes germénicos atenuam-se, e com maior intensidade ainda devi- do aos casamentos que, corg frequéncia, unem suas linhagens. Assim, opera-se a unil elites, que terminam por partilhar um estilo de vida comum, cada vez mais militarizado, mas também fundado sobre a propriedade da terra © 0 controle das cidades. Essa fusio cultural romano-germanica é um dos tra- 08 fundamentais da Alta Idade Média e foi, sem dtvida, entre os francos que ilies resto, precocemente ilustrada pelo selo de Childerico (+ 481), o pai de Clovis, no qual o rei aparece retratado com os longos cabelos do chefe de guerra fran- co caindo sobre as pregas de uma toga romana (Peter Brown). A CONTURBAGAO DAS ESTRUTURAS ANTIGAS O declinio comercial e urbano ‘As desordens ligadas aos movimentos migrat6rios e ao fim da unidade romana tém consequéneias econdmices de primeira importincia, A inseguranga, com- seguida pela destruigao progressiva da rede de estradas romanas, engendra 0 declinio e binada & falta de espécimes monetarios e a auséncia de manuten« 6 quase desaparecimento do grande comércio, antes tio importante no Império. Evidentemente, alguns produtos de luxo continuam a alimentar as cortes reais € as casas aristocréticas (especiarias e produtos do Oriente, armas ¢ peles da Escandindvia, escravos da Gri-Bretanha). Sem a manutengZo, ainda que mini- rma, de um fluxo de troca de longa distancia, nfo se poderia explicar 0 tesouro dda tumba real de Sutton-Hoo (Suffolk, Inglaterra), do século vi, no qual foram encontrados armas e paramentos escandinavos, pegas de ouro da Francia, pra- {aria de Constantinopla e seda da Sitia. Mas 0 esgotamento afeta o que compu- nha o essencial da circulagao de mercadorias no Império, ou sefa, os procutos alimentares de base, como os cereais, macigamente importados da Africa para Roma e que serviam até mesmo a0 abastecimento das tropas concentradas na fronteira norte, ou ainda os produtos artesanais que circulavam amplamente entre as regides. Pode-se mencionar, assim, gragas ao testemunho da arqueolo- gia, o caso da cerimica africana, que tinha invadido todo o mundo mediterrani co durante o Baixo Império e cujas exportagdes, embora poupadas pela conquis ta vindala, declinam ¢ desaparecem em meados do século Vi, abrindo caminho para o surgimento de estilos regionais de cerdmica. Com efeito, é do século Vi que se deve datar o declinio macigo de todos os setores do artesanato (exceto da metalurgia, paraa qual os povos germanicos contribuem com um conheci mento superior) e o fim das ilhas de prosperidade econdmica que tinham sido preservadas até entio. A produgio realiza-se, doravante, em uma escala cada ver. mais local, o que acentua ainda mais o declinio das trocas. A regionalizagio das atividades produtivas, paralela a fragmentagio politica, ¢ justamente santas ea- racterfsticas fundamentais da Alta Kdade Média, semen lili Junto com o grande comércio, as cidades, nao menos embleméticas da civi- lizago romana, conhecem um profundo declinio. Suas dimenstes reduzem-se de modo considerivel: Roma, que deve ter atingido 1 milhio de habitantes, tem ainda 200 mil depois de 410, mas somente 50 mil no fim do século Vi; para tomar ‘um outto exemplo, bem mais comum, uma cidade do centro da Gilia, como Clermont, que antes se estendia por duzentos hectares, encerra em estreitas rmurathas um terit6rio reduzido a ts hectares. Desde 250, tem inicio a diminui- <¢40 do ritmo das constragbes piiblicas que faziam as honras das cidades romanas e que cessam completamente apés 400 (com a excegio dos ediffcios episcopais). Os antigos edificios publicos caem em ruinas e seus materials so multas vezes reutilzados para edificarigrejas ou casas particulares. As elites senatorais, antes associadas ao prestigio da capital, voltam-se para os seus dominios (villae), enquanto as insttuigdes urbanas (como a curia, antiga instdincia de govemo aut6- rnomo das cidades) vacilam diante do poder crescente dos bispos. Em suma, as cidades, ¢ com elas a cultura urbana que compunha 0 coragio da eivilizago roma- rna, nao sao mais do que a sombra delas mesmas. Mas, a despeito de seu declinio considerével, as cidades do Ocidente jamais desaparecem completamente. Pode -se mesmo dizer que, aproveitando-se da fraqueza do controle exercido pelos reis, germinicos, elas se mantém como os principais atores politicos no nivel local, durante 0s séculos V1 a vit (Chris Wickham). Seu papel €, por certo, apagado, mas, gragas A. ampla autonomia das elites urbanas e ao desenvolvimento da fun- ‘Gio episcopal, elas conseguem sobreviver a crise inal do sistema romano. Enquanto as cidades declinam, a ruralizacao constitui um traco essencial a Alta Idade Média, As desordens j4 mencionadas so sentidas também nos ‘campos e os séculos V e VI sio caracterizados por uma crise de produedo agrico- la, Seria, porém, imprudente estender essa conclusio ao conjunto do periodo considerado aqui. Ao contrério, apesar da raridade de fontes de informagiio, 05 historiadores acumularam indicios que poem em causa a ideta tradicional de luma recessio generalizada dos campos durante a Alta Idade Média. Evidente- mente, a diminuigao — de cerea de um tergo — do tamanho dos animais de teriagdo entre o Baixo Império e a Alta Idade Média indica 0 tecuo do grande dominio ¢ 0 abandono da comercializagdo do rebanho, em beneficio de uma ériagio para uso local. Entretanto, constata-se também, durante a Alta Idade Média, a difusao lenta de certas inovagdes técnicas (moinho gua, instrumen- {al metdlico), assim como uma leve expansio das superficies cultivadas. Trata- € claro, de um primeiro desenvolvimento, limitado e frégil, muitas vezes Anterrompido e periodicame ‘as, em todo caso, fundamer ‘losis que se afirmariio durante o periodo seguinte, (© posto em causa por circunstincias adversas, 1 medida em que ele acumula as forgas si O desaparecimento da escravidéo ‘© mais determinante, sem diivida, so as profundas transformagbes das estru- turas sociais rurais. No mundo romano, o essencial da produgdo agricola era assegurado no quadro do grande dominio escravista. Ora, 6 justamente esse tipo de organizacio — comecando pela propria escravidio — que desaparece. Essa questao suscitou amplas discussdes que, ainda hoje, esto longe de estar resol- vidas e sao esclarecidas apenas por informacées imperfeitas. Entretanto, uma cconstatacio essencial 6 capaz de obter umanimidade: quando se atinge o século x1, a escravidio, que constituia a base da produgdo agricola no Império Romano, cessou de existt, de modo que, entre o fim da Antiguidade tardia e o fim da Alta dade Média, ocorre inegavelmente o desaparecimento da escravidio produtiva (por outto lado, a escravidio doméstica, que nao tem nenhum papel na produ- 60 agricola, continua a existir, notadamente nas cidades da Europa mediterri- nica, até o fim da Idade Média, e mesmo depois). Mas o acordo termina desde que se levantem trés questdes determinantes para compreender o desapareci mento da escravidio: Por qué? Quando? Como. As causas teligiosas, tradicionalmente evocadas, tiveram sua importincia limitada pela historiografia do dltimo meio século, De fato, 0 cristianismo esta Jonge de condenar a eseravidao, como atestam os escritos de so Paulo. Pelo con- trario, ele se esforga para reforcar a sua legitimidade, a tal ponto que te6logos como santo Agostinho Isidoro de Sevilha, tio essenciais para o pensamento medieval, veem nela um castigo de Deus, E verdade que a Igreja considera a liber tagiio dos escravos (manumissio) um ato piedoso, mas ela prdpria nao dé o exem- plo, pois 0 eseravos que possui em grande nimero sio considerados pertencen- tes a Deus e, assim, ndo poderiam ser retirados de um senhor tio eminente (para nndo mencionar o fato de que um papa como Gregério, o Grande, compra novos eseravos), Entretanto, ainda que a Tgreja em nada se oponha & escravidao, a difu- siio das préticas crits modifica profundamente a percepgao dos escravos e ame- niza, pouco a pouco, sua exclusdo da sociedade humana. Com efeito, se, mum pri- rmeito momento, a Igreja profbe a redugdo & escravidao de um cristo, a seguir ela reconhece que 0 escravo é um criti: este recebe o batismo (sua alma deve, por- tanto, ser salva) e ele partilha 0 mesmo higar dos homens lives durante os oficios. Tal pratica, que dimimi a separacio entre livres e nfo livres, tende a solapar os fundamentos ideolégicos da escravidio, ou seja, a natureza infra-humana do escravo e sua dessocializagio radical (Pierre Bonnassie) Causas militares também sao tradicionalmente evocadas, pois 0 fim das uerras romanas de conquista parece secar as fontes de abastecimento de @sera- Vos, Mas as desordens do século V suscitam, ao conteitio, ura alta MANGO en _— de escravos e as guernas incessantes levadas a cabo pelos reinos germanicos, entre si ou contra as populacdes anteriormente estabelecidas (os celtas, vitimas do avango dos anglo-sax6es nas has Britanicas, sio massaerados, condenados 20 cexflio ne Armérica ow reduzidos a eseravidao), asseguram a manutengiio de um manancial de novos fornecimentos ao longo dos séculos Ve vu, do mesmo modo que, no século 1%, as razias carolingias na Boémia e na Europa Central. Mas, tenquanto 0 escravo antigo era um estrangeiro, ignorando a lingua de seus senho- res, no ocorre mais o mesmo com o eseravo desse perfodo, com frequencia cap- turado no decorrer de uma guerra entre vizinhos, o que contribui ainda mais para reduzir sua dessocializacio e a distncia que o separa dos homens livres. Rejeitando as explicagées ligadas aos contextos religioso militar, a historio- srafia, desde Mare Bloch, insistiu sobre as causas econdmicas do declinio da escravidio: uma ver desaparecido o contexto bastante aberto da economia antiga, «que permitia obter grandes beneficios da prodlugio agrcola, a escravidao deixa de ser adaptada. Os grandes proprietrios se dio conta do custo e do peso da manu- tengdo da mio de obra escrava, que € preciso alimentar durante todo o ano, inelu- sive durante as estacBes ndo produtivas. Doravante, revela-se mais eficazinstalé- -la em terrenos situados as margens do dominio, o que Ihe permite obter sua subsistencia, em troca de um trabalho realizado nas terras do senhor ou de uma parte da colheita obtida, Tal € 0 processo de chasement,jé praticado no século tt € bem atestado entre o século Vie 1%. Ele leva a formago do grande dominio, considerado a organizacio rural cissica da Alta Idade Média e, em particular, da Epoca carolingia. Muitas vezes tio extenso como aqueles da Antiguidade (por veres, superando 10 mil hectares), ele se caracteriza por uma dualidade entre a reserva (‘terra dominicata’), explorada diretamente pelo senhor(gragas & miio de obra servile ao pesado trabalho que os camponeses vinculados devem realizar em suas ters, em geraltré dias por semana), e os mansos (“nansi"), parcelas onde estes dltimos sao instalados e gragas Bs quai eles asseguram sua subsisténcia Modificacdes importantes devem ser, entretanto, acrescentadas ao esquema acima, A importancia do grande dominio deve ser relatvizada, Se ele constitui a forma de organizagio que assegura, de modo privilegiado, o poderio dos grupos dominantes — aristocracia¢ Ipreja —, convém sublinhar a importincia, duran- tea Alta Idade Média, de pequenos camponeses lives, que cultivam terra inde- pendentes dos grandes dosninios, denominadas alddios. Esses homens livres beneficiavam-se de uma posicio privlegiada, particularmente em matéria judi- Cifria, mas sobre eles pesam obrigagdes, especialmente militares, que sto dificefs de suportar, {4 que siio bastante pobres. E por isso que se enfatizou que eles dloveriam ve interesar de perto pelas possiblidades oferecidas peas inovagaes toriadores associam o primeito desenvolvimento dos campos, a parti do século Vil, aos grandes domfnios, outros se perguntam se ele nio foi, antes, obra dos camponeses alodiais e se estes iiltimos no constitufam, entiio, a maioria da populacao rural. Em todo caso, a dindimica atinge os grandes dominios, onde ter- mina por acentuar 0 processo de vinculacio (chasement) dos antigos escravos, a descentralizagao de satélites que dependem do dominio principal, e 0 enfraque- ‘cimento do controle sobre os mansos. A dificuldade de organizagio dos grandes dominios e os inconvenientes da mio de obra escrava foram, certamente, causas decisivas da decadéncia da escravidao, mas intervém nao no contexto de reces- so suposto por Mare Bloch, mas em interago com o relativo desenvolvimento posto em marcha pelo campesinato alodial Criticas posteriores & obra de Mare Bloch sugerem que as causas econdmi- ‘cas nao sio suficientes. Assim, alguns quiseram sublinhar que o fim da escravi- dao era a obra dos préprios escravos e de suas lutas (de classe) pela libertagio (Pierre Dock’s). Pode-se, com efeito, dar relevo & importincia das guerras agaudas,‘revoltas de escravos que explodem no século i, e, depois, em my dos do século Vv (assim como a revolta dos escravos das Asturias, em 770), ou, cia, desde a ret ainda, sublinhar que existem vérias outras formas de resi céncia ante o trabalho ou simplesmente sua sabotagem até a fuga que, no decor- rer da Alta [dade Média, se faz cada vez mais macica, suscitando preocupagio crescente das camadas dominantes. Entretanto, tendo em vista a cronologia, se € dificil atribuir o papel determinante as lutas dos dominados, as observacbes de Pierre Docks estimularam a sublinhar o papel das transformagées pol Com efeito, a manutengao de um sistema de exploragio tio rude como a escra vidao supde a existéncia de um aparelho de Estado forte, garantindo sua repro: ducdo pelas leis que Ihe conferem legitimidade ideolégica e pela existencia de ‘uma forga repressiva — utilizada ou niio, mas sempre ameacadora —, indispen- sivel para garantir a obediéncia dos dominados. Do mesmo modo, quando declinou 0 aparelho do Estado antigo, os proprietérios fundirios tiveram cada vez mais dificuldade em manter sua dominagdo sobre seus escravos. E verdade {que cada sobressalto do poder politico — inclusive, ainda, durante a época caro- lingia — parece propfcio a uma defesa da escravidio, mas trata-se sempre de tentativas limitadas e cada vez menos capazes de rear uma evolugo cada vez mais irresistivel. Assim, € uma mutagZo global, ao mesmo tempo econémica, soctal e politica, que conduz os senhores a transformar grandes dominios, quc haviam se tornado incontrolaveis e pouco adaptados as novas realidades, ea renunciar progressivamente a exploracao direta do rebanho humano, alin’ (N, 58 erie Maser _— et A cronologia da extincao da escraviddo nao ests menos sujeita & controvérsia Pode-se, entretanto, renunciar as teses mais extremas. Assim, a maior parte dos historiadores marxistas, obnubilidos pelos escritos dos classicos do materialismo histético, associa o fim do escravagismo a crise do Império Romano, que se supde ter mareado, nos séculos it a ¥,a transi¢fo decisiva do modo de produgao antigo para o modo dle procgao feudal. Mas as pesquisas realizadas desde hii mais de ‘meio século demonsttaram o caréter insustentavel dessa tese, uma vez que nume- rosas fontes atestam a manutengao macica, durante a Alta Idade Média, de uma escravidio essencialmente idéntica aquela da Antiguidade. Assim, nas leis germa- nicas dos séculos VI a Vil, a condigdo infra-humana do escravo € reiterada sem ‘modificagdes substanciais: 0 escravo € comparado a um animal, como 0 confir- mam as frequentes mencoes que dele so feitas nas rubricas consagradas ao gad, Aim de obter sua obediéncia pelo terror, ele pode ser espancado, mutilado (abla-

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