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CAPITULO 1 | RAZAO, NATUREZA, VERDADE. Razao e imitacaio N Go esquecamos que a idéia-forca do Arcadismo portugués (de que'o brasileiro € um aspecto) foi polémica: tratava-se de opor; daf ter sido tm movimento eminentemente critico, fiado de preferéricia no discernimento, desconfiado em parte da inspiragao, ou “furor poético”, como vem nos tratadistas, Tis hard to say if greater want of skill , Appear in writing or in judging ill, escreveu o grao-padre do Neoclassicismo inglés, ajuntando: But of the two, less dang’rous is th’offence ‘To tire our patience than mislead our sense? Conseqtientemente, prezaram-se na poesia aqueles valores atribuidos de ordinrio A prosa ¢ que haviam sido, mesmo nela, obliterados por mais de um século de in- temperanca verbal: clareza, ordem légica, simplicidade, adequigio ao pensamento. Esta reconquista da natutalidade da feigdes de classico ao periodo, pois'se-liga’a uma estética segundo a qual a palavra de Pits Em Portugal 0 Arcadismo integra’um amplo movimento de renovacao cultural, paralelo a certas iniciativas pombalinas. Homens como Verney ¢ Ribeiro Sanches queriam introduzir na patria 0 novo espirito filoséfico, impregnado das orientagdes metodologicas do racionalismo ¢ do p6s-racionalismo anglo-francés. Em literatura, exprimir a ordem natural do mundo e do es- Amaneira, menos de Boileau, invocado pelo primeiro, quanto de Fontenelle, do seco Houdart de La Motte — modernos, seus antagonistas, ~ Propugnavam uma poesia 16 2 | “E dificil dizer onde aparece maior falta de competéncia: no escrever mal ou no julgar errado; entre- tanto, entre os dois, € menos perigosa a injiiria de cansar a nossa paciéncia do que a de desorientar 6 nosso discernimento”; Pope, An Essay on Criticism, p. 247: Note-se, a titulo de curiosidade, que'o Eksaio sobre @eritica, na traduaodo marqués de Aguiar, foi dos primeiros livros editados no Brasil pela Imprensa Régia (1810). a ; sae aaa prose oe. sobre Longino, 44 como test da imagem a sua viabilidade anite expresses como ~ “por assim dizer”, ou “se assim ouso falar”, mediante as quais se suprimiriam ousadias indoméveis pelo freio da logica... La Motte acusara Racine de improprieda- de e exagero num verso de Fedra, onde narra 0 aparecimento do monstro que matou Hipélito: Le flot qui Vapporta recule épouvanté. Boileau retruca que a imagem € legitima, como se pode ver acrescentando mental- mente ~ pour ainsi dire; e desta maneira (deveria completar) justificando-a perante a Por estas e outras, a literatura francesa precisava de um movimento exatamente ~ oposto ao racionalismo estético; movimento que restaurasse algo daquela fantasia €m retomar a prosa 0 que ndo menos legitimamente pertence a poesia: decoro, e nidade da expressao. i irregular dos precioso urlescos, banida pela regularidade classica do “século de Luis “XIV”. Noutras partes, porém, como a Itdlia e Portugal, essa dieta magra vinha corrigir ‘os excessos de um século destemperado, que dera-a certa altura produtos excelentes mas descaira, em seguida, na orgia verbal. Assim como, cento e poucos anos depois, \(galvo casos raros e por vezes admiraveis de solipsismo) 0 escritos, quando escreve, : 3 4 e fe prefigura, conscientemente ou ndo, 9 seu pblico, 2 ele se conformando. Quase semi- a vty pre 0 Arcade prefigura um publico de saldo, um leitor a voz alta, um recitador. Por Y fem Corio: da propria estética baseadana verdade natural, @ literatura se torna J ‘ forgosamente « comunicativa, mais ainda, aspira a ser instrumento de-comunicacao © 08 homens, ~ geralmente os homens de um dado grupo. Dai, a poesia mareada ~ pelo que se poderia chamar de sentimento do interlocutor, que se compraz nas odes we ae CAPITULG 1 | RAZAO, NATUREZ: raciocinantes e, sobretudo, na epistola, forma mais caracteristica daquele sentimento. Certs autores, como Filinto Elisio, que para Garrett era superior-a Bocage, chegam quando fazem odes es a estender o tom epistolar a tudo o mais; e mesmo ecem escrever epistolas. oe © Arcadismo é, pois, consciéncia de integracao: de ajustamento a uma ordem natu- Wok eo ee et ral, social e literdria, decorrendo disso a estética da imitagao, por meio da qual o espi- _ ito reproduz as formas naturais, nao apenas como elas aparecem a razao, mas como as conceberam ¢ recriaram os bons autores da Antiguidade e os que, modernamente, 4-7 seguitam a sua trilha. O conceito aristotélico de mimesis, ou seja, criagdo artistica a Fve# : ee i en ee B : : partir das sugestdes da realidade, assume para 0s néocléésicos um sentido por assim Aw !wied “diver proprio, estrito, oe Entre as sélidas méximas, com que Horacio pretende formar um bom poeta, néo € (..) menos importante a imitagio. Nao.falo da imitacao da natureza, mas da imitacao dos bons ‘ nas Co ee autores (..) Os Gregos e'0s Latinos, que dia e noite ndo devemos largar das maos, estes $0- ‘berbos originais, sao a tnica fonte de que emianam boas odes, boas tragédias e excelentes - epopéias.” Para a figura principal da-Arcédia husitana, a literatura se concebia, pois, a maneira | de um arquivo da natureza, formado pelos antigos e funcionando, por assim dizer, "como natureza de segundo grau, recriada mediante a imitacao literéria, que dava & ~ obra seguranga e nobreza, dando-lhe genealogia estética. “O poeta, que nao seguir os Z antigos, perderé de todo 0 norte, e nio poderd jamais alcangar aquela forca, energia S _ € majestade, com que nos retratam p formoso e-angélico semblante da natureza” (p. = " 468). Imitar Virgilio € nao apenas participar, por exemplo, na ordem de valores cria- _ dos por ele, mas também assegurar um instrumento literdrio jé verificado no traba- © Tho da criagao. A conformidade com 0 modelo é 0 orgulho do escritor neoclassico, a " quem pereceria estulta a pretensio de originalidade dos romanticos e p6s-rominticos “porque para ele “s6 a aprovacao da posteridade € capaz de estabelecer 0 verdadeiro “ imérito das obras”, ¢ por isso se “a antiguidade de um escritor nao é titulo certo'de 1 mérito (,..) a antiga e constante admira¢ao havida sempre por suas obras é prova segura ¢ infalivel de que elas dlevem ser admiradas”.* ‘Além desta garantia de exceléncia do modelo, a Antigiidade oferecia outros apoios vt, teoria arcédica: em primeiro lugar, um excelente recurso de despersonalizacao do < pala Kismo, gracas 20 uso de temas e personagens antigos como veiculo da emoca0. 0” pms Bras iso de tertids ¢| personagens antigas come VAN ee 6, a lenda ea historia antiga, sedimentados em profundidade pela educacao hu- |B. A. Coma Garcao, Dissexraco rencerea, em Obras poéticas, p. 465. | Boileau, Réflaxions Critiques ete, cit, p. 64 e70 . 3 g § & CAPITULO I | RAZAO, NATUREZA, VERDADE manistica na consciéncia do homem culto, formavam uma caixa de ressonancia para a literatura, bastando uma alusio para por em movimento a receptividade do leitor. A loura Ceres, 0 carro de Apolo, a Sirinx melodiosa, 0 sacrificio de Miicio Cévola, a morte de Catao eram centelhas que acendiam imediatamente a imaginacao e ilumi- . hayam a inten¢ao do poeta, por serem uma linguagem universal. O acervo tradicional da Antiguidade era introjetado tao profundamente, que dava lugar a uma espécie de espontaneidade de segundo graui, (propria as tendéncias neoclassicas), indo os escri- tores prover-se nela automaticamente para corresponder aos estimulos da inspiracao. Ela se tornava, assim, apoio a imaginagao do criador e do receptor de literatura; como sistema de formas através do qual dava sentido a experiencia humana. Pode-se supor, entre outros exemplos, que o soneto de Tenreiro Aranha, sobre a mameluca Maria Barbara, que preferiu morrera trair o marido, avulta tanto em meio a sua obra medio- cre porque (sem citar, e talvez mesmo sem estar consciente) € animado pelo que se poderia chamar a “situagao de Lucrécia”, cuja ressonancia fazia vibrar os contemipo- raneos, bem ou mal nutridos de tradi¢ao greco-romana, Seacaso aqui Fotis caminhante, Meu frio corpo,ja cadaver feito... A Antiguidade fornecia ainda a solugo do problema da forma, decisive numa ten déncia literdria que busca o efeito precisamente pela “organizagio formal” da expies- { so? Ora, a adocao de géneros ¢ espécies tradicionais, com suas leis dé composicao, atenua o arbitrio do.escritor ¢ permite alcangar um dos alvos do Arcadismo: criar pontos de referéncia para o homem medianamente culto, propiciando e reforcando a comunicabilidade. ‘ A autoridade da tradi¢ao garantia o emprego das regras que, uma vez descobertas pelos antigos, deviam perdurar, desde que eram a propria manifestagio da ordem natural, ¢ esta nao muda. © Those RULES of old discover’ d, not devis'd, Are Nature still, but Nature methodiz’ Nature, like liberty, is but restrained By the same laws which first herself ordain’d.® 9 | “Chamo éldssica a obra que depende da sua organizagao formal para provocar emogiio”. Roger Fry (citado em Louis Untermeyer, The Forms of Poetry, p.6) 10 | “Essas regras hi muito descobertas, ndo achadas, sto ainda a Natureza, mas a Natureza metodiza- dasa Natureza, como a liberdade, s6 é contida pelas mesmas leis que ela propria formou a principio”. Pope, An Essay on Criticism, cit. p. 247. ‘As regras da retérica ¢ da poética limitavam o individuo em beneficio da norma, __ curvando-o a razo natural, banindo as temeridades do engenho, podando na fanta- sia o estranho e o excéntrico, que se sobrepdem a ordem racional da natureza em vez - deespelhé-la, Firme nelas, 0 escritor deveria trabalhar “sem largar de mao o prumo”, \ "ta expressdo saborosa ¢ sugestiva de Gargao.* i Conseqiiéncias da imitactio e das regras so, no fundo, a perda da capacidade de observar diretamente a vida e uma Visdo algo superficial da natureza exterior /“"~ ~ quanto humana, Note-se que a paisagem civilizada, racionalizada, da literatura ar- ie cdica & principalmente, um escorgo de paisagem da superficie da terra: érvores, jlo: _ Prados, flores, regatos, e os animais pacificos que nela fepousam. Os arcades quase Apo nao sentiram a magia do mar, nem do ar, que o Romantismo povoaria de duendese ~~ | mistétios, Na prépria terra, a sua consciéncia nao teve nogao, ou necessidade, do sub. M2" te ! terraneo, da cayerna, Sentiram as grutas, como as cascatas — ornatos prediletos dos _jardins pré-romanticos, onde a paisagem epidérmica se dava 6 luxo de uma simulada Mincccl | __ energia, como a caverna de Tanajura ou 0 caramanchio de Lind6ia, no Uraguai. "Cy, -antro de Polifemo, celebrado por Géngora com esplendor barroco ~ | ~)lacaverna profundat. -caliginoso lecho (..) é formidable de la tierra 5 - bostezo— “otenebroso antro, cantado na Odisséia, nao existe na Ectoga VIII de Cldudio Manuel, nem na cantata amaneirada de seu mestre Metastasio, Il Ciclope, A maior rudeza des- 's4 paisagem policiada sao os penedos, ali postos para servir de comparagdo com as “amadas ingratas, ou ecoar o lamento dos pastores namorados. O mundo exterior se 7°Lceo" adapta, inteiro, aos padroes requeridos pelo estoque limitado da imaginagao classica e epela suprema regra do decoro. Na imitagao da vida interior, este leva ao mesmo senso dé moderacdo, restringin- do a literatura a superficie da alma e tolerando mal os desyios. Mais do que nunca, _€4 tempo da psicologia do adulto, branco, civilizado e normal - a qual se procura _reduzir a do proprio primitivo, do homem em estado de natureza, que éra o padrao. _ Assim como nio se desce aos subterraneos da terra, nao se baixa também aos do es- " pirito. A moderacio ¢ o compasso toleravam a propria indecéncia, quando mediocre eamaneirada, como no caso de Parny e até de algumas pecas — de quem seriam! ~do _austero El6i Ottoni, tradutor da Biblia: ° I1 | Gargdo, Disserracko sounds ete. , ob. cit. p. 446, Raziio ¢ imitacao 56 CAPITULO | RAZAO, NATUREZA, VERDADE | Indo ao prado colher flores, i | Aflor que tinha perdeu. i Mas rejeitava toda ousadia — mesmo decente— que ultrapassasse os limites conven- cionais da psicologia natural. Nao é pois de estranhar que esse século dindmico, mal contido pelo ideal horaciano da mediocridade durea, estoure, aqui e ali, na obra de Bocage, na do marqués de Sade, na de Blake, como estourou na Revolugao Francesa no Romantismo. Na literatura huso-brasileira, podemos avaliar este culto da mediania pelas figuras dos escritores, que, mesmo quando revoltos, inquietos, procuravam dar impressao de equilibrio ¢ urbanidade, nao s6 nos escritos, como na propria vida. Poucos teriam a rebeldia barroca de Gregorio de Matos. Desses cidadaos pacatos, na maioria forma- dos em Coimbra, funcionérios zelosos ¢ convivas amenos, 0 modelo 6 Gar¢a0, cujos poemas se desfibram_na porfia de cantar 0 encanto da vida familiar, os piqueniques e merendas entre amigos. De tal modo que 0 leitor nao leva a sério este bebedor de cha, quando, se abalangando ao ditirambo, langa, convicto e provecto, o turbulento~ Bvoé, 0 Padre Liéo, Saboé, Evan Bassareu— € ‘ ~ a que 0 obrigava o doce império da imitacao dos antigos. Nos arcades, encontramos pouco daquela “divina maldade”, evocada por Nietzsche, que lhes teria dado um tra- vo mais saboroso.

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