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TEXTOS O real é sexual: mal-estar na clinica lacaniana das psicoses Paulo de Carvalho Ribelro A critica ao cardter binarista imposto pelo estruturalismo 4 compreensao dos fenomenos psicéticos, bem como 4 separacio demasiado taxativa entre real e sexual, conduz os seus proprios seguidores a revisar a abordagem de Lacan. m setembro de 1999 realizou-se em Belo Hori- zonte a V Jornada da Escola Brasileira de Psi- candlise~ Minas Gerais, cujo tema, “Hé algo de novo nas psicoses’, marcava de forma explicita seu alinhamento com 0 Concilidbulo de Angers (1996), a Conversagdo de Arcachon (1997) € a Convengdo de Antibes (1998), eventos vinculados ao Institut du Champ Freudien e inteiramente dedicados 3 discussio das psico- ses. Os principais trabalhos apresentados nessa Jorna- da, assim como a transcrigao de alguns debates ocorri- dos entre os participantes, foram publicados na revista Curinga, 6rgio oficial da secao mineira da Escola. A na- tureza afirmativa do titulo dado ao evento e ao ntimero correspondente da referida revista tem o poder de pro- duzir um efeito de grande expectativa sobre qualquer pessoa interessada em psicopatologi. E mesmo fora do Universo “psi’, poder-se-ia perguntar: quem nao espe- ra, hd décadas, por algo realmente novo nas psicoses? Curiosamente, numa conferéncia que traz 0 mesmo titulo do evento e do respectivo ntimero da revista, Eric Laurent, convidado internacional e principal figura da 113 referida Jornada, inicia sua fala transformando a afirma- cao em pergunta € associando-a ao mal-estar: “Ha algo de novo nas psicoses? Ja no titulo tudo esti dito sobre o mal-estar. Nao perguntamos se ha uma teoria mais verdadeira da psicose; ninguém acredita mais no verdadeiro. O que se quer € algo novo.” A referéncia ao verdadeiro ¢ a0 novo nesta afirma- ho de Laurent no deixa de evocar um certo percurso de Lacan, na medida em que a “novidade” de uma teo- tia do gozo e do real, que domina seu pensamento nos anos 70, vem contrastar com a hegemonia do simbélico Paulo de Carvalho Ribeiro ¢ doutor em Psicandise (Universidade de Pars 7), ‘rolessor do curso de Especializarto om Teoria Psicanalica eco Mestad em Psicologia da UFMG; autor de O Probioma di dentifcaro om Freud, S80 Paulo, Escuta, 2000. Pereurso n*27~-2/2001 TEXTOS nos anos 50, hegemonia esta total- mente atrelada a uma teoria da ver- dade, na qual o psicanalista era con- vocado como agente, ou seja, como mensageiro da verdade. E curioso observar, no entanto, que esse per- curso que parte do amor 3 verdade como adequago ou como vela- mento-desvelamento para chegar a0 inconsciente como cifragem incom- pleta de um gozo que se pre- sentifica nos restos € no vazio de- mora a produzir a plenitude de seus efeitos praticos. A clinica lacaniana das psicoses, em nosso meio, ainda se apoia preferencialmente na teo- ria da foraclusio do Nome-do-Pai, dando assim continuidade 2 hege- monia do simbélico e 4 concepgio da psicose como deficit de signi- ficante. “Nome-do-Pai, sim ou no?” € uma indagagao que j4 selou € con- tinua a selar 0 diagnéstico € 0 des- tino de milhares de pessoas dentro € fora dos hospitais psiquiatricos. MaLestar e revisionismo Paralelamente a este descom- passo entre as mudancas de enfoque te6rico e as mudangas no cotidiano da clinica, constata-se que o declinio da foraclusto do Nome-do-Pai como principio explicativo e organizador no campo das psicoses, a0 contra- rio de se fazer acompanhar de uma adesto entusiasmada ao que € apre- sentado como novidade, produz um grande mal-estar e uma prolifera¢io das indagagdes sobre as psicoses. No lugar da antiga certeza estrutu- ral assegurada pela total confiabi- lidade atribuida a0 conceito de foraclusio do Nome-do-Pai, assisti- mos & instalagao de uma grande diivida capaz de abalar até mesmo © sacrossanto bastiao da clinica lacaniana, a saber, 0 cariter des- continuista das estruturas clinicas Nada poderia ser mais estimulante para os que duvidam das certezas definitivas € acreditam menos nas verdades de qualquer teoria do que na necessidade de manté-las cons- tantemente sob suspeigio. Surpre- endentemente, no entanto, o desa- lojamento da foraclusao do Nome- do-Pai como principio explicative das psicoses nao deveria, na visto de muitos estudiosos do pensamen- to de Lacan, levar a0 abandono da hipétese descontinuista, segundo a qual existe uma delimitagio nitida € estrutural entre neurose € psico- se. Em outras palavras, 0 declinio do Nome-do-Pai como principio organizador do campo psicopato- logico deveria conviver com uma delimitagio nitida das estruturas cli- nicas, preservando assim uma certa exatidio no diagnéstico € a possi- bilidade de determinados célculos na abordagem clinica das patologi- as do psiquismo. Neste sentido, as dificuldades provenientes da clinica, como a a selar o diagnostico € 0 destino de pessoas dentro e fora dos hospitais psiquidtricos. constatagio cada Vez mais freqiien- te de casos de psicose cujas mani- festacdes psicopatolégicas nao correspondem 20 que estabelece a teoria da foraclusio do Nome-do- Pai, desencadearam uma verdadei- ra corrida em busca de novos con- ceitos e articulagGes capazes de ex- plicar os fatos observados. Uma nova clinica, dita “segunda”, e um novo Lacan, dito “2", tornaram-se 44 clinica lacaniana das psicoses segue dando continuidade a hegemonia do simbolico e a concep¢ao destas como déficit de : designacdes fortemente carregadas de expectativas, curiosidades e, principalmente, de apreensOes € questionamentos. ‘A esse respeito, nao hé como no se perguntar se, de fato, assisti- ‘mos atualmente a um aumento real do ntimero de casos chamados “inclassificaveis” ou se, na verdade, eles sempre existiram em grande niimero € simplesmente eram clas- sificados, de forma mais ou menos arbitraria, devido ao constrangimen- to imposto por uma teoria que nao admitia nenhuma manifestagao psicopatolégica nao classificével como neurose, psicose ou perver- sto. Para aqueles que vém acom- panhando a pritica lacaniana nos servigos de satide mental, nao é di- ficil constatar as intimeras disputas € discordancias em tomo do diag- néstico de um grande mimero de usuarios desses servigos. H4 algu- mas décadas, o diagnéstico estrutu- ral tem servido mais 4 confrontagao | de diferentes certezas sobre um 4 mesmo caso do que ao estabeleci- mento de diagn6sticos consensuais. E possivel, entio, que os “neo- desencacleamentos”, as “neo-con- versdes” € a “neo-transferéncia”, bem como as nogdes de “desliga- ; mento" (débranchemend) ¢ “clini- ca da conexio’, entre outras, tradu- zam muito mais uma mudanga de enfoque tedrico do que uma mu- danga significativa nas manifesta- des psicopatolégicas da contem- poraneidade. Em outras palavras, parece-nos muito mais provavel que abandono ou redimensionamento de certos pilares tedricos e a busca de outras formalizagdes tenham sido determinados muito mais pela exaustio da rigidez estrutural que governava a psicopatologia laca- niana do que por uma nosolo- gia contemporinea especifica, mes- mo quando admitimos a existéncia desta tiltima. Nao é sem propésito, portanto, que num dos debates da Jornada mineira, um dos presentes tenha empregado 0 termo “revisionismo” para designar as tentativas de anali- sar alguns casos clinicos apresenta dos sob a 6tica da segunda clinica, Com efeito, uma apreciagao de va- ios dos casos clinicos relatados nao 6 pelos psicanalistas mineiros, mas também pelos franceses reunidos em Angers, Arcachon e Antibes con- duz a forte impressdo de que mani- festagdes psicopatolégicas fortemen- te sugestivas de neuroses classicas, ou casos de psicose perfeitamente compativeis com a teoria da fora- clusio do Nome-do-Pai foram procustianamente engessados nos moldes da segunda clinica. E o que transparece, por exemplo, quando AntOnio Teixeira, membro da seco mineira da Escola, ao ser convida- do a comentar, sob a dtica da foraclusao generalizada (segunda clinica), um dos casos apresentados na Jornada mineira, nao hesita em identificar, no relato que the foi apresentado, varias evidéncias da foraclusao restrita (primeira clinica), Ponto de vista, ademais, corrobora- do por Fric Laurent. A titulo de ilustragdo um pou- co mais detalhada dessa tendéncia procustiana, julgamos pertinen- te retomar um relato de caso apre- sentado pela Secao Clinica de Clermont-Ferrand durante a Con- veng¢ao de Antibes, Trata-se de um rapaz de dezoi- to anos, atormentado por pensa- mentos compulsivos que o fazem temer uma passagem ao ato. Inici- almente esses pensamentos giram em torno de uma possivel auto- agressio com objetos cortantes ou mente ele constata uma melhora da angiistia relacionada a idéia de ras- par a cabeca, uma das que mais o ‘atormentavam. Reconfortado com este sinal de que era possivel en- contrat alivio por meio de um trata- mento nao medicamentoso, o paci- ente retoma suas atividades escola- res enquanto o tratamento analitico bee O abandono ou redimensionamento eee de certos pilares tedricos parecem ter sido provocados : pela tigidez estrutural que tem. governado aoe ‘psicopatologia lacaniana. : perfurantes: cortar os cabelos/ ras- ar a cabega, cortar 0 pesco¢o, fu- rar 0s olhos etc. Decorre dai uma forte anguistia sempre que se encon- tra préximo desses objetos, e a ne- cessidade imperativa de retird-los dos ambientes freqtientados por ele. A tal ponto que sua permanéncia ra escola torna-se impossivel, visto que as canetas © outros materiais escolares bastam para desencadear as crises de anguistia. Esses pensa- mentos compulsivos que, embora angustiantes, ainda eram suport. veis, tornam-se totalmente intoleri: veis quando passam a incluir as outras pessoas, dentre as quais a mae © outros familiares do pacien- te, como possiveis vitimas da agres- sao. E nesse momento que ele soli- cita que algum medicamento the seja dado. Entretanto, atendendo a sugestio do analista, um “tratamen- to pela palavra’ € iniciado e rapida- us prossegue. Durante as sessdes, ele mantém uma certa fixidez do olhar, presta muita atengio ao que acon: tece diante de seus olhos e descre- ve tudo rigorosamente, demonstran- do assim uma atividade frenética de pensamento, porém desvinculada de qualquer sentido, como se ele fosse um espectador do automa- tismo de seus pensamentos. Contu- do, as angiistias relacionadas & pos- sibilidade de ferir os olhos, 0 cora- Ho ou a garganta no cedem tio facilmente e determinam uma for- ma de defesa que o analista qualifi- ca de “schreberiana”, ou seja, nas palavras do paciente: “eu consigo combater minhas idéias ocupando © espirito”. As conversas e barulhos de seus colegas na escola, o radio deixado ligado em casa ou uma lei- tura em que o significado das pala- vras e frases € cuidadosamente recusado 0 ajudam a se prote- TEXTOS ger contra a invasto dos pensamen- tos obsessivos. Pois bem, este quadro clinico absolutamente sugestivo de uma neurose obsessiva classica leva 0s relatores do caso a pensar em psicose: “A questio da psicose se colo- ca para este sujeito com relagio & fixidez do olhar, com relagio 2 bus- ca de uma castrag2o no real, com relagio 2 posi¢io do sujeito co- mo espectador, a distancia, do automaton de seus pensamentos compulsivos, num contexto diferen- te daquele do homem dos ratos’, dando lugar a uma descricao do pro- cesso invasivo e de suas variacdes, enfim por uma colocagao em traba- Iho (mise au travail) para bordejar o buraco central, ‘3 la Schreber’, mo- bilizando uma atividade de pensa- mento fora de sentido, barulhadas, um burburinho no real"? Obviamente nao existe algo que possa ser considerado um caso clinico independente das narrativas € interpretacdes que procuram dar- ctitica de Derrida 4 concepeao lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem tem evitando o significado das palavras uma evidéncia do “manejo, no real, da letra’, ou identificar uma “busca da castragao no real” a partir da idéia de se ferir ou de ferir os ou- ros, 86 pode ser uma questo de escolha, determinada, neste caso, pela necessidade de adequacao a uma teoria que se quer confirmar. A afirmago de que 0 automaton dos pensamentos neste caso dife- re totalmente do que Freud p6- de observar no “homem dos ratos” acaba por soar fortemente dene- gativa se nos lembrarmos, por exem- plo, da "jaculatéria” que 0 paciente de Freud utilizava para evitar os pensamentos obsessivos ligados a Gisela. Além deste caso, que nos pare- ce particularmente ilustrativo do carater revisionista da chamada “se- gunda clinica”, varios outros, rela- tados € discutidos nos eventos jé mencionados, surpreendem pelo que trazem de manifestacdes clini- cas perfeitamente compativeis.com diagnésticos de histeria ou de psi- coses clissicas. Esta constatago nos leva a supor que nio se trata tanto seu lugar na lista dos motiyos — s ic que levaram 4 mudanga de €nfase teérica. Ihe forma e significado. Convenha- mos, no entanto, que a descrigio das vivencias desse paciente so to- das nitidamente indicativas de um sofrimento neurético grave, porém classico, Querer ver no ato de ler da necessidade de adequar a teoria as exigéncias de uma clinica supos- tamente contemporanea, perante a qual a foraclusio do Nome-do-Pai teria revelado-se insuficiente, mas, principalmente de uma mudanca 116 imposta pela necessidade de livear a teoria da clinica de um certo pri- vilégio do simb6lico, em beneficio de um enfoque centrado sobre o real © 0 goz0. Nio se trata, portanto, de um declinio apenas da importincia atribuida ao Nome-do-Pai, mas de um declinio da teoria do significante tomado como pura diferenca e de uma valorizagio da dimensto de gozo embutida no prdprio signi ficante, juntamente com uma con- sideragao preferencial de seu su- porte material, ndo-fonético, a sa- ber, a letra. Podemos entlo suspeitar que 0s casos inclassificaveis ou raros e, de um modo geral, o que se conven- cionou denominar “segunda clini- ca” si muito mais a consequéncia de uma reforma teérica do que um fator determinante desta tltima. Resta entdo entender os motivos que levaram a reformulagao da teoria. Constrangimento binarista A lista desses motivos poderia ser extensa ¢ talvez devesse fazer constar em seu inicio a evidente exaustio do estruturalismo e um certo enfraquecimento do simbéli- co, que ela acarreta. Sem pretender discutir em profundidade até que ponto Lacan pode ser considerado estruturalista’, dificilmente poder- se-ia desvincular sua teoria do significante do estruturalismo. A proximidade entre uma e outra coi- sa se evidencia, por exemplo, quan do se constata que a teoria lacaniana do sujeito, a0 contririo de excluir 9 ' ponto de vista estruturalista, requet a estrutura para ser formalizada‘ Paralelamente ao enfraqueci- mento do estruturalismo como mo- delo te6rico nas ciéncias humanas, a critica formulada por Derrida a concepeao lacaniana do inconscien- te estruturado como uma linguagem teria também, certamente, seu lu gar na lista dos motivos que leva- ram & mudanga de Enfase te6rica. Ao dentinciar, por exemplo, que n0 | 4 “Seminario sobre ‘A Carta Roubada™, Lacan desconsidera todos os fend- menos de “duplo” em beneficio de uma interpretacao inteiramente fun- dada nas relacdes triédicas*, Derrida abala um dos pilares da teoria do inconsciente estruturado como uma linguagem e contribui, assim, para que o pensamento de Lacan se des- loque da combinatéria significante em diregio ao real e a0 gozo. Um outro motivo, no entanto, nos parece, senao mais importante, pelo menos mais interessante, na medida em que se encontra estrei- tamente ligado as questdes clinicas. ‘Trata-se do que poderfamos chamar de constrangimento clinico do binarismo estrutural. O funciona- mento bindrio, do-tipo sim ou nao, + ou-, 0 ou Letc,, implica uma exatidao quase sempre incompati- vel com o funcionamento psfquico. £ justamente esta resisténcia as opo- sigdes excludentes que faz, por exemplo, com que a oposicao filico/castrado seja, simultaneamen- te, uma parte das teorias sexuais infantis e uma parte daquilo que essas teorias procuram negaré. No caso especifico da teoria lacaniana das psicoses, o constrangimento cli- nico a que nos referimos manifesta- se sobretudo na exigéncia de uma estrita conformagio dos quadros psicoticos &s conseqiléncias l6gicas e estruturais da foracluso do Nome- do-Pai. Dentre essas conseqdéncias destacam-se as seguintes: 1) A au- séncia de significagao fallica, j4 que 0 fracasso da metifora paterna im- possibilitaria a atribuigao do desejo da mie (do Outro) & sua condigao de castrada, de nao possuidora do falo. 2) O desencadeamento, ou seja, o carter abrupto da instaura- ‘a0 do quadro psicético, decorren- te de alguma circunstancia na vida do sujeito em que o significante Nome-do-Pai foracluido € solicita- do “em posicio terceira’, isto é, “em oposig2o simbélica a0 sujeito”. AS- sim pensada, a psicose nio com- portaria nenhuma “pré-hist6ria” € seu desencadeamento se daria ne- cessariamente quando esse signi- ficante ausente no Outro, uma vez invocado, surgisse sob forma alucinat6ria no real. 3) A metdfora delirante, entendida como uma ten- tativa de compensagio da auséncia de significagio filica. A produgao delirante cria uma modalidade al- ternativa (nao filica) de ordenagao do gozo, como, por exemplo, a “or- dem do universo” concebida por Schreber. 4) Os fendmenos elemen- tares, a saber, alucinagdes, neolo- gismos, automatismo mental, além do proprio delitio, todos eles de- correntes da auséncia de um signi- ficante fundamental no Outro, dos efeitos desestruturantes dessa ausén- cia € das tentativas de estanci-los ou compensi-los. Além dessas conseqiéncias maiores da foraclusio do Nome-do- Pai, uma outra, cuja presenca na teoria € sensivelmente mais timida, ressalta um aspecto da abordagem lacaniana das psicoses que consi- i Schreber, esse empuxo € visto como mais uma decorréncia estrutural da auséncia da significagao filica. A falta do significante ser pai e a im- possibilidade de simbolizacao da fungio procriativa daf resultante te- riam induzido Schreber ao erro de acreditar-se gravid como uma mu- Iher, para assim realizar, imaginaria- mente, a funcio ser pai. Sobre estes principais elemen- tos da teoria lacaniana, é preciso dizer, logo de inicio, que eles tém 0 poder de captar aspectos essenciais, ede organizar de maneira extrema- mente eficiente € operacional as manifestagdes, muitas vezes com- pletamente atordoantes, das esqi zofrenias e da parandia principal- ‘mente. Nao devemos, portanto, nos surpreender ao constatar uma forte adesio a esse modelo te6rico por parte dos psicanalistas, mesmo aqueles que no se consideram lacanianos. Do nosso ponto de vis- ta, esse modelo, embora inteiramen- A nogao de "empuxo a mulher" é um. aspecto particularmente fecundo da abordagem lacaniana das psicoses, que a concebe como decorréncia estrutural da auséncia de significagao falica. deramos particularmente fecundo, apesar de 0 concebermos de ma- neira bastante diversa daquela apre sentada por Lacan. Trata-se da no- a0 de “empuxo & mulher". Toman- do como exemplo os fendmenos de feminizagao vivenciados por 17 te construido a partir de uma teoria estruturalista do significante, contém elementos que podem ser desvin- culados dessa teoria sem perder sua forca e interesse, podendo até mes- ‘mo ganhar mais consisténcia a par tir deste desvinculamento. Dentre JEXTOS esses elementos destacamos a fun- ‘elo paterna € sua relagio com 0 po- sicionamento do sujeito frente a0 sexo, 0 cardter reparador do deli- rio, a relaglo das alucinagdes com um elemento que nao encontra in- sercio numa determinada continui- dade ou encadeamento dos proces- 's psiquicos e principalmente a importincia da feminilidade na construcao € manifestacio dos de- Iirios e alucinagdes. Desfazer a co- nexo existente entre esses elemen- tos e a teoria estruturalista do signi- ficante significa, acima de tudo, su- perar 0 raciocinio binario do tipo “sim ou nao?” € abrir a possibilida- de para a concepgio de diferentes graus tanto da exclusto ou isola- mento de determinados contetidos psiquicos, quanto dos efeitos dai decorrentes. Defendemos, portanto, uma abordagem continuista em psicopatologia € consideramos que a auséncia de desencadeamentos tfpicos, ou a nao verificagio de um nitido empuxo & mulher, ou ainda a inexisténcia de neologismos, por exemplo, no deveriam conduzir a0 abandono da teoria da foraclusio do Nome-io-Pai, ou 2 redugio da instauraglo da funcio patema a uma simples modalidade de “amarracio” dos registros RSI, sem destaque ou privilégios relativamente 2 infinita gama de “sintomas” destinados & conexio desses registros. A este res- peito, nossa tese principal pode ser formulada nos seguintes termos: a instauragao da fungao paterna e sua incidéncia reguladora (tanto no sen- tido da interdicao quanto da pro- piciagio) sobre a relagio da crian- a com 0 outro primordial (a mae) © sobre 0 posicionamento do sujei- to em vias de constituigao perante a diferenca dos sexos, dos géneros € das geragdes € 0 processo psiqui- co fundamental na determinacao do destino psicopatol6gico de qualquer sujeito. Que essa instauragio da fun- ‘cao paterna seja pensada em termos de metafora ¢ inclusio de um significante fundamental no grande Outro da linguagem, ou que ela seja apresentada como resultado de uma inscrigao filogenética, por exemplo, no altera em nada sua posi¢io de privilégio na constituicao do sujeito psiquico e apenas reforga a evidén- cia de que qualquer fendmeno pode ser descrito de intimeras maneiras, Da mesma forma, podemos dizer A defesa de uma abordagem continuista em psicopatologia nao deveria > do Nome-do-Pai, nem a reduzir a instauragao da fungo, paterna a uma simples modalidade de “amarracao” dos registros RSI. que qualquer que seja a capacida- de das sociedades em fazer vigorar a fungio patera, quer elas pade- am de um excesso ou de uma in- suficiéncia dos que ocupam a posi ‘Gao de pai, a importincia da funcao permanece intacta. Isso quer dizer que nem 0 declinio da teoria estru- turalista do significante ou de qual- quer outra teoria, nem o suposto declinio histrico da importincia das figuras do pai e da autoridade na sociedade contemporinea sao sufi- cientes para que se afirme um declinio correspondente na impor- tincia que a funcao paterna tem na constituicao do psiquismo humano, pelo menos, enquanto os seres hu- manos nascerem incapazes de as- segurar minimamente sua sobrevi- vencia ¢ forem submetidos & neces- sidade de se posicionarem frente a0 constrangimento anatémico da di- ferenca dos sexos e 2s diferentes modalidades de satisfacio pulsional que daf advém. Podemos concluir, us conduzir ao abandono da teoria da foraclusao portanto, que © conceito de fora- clusao do Nome-do-Pai, embora comprometido com o que chama- mos de constrangimento bind- tio, encontra-se vinculado a uma apreensio te6rica extremamente esclarecedora das mais diversas ma- nifestagdes psicdticas, justificando, assim, 0 interesse em tomé-lo como um importante marco teGrico quan- do pensamos no avango da abor- dagem psicanalitica das psicoses. “Empuxo & mulher” € procriacdo: sinais de um extravio A possibilidade de preservar alguns dos aspectos mais interessan- tes e tteis da teoria lacaniana das psicoses formulada nos anos 50, desvencilhando-os dos efeitos cons- trangedores do binarismo estrutu- ral encontra-se delineada no proprio Seminario sobre as psicoses. Ao lado de uma explicagao da feminizagio de Schreber baseada inteiramente na falta do significante ser pai e na indugao ao erro de querer suprir esta falta por meio de uma habilitacao imagindria 2 gravidez, uma outra explicagao (que nao é apresentada como outra, mas como uma confi macao da primeira) permite uma apreensio bem diferente da trans- formacao alucinatéria de Schreber. No inicio de seu Seminario so- bre as psicoses, ao falar da con- densagio (Verdichtung) como a lei do mal-entendido, Lacan ressalta como € importante, para todo ho- mem, poder satisfazer simbolica- mente suas tendéncias femininas e preservar, 20 mesmo tempo, sua vie rilidade nos planos do imagindrio € do real. Receber a palavra falada, por exemplo, implica uma posicao feminina que, para Lacan, no é ape- nas metaf6rica: “A participagao na relagdo de fala pode ter varios sentidos ao mesmo tempo, € uma das signi- ficacdes interessadas pode ser precisamente a de se satisfazer na posicio feminina, como tal essen- cial a nosso ser. Em contraposigao a esta possi- bilidade de satisfagao simbélica da Ge uma relacado supostamente significacdo enorme niio é a fungao ser pai e sim a feminilidade. manifestamente no caso do presidente Schreber uma significa- do que concerne 0 sujeito, mas que € rejeitada, e $6 se projeta de ma- neira mais esbatida em seu horizon- te € sua ética — e cujo reapareci- mento determina a invasao psi- cética, Vocés verio a que ponto 0 que a determina € diferente do que determina a invasio neurética ~ sto condigdes estritamente opostas. No caso do presidente Schreber, essa significagdo rejeitada tem a mais es- treita relacdo com essa bisse- xualidade primitiva de que eu lhes falava ainda h4 pouco. O presiden- te Schreber jamais integrou de forma alguma, tentaremos vé-lo no texto, nenhuma espécie de for- ma feminina.”* A seqiiéncia do Seminario so- bre as psicoses mostra com clareza uma espécie de torgio do pensa- necessaria entre a falta do significante "ser pai" e a “imagem” de um homem gravido é uma evidéncia clara do efeito extraviante que a teoria do significante exerce sobre 0 : pensamento de Lacan. feminilidade, Lacan refere-se a Schreber para dizer que © fendme- no psicético € a emergéncia, na re- alidade, de uma “significaco enor- me” que permanece isolada por nao ter jamais podido entrar no sistema de simbolizacao. Curiosamente, essa mento de Lacan imposta pela ne- cessidade de inserir 0 isolamento/ rejeicao dessa “enorme significaga no quadro geral da foraclusio do Nome-do-Pai. © elo estabelecido entre uma € outra coisa é a procria- Ao, Para Lacan, dificilmente poder- ug se-ia conceber que a simples rejei sao ou recalque de alguma pulsio feminina experimentada na tansfe~ réncia com Flechsig pudesse ter le~ vado Schreber a conceber seu “enor- me delirio”. E interessante notar que a despeito de preservar, na escolha dos adjetivos, a devida proporcio entre 0 enorme delirio e a enorme significagdo, Lacan considera que deveria haver ‘alguma coisa de um pouco mais proporcionado a0 re- sultado que se trata”. Trata-se, como jé mencionamos, daquilo que Lacan considera ser a “fungio femi- nina em sua significagao simbdlica essencial, € que s6 podemos reen- contri-la a0 nivel da procriacao™, S6 podemos nos surpreender dian te desta estranha redugio da dimen- sio simbélica da fungao feminina a procriagao. Logo a procriag4o! Fun- $30 que se confunde ou pelo me- nos se telaciona estreitamente com © “instinto materno”, considerado pelo Lacan dos Propésites diretivos (exto de 1958, logo quase contem- poraneo do semindrio sobre as psi- coses) como aquilo que escapa & mediagio falica e se constitui como no analisavel." Dentre varias formas possiveis de relacionar a “enorme significa- 40" feminina com a nao menos importante significacao paterna, Lacan escolheu a via da procriagio porque, bem ou mal, ela Ihe permi- tia subordinar todas as manifesta- Ges da psicose 2 auséncia de um significante. Para ele, toda a femini zacao de Schreber deveria ser vista ‘como conseqiiéncia da foraclusio do significante paterno e nao como expressiio de modes pulsionais que atentavam contra a func3o paterna, colocavam-na em xeque, ou pelo menos tornavam-na problematica. Criar uma relagao supostamente necessaria entre a falta do significan- te ser pai e a “imagem” de um ho- mem grivido €, a0 nosso ver, uma evidéncia clara do efeito extraviante que a teoria do significante exerce sobre © pensamento de Lacan. E como se ele tivesse se perguntado TEXTOS como a feminizagio de Schreber poderia ser uma apari¢o no real dos significantes paterno e falico foracluidos e concluisse que a pro- criagdo era a resposta. Se a signif cagio félica, que deveria ter sido instituida pela metafora paterna, € cia ¢ interesse, acima de tudo, pelo fato de apontar para uma relagio necessaria entre a fungdo paterna a feminilidade, e, de uma forma mais ampla, para a inextricavel relacao entre as psicoses € o sexual. Che- gamos assim a um ponto importan- A primazia da sexualidade, presente na clinica lacaniana dos angs 50, perde seu posto na segunda clinica em fungao do privilégio dos dispositivos destinados a manter Coesos os registros RSI. essencialmente a significagao da fal- ta, além de fazer surgir o significante ser pai no real, a procriagio deveria também contemplar essa falta, fa- zendo com que, de alguma forma, cla surgisse no real. Neste sentido € que podemos entender a famosa frase, tanto mais repetida quanto menos entendida: “na falta de po- der ser 0 falo que falta mae, resta- Ihe a solucao de ser a mulher que falta aos homens”. E talvez, para tomé-la mais clara, fosse preciso acrescentar: nio se trata da mulher que os homens desejam ter, mas da mulher gravida que os homens nao podem ser. O titero que falta aos homens equipara-se, nesta opera- 20, 20 falo que falta as mulheres. Assim, Schreber, transformado em matriz da nova raga, é nada menos que a aparicao da falta no real Pois bem, apesar do extravio que a l6gica do significante impde 2 teoria lacaniana das psicoses nos anos 50, ela mantém sua importan- te da anilise do significado das ‘no- vidades” na teoria € na clinica lacanianas: a hegemonia do simbé- lico no Lacan dos anos 50 preserva, bem ou mal, a primazia do sexual que interessa 3 psicandlise, ou seja, do sexual inextricaveimente ligado lei, a interdicao e ao supereu. Por outro lado, a 2? clinica eo Lacan 2, ao privilegiarem os dispositivos des- tinados a manter coesos os regis- tros real, simbélico € imaginério, destituem o par sexualidade-inter- digo da posicao central que Freud Ihes atribuiu e perdem de vista sua primazia na constituigio © no fun- cionamento normal e patolégico do psiquismo humano. Uma boa ilustragio disso que acabamos de assinalar encontra-se nos comentarios sobre um caso de psicose relatado pelos membros da seco clinica Aix-Marseille e Nice na Convengio de Antibes. Trata-se do caso de uma jovem sem anteceden- tes psiquitricos, levada 3 intemacao 120 em meio a uma boufée délirante caracterizada por um delirio de in- fluéncia no qual a paciente se dizia fisicamente manipulada por seus vizinhos de alojamento université- io. Este caso, cujo acompanhamen- to foi interrompido prematuramen- te, suscitou 0 seguinte comentirio da parte do analista que a atendeu: “O epis6dio psicético se inicia em seguida a uma primeira relagio sexual. Ela descreve entio uma in- vasio do corpo por uma sensacio estranha. O orgasmo assim descrito nao € reconhecido como tal. Pare- ce que este modo de -desenca- deamento nao responde & configu- racio classica do encontro com Um- Pai, tal como € evocado em ‘Ques- t20 preliminar a todo tratamento possivel da psicose’. Parece, antes, tratar-se do encontro com um gozo enigmatico por Falta da significagao falica. Vale dizer que se trata mais, do encontro de fo do que Po. E cer- to que é possivel referir fo a Po: € a prdpria foraclusio do Nome-do-Pai que € a condigio de auséncia da significagio filica. No entanto, € 0 encontro do gozo que € aqui o modo de desencadeamento.”# A dificuldade que transparece neste comentirio pode ser conside- rada uma excelente amostra da ten- tativa da 24 clinica de substituir 0 Nome-do-Pai pelo gozo como prin- cipal referéncia tedrica nas. psico- ses. Antes de mais nada cabe per- ‘guntar: por que o desencadeamento neste caso nilo responderia & confi- guraco clissica? Vale dizer: como a primeira relacZo sexual de uma jovem poderia deixar de invocat 0 Nome-clo-Pai em oposico simbdli- ca a0 sujeito? Em seguida, é inevité- vel também se perguntar por que a “invasio do corpo por uma sensa- ao estranha” é tao imediatamente € Wo singelamente equiparada 20 ‘orgasmo? O que fica evidente neste caso € 0 empenho de quem o rela- ta em substituir a importincia do significante patemno pela importin- cia do real do gozo. Mas ao fazé-lo, € inevitével que a falta de significa- ‘cdo filica seja evocada e, por este Vis, a foraciusio do Nome-do-Pai volte obrigatoriamente & cena, jf que fo remete a Po. Pouco importa que uma coisa remeta 4 outra, parece dizer o analista: 0 que de fato inte- ressa é que 0 encontro com 0 gozo (endo com Um-Pai) foi o responsé- vel pelo desencadeamento. Se aplic4ssemos este raciocinio a0 caso Schreber, poderiamos dizer que 0 desencadeamento se deu pelo encontro com 0 gozo que se expres- sava na idéia de como seria bom ser mulher e submeter-se 20 ato da cOpula. A semelhanca da jovem psicotica francesa, que se sentia fi- sicamente manipulada pelos outros, poderiamos dizer que a estranha sensacao experimentada por Schreber na noite que marcou o inicio de seu surto, desdobrou-se na podido evitar todo um tortuoso per- curso tedrico destinado a reunir, via procriaco, a feminizacao a falta do significante Ser Pai. Teria, por ou- tro lado, corrido o risco de perder de vista a relagao essencial entre o gozo € a interdicao. Todo mundo é louco sem querer? Estas consideragdes nos condu- zem a seguinte conclusio: privi- légio concedido ao gozo pela mais recente orientaco teérica lacaniana comporta dois aspectos cujos efei- tos na teoria e na clinica devem ser avaliados de maneira totalmente diferente um do outro. Por um lado, esse privilégio vem finalmente reconhecer um fato que nos parece evidente: 0 surgi- mento da psicose tem uma relagio Un dos pilares da segunda clinica, 0 conceito de foraclusio generalizada, coloca f em relevo o fato de que a realidade depende de um assentimento do sujeito 4 fungdo de ordenag’o que o significante-mestre tem sobre 0 conjunto do discurso. experiéncia alucinatéria de transfor- macao feminina e de abuso de seu corpo. E poderfamos concluir: 0 desencadeamento se deveu muito mais a0 encontro com um goz0 enigmitico do que a0 fato de ter sido nomeado Senatsprasident do ‘Tribunal de Dresden, logo ao en- contro de Um-Pai. Se Lacan tivesse empregado este raciocinio, teria decisiva com exigéncias pulsionais que se apresentam como enigméti- cas € ameacadoras na justa medida de sua incompatibilidade com 0 que pode ser reconhecido como perten- cente ao eu, ou seja, na medida de sua alteridade. E preciso, no entan- to, preservar a idéia de que esta alteridade pulsional é eminentemen- te sexual, inclusive (ou principal- a2 mente, como diria Laplanche) no que ela apresenta de mais mortife- ro e “demonfaco". Embora o regis- tro do simbslico monopolize o se- xual na visio lacaniana, 0 conceito de gozo, mesmo sendo assimilado a0 real, no deveria desvincular-se do sexual. E 0 cariter enigmitico, do qual ele se reveste nas psicoses, deve estar inteiramente associado & nogio de “corpo estrangeiro inter- no", com tudo o que isto implica em termos de ataque interno da pulsio, ou seja, de uma alteridade intema e constitutiva da subjetivi- dade. Por outro lado,-esse privilégio concedido a0 gozo, ao destituir 0 Nome-do-Pai da posicao central que ele ocupava na teoria, corre 0 risco de reduzir a funcdo paterna a uma simples modalidade de conexao psiquica, entre outras de igual im- portincia. A este respeito, é funda- mental esclarecer que 0 conceito de foraclusio generalizada, um dos pi- ares da segunda clinica, vem colo- car em relevo 0 fato de que a reali- dade depende de um assentimento do sujeito 2 fungao de ordenacao ‘que o significante-mestre tem sobre © conjunto do discurso. Trata-se, portanto, de um significante qual- quer que, alcado arbitrariamente 2 condig20 de maitre-mot, passa a assegurar os efeitos de significacio € a possibilidade de julgamento so- bre a verdade e 0 erro, sem que sua funglo ordenadora possa ser ques- tionada. A légica da linguagem, por estar toda ela assentada sobre a base il6gica do assentimento incondicio- nal, se oferece, permanentemente, a desarticulacao deste pacto cego € a conseqiiente decomposicao da realidade. O psicstico nao seria mais aquele a quem falta um significante especifico, mas qualquer um que viesse a recusar essa arbitrariedade il6gica que institui a realidade"*. Vale dizer: essa falta irreparavel de um principio l6gico e no arbitrario ca- paz de ordenar a relacio entre lin- guagem e significagio implica uma espécie de fragilidade irredutivel da TEXTOS realidade e institui uma situagao de foraclusio generalizada, deslocan- do assim, radicalmente, a questio central sobre as psicoses: nao se tra ta mais de explicar porque um de- terminado sujeito € psicético, mas déncia a estreita relacao da foraclu- sao comas formas pelas quais 0 pai se posiciona perante a lei “Slo personagens falguns pais de psicéticos] frequentemente mui- Nee Schreber, Lacan. poe em evidéncia a estreita relacdo da foraclusao com as formas pelas quais 0 pai se Pposiciona perante a lei. de encontrar 2s razdes para que nem todos o sejam. Uma vez que o Nome-do-Pai passa a ser um significante cujo poder de ordena- Ao nao se distingue estruturalmen- te do poder ordenador exibido por qualquer significante algado & con- digao de significante-mestre, somos obrigados a concluir que 0 famoso aforismo de Lacan “nao € louco quem quer” deveria ser transforma- do em “todo mundo é louco sem querer dificil imaginar Lacan, nos anos 50, modificando esta inscricao, que ele fazia questo de exibir em sua sala no Hospital Saint-Anne; mesmo nos anos 70, no nos pare- ce Uo certo que ele a renegaria. A forca e precisio com que Lacan refe- re-se a0 papel do pai no surgimento das psicoses em seu semindrio de 1955-56 nao deixa de ser um bom motivo para duvidar de uma mu- danga de perspectiva to radical. Nesse semindrio, Lacan poe em evi- to marcadas por um estilo de irradi- ago € de sucesso, mas de maneira unilateral, no registro de uma am- bicio ou de um autoritarismo de- senfreados, as vezes de um talento, de um génio. Nao € obrigat6rio que haja génio, mérito, mediocridade ou maldade, basta que haja 0 unilate- al € 0 monstruoso.""* Fungio paterna ¢ gradacio Este aspecto da teoria lacaniana € essencial na medida em que asso- cia uma caracteristica do comporta- mento e da personalidade de uma determinada pessoa a0 efeito de foraclusio do significante paterno. (O que ai se delineia é a possibilida- de de superar 0 carter bindrio da foraclusio por meio de uma gradago dessas caracteristicas. As pessoas podem ser pouco, nao muito ou “muito mareadas por um estilo de irradiago e de sucesso”, 12: ‘Mesmo a unilateralidade comporta diferentes intensidades, pois, con- siderando-se que um lado nao é um ponto, pode-se estar inteiramente de um lado e, a0 mesmo tempo, mais ou menos préximo do outro lado. Da mesma forma, a “monstruo: de’, a “ambigdo" € 0 “autoritarismo desenfreado” sto todas categorias quantificaveis, logo incompativeis com abordagens do tipo binari “monstruoso sim ou ndo?", nao é uma proposigao admissivel. Tanto esta caracterizacao do tipo de personalidade paterna as- sociada 2 etiologia das psicoses, quanto as observagdes sobre a im- possibilidade de Schreber em inte- grar qualquer forma de bisse- xualidade psfquica sto indicios de uma outra orientacao da teoria Jacaniana das psicoses, que no re~ sistiu ao constrangimento binarista da teoria do significante ¢ acabou por ser quase totalmente perdida, © proceso de recuperagto dessa orientagio tedrica, cujos indicios nos chamam a atenclo, demandaria, ba- sicamente, uma forma de articula: ‘cdo entre a foraclusio do Nome-do- Pai e a feminizacao que nao tivesse quese curvara logica do significante e pudesse evitar o recurso enviesado 2 procriagio. De forma um pouco mais abrangente e menos compro- metida com a terminologia laca- niana, poderiamos dizer que essa orientagao a ser recuperada diz res- peito as condigdes de inscrico da ” funglo patemna e sua relagio com, forcas pulsionais origindrias, sob as quais se alinham as origens femini- nas da sexualidade e do sujeito pst quico ‘Num livro que publicamos re- centemente", dedicamos algumas paginas ao estabelecimento das possiveis relacdes entre o surgimen- to do supereu e sua funcao nas neu- * rose € psicoses. Nossa tese nesse lit vro pode ser resumida como uma defesa da existéncia de continuida- de entre essas duas categorias diag nésticas. Partindo da formulagio de uma identificagio feminina prima ria a ser recalcada em ambos os se- X08, propusemos que a instaura da funcao paterna (compreendida de forma ampla: como representan- te da lei, agente da castracao simb6- lica, ordenador da diferenga dos se- xos € das geracdes etc.) depende inteiramente do grau de compatibili- dade dos que se apresentam como agentes dessa fungiio com as mo- Ges pulsionais femininas que pre- valecem nos estacos primitivos de constituicao do eu. Para retomar os termos de Lacan, poderfamos dizer que nos piores casos de psicose a fung2o paterna nao se constitui como tal, justamente porque sua “monstruosidade” e “u lidade” manifesta-se como impedi- mento radical da integragio de qual- quer bissexualidade psiquica Podemos concluir entio que 0 encontro com um gozo enigmatic nao pode ser independente da fun- ho paterna, ou seja, de sua major A “clinica da conexao” sugere uma Continuidade ou descontinuidade: “Recorrer a Leibniz em caso de dificuldade” Os casos ditos raros ou inclassi- ficdveis que se encontram na o1 gem das inovagdes na teoria € na clinica lacanianas das psicoses sus- citaram uma importante discussio sobre a existéncia ou nao de conti- nuidade entre neurose e psicose. Se é, por um lado, evidente que uma grande maioria de lacanianos insis- te em defender a manutengio da hipétese descontinuista, por outro lado, existem aqueles que nao est4o fo convencidos dessa bipar- tigo tio bem delimitada e se per- guntam como manté-la na auséncia deste divisor de Aguas até entio su- postamente infalivel, que era a foraclusio do Nome-do-Pai. Do lado dos que pretendem manter o descontinuismo, as estra- tégias variam. Jean-Piere Deffieux, continuidade entre as condigées originarias do sujeito psiquico e a introdugao da Lei, entre neurose e psicose. ou menor eficicia, de sua maior ou menor capacidade em formar com- promissos e permitir simbolizacdes. A“clinica da conexao” deve ser, en- lo, uma clinica da continuidade en- tte as condicdes originarias do su- jeito psiquico e a introducio da Lei por exemplo, em sua apresentacao na Conversagao de Arcachon, de- fende a manutencio da “barreira estrutural” entre neurose e psicose € nao hesita em dizer que a “clinica do sintoma”, em que pese sua ne- cessidade de ainda receber algum 123 polimento, esti apta a acolher sob a categoria das psicoses uma vasta gama do que se denomina atual- mente de casos raros, € que correm 0 tisco de receber diagndsticos os mais variados (borderline, neurose narcisica, disttirbio do humor, his- teria etc.), dependendo da forma 0 € orientagio tedrica do profis- sional que diagnostica. Em outras palavras, esses casos raros, na ver- dade, no seriam assim tho raros € poderiam todos ser englobados numa nova concepeao de psicose, fundada na foraclusio generalizada e na clinica universal do delitio. Nesta mesma linha de defesa da hipétese descontinuista, encon- tramos a idéia de uma gradacio no interior do campo das psicoses, de tal forma que a propria neurose po- deria ser considerada como um subconjunto da psicose.” Trata-se, neste caso, muito mais de uma es- pécie de monismo que de des- continuismo. Sobre esta estratégia de manutengio da hipdtese des- continuista, cabe assinalar que a idéia de gradagio dentro de uma mesma estrutura contraria a prépria l6gica estrutural, se consideramos que esta tltima opera a partir da pura diferenga, ou seja, da combi- natéria de elementos cujos contet- dos ou significados nao devem ser levados em conta. Estabelecer graus dentro da estrutura equivaleria, por- tanto, a dar dimensio ao que deve- ria ser pontual, ou a conferir quali- dades e intensidades ao que deve- tia ser tratado como pura diferenca. Em outras palavras, € como se a pergunta “Nome-do-Pai, sim ou nao?” pudesse ser substituida por Nome-do-Pai, muito ou pouco” sem contrariar a légica bindria que a preside. Com efeito, na clinica da cone- xo, dos nés ou do sintoma, a per- gunta chave deixou de ser “Nome- do-Pai, sim ou no?" e passou a ser formulada a partir do privilégio con- cedido presenga ou nio de um ponio de capitoné capaz de susten- lar a amarragao dos registros RSI. TEXTOS Contudo, apesar do empenho em preservar 0 ponto de vista des- continuista, a idéia de gradacio aca- ba por se insinuar e produzir des conforto. Na Conversagdo de Arcachon, por exemplo, J-A Miller chega, num primeiro momento, a afirmar que “Do lado do binario classico neurose-psicose, temos um traco distintivo pertinente, Nome-do-Pai, sim ow ndo, que corresponde ao principio Iévi-straussiano. Em com- argumentacao: “Antes da resposta clinica, que- ro dar uma respostinha sobre a gradacio. O senhor nao é bastante leibniziano, mas eu acho que o sou perfeitamente. Leibniz é capaz de dizer que 0 repouso € um caso li- mite do desenvolvimento, € demonstri-lo. E articular concei- tualmente © descontinuo e 0 conti nuo. De um lado, claro que o re- pouso se opde a0 movimento, sto dois conceitos polares, mas segun- A. dar destaque para 0 gozo enigmatico e privilegiar o real, a segunda clinica lacaniana abre-se para uma dimensdo do sexual muito mais ampla do que aquela que se restringe & castragdo e ao falo. pensacao, lendo as exposigdes [dos casos clinicos apresentados na Con- versacdol, é mais dificil indicar pre- cisamente qual € 0 elemento dife- rencial da segunda formalizacao. E mais uma gradagio do que uma oposicao definida, que temos. f por isso, efetivamente (...) que eu via esta formalizago mais continuista, em oposigio 4 descontinuidade da primeira."* Curiosamente, ao ser interpe- lado por um dos participantes da Conversacao”, que se dizia pertur- bado pela introdugio da idéia de gradagio na clinica dos nés, J-A Miller se defende com a seguinte do outra perspectiva 0 repouso nao €sendo o caso limite, uma extenua- io, do continuo do movimento. Vejo que Berghem, que estudou fi- losofia, se diverte. E aproximativo, decerto. Fiquemos com a clinica." Nao € preciso ter estudado fi- losofia para se divertir com este tipo de argumentagio. E, de fato, muito divertido observar Miller tirar 0 co- elho da descontinuidade da cartola da gradacio. Mas no deixa de ser também divertido observi-to dar um salto inesperado da descontinuida- de entre neurose e psicose para a continuidade do processo patolégi- co, dando a entender que é melhor 124 uma psicose que mantém seu curso continuamente do que uma psico- se com sobressaltos: jo acho necessirio fazer tudo girar em tomo da questo continuo € descontinuo, pois acaba-se como nas viagens de Gulliver ponta gros- sa contra ponta fina. O tinico ponto de fato interessante € pratico: Como fazer para que a evolucio do sujei- to seja de preferéncia continua so- bre descontinua, isto é, evitar-lhe crises, desencadeamentos, pausas? Em nivel te6rico eu thes proponho a solugio leibniziana. Leibniz sem- pre achou férmulas para ser tudo compativel. Entdo, ele pode nos aju- dar também. Recorrer a Leibniz em caso de dificuldade.”" © real é sexual € 0 gozo mais ainda A hipotese de continuidade en- tre as esiruturas clinicas pode ser vista como uma espécie de entume- cimento do ponto, ou como a pre- senga de viscosidade onde se acre- ditava prevalecer a dureza diaman- tina. Estamos, portanto, diante de um problema nada gulliveriano, cuja verdadeira dimensio s6 pode set devidamente avaliada quando con- sideramos que é a propria separa- Gio entre o real e 0 sexual que est em jogo. ‘Ao dar destaque para 0 gozo enigmatico e privilegiar 0 real, a 2 clinica lacaniana, mesmo sem po- der admiti-lo, abre-se para uma di- mensio do sexual muito mais am- pla do que aquela restrita A castra- go € ao falo. Além disto, o contras- te entre a destituigao da centralidade da foraclusao do Nome-do-Pai na teoria € a tenacidade com que este conceito adere as descrigdes clini- cas sugere que a 2 clinica, mesmo privilegiando o real e tentando Ii vrar-se do bordio “Nome-do-Pai, sim ou nao?" encontra grande difi- culdade em se descolar da fung’o paterna. Em outros termos, poder amos dizer que, na clinica dos nés, nao € facil saber se o segmento do sexual pertence a alga do real ou 20 anel do simbdlico. A continuiade entre neurose psicose decorre, assim, em Ghima instincia, da im- possibilidade de confinamento do sexual no simbélico € sua légica bindria. Do nosso ponto de vista, para que a 2% clinica sefa de fato portadora de uma novidade, ela deveré considerar que 0 real € se- xual e 0 gozo mais ainda. série de evidéncias que a desquali- ficam, para garantir a continuidade no Ambito da doutrina e reconfor- tar todos aqueles que por tanto tem- po fizeram da teoria linguistico- estrutural do inconsciente 0 a eo W da clinica das neuroses e psicoses. Cabe aqui recordar a fala de J-A Miller na Conversagao de ‘Arcachon: “Leibniz sempre achou formulas para ser tudo compativel, Ent2o, ele pode nos ajudar também. Recorter sempre a Leibniz em caso ~ A continuidade entre neurose e psicose decorre, assim, em Ultima instancia, da impossibilidade de confinamento do sexual no simbdlico e sua légica bindria. Podemos entio concluir que, hum momento em que a mais re- cente orientaclo da teoria e da dl nica lacaniana convida 2 superagio de varias descontinuidades, a reafirmagio da barreira estrutural entre neurose € psicose nao deixa de surpreender sugerir um esfor- ¢0 insensato de assegurar © conti nuismo entre a adesao fervorosa abordagem linguistico-estrutural, que vigorou de forma quase abso- uta entre 2 maioria dos lacanianos até ha bem pouco tempo, e a recen- te adogio de novas diretrizes teori- cas e novas abordagens clinicas, em muiilos aspectos incompativeis com icOes anteriores. A reafirma- ‘do da barreira estrutural entre neu- rose € psicose desconsidera uma de dificuldade”. Vale dizer: se nos deparamos com a continuidade jus- tamente no lugar onde, por tanto tempo, afirmamos peremptoriamen- tea descontinuidade, lancemos mio de uma filosofia da continuidade para dizermos que entre continui- dade e descontinuidade existe con- tinuidade. Com certeza, nao apenas Leibniz, mas também Derrida, en- tre outros, podem ajudar. Mas nao a tornar tudo compativel, quando a incompatibilidade dos diferentes momentos de um pensamento pro- duz constrangimentos nos que pre- tendiam falar em nome da Verdade, Eles podem ajudar a superar oposi- des pretensamente insuperiveis, identidades supostamente bem estabelecidas e barreiras presumi- 125 velmente intransponiveis. Mas se a dificuldade encontrada situa-se na preservacao da pura diferenca e da descontinuidade das estru- turas, Leibniz talvez nao seja to Util. Melhor seria permanecer com Lévi-Strauss, Notas ric Lauren, Hi algo de novo nas pslcoses Curingricola Brest de Picardie MG, 02 14 Belo Horizonte, 2000, pp. 152-163, 2 La Contention Antibes Bd. Insitut du Champ Freuclen, Pats 1998, p. 7. 3. Um bot abordagem desta queso fo feta por LBplanche no sequin aig“ structural, sino no”, Trabajo del Pcoanalss, vo. 12°, Mexico, 1983, pp. 15-34. 4 CE.Gilson lenin, Cartografa de um desenconto: fsruturh e sujet em Jacques Lacan", In Peieandliseefilesfia. © futuro dew mat ear (GG. Nassra 8A Teer, og) Ea Opera Pima, Belo Horizoeve, 2000 5. ChsLefacteurde a vert in, ta cate pasta, de Stcratea Freud et audela: Speer” sur“Fre Paris: Pammarion, 198, 6. Uma longa discuss sobre exe ponto encont- seno dum capitulo do nosso lwo O problema (de identficagao em Freud, Recalcamento dat ‘dennficacao feminina primdria, 0 Paul: seu, 2000 7. aeques Lacas, O seminar, ro 3. As Psicoss. lode Jano: Jonge Zaha Ed, 1985, p. 100, 8 tout, p. 102 9. tod; p 105. 4. oud 105. 11. CF "Popes direcifs pour vn Congrés sur i sexual feminine’, in Bo, Parse Seu, 196, . 730.8 respeto desta queso, remeremos © Fenorireressadoa dos outs ives 1 Luz Cares ‘Turco, Paranoia et théorie de la séduction _gendrallste, Pars: PUF, 1999, p.99eseguntes. 2) Jacques Andie, Aux ongines fominines de a sexual aris PLE 19, p. 63 12, Bory, op ct p. 368. (Ns aduzimos) 13, La Convention 'antibee Lo néo-dictonchement, ‘La Niw-convorsiom Le éo-ranafer, insti ds {Champ Freudien, Pats, 1988, p. 22 14, CE AmtOnio Telia, “Forclisio,Genealza: come ¢ possvel no ser lovee”, Cura, 9 4, Blo Horton, 200, pp. O65 15. tad, p. 232 16. Paulo de Carvalho Ribeiro, 0 problema da fdentificacdo em Freud. Recalcamento da ldentfcazao fominina primdria, Sio Paulo: seu, 2000. 17. Ci. Marcia Rost, “Porclusio © fendmenos lementates, Guringa, opt, p- 3. 18. Os casos raras, inclassficdveis da clinica stcanaitica, 4 Conversagdo de Arcachon, ‘Sto Paulo: Biblioteca Frevdina Brisie, 1997, p. 106, 19. Taa-se de Herbert Wichsberg, op. ct. 108. 20. Op cu, p- 108 21, Op et, p. 112

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