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Patologias da contemporaneidade e conflito sexual: “Nao ha tratamento social do recaleamento” Paulo de Carvalho Ribeiro Na introdugao de seu livro sobre a sexualidade feminina, publicado na conhecida colegdo “Que sais-je?”, Jacques André (1994), ironicamente, chama a atengio para o fato de que entre os imperativos morais de contengao e rentincia da sexualidade que se impunham & mulher no século XIX e a aparente liberagao sexual que, nos dias atuais, hes impde um imperativo de gozo generalizado, a primeira situagao tinha, pelo menos, a vantagem de ser realizavel. Em outras palavras, a injungao “goze, sempre e cada vez mais”, que a midia e as sociedades contemporaneas enderecam aos homens e mulheres, acaba por se revelar, na maioria das vezes, uma tirania ainda mais opressora e arbitréria do que 0 moralismo e a repressao sexual da era vitoriana. Jacques André procura fundamentar esse argumento ao afirmar que nao existe tratamento social do recalcamento e que varias décadas de “revolugao sexual”, com modificagdes profundas nos costumes, tabus e regras que governam as relagGes sexuais, nao tiveram nenhum efeito sobre a dimensao de recalque inerente a prépria constituigéo da sexualidade, do desejo e da pulsio, Cabe, entdo, perguntar: se o recalcamento nao encontra mais 0 mesmo apoio nos costumes, nos tabus e nas restrigdes impostos por uma certa moralidade fundada, em sua maior parte, na religifio ¢ na tradi¢ao, quais seriam, atualmente, suas formas de expresso ¢ seus clementos de sustentagio? O propésito de responder a esta pergunta nos conduz d tese central que pretendemos apresentar e sustentar neste breve traba- 108 Paulo de Carvalho Ribeiro que se caracterizam, principalmente, por uma tendéncia & desper. sonalizagio e & conversio somitica, em que o carter fragmentador «edesorganizador das exigéncias pulsionais encontram menos recur. «Ho € cireunscrigo do que aqucles disponiveis nas as, Diferentemente, portante, das abordagens que 1a essas patolo ‘origem em mecanisros ps mento,’ propomos relacion‘: suroses cssicas, ao carter atacante das pulses sexuais © a0s jeitos do recaleamento ao qual clas se encontram invari patologias contemporiineas. As crises que acometiam o senhor J tinham todas as caracte da sindrome do panico:? sudorese, sensagio de morte iminente, medo de nao ser amparado ou as ‘quando se encontrava em locais pit das crises, durago do perfodo de panico raramente superior a uma hora e auséncia de qualquer problema orginico que justificasse a dificuldade respiratéria ¢ as dores preco crises, Depois de oito meses sofrendo com esses sintomas ¢ de hospi conta propria, © antidepressivo que vinha utilizando havia mais de seis meses e iniciou sua andlise, que ja dura aproximadamente dois anos. Seus sintomas de ansiedade diminusram progressivamente a tio do quadro a partir do momento em que uma fantasia sexual intensamente perturbadora ¢ conflituosa pode ser progressivamente percebida e verbalizada, Tendo escutado rumores dle que seu chefe imediato havia galgado alguns degraus na Jovos tempos, novos sintomas: novo Ear Patologias da contemporaneidade e conflito sexual... 109 hierarquia da empresa valendo-se dos favores sexuais dispensados por sua esposa a um dos diretores, o sr. J surpreendeu-se com uma desconcertante eregio que acompanhou a idéia, advinda durante ‘uma comemoragao natalina na empresa, de que sua propria esposa estaria sendo desejada ¢ observada pelo diretor em questo. Este episédio, anterior ao surgimento das crises de pinico que teve como efeito imediato um “verdadeito édio” da esposa, acompanhado de uma explosio de citimes, havia sido superado € aparentemente esquecido até que foi recuperado na andlise ¢ lentamente desdobrado até permitir 0 afloramento de fai homossexuais e do papel de “surrogate partner” por ele airibuido sua esposa na fantasia. O medo de ser surpreendido por um ataque de panico ainda persiste, apesar de no ocorrerem ataques jf hd alguns meses. Para ost. J, a possi al de seu sintoma foi formulado por mim ou por ele. A idéi ‘acinagao” est muito mais associada ‘a uma espécie de ritual quase supersticioso como varios outros que ele empregou, sem sucesso, no perfodo anterior ao inicio da andlise. Se antes ele tentava evitar as crises fazendo exercicios respirat6rios, agora ele fala sobre scus desejos e fantasias sexuais, dduas vezes por semana e parece atribuir o mesmo cariter ritualistico as duas coisas. Invariavelmente, a fala sobre as fantasias é brecedida de uma ressalva que jd se assemelha a um outro pequeno tual assegurar uma prote¢o contra qualquer possivel ‘aluagdo: “eu s6 concordo em falar sobre essas coisas porque voce ‘diz que € fundamental e porque eu tenho certeza de que nunca vou ‘por em prética nada dessas loucuras”. O st. J esté no inicio de sua andlise © ainda longe de poder se reconhec fantasias, embora a possibilidade de reconhe 110 durante o dia ¢ nio se abstém dos excessos notumos, sente-se com- pelida a vor a claras sensagii i claras sensages de punigio e alivio. O uso de antidepressivos vinha contribuind para Que 0 quadro no atingisse niveis de gravidade que viessem + rbio alimentar com conflitos de ordem sexual. Recentemente, ela pode relatar um epi importincia em sua vida ela nao desconhecia, embor acreditar que se tratava de algo superado. Pouco mais lerminado um namoro em cit- cunstincias que ela mesma ngedoras. Seu namorado pedira-Ihe que confirmasse ou desmentisse um aconte- ccimento que Ihe fora relatado por um amigo de um amigo de quem M havia sido colega na faculdade, Numa festa desta turma de fa- culdade, M havia se embriagado e consentira em fazer um tease diante dos colegas ¢ demais convidados. fato pelo qual tomou-se conhecida na faculdade a partir de entéo. M confirmou © acontecimento, dando-Ihe a devida dimensdo: outras colegas tam- bém tinham participado da brincadeira; ela néo tinha se despido totalmente ¢ acreditava que alguma droga havia sido misturada & sua bebida sem scu conhecimento. Na esteira desse relato, feito com nftido constrangimento durante as sessOes de anélise, M sentiu-se suficientemente confiante para relatar um outro acontecimento s0- bre 0 qual nunca havia falado a ninguém ¢ que Ihe parecia mais importante do que 0 anterior. Certafeita participou, com uma amiga, de urna reunido na casa de conhecidos desta dltima e, embora es- tivesse plenamente consciente de seus atos, consentiu em participar de uma sesso de sexo grupal. durante a qual manteve relagao com varios homens e com uma mulher. Este episddio, que no se repe- tiv e cujo prazer e excitago proporcionados ela no hesita em reconhecer, comega a ser por ela relacionado com os excessos da za que ela nfo se imaginava importancia da sensagio de st niensamen Ae visadesquante abominado, A proporgio entre orca ne ‘ dos alimentos e.0.sofrimento proyocado pelosict Patologias da contemporaneidade e conflito sexual apnéia produzidos pelo vOmito € nitidamente percebida por ela: fssim como a confusdo de prazer e sofrimento presente tanto no jejum prolongado quanto na ingestdo abusiva ¢ na eliminagao for- Gada dos alimentos. M parece obstinar-se em controlar um excesso pulsional que acaba por incidir sobre suas préprias tentativas de controle. Nas dltimas semanas, M tem solicitado hordrios extras na semana € 0s t ado para falar da saudade € das magoas re- Iacionadas com seu pai falecido ha quatro anos. Paralelamente a estes casos em que a participagdo de conflitos lamente sexuais revelam-se decisivos na formagao e/ temente distantes do domfnio da a atual tem sido marcada pela podem ser incluidas num diagnéstico de perverso propriamente dita, Trata-se, por exemplo, de homens ou mulheres casados que incluem, de comum acordo, outras pessoas em suas relagdes seauais: homens ou mulheres que veiculam na internet fotos ercticas de si mesmos: parceiros homo ou heterossexuais que se entregam. com regularidade, a praticas sadomasoquistas: parceiros que se aventuram fazendo sexo em vias piblicas ou em lugares inusitados: homens que incluem a utilizacdo de roupas intimas femininas antes elou durante as relagées sexuais com suas parceiras, ete E bem verdade que essas priticas esto longe de ser uma novidade, seja pelo fato de sempre terem existido, seja pelo fata de Poderem todas ser atribuidas ao bem conhecido carater polimorfo da sexualidade infantil e As marcas indeléveis que ela deixa na sexualidade adulta. Portanto, elas nao tém, Por si mesmas, nenhuma_ importancia do ponto de vista psicopa quando Passam a ser motivo de queixa, seja pelo cardter compulsivo que algumas vezes adquirem, seja pelo fato de serem associadas, pelos PrSpros sujeios que as vivenciam, com excessos no uso de alcool ° tee fogs, ea ainda pelo fato de serem por eles associadas jeria no m: ‘9 uma simplificagdo inaceitdvel se Bcendsemos abut o grande nimeto de sass de dspeocio oe eae que se dizem deprimidas na atualidade & maior 2 Ou A quase generalizagio dessas priticas sexuais nas Paulo de Carvalho Ribeiro ts Ugeadas, Mas seria tab i : m wma rs te ria sexualidade, © admitir a idéta de ee te Meee parentemente livre de constrangimentos mora eo 8029 SeXUa fato, nenhum 6nus psiquico, ra psicanalistas podem se pe culpa ligada a0 sexo? Num artigo recente, so 0 ge ns pace Ts ese nape adado no recaleamentodeito d pipto movin ‘ico, a saber, o cardter intrinseeamente c¢ nde sexualidade humana. Nas palavras de Phil ips oe > ¢ 308 outros) porque nosso dese €funemetanene transgressivo. Seo que desejamor€o que nfo devemos terns éstaremos, no minimo. dvi em ago ans mess Se ae desjaros- um di, ter um via bom esr rede pees divin, o que desjamos agora, da perspetna de Feud um jaa {ue 6, or defnga, poi, Ess rn ova el eam vse fim chamado “es no melhor do ars: ie op es aerrorizane 'Niio nos parece sem importincia a referencia 4 nio-coine cia de nés mesmos com nossos “eus” nessa passagem que acaba ‘mos de citar. Principalmente quando ela faz. mengao & poss de de um efeito aterrorizante embutido nessa divisio que nos un- da psiquicamente. Num momento em que a nogio de tansgressio relacionada 4 sexualidade parece ter sido recalcada; em que a cul pa relacionada ao “objeto” proibido parece ter sido banida das cha- madas “novas subjetividades”, ndo deve surpreender que 0s “eus” se descubram imersos em pAnico quando no canseguem mais se sus tentar numa ironia quase cinica diane de transgressdes que jé nfo se apresentam como tal © que, justamente por isso j no tem 0 Pe- der de acionar as defesas convencionas, ou ea. aquelas que normal- mente encontramos na histeria, na fobia ¢ na neurose obsess ‘As formas mais atuais de sofrimento psiquico tm suscitado tum niimero impressionante de hipéteses, arzumentos © ous pretendem desde fundamenté-las com nov € velhos coneeies wraio. irate de nove ja qual for 9 See gems contemporsneas Feinos fundamental Sreanizar i no campo psican 1 2, ito sexual... 113 Patologias da contemporaneidade e conflito ¢% al almente novas Ou. 20 COn- wnferindo-Ihes apenas um “jé bastante conhecidas ae rigor dessas teorias siquico, conside- Ines 0 status de patologias Te etionar sua aurenticidade, CO Teicdes de psicopatologias igrau de verdade, pertinénc de sofrimento p: 's balizas destinadas a relecer as seguinte: | estabelecer as Sez se envidados mamente os esforgos tedricos € clinicos ico sobre a questdo: jacques André se- devemos {que as alteragGes contemporaneas nas lade certamente se fazem acom- panhar de alieragdes nos mecanismos de defesa que se destinam Mparrar a forca intrinsecamente perturbadora, conflituosa ¢ até mnesmo mortifera das pulses. Diante disso toma-se fundamental ima reavaliag3o no apenas das modalidades atuais de retorno do recaleado, mas também dos mecanismos que asseguram a instauragao do recaleamento, bem como daqueles que favore- ‘com ou dificultam sua manutengao: no nos cabe, como psicanalistas ou psic6logos. esperar ~ ¢ muito menos promover ~ qualquer remissio (moralista. religio- sa, politica ou de qualquer natureza) do que se afigura aos olhos {da sociedade ocidental como uma liberag3o, a saber, a chama- da “revolugio sexual”. Impde-se. portanto, uma profunda refte- ze sobre oF efeitos dessas novas formas de vivenciar a rincipalmente, sobre as novas suscetibilidades psicopatolégicas que elas promovem; send evident aie as priticas sexuais tendem a acolher cada rente as demandas polimorfas de satisfaca sional, toma-se imperative reavali ee ds prtcns pore teaNala® 0 estatuo psicopatolésico da perversde ne enamide, medida do possivel tengio da nogio de estruturas clinicas neurouen eecoling ene icas neurdtica, psicdtica e per gundo a qui sempre levar em conta formas de vivenciar a sexual : tna ct ge wa Se tin comm versdo; Sergio Benvenuto, ie sos sevutles, lito © Festa & foe 14 Paulo de Carvalho Ribeiro versa 86 se justifica se for capaz de fazer esta ¢ outr ¢Oes, como também de responder teoricamente pela evidéncia de que a pretensa descontinuidade entre essas tres estruturas encon. tra cada vez maior dificuldade de ser confirmada pela clinica; 4. um pouco dentro do espirito do artigo de vulgarizagio da psicandlise de Adam Phillips, concluiremos este breve texto dizendo que, depois de Freud, nao podemos mais Pensar a possibilidade de uma vida sexual livre e sem conflitos, Algo deve estar errado com as novas subjetividades que se dizem ¢ se acreditam quites com a sexualidade. A liberagdo sexual nao dispensa 0 conflito, apenas modifica-o ©, a NOsso ver, torna sua expressdo mais severa e debilitante, As novas formas de vivenciar a sexualidade nao tornam obsoleta ou dispensavel a contribuicao que a psicandlise tem a dar para a diminuigao da “miséria psfquica” eo manejo do mal-estar que nos acomete de forma generalizada. Ao contrario, para fazer face a este Tita que nunca pdde ser efetivamente acorrentado e que agora se mostra ainda mais ind6mito, a PSicandlise, mais do que nunca, deverd estar a postos, abstendo-se, naturalmente, de qualquer impeto moralizador, mas recusando também qualquer ilusao ou engano sobre a forgas em jogo na sexualidade humana. ‘as distin. Referéncias Anpré, J. La Sexualité féminine. Paris: PUF, 1994. Benvenuto, S. On perversions, disponivel em . Bonner, G. Les perversions sexuelles, Paris: PUF, 1993. Ferraz, B.C. A Perversdio. Sio Paulo: Casa do Psicélogo, 2001. PHiLups, A. Vivendo perigosamente. Folha de S. Paulo, 13 abr. 2003, Caderno Mais!. ae Scuwartzmann, R. S. Sindrome do panico: uma escuta psicanalitica, Percurso, Sao Paulo, n. 18, p. 87-96, 1977. Ucuitet, M. Novos tempos, novos sintom, tansferéncia, Percurso, Sao Paulo, n. 29, p- : novo lugar para , 2002.

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