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Salvar o Fogo - Itamar Vieira Junior
Salvar o Fogo - Itamar Vieira Junior
Sobre a obra:
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Itamar Vieira Junior
Salvar o fogo
Capa
Folha de Rosto
A vingança tupinambá
Luzia do Paraguaçu
Manaíba
A alma selvagem
Agradecimentos
À minha mãe
A terra, esse vale de lágrimas
Juan Rulfo
“Luzia!”
A face pálida de Maria Cabocla refletia a gravidade do
chamado. Primeiro, um duradouro silêncio. Depois, uma
sequência de gritos seus e de Luzia irrompeu no campo
da infância, revelando o perigo.
Pouco antes ouviram a voz da mãe ecoar na beira da
mata, onde tinham se entocado para brincar. Chamava
por elas, ameaçando com castigo caso não retornassem
de imediato. As folhas secas quebravam sob os pés de
Alzira, a velocidade de suas pisadas e o teor dos sons as
advertiam do castigo por vir. Mariinha abafava o riso
enquanto olhava para Luzia. Era capaz de ouvir o
coração da irmã, quase à boca, retumbando através das
árvores e arbustos sempre verdes por causa da chuva
sem trégua. Corriam, enquanto a mãe se aproximava
cada vez mais, não queriam retornar para a estalagem
onde dormiam os trabalhadores da fazenda. Passariam
vergonha com os castigos que receberiam diante das
outras crianças e de todo o barracão habitado por
homens bêbados, mulheres exaustas e mal-humoradas,
onde o som mais comum era o de choro de criança e o ar
vivia impregnado de odores de doença. Na mata, eram
apenas meninas e brincavam de viver na casa que um
dia teriam. Casa de verdade, não as estalagens ou os
barracos improvisados onde passavam meses, o tempo
em que seus pais trabalhavam na colheita. No lar da
imaginação de Mariinha, Luzia e Zazau — às vezes
Joaquim, o mais novo, também se juntava a elas — havia
quarto para as crianças, comida na mesa e patrões
dando ordens a trabalhadores invisíveis. Assim tinham
visto desde sempre. Naquelas fantasias não havia escola
nem livro nem se escrevia. Os irmãos mais velhos
trabalhavam, tinha passado o tempo da brincadeira. A
família desde cedo andou por fazendas à procura de
trabalho, e os pais não puderam aprender a ler e a
escrever, nem esperavam que os filhos tivessem destino
diferente. Quem sabe os filhos dos nossos filhos,
divagavam sem um fio concreto de esperança.
Brincadeira de menina era casa, marido, filhos. Às
vezes também a morte dava as caras e eram os sabugos
feito gente (ou apenas a imaginação) que morriam dos
males que as benzedeiras não conseguiam curar. Quando
não eram crianças feitas de sabugo, eram imagens
etéreas, vistas com os olhos da alma, porque nem
sempre havia milho para ser transformado em bonecas
nas brincadeiras. Às vezes brincavam de cultivar roça de
cana, de fumo, de mamona. Ou eram pastoras de vacas
e cabras a serem levadas aos campos. E no meio da
itinerância em que viviam só contavam com a
imaginação para lhes recordar que ainda eram crianças
e, portanto, poderiam esperar por uma vida diferente.
Trabalhavam dia após dia ajudando a mãe a colher o
que fosse preciso e por isso as mãos nunca andavam
limpas. Banhavam-se nos rios, mas o ranço do trabalho
por muitas vezes impregnava a pele e deixava as unhas
entranhadas de terra. Por quantas fazendas passaram
durante aqueles anos? Maria Cabocla não saberia dizer, e
por muitas outras ela precisou passar até chegar à
derradeira, onde os pés criaram raízes com Aparecido e
os filhos. Ainda que trabalhassem quando sequer tinham
idade para cuidar de si próprios, uma força
inquebrantável, inocente, emanava das horas de
diversão que ainda não haviam lhes confiscado. Qualquer
intervalo entre a lida e o descanso era tempo de se
distrair, retirando de si a possibilidade do prazer. Mas
daquela vez o jogo era outro, não era brincadeira de casa
nem família, era se sentir livre, descobrindo insetos e
plantas e o que mais estivesse pela frente. Se afastaram
da estalagem e penetraram a mata, sem permissão. Por
isso não atenderam a mãe, sabiam que se o fizessem
poderiam ser castigadas com o cipó guardado para as
transgressões.
Foi assim que Maria Cabocla se viu diante de um ninho
de cascavel. As serpentes se enrolavam vivas numa
coreografia hipnotizante. Aquele momento foi de silêncio,
sabiam pelos contos dos mais velhos que não deveriam
provocar a ira das serpentes. Ela arregalou os olhos,
esperou que a atenção de Luzia se voltasse para a
armadilha e que juntas pensassem numa maneira de
escapar do perigo. Era preciso deixar o lugar o quanto
antes para não serem picadas. Qualquer movimento
poderia assustar as víboras e provocar um ataque.
Luzia permaneceu inerte, se locomovendo a passos
medidos, encantada com os movimentos das serpentes.
As observava com atenção, como se naquela fração de
terra somente elas importassem. Ao contrário de Maria
Cabocla, seu medo não havia saltado à superfície,
permanecia adormecido, latente, pronto para ser
despertado. E, enquanto o medo não vinha, se entregou
ao tempo e disse num tom quase inaudível à irmã: “Fique
quieta”. Continuou a se aproximar do ninho, em direção
ao círculo formado pelas serpentes que deslizavam no
entorno da irmã. Por um momento era como se tivessem
decidido abraçá-la. Então Maria Cabocla se deixou levar
pela experiência de observar Luzia, como se estivesse
envolta em algum encanto. As cobras continuavam a se
movimentar, mas desviavam dos corpos das irmãs, como
se ao redor deles existisse um campo magnético a
impedir o avanço. Nenhuma ergueu o corpo, nem mesmo
chocalhou a ponta da cauda. Deslizavam enfeitiçadas e
traiçoeiras sobre o terreno, enquanto as meninas
permaneciam imóveis.
Foi quando Maria Cabocla percebeu que dos olhos de
Luzia emanavam as cores e o brilho do fogo. Talvez fosse
a luz do fim de tarde refletindo o céu avermelhado de
abril. Naqueles olhos dançavam chamas, duas labaredas
crepitando prontas para devorar o entorno, caso fosse
preciso. Uma imagem que Maria Cabocla guardaria para
sempre como um segredo.
A luz do crepúsculo se modificava com rapidez e
quando as irmãs olharam ao redor perceberam que as
serpentes tinham seguido o caminho da mata. O grito de
pavor abafado pela necessidade de se preservarem
atravessou as copas das árvores em direção à
estalagem. Gritaram despertas do breve silêncio evocado
pelo instinto de sobrevivência.
Por mais que tivessem se afastado da estalagem, elas
conheciam a trilha percorrida e conseguiram deixar a
mata. Maria Cabocla correu enquanto o cabelo grudava
em seu rosto úmido de choro. Luzia saltava como se ela
própria estivesse no ninho das serpentes, agitando os
braços para afastar a presença de animais imaginários.
Alzira esperava as duas com o cipó na mão, pronta para
o castigo que julgava merecido, mas desistiu quando
contaram do ninho de cascavel. A mãe se abaixou para
inspecionar as duas com desespero; braços e pernas à
procura de algum ferimento. Zazau e Joaquim foram ao
encontro das irmãs e observavam tudo atônitos. “Hoje
vocês escaparam de apanhar, mas amanhã vocês me
pagam”, disse a mãe, tentando disfarçar a própria
agonia. Também não contou de imediato a Mundinho,
preferiu deixar tudo se acalmar para poder narrar a
história com a devida ênfase para castigar as duas.
Naquela noite, enquanto dividiam uma rede de dormir,
recordaram as recomendações do pai quando percebia
os filhos brincando inquietos. “Não se deve abrir a porta
de noite, se não estiver esperando ninguém”, Mundinho
dizia, era certeza corrente nas roças por onde passava,
“pode ser uma cascavel, o rabo é um chocalho e a gente
pensa que é uma batida na porta. Deixa que os mais
velhos atendem.” Tudo isso para dizer que as crianças
não deveriam assobiar, para as cobras não atenderem ao
silvo como a um chamado. Luzia adormeceu cansada de
chorar, abalada com o fim da brincadeira. Maria Cabocla
demorou a pegar no sono, ainda que estivesse exausta
da tensão. Com seus olhos fechados ou abertos,
continuava a recordar os de Luzia feito duas labaredas,
ainda mais vivos na escuridão onde se encontravam.
6
capa
Elisa v. Randow
ilustração de capa
Aline Bispo
preparação
Márcia Copola
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN 978-65-5692-416-8
CDD B869.3