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DADOS DE ODINRIGHT

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Itamar Vieira Junior

Salvar o fogo
Capa
Folha de Rosto

A vingança tupinambá
Luzia do Paraguaçu
Manaíba
A alma selvagem

Agradecimentos
À minha mãe
A terra, esse vale de lágrimas
Juan Rulfo

O que ela quer da gente é coragem


João Guimarães Rosa

A tristeza inteira era o fogo


Simone Schwarz-Bart
A ira do corpo se torna mais violenta em noite de lua
cheia.
Ela já não conseguia se recordar das coisas que tinha
para fazer no dia a dia. Também não soube dizer a si
mesma como e quando havia se deitado exausta na
esteira de palha e nem em que momento desfez — num
acesso de fúria — a grossa trança que domava seu
cabelo crespo e negro refletindo o brilho da luz de um
candeeiro. Depois ela imaginou que os fios do seu cabelo
se tornavam raízes encontrando o chão do quarto, e
talvez tudo isso tenha se passado antes de uma dor
violenta lhe atravessar o quadril. Ou foi antes de sua
visão ficar turva. Ou um pouco antes de o suor escorrer
de seu rosto e de suas costas como uma fonte de água
morna. Foi ao mesmo tempo em que sentiu uma
incômoda vontade de urinar.
Enquanto estava deitada deixou a mão repousada
sobre o ventre de seu pequeno corpo. Ali, sabia, estava a
causa de sua aflição, a vida se contorcendo com
violência, e era como se ela própria fosse arrebentar com
a força que se digladiava para deixá-la. Poderia ficar
quieta e permitir que seu corpo seguisse o próprio fluxo
como o rio, porque tinha visto as mulheres fazerem o
mesmo à sua volta. Poderia pedir ajuda e mandar
alguém chamar a parteira da Tapera do Paraguaçu,
aquela mulher que cheirava a aguardente e tinha as
unhas grandes e sujas. Mas preferiu seguir em silêncio. E
por fim não houve escolha e sua tormenta a consumia e
rasgava o ventre e a pélvis e estava cada vez mais
intensa.
Era uma noite úmida, de poucos sons, alguns
zumbidos de insetos, sem sequer assobio do vento
avançando sobre as palmeiras da margem esquerda do
rio.
Sua gente dormia ao seu lado e vez ou outra
movimentavam os pés, se viravam, agitavam as mãos
para afastar os mosquitos que zuniam inquietos. Que
fosse breve, se concentrasse no que tinha a fazer porque
estariam despertas quando o dia começasse. Recordou a
luta de sua gente quando as crianças exigiam comida e
energia para apaziguar as brigas, para os banhos, para
cuidar das feridas, para colocar o alimento nos velhos
pratos de esmalte, e parecia nunca ser suficiente
tamanha era a fome.
Nos últimos meses a chuva finalmente chegou, mas os
homens desencantados deixaram as minguadas roças ao
deus-dará, seguiram nos saveiros para vender o que
havia sobrado da última colheita. Pequenos
carregamentos de farinha de mandioca, coco, azeite de
dendê. Prometeram trazer dinheiro. Voltaram depois de
semanas sem nada ou, quando muito, garrafas de
cachaça. As mulheres da Tapera observavam a maré, e a
maré avançava e recuava sobre o rio enquanto elas
viviam à espera de seus homens. Aproveitavam as águas
baixas para irem com lata e colher em busca de
mariscos. Sabiam que eles não voltariam no tempo
prometido. As crianças chorariam por comida, sem se
preocupar se os pais tinham ou não voltado, e sobrariam
as mães cada vez mais velhas para dar conta das
obrigações.
As mulheres arrumavam um jeito próprio de seguir a
vida; uma das certezas era que pediriam aos monges
permissão para colher o caju nos terrenos da Igreja. Eles
cediam, desde que elas levassem os melhores frutos
para a cozinha do mosteiro. Feito isso, poderiam comer o
resto. Elas vendiam as sobras da colheita para os
viajantes, cheias de dignidade, em pequenos tabuleiros
erguidos nas portas das casas voltadas para a estrada.
Depois, no fim do ano, os maturis que nasciam nos
galhos mais baixos para matar a fome, além dos frutos
que sobreviveram à primeira colheita e cresceram nos
galhos altos.
Durante a manhã ela observou de longe o povo da
Tapera seguir com seus cestos para colher o que
encontrasse no caminho. Não se juntou para não verem
sua barriga, pois ainda que fosse uma barriga pequena e
comprimida e envergonhada, não era possível enganar
as mães da Tapera. Elas conheciam a pele e o brilho e o
cabelo das que carregavam uma criança no ventre. Elas
sabiam pelas unhas e pelo hálito doce e pela largura das
ancas. Sabiam se a criança seria graúda ou miúda e em
que tempo chegaria. E se tivesse andado entre elas nos
últimos meses, saberia que naquela noite de lua cheia
era a boa hora.
E se levantou equilibrando o corpo, acocorada no
chão, a camisola empapada de suor e colada às costas e
por baixo dos seios. A dor cresceu, e cresceu também a
raiva que já não sabia de onde vinha, e com certeza ela
havia arrancado boas mechas do cabelo enquanto
desfazia a trança. Deixou a cabeleira livre feito a copa de
uma árvore. Seus pés deslizaram sobre o chão de terra
batida, procurando o caminho para fora de casa. Quando
se aproximou da cortina que separava o cômodo da sala,
ela ergueu a cabeça e a seguiu com os olhos. Mas nem
isso foi capaz de detê-la, e era possível que na manhã
seguinte a sua imagem se revelasse como um sonho na
noite que avançava, como todas as outras sobre todos os
seus, sem sobressaltos.
Então ela deslizou não só pelo chão da casa mas
também pela noite que reinava sobre o céu: a lua, um
farol adentrando as frestas da janela como um convite
para que o animal noturno deixasse a toca. Retirou a
barra de madeira que cerrava a porta, não sem antes
morder os lábios, um gesto oportuno para impedir que se
ouvisse o ruído das dobradiças.
Sentiu um bafo, era a brisa morna a levando para fora
da casa.
Não tinha pensado sobre sua hora nem mesmo sobre
o que faria, e o corpo despertou por um momento da
apatia dos últimos dias. Seguiu os próprios instintos. Não
queria aquela criança; não podia levar outra boca para
uma casa sem recursos. Só não bebeu os chás porque
não os conhecia. Nem fez os encantos das mais velhas e
os segredos guardados nos lugares mais insondáveis do
espírito das suas mulheres. Havia muito que essa vida
passada era rejeitada por sua gente, que aos poucos se
tornou outra, pois passou a acreditar nas palavras de
forasteiros. Mas nada pôde deter o animal que crescia
dentro de outro animal e ela não sabia se era por falta de
conhecimento, se pelo eco das pregações do mosteiro
que sepultaram a Tapera sob a permanente ameaça de
castigo dos Céus ou pelos desígnios do Espírito de Deus.
Enquanto caminhava sentiu que outros animais
deixavam o caminho e subiam nas árvores e se agitavam
nas matas e se escondiam nas tocas e entravam no rio,
antes que ela pudesse alcançá-los.
Um depois do outro, seus pés tocaram a água, e seu
corpo se desviou como um galho seco no sentido da
correnteza. E a dor, a dor não estava apenas no seu
ventre, a dor a possuía por inteiro. Se permitiu gemer
enquanto os peixes tocavam sua pele com seus corpos e
para não seguir em direção à baía junto à correnteza,
fincou os pés na areia do leito na altura em que sua
barriga ficava submersa. O movimento das águas trouxe
algum alívio que logo se desfez. Mas não havia entrado
no rio em busca de conforto. Ela queria se agitar no fluxo
que a atravessava e passar por tudo o que precisava
para se sentir viva. Foi assim que afastou as pernas e a
maré e o rio a invadiram e estavam próximos de afogá-
la: as águas inundaram seu corpo e seu coração.
Quando a criança enfim nascesse, a entregaria às
águas. Que o rio cuidasse de sua cria. Que a correnteza a
levasse para bem longe.
A vingança tupinambá
1

Sempre que eu contrariava Luzia desobedecendo a suas


ordens, contestando quase tudo com respostas
agressivas, ela me dizia que eu era tão ruim que minha
vinda ao mundo pôs um fim à vida da mãe. “Deu fim à
nossa mãe”, era a sentença cruel, lançada para me
atingir e evocar as complicações que se seguiram ao
meu nascimento. Minha mãe se acamou, deprimida.
“Nossa mãe se foi de melancolia”, era o que se contava
em casa. Nunca soube ao certo o que Luzia sentia por
mim, graças ao que nos aconteceu. Por ter sido a
responsável por minha criação ainda muito jovem, dizia
que ninguém quis se casar com ela por causa dessa
obrigação. Nenhum homem iria aguentar minhas
malcriações. Sua mágoa era duradoura. Caí feito um
fardo sobre suas costas depois da morte da mãe e da
partida dos nossos irmãos. Eu era mais uma atribulação
para Luzia, além de todas as outras: cuidar da casa, do
pai, da roupa da igreja, e ter que se esquivar dos
humores do povo da Tapera.
Diferente da mãe e das mulheres da aldeia, Luzia, a
irmã mais velha, parecia não ter se interessado pela arte
do barro, nem mesmo pelo roçado. Dizia que lavoura era
trabalho para homem. Repetia, ao ver a ruma de
mulheres caminhando para o mangue à beira do
Paraguaçu, que não foi feita para ficar sob o sol catando
mariscos, e que se pudesse moraria na cidade grande.
Desde cedo passei a seguir seus passos. Às terças e
sextas-feiras Luzia andava até o mosteiro, recolhia
cortinas, toalhas e estolas, e formava uma imensa
trouxa. Equilibrava tudo sobre a cabeça com uma rodilha
feita de peça menor, podia ser uma fronha de travesseiro
ou uma toalha pequena. Cada entrada no mosteiro era
precedida de reprimendas a mim: “Você não pode tocar
em nada”, “Não fale alto, nem corra pelo pátio”, “Peça a
bênção aos padres quando se dirigirem a você. Seja
agradecido se lhe ofertarem algo”. E, claro, só poderia
receber qualquer coisa se tivesse seu consentimento. Eu
não fazia mais gestos de assentimento às suas
recomendações. Planejava como contrariar as regras, em
especial aquela que dizia que deveria olhar sempre para
o chão e andar como se fosse invisível para não
incomodar as orações. Tanta advertência não era por
acaso, Luzia confessou num rompante de desabafo:
queria manter seu ganha-pão como lavadeira do
mosteiro e conseguir uma vaga para que eu estudasse
na escola da igreja.
Nessa altura, meu irmão Joaquim tinha retornado de
um tempo longo morando na capital. Ele levava uma vida
errante, mas quando jovem aparecia vez ou outra para
ajudar seu Valter nos carregamentos do saveiro
Dadivoso, com sacas de grãos e caixas de verduras.
Saíam às quintas-feiras em direção à Feira de São
Joaquim e não tinham dia certo para regressar. Foi um
tempo em que manejei os saveiros na imaginação, nas
brincadeiras de menino, enquanto admirava o Dadivoso
e outras embarcações navegando o Paraguaçu em
direção à baía. Quando meu irmão começou a trabalhar
com seu Valter, eu o seguia até o rio para observar o
carregamento das sacas de farinha, dos barris de azeite
de dendê e das caixas de inhame e aipim. Guardava a
esperança de que me considerassem pronto para
trabalhar. Sonhava ir embora de casa, não precisar mais
olhar a carranca de Luzia me dizendo que eu era um
fardo. Meus irmãos deixaram a Tapera antes mesmo de
me conhecerem. Da maioria deles não havia fotografia
nem recordação. Eu fiquei só com Luzia e meu pai. Como
não havia quem cuidasse de mim na sua ausência,
precisei seguir seus passos muito cedo, a todo canto, até
que ela me considerasse pronto para ficar sozinho.
Quando eu era pequeno, Luzia me levava nas suas
caminhadas para recolher as roupas do mosteiro. Entrava
e saía dos cômodos e caminhava contrita até o altar da
igreja, benzendo-se toda vez que passava por alguma
imagem de santo ou pela de Nosso Senhor do Bonfim, a
maior delas. Eu me afastava em silêncio, ao mesmo
tempo que tentava manter os movimentos de Luzia no
meu campo de visão, domando meu ímpeto explorador.
Não poderia desobedecer de todo a suas ordens, como
a de estar sempre ao seu lado. Planejava como caçar os
insetos no jardim do pátio interno. Retirava viuvinhas do
pé de carambola e as pousava em meu braço. Dava-lhes
nomes, cuidava para não caírem sob os sapatos dos
monges percorrendo os corredores em silêncio. Às vezes,
ao notarem minha presença, punham a mão sobre minha
cabeça. Me abençoavam e ofertavam as carambolas
maduras que eu mesmo poderia pegar, não fosse a
proibição de Luzia. Eu a seguia e gostava de sentir sua
paz, quieta, silenciosa, recolhendo as peças a serem
lavadas, fazendo um grande esforço para não ser notada,
os pés flutuando acima do chão. Não era possível ouvir
sequer suas sandálias surradas encontrando o piso do
mosteiro. Diferente de mim que, ao me perceber sozinho,
deslizava os pés como se fossem barcos quebrando a
correnteza do rio, ruidosos a perturbar a calmaria
sagrada do mosteiro.
Quando não encontrava os insetos, me sentava no
banco de pedra e olhava Luzia de um lugar privilegiado.
Observava seu caminhar, sua ronda, o percorrer das
celas, abrindo e fechando portas, o ranger das
dobradiças douradas, ela recolhendo as roupas brancas.
Me aproximava, mas não tinha permissão para adentrar
os vãos, não tinha permissão para olhar o interior,
embora eu sempre desse um jeito de espreitar. Luzia
entrava de cabeça baixa, olhando o que a interessava.
Recolhia, dobrava, alisava com as mãos as peças de
roupa. A boca se movimentava em silêncio recitando
preces que não podiam ser escutadas, e os olhos
contemplavam sem demora os crucifixos e os santos. Era
a casa de Deus, foi o que me ensinou, e ali expiava em
contrição as dificuldades dadas pela vida. Mas era das
costas de Luzia que se elevava um pequeno monte, uma
corcunda, e eu sentia vergonha. Nesse ponto
concordávamos, porque ela parecia sentir igual
acanhamento. Houve um tempo em que não entendia
sua deformidade, ainda não compreendia as coisas da
vida e não me incomodava com muita coisa. Mas, à
medida que eu crescia, andava cada vez mais distante
para não ouvir as zombarias das crianças. As mais
atrevidas se aproximavam sem que ela notasse para pôr
a mão sobre a corcunda e fazer um pedido. Aprenderam
com os viajantes que passavam ao largo da estrada da
Tapera. Muitas vezes vi minha irmã chegar em casa e se
dirigir ao quintal, para longe de mim ou de meu pai.
Parava diante da pequena horta e engolia a seco as
lágrimas que não chegavam a deixar seus olhos.
Quando Zazau, a mais velha entre as mulheres, nos
visitava, repetia que eu não deveria contrariar Luzia —
“Ela sofre dos nervos”. Eu sabia que, no fundo, não
queriam falar sobre os males que o povo da aldeia
cochichava pelos cantos e fizeram de Luzia uma
assombração evitada por todos. As crianças nas ruas, e
depois na escola, repetiam as histórias contadas pelos
mais velhos: que nossa casa era amaldiçoada, que as
coisas se quebravam sozinhas, os móveis se moviam do
nada; que o fogo se apoderava das coisas sem ser
provocado. O fogo, em especial, parecia preocupar os
que contavam. Diziam que nos dias de lua, por onde
Luzia andava, as coisas queimavam. Roupas secas
estendidas no varal, o colchão de palha, o mato ao redor
das casas e dos caminhos. Contavam que Luzia fora
trancada em casa pelo pai e pela mãe para que os
vizinhos não resolvessem suas diferenças com as
próprias mãos. Se os primeiros eventos estranhos
surgiram enquanto ela crescia, não se sabia ao certo
quando deixaram de acontecer. Uns diziam que foi
depois da morte da mãe, outros que os males cessaram
quando Luzia foi crismada. Mas saber que minha irmã
tinha o poder da magia quando eu ainda nem existia, me
atormentava e atiçava ainda mais minha curiosidade.
Um dia, depois de uma surra de Luzia, resolvi eu
mesmo lhe castigar. Não lhe contava sobre tudo o que
ouvia, as coisas que diziam dela pelas ruas da aldeia. A
raiva me fez planejar algo traiçoeiro para atingi-la em
cheio. Aproveitei sua ausência da cozinha e retirei uma
lenha ainda ardendo do fogão. Encostei a chama na
cortina que separava o cômodo do resto da casa. Eu
queria atingir Luzia, provocar algo tão forte quanto as
lapeadas de cipó que havia recebido, sua arma para me
manter sob controle. Seguindo seu exemplo, eu não tinha
chorado, não me dobrei aos seus castigos. Contudo,
queria vingança. Aos seis anos não podia imaginar que o
fogo não queimaria apenas a velha cortina, mas
alcançaria o teto e consumiria as ripas de madeira que
sustentavam o telhado. Em pouco tempo as chamas se
alastrariam. Comecei a gritar: “Fogo” e tive medo de que
ocorresse o pior.
Luzia aguava os canteiros de plantas porta afora. Ao
me ouvir gritar, correu apressada para o interior da casa
feito uma flecha, sem que tivesse tempo de me notar.
Parou na porta, enfeitiçada pela cena. Olhava para o alto,
parecia admirar o vermelho vivo das ripas consumidas
pelas chamas. Depois de breve tempo sem reagir, ela me
puxou para fora de casa, enquanto a fumaça escura se
elevava ao céu pelas brechas das telhas. Quando
considerou que eu estava seguro no terreiro, retornou
para dentro, me deixando sob o céu da Tapera. Não
falava alto nem parecia perturbada. Eu permaneci do
lado de fora. Senti medo e culpa. Tinha pecado, Deus me
castigaria, e Luzia também, se descobrisse a verdade.
Atravessei a soleira da porta sem conseguir ver Luzia em
meio à fumaça que já havia tomado os poucos vãos da
casa. Imaginei que talvez tentasse recuperar o terço e o
missal que levava para todo canto. Mas a encontrei
agachada e talvez sem perceber respirava a fumaça.
Diante de Luzia havia um pedaço de madeira
crepitando. Uma fagulha em meio à brasa. Ela parecia
enfeitiçada. Carregou a tocha até a porta. Mas, antes de
sair, abriu a boca e engoliu o fogo, como se precisasse
guardá-lo.
2

O pai chegou pouco depois do fim do incêndio,


acompanhado de dois vizinhos que foram buscá-lo na
roça. O fogo tinha sido contido pelos baldes de água
trazidos do Paraguaçu. Um pouco tarde porque o telhado
já estava completamente destruído. Comecei a chorar
sentindo culpa por minha inconsequência. Chorei pela
punição caso meu pai e Luzia descobrissem meu feito.
Fui consolado por duas mulheres que se aproximaram —
“Não se assuste, já apagaram o incêndio”; “Logo logo
vocês terão um telhado novo para cobrir a casa.” As
mesmas mulheres que me consolavam, eu sabia,
alimentavam o rancor contra Luzia. Chorei por medo de
descobrirem a minha vingança, que tinha como propósito
ferir o juízo dela. Luzia continuava tranquila, revelando
um temperamento diferente do habitual. O pensamento
andava distante. Olhava para casa como se não
houvesse mais nada a ser feito.
Ainda recordo o rosto do pai quando viu o telhado
avariado e de como percorreu a roda de mulheres no
terreiro para encontrar Luzia. A boca aberta e o sinal da
cruz antes de entrar para ver o que havia restado. Para
nossa sorte, os danos se concentraram mesmo no
telhado. E, se não recebi outra surra, meu castigo foi
sonhar vezes e vezes com a coluna de fumaça
alcançando as nuvens e percorrendo sem rumo o céu da
Tapera.
Naquele mesmo dia me levaram para a casa da
vizinha, dona Nadir, moradora da beira da estrada. Lá me
instalaram numa esteira na sala. Meu pai permaneceu na
casa sem teto para proteger os objetos que não
podíamos retirar. Não houve convite para que Luzia
repousasse em casa de algum conhecido. Para aumentar
minha culpa, as pessoas não lhe deram abrigo, com
medo de que a própria casa também se incendiasse.
Durante o dia eu retornava para casa para encarar o
vazio e o que eu havia feito. Seriam dias de silêncio se os
poucos vizinhos, que tinham estima por meu pai, não
trabalhassem serrando a madeira retirada da mata e
armando as ripas sobre as paredes da casa. Luzia
continuava quieta. Entrava e saía de casa como se nada
tivesse acontecido. Cozinhava para os homens da
construção, cuidava da roupa do mosteiro, aguava as
plantas e a horta, que cresciam indiferentes às nossas
virtudes e aos nossos pecados.
A nossa casa sem teto não era mais uma casa: até que
lhe restituíssem o telhado, era apenas uma carcaça. Eu a
tinha ferido de morte. Reagi assim observando os poucos
homens solidários a meu pai. Primeiro, se lançaram na
mata para retirar a madeira de que precisavam para as
ripas. Depois, a cortaram, carregaram e serraram
tramando sobre o vão do teto. Eu e Luzia revirávamos as
telhas caídas na esperança de encontrar algumas peças
inteiras para recompor o telhado, mas poucas poderiam
ser reaproveitadas e mesmo as melhores estavam
chamuscadas. Foram dona Mira e as filhas, consternadas
com a nossa situação, que se uniram aos homens para
ajudar a cobrir a casa, fabricando as telhas com o barro
retirado do leito do rio. Moldavam nas fôrmas de
madeira, como os antigos costumavam fazer.
Depois os homens ergueram uma grande fogueira na
beira do Paraguaçu para cozer as telhas. Quando prontas
e frias, após um dia e uma noite, eu e os netos da velha
Mira as empilhamos no terreiro para a cobertura do teto.
Uma semana e estava tudo tinindo de novo, deixando a
casa com um cheiro de madeira cortada e barro cozido
até os nossos narizes não perceberem mais. Mas as
paredes continuaram enegrecidas.
O povo da Tapera que não se juntou ao mutirão,
espalhou boatos sobre Luzia na mesma velocidade com
que os vizinhos aprumavam o cume das telhas. Diziam
que os seus males tinham retornado. As mulheres
contavam os contos de porta em porta, nas esquinas e
na saída da igreja. Continuavam a passar por nossa casa,
mantendo certa distância. Observavam a construção,
conferindo o andamento da obra. Pareciam não querer
nada além de verificar a situação. Se benziam. Os boatos
se alastraram mais rápido do que o fogo do incêndio e a
correnteza do Paraguaçu. Por todo lado se escutava que
Luzia estava possuída. Que, antes de o teto queimar, ela
havia subido nas paredes e caminhado de cabeça para
baixo como uma aranha; que eu chorava dia e noite
porque os olhos brancos de Luzia pousavam sobre mim
lançando maldição; que as rezas proferidas por ela eram
feitiços para manter tudo sob seu controle. Havia quem
jurasse ver Luzia na prainha à noite, onde mantinha
conversa com a mulher da trouxa, a lavadeira das noites
de lua cheia a equilibrar o embrulho de roupas na cabeça
seguindo para a mata sem deixar rastro.
Não tardou para que, depois do nosso retorno a casa,
vez ou outra crianças atirassem pedras no telhado. Ou
então que acordássemos pela manhã com um encanto
no alguidar de barro na encruzilhada do caminho de
casa. Ou mesmo com uma beata aspergindo água benta
em nossa direção. Luzia fingia não ver, sabia que a
indisposição com aquela gente acabaria mal. Talvez
imaginasse que, tal como no passado, os boatos se
dissipariam e logo o incêndio seria esquecido.
A maior parte dos acontecimentos se deu quando meu
pai trabalhava a terra e se encontrava distante de casa.
O povo o respeitava, ainda que o chamassem, longe de
seus ouvidos, de “pai da feiticeira”. Mas o silêncio
resignado de Luzia se rompeu quando uma das pedras
lançadas pelas crianças atingiu minha testa. Daquele
pequeno ferimento fluiu sangue quente e abundante, o
suficiente para cobrir meu rosto. Ela, que a maior parte
do tempo parecia não se importar comigo, se tornou um
animal feroz, proferindo maldições com toda a sua
indignação. Os vizinhos espiavam das janelas de suas
casas. As novidades se alastrariam como rastilho de
pólvora nos dias seguintes. Dona Mira se aproximou para
tentar amainar a tensão e lavou meu rosto na beira do
rio.
Depois de despejar toda a raiva engasgada em seu
peito aos quatro ventos, de se movimentar de um lado a
outro catando as folhas secas que caíam da mangueira,
eu vi por um breve tempo sua corcunda desaparecer.
Luzia se voltou para mim quando eu estava com o rosto
limpo e ainda molhado, mas com o ferimento estancado.
Apertou a pele ao redor para ver se era grave. Pude
antever em seus olhos uma preocupação sincera, como
se estivesse vasculhando a integridade das poucas
coisas que lhe pareciam importantes.
3

Dom Tomás, o abade do mosteiro de Santo Antônio do


Paraguaçu, me observava com atenção enquanto Luzia,
mãos unidas como se estivesse rezando, aguardava com
ansiedade. Eu tinha completado sete anos e, segundo
minha irmã, era tempo de ingressar na escola para
aprender a ler e a escrever. Era seu desejo, já que nem
ela nem as pessoas mais velhas da Tapera puderam
aprender no devido tempo. A única escola havia sido
aberta pela igreja fazia mais de quinze anos, embora os
monges estivessem ali há mais tempo. Os mais velhos
comentavam que a escola atendia a um pedido da antiga
proprietária da fazenda. Ela concordara em doar as terras
do Paraguaçu para o mosteiro desde que a ordem
promovesse a educação das crianças que lá viviam.
O mosteiro era uma construção antiga erguida entre o
rio e as ruas da Tapera. Toda a vida da aldeia acontecia
em seu entorno: as referências, o tempo, a história, era
como se nada tivesse existido antes do mosteiro. Como
se as pessoas, a terra e tudo mais só tivessem ganhado
vida depois de sua edificação. Era assim que se contava,
até que, bem mais tarde, eu pudesse compreender a
sucessão de eventos que nos levou àquela situação. O
povo já não sabia quem tinha chegado antes, se os
donos das terras, se o mosteiro, se a nossa gente. Mas a
resposta não fazia muita diferença. O fato é que se
houve uma ordem de chegada, isso não importava. A
única certeza era que o mosteiro estava ali havia muito e
a vida continuava a mesma.
Dom Tomás era o senhor a projetar sua sombra em
tudo ao redor, não apenas no mosteiro e na escola, como
também nas ruas e nas vidas das famílias da Tapera.
Com os anos, minhas recordações foram se tornando
imprecisas. No dia em que Luzia foi lhe pedir que eu
ingressasse na escola, vi seu rosto, sua pele branca, ouvi
seu sotaque estrangeiro — como todas as vezes em que
estive nas missas de domingos e dias santos. A imagem
mais duradoura, a que permaneceu comigo, foi a de um
grande crucifixo prateado, luminoso, que ele ostentava à
altura do peito. Em minha memória sua face já teve
muitas formas e marcas, nariz, boca, e mesmo grandes
olhos azuis. Depois, à medida que eu crescia e o
encontrava com menos frequência, seus traços foram se
diluindo numa mancha até que a imagem se tornou um
vazio que nunca mais seria preenchido.
Se seu rosto foi se apagando como uma pintura
malconservada ou como as abstrações que nos escapam
dos sonhos, o mesmo não ocorreu com o restante de sua
figura. As vestes escuras, pesadas e com cheiro de
naftalina, que pareciam quentes, continuaram a surgir
vivas em meus pensamentos, assim como as gotas de
suor a sobressair num rosto para sempre enevoado. Seu
andar lento e os movimentos sincronizados ao seu
discurso também permaneceram plenos no que me
restou de recordação. Da mesma forma, os sermões ora
ponderados ora inflamados, os questionamentos ásperos
que nos dirigia sem esperar por respostas, pareciam na
mesma medida suaves e revoltos ao encontrarem nossos
ouvidos. Foi dessa maneira que quis saber se gostava da
ideia de estudar. Respondi que sim. Quis saber também
se ajudava a Luzia em casa e, sobretudo, se temia a
Deus. Luzia fez questão de recordar a dom Tomás do
meu batizado por suas mãos para que não crescesse
pagão. “São tantas crianças”, disse, justificando a falta
de memória. Sem demora, informou que minhas aulas
começariam logo após o início da Quaresma. Luzia
poderia retirar o uniforme uma semana antes do
Carnaval.
Guardei daquele encontro uma genuína felicidade.
Poderia sair só de casa, teria um ambiente diferente para
estar com outras crianças. Aprender a ler e a escrever
era o passo firme a caminho do mundo adulto, ainda que
muitos dos que vivessem ao meu redor não tivessem tido
a mesma oportunidade. Quem deixava a Tapera a
caminho da cidade dizia ser preciso saber ler para
encontrar as ruas, usar o transporte, se virar de todo
jeito. Sem contar as chances de conseguir um trabalho
melhor, que não exigisse tanto esforço físico, como o de
meu irmão Joaquim carregando fardos do cais para o
saveiro, e do saveiro para a cidade, e com o que mais
trabalhava quando já se encontrava distante da Tapera.
O ambiente do mosteiro também era familiar. Eu já
estava acostumado a acompanhar Luzia enquanto ela
recolhia as roupas dos cômodos para lavar. Eu a seguia
distraído com o movimento dos becos, das crianças
correndo e brincando, dos animais do céu e das matas
circundando as casas. Caminhava ora detido nos meus
pés, ora observando a miríade de animais a tomar as
mais diferentes direções. Olhava para o alto para
identificar se havia nuvens ou não, quais seus atributos,
se eram alvas ou encardidas feito as peças de roupa
carregadas por Luzia. Quando não estava caminhando no
mundo de minha imaginação, meus olhos a seguiam e se
detinham na corcova erguida de suas costas, uma
pequena casa de caracol carregada por Luzia para todo o
sempre. A corcova não estava alinhada à coluna, se
concentrava no lado esquerdo, abaixo da linha do ombro.
Eu sentia vergonha quando as crianças apontavam para
ela e riam, diminuía meus passos para estar cada vez
mais distante. Às vezes, meu constrangimento quase
desaparecia, dando lugar à raiva e à vontade de brigar
com os zombadores. Eu ameaçava atirar as pedras
recolhidas do chão, ao passo que os meninos corriam,
gritavam e riam da provocação. Muitas vezes senti pena
e rezei por sua vida antes de dormir. Elevei meus pedidos
a Deus, a quem ela dizia poder todas as coisas. Pedia
para aliviar seu fardo, a miséria de seu corpo. Pedia que
eu não precisasse andar distante. Que assim fosse para
não sentir mais vergonha de caminhar ao seu lado.
Mas a aparente fraqueza de Luzia escondia também
sua força. Nunca a vi se queixar dos males que a
afligiam. Tampouco respondia quando alguém
perguntava se havia nascido com aquele monte nas
costas; se tinham sido problemas no parto da mãe, se
esteve mal encaixada ou se era feitiço, praga ou mau-
olhado. Esse era um assunto proibido em casa, ninguém
falava e muito menos sabíamos como tudo havia
começado. Chamar Luzia de corcunda era motivo para
castigos, já que meu pai não permitia que se falasse mal
de nenhum dos filhos.
Durante nossa caminhada, quando Luzia percebia que
eu estava muito distante, largava as sacolas no chão e se
voltava em minha direção, equilibrando a trouxa na
cabeça, para perguntar por que eu demorava. Repetia
que eu era distraído, lerdo e por isso andava cheio de
machucados. Se tornava ríspida e me olhava por inteiro,
para depois voltar ao caminho de sempre, compensando
todo o peso que precisava carregar.
Mas era quando dormia ao seu lado que sentia seu
corpo pequeno demais, finito demais para caber na
correnteza de forças que afluíam em sua direção. Luzia
parecia se iluminar como se tivesse nascido outra vez
enquanto repousava do trabalho, longe das rezas e das
obrigações. Quando me sentia pronto para me levantar
da cama, mesmo atravessado por arrepios
acompanhando meus medos, me postava frente ao seu
rosto e o contemplava na escuridão, nas linhas de luz
que atravessavam as frestas da casa. Pensava sobre o
que poderia sonhar, as tormentas sobre as quais nunca
falava. Me perguntava se, apesar da rudeza de seus
gestos a me manter afastado de qualquer possibilidade
de afeto, ela seria capaz de gostar de mim.
4

“Como era a minha mãe?”, perguntei mais uma vez.


Tinha os pés dentro d’água e segurava um graveto que
fazia de caniço, sem nunca conseguir pegar um peixe. Já
deveria ter feito aquela pergunta muitas vezes, mas as
respostas de Luzia nunca me satisfaziam.
“Como no retrato que está na parede”, respondeu sem
me olhar, enquanto esfregava um lençol com os nós dos
dedos.
Ela se referia à pintura em cores fixada na parede e
que, de forma milagrosa, tinha sobrevivido ao incêndio.
Nela, nossa mãe surgia na única imagem que eu
conhecia — e era bem provável que não houvesse
nenhuma outra. No retrato, mãe Alzira se apresentava
com uma cor de terra e o cabelo ondulado na altura dos
ombros, diferente do de Luzia. Ainda era possível ver
uma pequena mostra de seu vestido azul. Com o
envelhecer da imagem, aos poucos desbotada,
ficávamos sempre em dúvida se era realmente azul, ou
se verde.
O rosto de minha mãe estava inerte, mas não era
somente na fotografia. Havia algo na posição de seus
olhos que a fazia parecer indiferente ao que estava à sua
volta. Não era possível distinguir traços de tristeza ou de
contentamento. No mesmo retrato, meu pai se
encontrava rígido e ostentava um bigode que nunca
voltou a usar. Vestia terno e gravata que, de acordo com
o que Zazau afirmava nas suas espaçadas visitas, nunca
teria envergado, ou seja, era fruto da criatividade e do
engenho do fotopintor. O rosto também era o mesmo do
único documento que meu pai tinha, atestando que não
havia posado para a fotografia. Meu pai e minha mãe
juntos, uma união que parecia ir muito além do habitar a
casa onde viveram. Diferentemente da mãe, meu pai
tinha a pele mais clara, ainda que curtida de sol. Zazau
garantia que nossa irmã Mariinha, que havia deixado a
casa anos antes de eu nascer, sem nunca mais retornar,
se parecia comigo. Meu irmão Raimundo, que nunca
conheci, nem mesmo por fotografia, também. O fato é
que em nossa casa essas pequenas diferenças
provocavam debates sobre “barriga limpa” e coisas que
eu não compreendia durante minha infância. Na Tapera,
as pessoas eram de muitas cores, e os que tinham
cabelo liso se diziam descendentes dos índios que ali
viveram muito tempo antes.
As histórias da família de meu pai eram mais
conhecidas do que as da família de minha mãe. Luzia
repetia que Mariinha havia saído à nossa bisavó Didita, a
avó de meu pai, “caçada a dente de cachorro”. Eu
escutava as histórias atrás das portas, porque os adultos
se recusavam a falar sobre determinados assuntos na
presença das crianças. De tanto escutar escondido as
conversas das irmãs, soube que a avó do meu pai era
uma velha índia de cabelo longo e grisalho. Soube
também que se sentava na beirada da mesma porta que
dava para o quintal e picava fumo. Que quase não falava,
mas sabia benzer criança e conhecia as ervas da mata.
Era a única pessoa da beira do Paraguaçu que dizia ter
visto o olho-de-fogo-rendado no topo de uma velha
árvore emitindo seu trinado. Uma dádiva, diziam, que só
quem se comunicava com o mundo dos mortos trazia
consigo. Foi a Luzia que vó Didita se afeiçoou. Logo
depois a família deixou a Tapera para trabalhar nas
fazendas da região. Desse curto tempo juntas, Luzia dizia
ter sido levada por Didita para cima e para baixo, se
embrenhando pelas matas, canaviais e águas do
Paraguaçu.
Mas quase nunca Luzia respondia às minhas
perguntas, cada vez mais frequentes conforme eu crescia
— e que aumentavam na proporção de minha
curiosidade. Meus irmãos eram bem mais velhos do que
eu e partiram da Tapera pouco a pouco, antes mesmo de
eu poder perguntar sobre minhas inquietações. Luzia
nunca estava disposta a responder, guardando sempre o
semblante cerrado. Meu pai, nos momentos de revolta,
dizia em alto e bom som que ela nunca se casaria porque
ostentava uma carranca no lugar do rosto. A amargura
parecia fazer dela uma mulher velha, como as que já
perderam o tino pela vida ou tiveram demasiado tempo
para descobrir que nada vale a pena e a vida pode ser
um imenso fardo. Mas havia os raros momentos em que
ela se desarmava por inteiro, punha um vestido florido
surrado de domingo e se esquecia de seu terço e missal.
Quando isso acontecia, era como se o tempo anunciasse
uma visita esperada: Luzia se postava junto à janela,
fechava os olhos de quando em quando. A cada aragem
suspirava, e o peito subia e descia com o vaivém das
águas sobre o mangue. Era tempo de abrir janela, de ver
a casa iluminada, a luz ofuscando minha visão. Ela
seguia até a cozinha para preparar cavacos. Fritava-os na
banha de porco, polvilhava com açúcar e canela. Sabia
da minha ansiedade e me permitia observar o preparo.
Eu rolava a garrafa de aguardente vazia sobre a massa, e
ela me dizia qual o ponto para que ficasse mais fina.
Cortava com suas mãos pequenas. Dias raros em que de
seu rosto despontava um sorriso, um botão de flor,
deixando de lado o desgosto sem fim. Esse sentimento
de paz e afeto me encorajava a perguntar mais uma vez:
“Você sabe como eu nasci?”
Eu sabia, mas gostava de ouvir Luzia contar outra vez,
e outra vez, para ter a certeza de que nenhum detalhe
havia me escapado. Só assim poderia saber mais sobre a
mãe que não conheci.
“Minha mãe”, ela começava a contar sem olhar para
mim, “sentiu dores numa noite de lua cheia”, e
continuava retirando os cavacos fritos do tacho quente.
“Ela já tinha muitos filhos. Estava variada das ideias e
achava que faltava mais uma lua. Sentiu dor e foi para o
rio à noite aquietar a barriga se banhando nas águas.
Mas você não esperou mais uma lua e nasceu.”
“E meu pai?”
“O pai não andava por aqui, trabalhava na cidade.”
De repente a memória de Luzia parecia se embotar
porque não dizia mais nada que eu não soubesse. A cada
vez que eu perguntava, respondia algo diferente. Certa
vez ela me disse que a mãe andou comigo no colo sem
cortar o umbigo e foi sozinha para casa. De outra vez
tinha sido ela, a própria Luzia, a sentir a falta da mãe no
meio da noite. Terminou por encontrá-la com a criança
nos braços.
“Mas eu nasci na beira do rio ou dentro d’água?”
Nesse instante seus olhos brilhavam. O rosto se
voltava para o mundo além da casa, buscando um sopro
de vida entre a mata e a aldeia, tentando encontrar a
recordação da história nos movimentos das árvores e dos
animais.
“Ela estava tão relaxada na água que o menino
escorregou feito um quiabo. Mas ela coou você na
camisola que vestia. Por isso, quando chegou em casa e
contou pra todo mundo, lembrou de uma história ouvida
nas missas” — se benzeu —, “a do menino que apareceu
num cesto atravessando o rio e foi pego pela filha do
faraó.”
Por um momento eu ansiava que Luzia afagasse minha
cabeça. Seus olhos estavam tomados de emoção. Ela se
desarmava, deixava de lado sua prontidão para as
batalhas contra o mundo. Eu me enredava naqueles
fiapos de recordações e avançava querendo saber mais.
“E por que a mãe morreu?”
De repente, era como se um pássaro tivesse sido
atingido por um estilingue no alto de seu voo. Luzia
baixava os olhos, o rosto se crispava, encolhia os ombros
e a corcunda parecia crescer ainda mais.
Interrompia a conversa.
“Chega, já fez pergunta demais.”
Eu sabia que não poderia prosseguir.
5

Março era um mês de aflição para as famílias da Tapera.


Era o tempo de pagar o foro à Igreja. A cobrança não era
feita pelos monges, mas por vizinhos com posição
privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às
casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a
caligrafia precária de quem era pouco escolarizado. Esse
recibo com o carimbo de pago se tornava um documento
valioso guardado pelas famílias. Tinha a importância de
uma escritura, ainda que não tivesse de fato valor algum.
Em nossa casa não era diferente. Era momento de
tensão, em especial para Luzia. Observávamos afastados
o debate acalorado entre nosso pai e o cobrador. O
cobrador — gente da própria Tapera com prestígio junto
do abade por cerrar fileiras na igreja, como Matias, Almir,
Mãozinha e Chico da Colmeia — vinha seguidas vezes à
nossa porta à procura de meu pai. Queria saber se ele
tinha deixado o pagamento do foro. Luzia gaguejava,
inventava uma história para omitir a resistência do velho
contra a cobrança. Mentia que ele havia esquecido,
mesmo diante da contestação do cobrador. “Todo ano é a
mesma coisa. Mundinho é sempre o último a pagar”,
ouvíamos, “um dos poucos que me faz voltar muitas
vezes.” A celeuma se arrastava durante vários dias. O
cobrador retornava para então encontrar meu pai
picando fumo ou amolando o facão para capinar a roça,
em geral, aos domingos, quando ele saía mais tarde para
trabalhar, permanecendo na tarefa de terra debaixo do
sol até o meio-dia. A tensão escalava ainda mais, porque
meu pai não se justificava como Luzia. O cobrador
começava a dizer a que tinha vindo e meu pai escutava
sem olhar para o vizinho. Eu e Luzia ficávamos em algum
canto da casa tentando ouvir o que diziam, os sons de
suas vozes competindo com a batida dos nossos
corações acelerados.
Primeiro, meu pai dizia que não tinha como pagar, o
que decerto era verdade. A produção era pequena e
supria a casa na maior parte das vezes para livrá-la da
fome. Depois as sobras eram embarcadas nos saveiros
para serem vendidas nas feiras da cidade. Sem disfarçar
a indignação, dizia que a Igreja era rica. Seus avós
haviam nascido naquelas terras antes de a Ordem
chegar — essa confusão entre tempo e história sempre
embaralhava a todos. Pelo que sabia, nunca precisaram
pagar imposto algum. “A velha dona dessas terras não
exigia”, retrucava. Em seguida, mandava o homem
passar um dia qualquer, sempre numa data distante,
enquanto amolava o facão mais gasto do que o do
cobrador, guardado na bainha em sua cintura. O homem
ia embora, mas não sem antes ameaçar de cercar a roça
para impedir o trabalho, caso o foro não fosse pago. Meu
pai respondia sem medo: “Tá pra nascer o homem que
vai me impedir de trabalhar na terra”.
A arrecadação se arrastava por semanas e a aflição
para o pagamento não era apenas da nossa família,
mesmo que o cobrador quisesse nos fazer acreditar no
contrário. Na Tapera, não se falava em outra coisa: dos
orgulhosos, que pagaram sacrificando muitas vezes o
bem-estar da família, aos desassistidos, que não tinham
como quitar de imediato a cobrança. Os pescadores
complementavam o sustento com suas pequenas
lavouras, mas como a atividade principal era a venda dos
pescados, conseguiam pagar no devido tempo. As casas
das viúvas e das poucas mulheres solteiras eram as que
mais atrasavam. Nos dias de cobrança, o povo da Tapera
se gabava, vaidoso, dos que podiam pagar sem maiores
sacrifícios, diferente dos que faziam das tripas coração.
Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de
descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado
que ganhava da própria igreja como lavadeira. Era a
quantia dada ao cobrador, para pôr fim à cobrança e
termos paz. O recibo, às vezes com algumas cédulas de
troco, era guardado dentro do colchão de palha, porque
ela sabia que se Mundinho visse o pagamento a casa
viria abaixo por ter contrariado sua autoridade.
Conhecíamos bem nosso pai e sabíamos que não
recusaria um conflito para exibir sua valentia. A certeza
de que o respeitavam pela rudeza era tanta que
considerava a não continuidade da cobrança uma vitória.
Acreditava dever-se ao respeito que lhe restava.
Lá pela quinta ou sexta visita do cobrador, já
adentrando abril, era certo que Luzia pagaria. Ainda
ouviria de qualquer um deles que a Igreja era muito
generosa em não cobrar juros. Ela pagava sem ressalvas,
como se nosso pai a tivesse incumbido da tarefa. Eu
queria ver onde guardava tudo, mas Luzia me enxotava
quando a seguia até o quarto: “Ande, menino, corre, o
que veio fazer atrás de mim?”. Apenas eu sabia que ela
pagava com o dinheiro do trabalho. Apenas eu via o
braço de Luzia estendido no ar depois de dar o dinheiro
até que o recibo estivesse na mão. Só eu sabia que ela
depositaria o recibo e o troco no colchão, se certificando
antes se estava sendo observada, temerosa do nosso
pai. À espreita, a observava alinhavar o tecido recobrindo
as palhas, compenetrada em sua tarefa de salvar a terra
de trabalho da família.
Luzia foi nossa valência durante os anos; sem
cobradores à porta, nosso pai se ocupava do trabalho e
sua inquietação parecia encontrar o sossego nunca
sentido por seus pais e avós, contrariando o que ele
mesmo contava. Não sei se era mentira deliberada ou se
meu pai acreditava piamente na farsa de uma paz nas
terras da Tapera. O fato era que ele prosseguia com sua
vida, caminhava de cabeça erguida, a enxada no ombro
e o facão na cintura, como se não tivesse qualquer
dívida. Trabalhava o pedacinho de chão escolhido a cada
chuva, sempre próximo à última fração que, por fim,
entrava em pousio. Trabalhava com esmero e o corpo
agitado deixava a roupa molhada de suor, da mesma
maneira que o orvalho brotava na terra vermelha dos
canaviais do passado e do presente, úmida o bastante
para fazer nascer qualquer semente que o chão
encontrasse.
Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando
dívidas ano após ano, algumas famílias iam sucumbindo
ao destino de serem excluídas do convívio de sua gente.
Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante do
orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma
vergonha que tornava a convivência cada vez mais difícil.
Por fim, quando não morriam de velhice ou de doença,
deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela
estrada, nos velhos ônibus, como um dia aconteceria
comigo.
6

Estudei na escola do mosteiro por quase oito anos. O


anexo, onde as salas funcionavam, era um galpão de
alvenaria simples, destoando da construção antiga da
igreja, embora estivesse num terreno contíguo. As
paredes eram caiadas de branco com uma tinta ordinária
todos os anos antes do início do período escolar.
Contrastavam com as paredes do edifício principal,
cinzentas, envelhecidas, que pareciam ter sido reparadas
em outra época. Quando chegávamos para as missas,
entrávamos pelas portas laterais. Ainda no caminho, pela
rua principal, era possível avistar a única torre. Dela
ecoava o tilintar do sino preenchendo de sons a vida da
Tapera, anunciando as cerimônias, as missas, os dias
santos e as mortes. O telhado era antigo, formado por
telhas nobres, diferentes das que recobriam as nossas
casas e que mal se encaixavam. No alto, crescia uma
vegetação daninha que se não revelava abandono,
poderia ser a materialização da longa passagem dos
anos. Expressava também a luta entre a natureza e a
construção dos homens.
Nos momentos de brincadeiras, quando os monges
seguiam seus rituais de oração e contemplação, nós,
crianças, chegávamos ao pátio da frente, onde ficava o
cruzeiro, em silêncio para não sermos notados. A igreja
havia sido erguida com a porta principal voltada para o
Paraguaçu. Ao lado, como parte do conjunto, havia um
edifício sem adorno, antigo, uma ruína chamada de salão
do mar. Não estava instalado na parte mais elevada da
margem do rio, como as construções principais, mas no
nível da linha de enchente. Nas marés-cheias a água
recobria sua velha estrutura, exposta como ossos de uma
criatura morta. Já não dispunha de telhado, e a água
entrava pelas aberturas circulares no interior. Talvez por
isso permanecesse ainda de pé, resistindo à permanente
oscilação das águas.
Os pescadores e os vizinhos, que viviam do transporte
no rio, tinham a melhor vista da igreja de Santo Antônio
do Paraguaçu de cima de seus saveiros, suas canoas e
jangadas atravessando as águas. As crianças, livres, sem
os limites dos monges ou da família, se lançavam no rio
para poder chegar ao jardim cultivado em níveis, como
se fosse uma escada de acesso à igreja. No último
patamar ficava o cruzeiro. Irmão Timóteo, professor de
Religião, contava que o edifício havia sido construído
com areia, cal, tijolos de barro cozido e óleo de baleia,
caçada nas enseadas da baía. Era nesse lugar que
brincávamos e dali também observávamos a navegação,
até que, esquecidos de onde estávamos, éramos
surpreendidos por um ou outro monge. Ele então nos
pedia, tranquilo e assertivo, que fôssemos brincar fora
dos limites do mosteiro: “A casa de Deus não é lugar para
brincadeira”. Passadas semanas, enveredávamos pelas
mesmas ruas da Tapera e de maneira inevitável
voltávamos ao jardim até sermos retirados de novo sob
ameaça de reclamações às nossas famílias.
Um dia, enquanto acompanhava Luzia recolhendo as
peças de roupa no mosteiro, um dos monges me
reconheceu e contou à minha irmã sobre as brincadeiras
no jardim. Contou que pisoteávamos os canteiros, que
tínhamos sido advertidos a não maltratar a casa de Deus,
mas que sempre voltávamos; que acertávamos
passarinhos com o estilingue e danificávamos o cruzeiro
ao treparmos ali com os pés sujos. Vi o rosto de Luzia se
aquecer como um braseiro. Ela pediu muitas desculpas
antes de entrar para a missa me puxando pelo braço.
Flexionou os joelhos diante do altar, fez o sinal da cruz.
Falou para que apenas eu pudesse escutar: “Quando
chegar em casa você me paga”. Naquela hora, só me
restava torcer para que o sermão fosse inspirador a
ponto de aliviar o peito de Luzia da amargura e da
vontade de me surrar pelo pecado de profanar o jardim
da igreja.
Foi assim que a missa transcorreu com o longo sermão
de dom Tomás sobre a Trindade. Luzia passou todo o
tempo atenta, sem desviar seus olhos do altar para
qualquer outra distração. Nos dias de domingo, ela
escolhia um lenço bem engomado e menos puído para
recobrir sua cabeça, com uma abertura por onde
escapava uma grossa trança. Uma vez por semana eu a
via desfazer o cabelo entrelaçado para lavá-lo no rio.
Depois, Luzia o penteava, domando-o, uma árvore
frondosa despontando plena.
Enquanto se dirigiu junto à romaria de mulheres para
a comunhão, eu fixei meus olhos nos seus passos
arrastados, na corcunda que diminuía à medida que se
afastava de mim. Luzia retornou, se ajoelhou para as
penitências enquanto só me restava mirar seu lenço, a
trança como uma corda caindo ao lado da corcova, que
de tanto eu olhar passou a pulsar como um coração. Ela
rezava por nossas aflições, e eu aproveitava para pedir
ao Bom Deus que acalmasse seu gênio. Que ela se
esquecesse de meu malfeito e se desse por satisfeita
com a reprimenda. Nessas horas, quando a observava de
joelhos, equilibrando o que batia vivo em suas costas, eu
me enchia de afeto por ela. Luzia era uma andarilha
solitária por todo canto da aldeia. Sabia que era
desprezada pelo povo da Tapera por um passado sobre o
qual ela não teve escolha.
Não foram poucas as vezes que me deitei na rede e
pedi a Deus enquanto todos dormiam: por Luzia, por meu
pai, pelos irmãos que deixaram a casa antes e depois, e
por mãe Alzira, que dormia em alguma nuvem pairando
sobre o céu da Tapera. Pedi, como se sonhasse com os
olhos abertos, por uma vida boa para Luzia e meu pai, de
preferência longe dali, onde as pessoas não eram
confiáveis e a infâmia era um grande peso recaindo
sobre nossa casa. Pedi por um lugar onde pudéssemos
começar uma vida nova, como se fosse possível viver
sem ser julgado pelo próprio corpo, pelos males e pelos
dons que carregamos conosco.
7

Eu não paguei a Luzia como ela havia prometido,


tampouco as estripulias nos jardins do mosteiro foram
esquecidas. Ao me observar esgueirando o corpo pela
porta, ela sentenciava que eu estava proibido de vadiar
pelas ruas, como se não tivesse casa e muito menos
família. Só poderia sair quando recomeçassem as aulas.
Logo as coisas mudaram. Luzia fez do meu ingresso na
escola algo importante para nossas vidas: ora tentava
me convencer de que lá aprenderia a ler e a escrever,
que só se daria por satisfeita quando eu soubesse mais
do que os irmãos que não foram alfabetizados; ora dizia
que eu não fazia mais do que a minha obrigação ao
frequentar as aulas. Falava com a voz firme para me
convencer a tratar do assunto com seriedade. Era um
ultimato para que eu fizesse valer a generosidade da
Igreja, como se aquela fosse a oportunidade mais
preciosa da minha vida.
Aquela decisão atendia, em parte, às expectativas que
eu começava a traçar. Enquanto eu crescia e ganhava
conhecimento com os mais velhos sobre a vida na
cidade, alimentei o desejo de ir embora e não mais
continuar a viver na Tapera. Não me via trabalhando a
terra como meu pai, levantando enxada e cavando cova
para semear de sol a sol. Nem mesmo me via no rio para
ganhar a vida, lançando rede e apanhando peixe,
retirando escamas e vísceras na beira do Paraguaçu.
Quando queria contrariar Luzia, dizia preferir carne a
peixe, tão insatisfeito eu estava com a vida na Tapera.
Ela olhava para mim com desprezo dizendo que eu só
queria ter o que não podia. Parava o que estivesse
fazendo, da lavação de roupa à limpeza do quintal, e
gritava como se quisesse que mais alguém ouvisse. “Se
quiser ser grã-fino, vá estudar para ir trabalhar na cidade
porque a Tapera é para gente ‘grã-grossa’.” Outras vezes
aparentava estar ofendida, e quando ria parecia ser de
desdém. Eu desviava o olhar e passava o resto da manhã
emburrado com a zombaria.
Eu não gostava da Tapera, e o rio era o caminho a
percorrer quando chegasse a minha hora de partir. Então,
para que isso acontecesse, e mesmo contrariado com os
mandos e desmandos de Luzia, só me restava estudar e
aguentar os rigores da escola. Suportar as aulas
monótonas, dispensáveis, que talvez nunca me
servissem para nada. Passava longas horas sentado,
assistindo os monges desfiarem seus conhecimentos
onde eu não conseguia antever nenhuma utilidade
prática para a minha vida. Eu contava o que aprendia a
Luzia que, indiferente estava, indiferente ficava, tamanha
a distância entre a minha história e a do povo. Às vezes,
ela se interessava quando eu contava algo sobre o
mosteiro, sobre quando fora construído, havia quantos
anos, e de como a Ordem ajudou a nossa aldeia. Ela me
dizia que eu continuasse prestando atenção porque ler e
escrever era melhor do que cavar chão ou viver
pescando na maré debaixo do sol forte.
Eu passei a gostar de ir às aulas por lá estarem as
crianças da Tapera, assim não me sentia tão só como em
casa. Meu pai dizia que eu tinha nascido “temporão”,
“fora de hora”, ninguém achava que mãe Alzira teria
mais filhos. Mariinha havia nascido dezesseis anos antes
de mim. Eu sentia a falta de irmãos com quem pudesse
brincar e, com minhas saídas à rua vigiadas por Luzia, só
podia ter contato com outras crianças na escola. Lá era
tudo controlado com o rigor dos monges, a quem as
crianças chamavam de padres porque era assim que os
chamavam em casa. Mas ainda existia o caminho de ida
e volta. Se no começo eu fazia o percurso sob o olhar de
Luzia, depois ela ganhou confiança para me deixar seguir
sozinho com outras crianças. Eu preferia ir só, não
gostava das provocações dirigidas a Luzia quando ela me
acompanhava: o fardo que ela carregava foi se tornando
meu também, e me perguntava se não teria sido esse o
motivo para meus irmãos deixarem a Tapera. Se a
imagem de Luzia estava associada à má sorte, a minha
também estaria. Se os meninos zombavam de sua
corcunda, eu era malhado por ser o irmão da corcunda.
Ao crescer fui percebendo que caminhar longe de Luzia
poderia me render menos problemas. Noutros momentos
eu era tomado por um sentimento de pena. Era
insuportável ouvir as ofensas lançadas sobre Luzia sem,
contudo, reagir. Mas, se não conseguia protegê-la da
agressividade, era levado a me afastar ainda mais. Se eu
não podia salvar a todos, talvez pudesse salvar a mim
mesmo.
Não fui apenas eu que me afastei com o passar do
tempo. Meu pai também parecia cada vez mais alheio a
tudo que se referia a mim e a Luzia. Trabalhava de sol a
sol, mas antes mesmo de sair entornava doses de
aguardente. Bebia cada vez mais cedo, justificando que
beber dava energia para trabalhar sob o sol forte. Nos
dias de mormaço, quando não ventava e a terra parecia
uma panela em banho-maria, beber espantava a leseira.
Tinha que ser pouco, nenhuma quantidade a mais do que
o necessário para não afetar a disposição. Mas a regra ia
mudando de acordo com a necessidade, e ia bebendo
sempre mais um pouco para ter o mesmo efeito de
antes.
Luzia passou a ficar inquieta com a bebedeira do pai.
Ele começava o dia desperto, mas depois ia ficando mais
lento e às vezes cochilava antes de sair. Ele acordava
antes da alvorada, e costumava sentar na soleira para
observar as canoas deslizando pelo rio. O ar se enchia
dos sons dos animais e das vozes dos homens arrastando
a malha de peixe. Meu pai me levava aos sábados para a
roça, mas a minha falta de interesse foi desestimulando
esses passeios. Eu brincava com as pedras, com os
insetos, lagartos, com o que encontrasse no meio do
mato. Só entregava a manaíba para ele plantar depois de
muita queixa e quase sempre de má vontade. Então,
impaciente, ele tomava os instrumentos e as sementes
de minhas mãos, o que lhe dava motivo para passar o
resto do dia proferindo sermões sobre a importância do
que fazia. Que eu não desfizesse daquele trabalho
porque foi dele que nossa família sobreviveu por
gerações. Enquanto eu crescia, meu pai passou a recusar
minha companhia e assim deixei de ter que segui-lo até
a lavoura.
Às vezes, quando ele se sentava à mesa, se queixava
da solidão do trabalho. Se lamentava pelos filhos que não
ficaram na Tapera. Lamentava por ninguém mais ter
interesse em trabalhar a terra. Luzia retrucava, dizia que
o trabalho na terra mal dava para suprir nossas
necessidades e que na Tapera não tinha terra para todos.
Assim, só restava que cada um corresse atrás de seu
ganha-pão longe da aldeia.
Meu pai olhava para Luzia de través e respondia que
não sabia de nada do que ela falava. Olhava para mim
com uma expressão de decepção e dizia para que ela
também pudesse ouvir: “Esse menino, sei não. Gosta de
florzinha, bichinho, porcaria, livro, não sei a quem
puxou”.
Luzia não levantava a cabeça e engolia a observação a
seco.
8

Não sei precisar ao certo quando me dei conta de que


estudar na escola da igreja foi minha bênção e também
minha maldição. Lá, aprendi a ler e escrever e criei gosto
por leituras e descobertas. De alguma forma a escola
preencheu o espaço das minhas ausências: a ausência
da mãe e dos irmãos com quem pudesse compartilhar a
convivência da infância. Na escola, aprendi também que
a violência não estava apenas nos castigos aplicados por
Luzia. A violência era traiçoeira e poderia vir travestida
de afeto. Poderia habitar os olhos do benfeitor sem que
percebêssemos. Quase sempre era justificada por boas
intenções, por compaixão e redenção. Às vezes poderia
ser uma promessa de sorte, adoração, deslumbramento,
ocultando as sementes da loucura e da danação.
Não demorou para que eu sentisse vontade de estar
no ambiente da escola. Se no início havia apreensão e
receio pelo rigor dos monges, depois percebi que havia
crianças com quem eu poderia compartilhar o dia. Havia
livros e cadernos para manusear, coisas a aprender e
assuntos que me fariam sonhar. Meu primeiro professor
foi irmão Miguel. Foi ele que me alfabetizou com uma
velha cartilha. Eu observava com atenção sua caligrafia
reproduzindo o alfabeto no quadro, enquanto tentava
repetir nos cadernos pautados letras e palavras
desenhadas em meu horizonte. Sempre que recordo os
anos de estudante, quando aprendi a ler, a decifrar as
linhas das letras, sinto esse momento como uma
experiência de grande intensidade. Era como nascer
outra vez, mas desembarcar num mundo de
compreensões e sentimentos que me acompanharia
sempre. Depois, reproduzir tudo, experimentando
nomear as coisas, as pessoas, as emoções, os mais
vagos pensamentos: o que estava fora e o que estava
dentro.
Muitas das crianças se mostravam arredias, com
dificuldade para pôr em prática o aprendizado. Para mim
tudo inspirava a magia, e o medo de errar quase não
existia. Captava com rapidez os significados, a origem,
os nomes. Lia com a avidez que recordava uma fome
antiga e persistente. Só não escrevia mais por faltarem
papéis e cadernos. Escrevia na areia à beira do
Paraguaçu, depois mostrava a Luzia e perguntava se ela
sabia o que era. A sós comigo ela não parecia se
envergonhar de não saber ler. Estava conformada e
contente de que pelo menos eu soubesse. Ao encontrá-la
na igreja, irmão Miguel contava com entusiasmo a minha
evolução na escola, que, quando eu dava por cumprida
uma tarefa, desejava outra sem cansaço aparente, o que
parecia raro, já que muitos se queixavam.
Em nossa casa não havia livros ou jornais. Quando
aparecia algo embrulhado em papel de jornal, eu lia,
ainda que não entendesse o significado de todas as
palavras ou o sentido dos fragmentos truncados.
Guardava só para ter o que ler depois. O que eu não
sabia, arriscava perguntar a Luzia. No começo, ela
parecia irritada com minha insistência. Repetia que era
ladainha, lenga-lenga: “Onde já se viu tanta pergunta?”.
Depois foi inevitável não despertar sua atenção para as
minhas descobertas. Ela me pedia para ler sua certidão
de nascimento envelhecida, com nódoas de umidade.
Assim como eu lia, ela repetia o nome dos pais, dos avós,
corrigindo uma ou outra pronúncia. Sempre comedida,
mas sem disfarçar sua admiração pelo meu aprendizado.
Se eu errava uma palavra, Luzia não deixava passar.
Ainda que não soubesse ler, tinha boa memória,
conhecia as palavras de ouvido. Pedia que eu repetisse,
repetisse outra vez, até ter certeza de que havia
aprendido.
Em seguida, fazia questão de estimular que eu
reiterasse tudo ao pai. Ele olhava de través sem o
mesmo interesse de Luzia, continuava meio ausente
enquanto amolava o facão. Depois de muito escutar — e
um tanto entediado — dizia: “Bem, vai ser doutor”. Com
o passar dos anos me importava que o conhecimento
adquirido pudesse me dirigir a um caminho diferente do
percorrido por meus irmãos. Mas, no começo, o que
importava mesmo era a liberdade de ler os nomes dos
saveiros — Dadivoso, Coqueiral, Sombra da Lua, Da Vida;
de decifrar os avisos da escola; de ler O Domingo das
missas sentado no banco da igreja, enquanto Luzia se
curvava em penitência. Ainda que não compreendesse o
que ali estava me entretinha nas expressões “Cordeiro
de Deus”, “Espírito Santo”, “piedade de nós”. Explorar as
palavras e seus significados era penetrar na alma das
coisas. Era como ser Deus, vigiando os mais íntimos
pensamentos. Me despedia daquele folheto desejando
levá-lo comigo. Ao perceber minha intenção, Luzia o
retirava de minha mão e o devolvia ao receptáculo.
E depois, à medida que avançava na compreensão,
passei a almejar a biblioteca do mosteiro, onde estavam
reunidos todos os livros. Não me recordava de Luzia ter
entrado num desses cômodos enquanto eu a
acompanhava em suas visitas para a coleta das roupas.
Talvez até tivesse visto a biblioteca, porém sem saber do
que se tratava, havia considerado ser tudo parte da
mobília escura que compunha o conjunto. Restava
imaginar como seria o lugar que, de tão evocado por
irmão Miguel, se tornou quase mítico para mim. Era um
templo dentro de outro templo, onde as palavras
estavam registradas para a eternidade — era assim que
eu fantasiava. Os livros eram como dúzias e dúzias de
ovos de um galinheiro povoado ou a fartura de vagens
num pé de feijão. Os concebia na minha imaginação,
empilhados no solo, formando grandes colunas; ou
guardados em urnas diferentes a sete chaves, como
relíquias imemoriais. Minha compreensão não os
considerava enfileirados em prateleiras, organizados por
sobrenome. Não os imaginava velhos e empoeirados,
com páginas amareladas, roídos por traças. Para dizer a
verdade não imaginava serem os livros escritos. Pensava
que surgiam como nós, das vidas de outras pessoas,
vivos, sem grandes explicações.
Quanto mais eu aprendia, mais eu parecia me
distanciar da vida na Tapera. Cheguei a considerar ser
meu destino entrar na Ordem religiosa quando adulto.
Aos meus olhos ser monge era melhor do que ser
pescador ou trabalhador da roça, de sol a sol. Mas eu
nunca tive coragem de externar minhas intenções a
Luzia, e ela nunca soube do meu interesse. Eu observava
o conhecimento dos padres em contraposição à rudeza
dos homens da aldeia, como meu pai, limitados a repetir
o que conheciam de seu cotidiano. Se não era lavrador,
era pescador, e os de alguma sorte eram pequenos
comerciantes e cobradores do foro. Não queria o mesmo
destino. Passei a me considerar melhor e mais
importante — sem ter a exata dimensão do significado
de tudo — do que as pessoas à minha volta. Eu detinha o
conhecimento que muitos não tinham. A ironia de meu
pai, “Vai ser doutor”, havia sido compreendida por mim
como uma previsão.
Mal sabia: junto à aura de virtude que acompanhava
minha aprendizagem viria a condenação por querer um
caminho diverso do esperado de pessoas como eu. Meu
interesse despertou a cobiça por algo de que, por ironia,
eu sequer sabia o nome. Por não conhecer, fui tomado
por uma aflição involuntária, materializada em pesadelos
vividos numa cama molhada de urina, para fustigar ainda
mais a cólera de Luzia. Sem compreender por que de
uma hora para outra comecei a urinar na cama ou na
rede, ela começou a acreditar que era tudo uma
armadilha, aventou se tratar de um jogo de malcriação
para lhe punir; e mais: acreditou com convicção que era
minha vontade lhe impor o castigo, o que a deixou mais
revoltada, comigo e consigo mesma, por talvez se
considerar merecedora.
Toda vez que intentei chegar ao íntimo do que me
ocorria, me restavam lembranças difusas: portas
fechadas, sombras, calor e frio sentidos quase ao mesmo
tempo, água corrente, a percepção de que estava
enxovalhado em meio à imundice. Sensações
percorrendo o corpo dividido de uma criança. O arrepio
constante derivado de sentimentos sem nome, tão
distintos como a vergonha e o prazer, me acompanhou
por muito tempo sem que eu tivesse controle, tampouco
pudesse saber de onde vinha e por que vinha.
Mas, assim como aprendi com os livros, as lembranças
também formam um calhamaço: viro uma página, outra
se sucede, e o que não fazia sentido a princípio desponta
como uma revelação.
Na teia do esquecimento, a memória se faz de doses
iguais de verdade e de imaginação.
9

Ainda me recordo com assombro quando tudo começou.


Me atraquei como um cão vadio da aldeia com um colega
da escola. Zombar de Luzia a chamando de “bruxa
corcunda” foi a gota d’água e eu cuspi em seu rosto
como se lançasse um veneno. Em seguida, estávamos no
chão; ele ofendido pela cusparada; eu por querer vingar
a dignidade de Luzia. Antes que os monges viessem nos
separar, segurei sua cabeça e a lancei contra o piso.
O menino era Eliomar, conhecido por todos como Boca
de Peixe. Era filho de um pescador. Uma boca grande
para o tamanho de uma criança, somada ao falatório de
uma matraca, lhe deu a alcunha. Seu dom para a
conversa era como uma desgraça para os ouvintes.
Quando abria a boca era um peixe em busca de uma
nova presa, e de tão faminto terminava mordendo a isca.
Para mexer comigo ele falou de Luzia, como outros
meninos faziam. E, de todos, ele era o mais detestável, e
só por isso eu mantinha distância. Semanas antes, Boca
de Peixe me chamou de “irmão da feiticeira”. Lancei um
punhado de terra contra seus olhos. Ele devolveu a terra
com mais valentia e perdigotos. Como se recuperava de
uma papeira, eu terminei por adoecer. Fui cuidado por
Luzia, que, no final, pôs a culpa da doença em mim, por
não ter me mantido distante o suficiente. Não tive
coragem de dizer que a defendia da língua de Boca de
Peixe. Passei dias de febre, na cama, proibido por Luzia
de fazer qualquer esforço, com risco de, caso
desobedecesse, a doença descer para minha “vergonha”
— era como ela dizia — e me deixar estéril. Meu pescoço
e meu peito ficaram moles feito fígado de galinha, e por
isso levei uns bons dias para retornar às aulas.
Depois ele me ofendeu de novo ao atacar o nome de
Luzia. Por mais que fosse aconselhado por ela a ignorar,
“Deixe, que Deus resolve”, eu queria revidar o insulto.
Rolamos no chão, com um círculo de meninos inflamando
ainda mais a luta, como homens acompanhando uma
rinha de galos. Até que apareceu um dos monges, e ele
tinha o rosto transtornado. Nos levantou e arrastou até a
sala de dom Tomás, a temível sala do abade, pátio de
nossas assombrações. A referência ao recinto era
acompanhada de um sentimento de pavor dos alunos,
como se ali funcionasse o Tribunal do Juízo Final.
Separados pela força do monge, percebi minha roupa
suja, enlameada, enquanto ele nos segurava pela gola da
camisa. Levado junto, Boca de Peixe segurava o choro
para não entregar sua derrota na frente de todos.
De imediato, achei que nosso castigo seria a
tradicional palmatória. Mas, embora nos referíssemos ao
instrumento em nossas conversas, sabíamos que esse
tipo de punição não era aplicado com frequência. As
brigas não eram comuns porque pairavam sobre nós os
mais diversos medos incutidos pelos sermões do abade.
Devíamos respeitar a casa de Deus, do contrário
habitaríamos o inferno. E o mau comportamento seria
relatado à família. Os castigos físicos eram a ordem nas
casas, e deles não escaparíamos. Assim os monges
mantinham relativo controle sobre as crianças e, por sua
vez, sobre a aldeia.
Na sala ocupada por mobília velha e escura, uma faixa
estreita de luz atravessava a cortina quase cerrada,
conferindo certa gravidade ao ambiente. O monge
continuava a nos segurar pela gola e fez uma reverência
a dom Tomás. Narrou o que viu da confusão e
retransmitiu os relatos das outras crianças, colhidos às
pressas, sem que pudéssemos contar a nossa própria
versão. Boca de Peixe tentou escapar interrompendo e
chamando a atenção para sua cabeça, dizendo que eu a
havia batido várias vezes contra o chão. Meu orgulho não
me permitiu ficar calado e por isso considerava certa a
surra que levaria de Luzia. Dom Tomás permaneceu
sentado, nos observando. Parecia começar a nos
repreender com as expressões do rosto — um borrão em
minha memória —, mas sem sustar o relato do monge.
Quando deu a narrativa por completa, o dispensou. Ficou
com os dois meninos de pé, frente à sua mesa. Seu olhar
era severo e sua voz se modulava calma, menos
inflamada do que os sermões da missa de domingo.
Foi com esse tom de voz, mais suave do que poderia
ser a voz de Deus, quando queria ser bom, que dom
Tomás se pôs a advertir, dizendo sem rompantes que se
continuássemos a agir daquela maneira
envergonharíamos ao próprio Deus. Recordou que Jesus
pregou o amor ao próximo, e na casa de Deus e além
dela deveríamos seguir à risca seus ensinamentos sob a
ameaça de cedermos às tentações do Diabo. “Vocês não
querem ceder ao Inimigo, sim?”, perguntou enquanto se
levantava para passar a nos circundar no centro da sala.
Com as mãos para trás do corpo, um rosto sem formas,
um rosto que desde esse dia imaginei envolvido em
sombras, começou a dizer que era melhor
benquerermos, vivermos como irmãos, cuidarmos uns
dos outros como Deus cuida de cada um. Dava voltas
com um andar compassado e, por fim, depois do breve
discurso, quis nos ouvir.
Boca de Peixe se pôs a falar, afoito, contando que eu
havia agredido primeiro e por fim tinha levado a melhor
porque ele teve a cabeça atirada contra o chão. Contou
sua versão: jamais ofendeu a mim ou à minha irmã,
omitindo que o deboche era diário. Queria se salvar — e
eu também — da reclamação que seria levada aos
nossos pais. Queria evitar os castigos dos monges e da
família, afinal a famosa palmatória poderia estar nas
mãos de dom Tomás. Boca de Peixe falava com
inquietação, apavorado, não queria dar espaço para
contestações de minha parte. Eu o escutava rangendo os
dentes, olhos fixos no assoalho, tentando acompanhar os
passos do abade para decifrar qual seria o veredito de
seu julgamento. Dom Tomás perguntou se eu tinha algo a
dizer e contei que Boca de Peixe havia chamado minha
irmã de “bruxa corcunda”. “Sua irmã, a nossa
lavadeira?”, disse para enfatizar seu conhecimento sobre
mim, e eu assenti com a cabeça. “E você a defende
agindo como um animal?”, permaneci em silêncio.
A voz do abade parecia mais baixa. Em contrapartida
sua respiração acelerava a ponto de preencher toda a
sala e eu temi que seu fôlego fosse o prenúncio de
castigos mais severos. Boca de Peixe também se calou,
provavelmente temendo o mesmo. Só nos restava
esperar a sentença — expulsão? Seríamos proibidos de
retornar à escola? —, enquanto escutávamos o ar
escapar por suas narinas com aflição.
Segurando primeiro meu ombro, depois o de Boca de
Peixe, ele nos colocou frente a frente. Falava de perdão e
que deveríamos viver como irmãos, cuidando um do
outro. Ouvi o trinco da porta se fechar e logo em seguida
ele retornou à sua cadeira atrás da mesa escura de onde
nos observava. Dom Tomás ordenou que nos
abraçássemos. O medo de Boca de Peixe era tão grande
que ele deu o primeiro passo enquanto eu continuava
parado. O abade ordenou de novo, sem justificar. A única
palavra que eu havia compreendido era “abracem”. Se
aquele gesto nos livraria de castigos maiores, pelo
menos no mosteiro, que fosse então a pena a se cumprir.
Eu sentia raiva por estar numa posição humilhante, mas
dei um passo hesitante em direção ao meu inimigo.
Foi um abraço rápido, sem verdade alguma, e no
segundo imediato estávamos já separados. Dom Tomás
não era tolo e exigiu o cumprimento da pena. “Deus está
nos vendo”, disse para reavivar o medo. “Vocês precisam
se abraçar e se perdoar. Não irão mais repetir o que
fizeram”, falou esperando que nos uníssemos de novo.
“Mas o abraço só vai terminar quando eu sentir verdade
dos dois”, e seus pés surgiam relaxados por baixo da
mesa.
Permanecemos aprisionados naquele castigo
travestido de gesto de perdão. Estávamos sujos e
sentíamos nossos odores desejando que aquela opressão
terminasse. Depois de um tempo, Boca de Peixe
perguntou se estava cumprido. “Não. O castigo é ficar
junto até a hora que for necessário. Até eu perceber que
vocês não estão enganando a Deus”, respondeu o abade.
O menino chorava baixo e talvez se eu não estivesse tão
perto nem percebesse que chorava. Naquele instante eu
só conseguia sentir mais raiva, mas pior seria descumprir
a ordem de dom Tomás. Escutava a respiração de Boca
de Peixe muito próxima, mas era a respiração do abade
que preenchia o ambiente. O mesmo som dos animais
cansados após uma fuga. Eu não conseguia olhar para
Boca de Peixe e meus olhos seguiam fechados a maior
parte do tempo. Quando os reabria, encontrava os
sapatos de dom Tomás saindo por baixo da mesa;
tornozelos brancos contrastando com o couro preto dos
sapatos. Seus pés, vez ou outra, se mexiam, como se
procurassem uma posição confortável. Tremiam com
breves espasmos. Se fixavam no chão, mas por fim
escorregaram livres para longe de seu corpo.
Bateram na porta e ele ordenou que nos
afastássemos. Tínhamos cumprido a punição. Deixamos
a sala sob os cuidados do mesmo monge que nos levou
até dom Tomás. Percebi então que algo havia se posto
entre mim e Boca de Peixe, como se a intimidade
daquele castigo fosse pior do que a surra que
poderíamos levar em nossas casas. A consequência foi
que não conseguíamos mais olhar um para o outro.
A raiva deu lugar à vergonha.
10

“Esmola para são Vicente, para quem mija na cama e


nem sente. Repete!”, Luzia ordenou entre uma boa dose
de revolta e outra de comoção.
Eu estava rijo diante da porta aberta, com o colchão
molhado equilibrado na cabeça. Não conseguia olhar
para Luzia, tomado pela vergonha e pela raiva. Era
evidente meu mal-estar quanto ao que me acontecia,
mas para ela eu urinava na cama de maneira intencional.
Luzia continuava atrás de mim à espera de minha saída.
Depois de muitos incidentes como aquele nas últimas
semanas, sua promessa de me castigar iria se cumprir.
Me envergonhar diante das crianças da aldeia seria seu
novo recurso para me fazer parar de urinar durante o
sono. Nem esfregar o lençol no meu rosto antes da
lavagem nem gritar foi capaz de reverter minha
incontinência. Então só restava o recurso da humilhação
pública. Eu deveria caminhar pela rua com o colchão
sujo, repetindo a prece para são Vicente.
Mas antes de pôr meu pé para fora da soleira, voltei
meus olhos para os de Luzia, atrevido, como ela mais
detestava. Eu disse que poderia sair, poderia até
apanhar e ser motivo de zombaria para as crianças da
Tapera. Mas ela, por tabela, ficaria envergonhada, afinal
a vizinhança já a tratava com desdém desmedido. Eu era
seu irmão e isso seria motivo de mais uma humilhação,
que certamente não precisávamos.
Luzia olhou para mim controlando a revolta. Seus
olhos estavam úmidos e vermelhos.
Talvez soubesse que eu não passaria pela porta
carregando o colchão; ela não permitiria. Seu instinto de
proteção falaria mais alto, e por isso puxou meu braço
com força para que eu deixasse a soleira. Seus olhos
crispavam de raiva. Depois de me soltar, bateu a porta.
O estrondo ecoou pelas ruas da aldeia. Ela ainda gritou
para que eu fosse estender a “porcaria do colchão” ao
sol, próximo à cerca da horta. “E vai lavar a roupa,
mijão!”, determinou, sem que eu tivesse chance de
replicar. Com um pedaço de sabão em barra, me dirigi ao
rio com o lençol puído enrolado nas mãos.
Depois da briga com Boca de Peixe, passei a ser
chamado com frequência à sala de dom Tomás. Passei a
me sentir vigiado e isso era fonte de grande desconforto.
Nas primeiras vezes acreditei ser ainda por consequência
da contenda no pátio. Cheirei a mancha amarela e senti
o odor de minha própria urina. Mergulhei o lençol na
água. Naquele canto do mundo só era possível escutar o
som da brisa e dos animais. Ouvi o chilrear dos pássaros
sem conseguir identificá-los. Vez ou outra um saveiro
deslizava pelas águas, distante de onde eu me
encontrava. Mergulhei outra vez o tecido e o atritei com
as mãos na expectativa de que o cheiro o deixasse. A
espuma branca se deslocou na direção da correnteza.
“O Diabo é sujo”, falou o abade depois de me observar
em silêncio por longo período. Na maior parte do tempo,
eu mantinha os olhos à frente, sobre a mesa, e
contemplava os objetos dispostos de forma ordenada:
bloco de notas, mata-borrão, caneta-tinteiro. Era curioso
observar aquelas peças que não faziam parte do nosso
material de uso. Todas as vezes que fui me sentar diante
do abade encontrei livros sobre a mesa, e tentava ler os
títulos. Havia também uma xícara branca com desenhos
azuis de onde vinha o cheiro de café frio. Sentado na
cadeira, meus pés balançavam inquietos. Quando
precisava responder às poucas perguntas que ele me
fazia, olhava para seu rosto. A mesma face sem traços
definidos, sem olhos e nariz, sem linhas e expressões. Só
a boca despontava delineada, brilhante, como os lábios
das artistas na televisão, pensava no instante em que eu
lavava a roupa. Seria uma fenda vermelha, vibrante, se
não conservasse uma baba branca, um veneno
peçonhento, nos cantos.
Aos dez anos meus braços eram finos feito gravetos e
eu não conseguia retirar toda a água entranhada no
lençol depois de torcê-lo. Estendi-o sobre as pedras,
esperaria por um tempo até que secasse por completo. O
sol se firmava no alto do céu, imensa brasa ardente, e eu
fechava os olhos me esquivando da luz. De novo era
inundado por imagens confusas. Um fio de luz entrava
pela janela da diretoria e iluminava os objetos dispostos
no ambiente. Dom Tomás segurava meu pescoço. Era um
toque cordial, como os que não recebia em casa. Quando
passei a ser chamado com frequência à sala de livros
antigos e cheiro de mofo, o medo deu lugar à espera. O
bem-estar se confundia com a inquietação e já não
desviava meu pescoço das mãos de dom Tomás, com
medo de que fosse apertá-lo. Ele caminhava pela sala,
passos medidos e sem movimentos bruscos. A roupa
escura ainda sufocava, mas já não me angustiava como
a respiração preenchendo o cômodo. A luz encontrava o
crucifixo que ele levava ao peito, resplandecente, uma
estrela entre as paredes.
O sol havia percorrido o céu e a superfície do rio
refletia as mesmas estrelas, como se o crucifixo
estivesse se estilhaçando sobre as águas. Tanto tempo
havia se passado que nem percebi que já era tarde. Luzia
estava ao meu lado. Perguntava o que eu tinha
aprontado, se não iria mais para casa, se não reparei que
tinha passado a hora do almoço. Eu a olhava sem
responder, me sentia estranho. Impaciente, ela
aproximou a mão, tocou minha testa — “Valha-me Deus”.
Pediu com insistência que eu ficasse de pé, mas minhas
pernas não obedeciam. Eu não estava desperto por
completo das horas exposto ao calor, sem sombra e sem
beber água. Me sentia prostrado, o sono era senhor de
meu corpo. Luzia pediu de novo que eu me levantasse,
dizia que eu estava crescido, já não dispunha de força
suficiente para me carregar. Não sei de onde busquei
energia para caminhar até em casa, mas quando percebi
estava instalado no mesmo colchão com catinga de urina
seca.
Passei dias com Luzia ao lado da cama, aplicando
compressas de água fria para amainar a febre. Meu pai
andava desassossegado de um lado a outro. Conseguiu
trazer uma enfermeira da cidade. Depois, remédio da
farmácia, que ficava distante. Repetia que se fosse no
tempo das rezadeiras, eu ficaria curado. Luzia não
largava o terço nem quando precisava ir à cozinha ou à
porta. Já não se importava que eu urinasse na cama; me
levantava pela manhã, trocava o lençol e minha roupa,
mudava o lado do colchão. Quando não havia mais jeito,
o retirava para expor no quintal e me instalava na rede.
Trazia as refeições, me dava de colher como se eu fosse
uma criancinha, se mostrando inquieta para que eu
comesse.
Naqueles dias, os pesadelos pareciam mais reais do
que a vida concreta à minha volta. A febre me levava ao
desvario, a territórios povoados por assombros, medos
ancestrais e palpitações inexplicáveis. Frio e calor se
alternavam com a mesma intensidade. Eu gemia quando
percebia estar sendo devorado por uma besta de vestido
escuro, a boca no lugar da barriga, os olhos saltados do
corpo. Era engolido, regurgitado e depois sentia
vergonha de mim mesmo por me encontrar naquele
estado. Talvez convencida de que a reza não surtia mais
efeito, Luzia passava ramos de guiné e arruda sobre o
meu corpo. Improvisou um braseiro, defumou a casa, se
atendo em especial à minha cabeça. Meus olhos
permaneciam a maior parte do tempo fechados e eu
sentia o cheiro forte impregnando o ar. Luzia mantinha a
janela fechada para que não apanhasse sereno. Pés
calçados para não pisar o chão frio do quarto. O mundo
de proibições era o mesmo, só não poderia ser contado
aos quatro cantos da aldeia para que não fôssemos
acusados pela religião de supersticiosos.
Passados os dias — não sabia precisar quantos —, a
febre se foi e a energia foi sendo restituída ao corpo, e
Luzia já não considerava necessário estar ao meu lado
todo o tempo. As vezes que precisou buscar a roupa para
lavagem, voltou tentando me animar dizendo que dom
Tomás havia perguntado por mim. “Ele está rezando”,
Luzia disse, “você vai melhorar.” Eu permanecia em
silêncio, fingia não dar importância. Mas gostava de
sentir que ela estava ao meu lado e de suas tentativas
quase infantis de me dar ânimo, esperando que reagisse
à doença.
Quando estava restabelecido do mal sem nome, a
ponto de Luzia ter suspendido as regalias às quais já
tinha me acostumado, ela passou a se mostrar cismada
com todo o tempo que passou ao meu lado. Se mostrava
confusa, buscava desvendar a causa da doença.
Refutava a tese de insolação, a tese da manga com leite
ou da banana que não comi debaixo do sol. Achava ter
sido feitiço, mas não poderia dizer em voz alta, sob o
risco de ser questionada. Depois se voltou a mim,
intrigada com o teor dos meus sonhos. Começou a contar
meus delírios, com detalhes que eu desconhecia.
Por fim se pôs a perguntar, insistente, sobre os relatos
desconexos que eu fiz enquanto ardia sob seus cuidados.
Quis saber quem era a mulher de vestido escuro a quem
eu pedia que fosse embora com insistência. Queria saber
por que eu chorava — “Você nunca chora” — e por que
eu repetia que a cruz me cegava.
11

Luzia decidiu que era momento de me confessar ao


abade. Eu precisava contar tudo o que se passou durante
a enfermidade e, por consequência, relatar meus
pesadelos. “O demônio está à espreita”, ela dizia. A cruz
de Cristo não poderia cegar um verdadeiro cristão, isso
era desdenhar de suas bênçãos. A seriedade com que
Luzia falava me deixou assustado, embora, desde que
me entendesse por gente, conhecesse sua devoção
exagerada e o apego às crenças da Igreja. Ela se pôs
numa cruzada, determinada a sufocar o mal à nossa
porta. Naquele período associei de maneira remota o
medo aos segredos do seu passado. Mas, anos depois, se
instaurou a certeza: Luzia temia que se repetisse comigo
o mal atribuído a ela nos quatro cantos da Tapera.
“Sua irmã me contou sobre os pesadelos”, dom Tomás
disse ao afagar minha cabeça. Em seguida deslocou a
mão para minha nuca e me guiou até o confessionário.
Luzia estava com os joelhos no estrado baixo do banco,
rogando a todos os santos para me livrarem do encosto.
“Bom saber que Deus te curou, Moisés. Não há nada
que o Senhor não possa nos dar”, dom Tomás disse em
tom baixo, enquanto se acomodava de maneira
confortável por trás da treliça do estande. Ele submergiu
na sombra e eu só conseguia entrever uma mancha
iluminada no lugar dos olhos. A imagem e o sussurro de
sua voz permaneceram íntegros em minhas lembranças.
A respiração de dom Tomás parecia normal, distante da
sofreguidão com que invadia a sala quando estávamos a
sós. O crucifixo pendia sobre o hábito na altura do peito e
emitia pequenos lampejos à medida que seu corpo, de
maneira sutil, se movimentava.
“Poderia repetir para mim o que contou à sua irmã?”
“Eu não lembro, senhor, Luzia disse que eu sonhava e
falava coisas…”
“Ela me contou que você falava de uma mulher com
vestido escuro tentando te machucar.”
O silêncio se interpôs entre nós. Respondi que não
sabia e, por mais esforço que fizesse, não conseguia
lembrar. Ele disse que não era preciso ter pressa, às
vezes os sonhos ficam lá no fundo da alma e então
retornam — límpidos, claros e inteligíveis, como num dia
ensolarado. Mas mesmo que fosse possível, não era meu
desejo persistir. Embora não me recordasse dos
pesadelos, tinha a nítida sensação de que deixaram uma
sombra sobre mim, um peso que nunca se dissipou e
que, passados anos, continuo a sentir.
Dom Tomás não estava satisfeito e continuava a
sussurrar de maneira quase hipnótica. Sua voz ecoava
feito o som de um instrumento musical, como na antiga
história do flautista que levou as crianças para a caverna.
Ao retornar sempre para o mesmo ponto do inquérito,
percebi aonde ele queria chegar: saber se meus delírios
se referiam às últimas passagens por sua sala. Queria
compreender o significado da sentença “a cruz me cega”
contada por Luzia. Tencionou ir além e se inteirar do que
eu sonhava não só durante a doença, mas nos últimos
meses, e por que eu urinava na cama. Por mais que ele
insistisse, eu me sentia incapaz de responder. Sabia dos
meus sonhos, mas as imagens retornavam em faíscas,
sem, contudo, se fixarem. Por fim, contei os pecados de
sempre: a má-educação contra Luzia e os desejos de
vingança que fermentavam em mim contra qualquer um
que a ofendesse.
“Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo.”
Recebi a penitência de rezar ave-marias e pai-nossos.
Me pus de joelhos ao lado de Luzia. Minhas preces eram
maquinais, alternando a memorização dos versos e o
número exato de orações para cumprir minha penitência.
Ela estava absorta em suas preces, cuidava de deixar
parte de suas angústias no altar dos santos.
Naqueles anos, meu pai passou a maior parte do
tempo fora de casa, entre a roça e o bar da aldeia. Saía
cedo todos os dias e algumas vezes retornava trôpego,
voz pastosa, ânimo alterado. Tinha abandonado seus
planos de me ensinar sobre nosso mundo, como fez com
todos os filhos homens. Nem por isso parecia conformado
de me ver lendo e escrevendo, falando de ciência, da
viagem do homem à Lua — me dizia que tudo isso era
bestagem, mentira da televisão para nos engambelar —
e dos cálculos que eu fazia de memória. Às vezes ele me
retirava da rede com o livro entre as mãos. Dizia que
homem o tempo todo dentro de casa passa a pensar e
agir como mulher. Que eu deveria jogar bola na rua com
outros meninos ou ir nadar no rio; eram atividades que
faziam parte da minha rotina há um ano, mas fui
deixando de lado à medida que crescia. Quando eu ouvia
suas queixas intermináveis, ficava amuado, e pensava
em maneiras de não o desagradar por completo. Às
vezes Luzia o enfrentava, dizia que era melhor ser
estudioso do que vadio ou pau-d’água. A escola me daria
uma vida diferente. Nessas horas rompia com sua
submissão de filha e contestava: “O destino dele vai ser
cair no mundo como todos os outros, mas pelo menos
saberemos que estará bem, que terá um bom trabalho
na cidade, diferente de nossos irmãos, de quem não
temos notícias”. Meu pai repetia a Luzia: “Você ainda
estraga esse menino com sua educação de florzinha”.
Insistia em que sentiria desgosto de ver um filho se
tornar padre e entrar para o mosteiro que dominava as
terras do povo da Tapera.
Luzia retrucava, mas conhecia seus limites. A última
palavra deveria ser a do pai, e por isso ela recolhia o livro
ou o caderno de minhas mãos e me empurrava porta
afora para que saísse um pouco. Eu contestava, reiterava
meu desejo de ficar em casa, e então ela dizia:
“Tudo tem limite. Vai ficar igual ao maluco da casa
verde.”
Ela se referia ao filho de dona Santa, que passava o
dia na janela com o olhar perdido, babando como uma
criança de colo. Em alguns momentos, confesso, a
possibilidade aventada por Luzia de que eu
enlouquecesse me perturbava. Eu deixava o livro de
lado, saía, caminhava até o rio, voltava a sonhar com o
dia em que deixaria a aldeia num saveiro com destino à
baía, mas não só. Remoía os sentimentos estranhos que
haviam me assaltado no último ano e as emoções
derivadas de minha convivência na escola do mosteiro.
Sentia uma profunda inquietação, mas também
satisfação por qualquer forma de afeto que não existia
em casa. Talvez por isso não me esquivasse por completo
de retornar à sala da diretoria, mesmo sem compreender
por exato o tratamento diferente que me era dispensado.
Sabendo do meu crescente interesse pelos livros, dom
Tomás os retirava da estante, soprava a poeira da parte
superior do miolo e dizia que eu tinha permissão para os
levar de empréstimo. Ele escolhia os que poderiam me
interessar, os que julgava apropriados à minha
compreensão, com o conhecimento próprio dos grandes
leitores. O universo peculiar das histórias passou a
preencher os vazios de minha vida na Tapera: singrei
mares em busca de uma baleia-branca, dei a volta ao
mundo, sofri com os descaminhos de Oliver. Continuei a
dispensar as saídas de casa para estar com os livros. Era
melhor que afundar de novo na vida da aldeia.
Os anos se passaram e eu continuei levando livros da
biblioteca do mosteiro para casa. A cabeça ia se
ajustando ao corpo que se modificava: os pelos cresciam,
o buço despontava, um traço do bigode que nunca
cultivei. A voz mudava e parecia estranha a mim mesmo,
me fazendo mergulhar ainda mais no silêncio. Passei a
auxiliar dom Tomás nas missas, ganhei túnica vermelha e
sobrepeliz, me tornei coroinha. Luzia se mostrava feliz
com meu destino e meu pai parou de me aborrecer,
como se tivesse desistido de mim. Mas foi justo nesse
tempo em que não conseguia mais viver sem leituras,
que dom Tomás se afastou. As idas à sua sala cessaram
de um dia para o outro. Nas missas eu já não era o
centro de suas atenções e, por vezes, era como se não
me conhecesse. Fui tomado por sentimentos divergentes:
por vezes imaginava que ele sequer sabia meu nome.
Não podendo mais enfrentar aquela indiferença,
resolvi me arriscar, me incutir coragem para ir à sala da
diretoria sem convite. Os meninos continuavam a ser
convidados, fosse por mau comportamento ou por outras
motivações. Sem os livros e a atenção anterior, eu me
sentia dependente daqueles gestos. Entrei ao encontrar
a porta entreaberta. A sala estava vazia, os objetos
antigos no mesmo lugar sobre a mesa. O que denunciava
a presença de dom Tomás era sua respiração agitada que
eu tão bem conhecia.
Abri a porta da sala anexa evitando ruídos, não queria
que me repreendesse por má-educação. Havia uma
criança sentada numa cornija que, num primeiro
momento, não cheguei a reconhecer. Dom Tomás estava
ajoelhado à sua frente, os olhos fechados, a cabeça
balançando, sua respiração rumorosa inundou então os
meus ouvidos. Estremeci e, se pudesse ter visto o meu
próprio rosto naquele momento, era provável que o
apreendesse se esvaindo por completo de sua cor de
terra.
12

Não retornei mais à escola do mosteiro. Nos primeiros


dias, vesti o uniforme e saí para vagar pela mata. Não
podia caminhar pela aldeia para não ser denunciado
como um evadido, mesmo sabendo que mais cedo ou
mais tarde isso iria acontecer. Me aproximava do
mangue, a cabeça povoada de pensamentos carentes de
sentido. Sentia um sono persistente e dormia em
qualquer lugar. Bastava uma sombra, caía adormecido e
era acordado apenas pelas picadas dos insetos. Quando
buscava pelo rosto de dom Tomás no turbilhão de
pensamentos que me absorvia, o encontrava enodoado.
Por outro lado, minhas emoções foram se definindo com
mais nitidez.
Na segunda semana eu fingi estar doente, menti sobre
dores de cabeça frequentes. Luzia continuava sem
desconfiar do meu estado, preparava chá de capim-
cidreira e evitava me tratar com o rigor e as exigências
de sempre. O fato de não andar com um livro nas mãos
aumentou sua crença no que eu dizia. No primeiro
domingo após minhas faltas, ela precisou avisar à escola
que eu havia adoecido, e me trouxe de volta votos de
melhora. No segundo domingo, ela parecia preocupada
com minha apatia e meus olhos quase sempre fechados.
Deixou de ir à missa para me fazer companhia e disse
que iríamos ao médico da cidade no dia seguinte. “Talvez
seja a vista, você não tem febre”, disse se aproximando
da cama. “Deve ter estragado os olhos de tanto ler.”
Depois de longo tempo na fila do posto de saúde, o
médico me examinou sem muito interesse. Avaliou meus
olhos, prescreveu exames. Indicou remédio para dor de
cabeça. Algumas vezes eu escondi o comprimido debaixo
da língua. De outras, engoli na esperança de que curasse
o rebuliço que sentia por dentro. Voltamos à cidade para
mais exames. Por fim, o resultado não acusou
necessidade de óculos, minha visão estava melhor do
que se supunha.
A partir desse momento, Luzia começou a suspeitar da
minha insistência em ficar em casa. Na terceira ida ao
mosteiro para recolher as roupas, foi cobrada por um dos
monges sobre minha ausência pedindo informações
sobre meu estado. Era provável que passassem a
considerar minha indisposição um fingimento, mera
artimanha para abandonar a escola — como muitos
faziam. Luzia deve ter resistido a princípio, afinal tinha
certeza do meu interesse pelas aulas. Era sempre
pontual, ávido por leitura, me destacava nas atividades e
cumpria com aplicação as tarefas que chegavam às
minhas mãos. Nos últimos oito anos não se tinha
conhecimento sobre algum desinteresse de minha parte.
Eu conversava em casa sobre os temas das aulas,
mesmo quando meu pai não via serventia nas minhas
intervenções e zombava do meu tom professoral, ria
dizendo que eu ficaria maluco, mas parecendo em paz
com o fato de que eu caminhava em direção ao meu
destino.
Depois daquele encontro Luzia começou a contestar
minha apatia. Chamou de preguiça e fez questão de
demonstrar sua aversão aos indolentes. “Nesta casa
podemos não ter tido instrução como você, mas somos
todos trabalhadores”, disse em pé ao lado da cama,
“portanto, trate de se arrumar e voltar para a escola.”
Continuei onde estava e minha agonia aumentou.
Quando não estava ruminando tudo o que tinha vivido,
pensava em como dobrar Luzia para aceitar a decisão
que eu havia tomado. Mas ela estava determinada a me
fazer voltar, e suas intervenções passaram a ficar mais
frequentes.
Um dia, ela partiu para as ameaças. Com os acessos
que a assolavam de quando em quando, apareceu de
manhã cedo na porta do quarto, depois da saída de meu
pai, munida com uma tira de cipó. Foi direta ao mandar
que me levantasse e vestisse a farda para ir à escola.
Virei a cabeça para o outro lado. Percebendo a minha
recusa, avançou e tentou me levantar puxando meu
braço: “Se veste! Anda, não tenho mais o que dizer aos
padres”. Teve início uma discussão difícil. Lembrei que
não era mais uma criança, que Luzia era minha irmã e
não poderia mandar mais em mim — “Minha mãe já
morreu”, repeti muitas vezes —, enquanto ela elevava a
voz dizendo que era mais velha e que tinha me criado.
Estava farto do mau humor de Luzia, de seus maus-
tratos, exigências, da falta de afeição. Joguei sobre ela
todas as dores que carregava, as ausências e os desejos
sufocados: a falta que me fazia ter uma mãe para cuidar
de mim como todas as mães cuidavam de seus filhos na
aldeia. “Pois a mãe tinha muitos filhos, tinha que
trabalhar, apoiar o pai de todo jeito. Não teria tempo de
te mimar como se fosse único”, disse ela com os olhos
arregalados. Me chamou de ingrato, me culpou pela vida
que levava. “Deus deveria ter levado a mim e não minha
mãe”, gritou tomada pelo rancor. Eu queria levá-la ao
limite, aproveitar todo o peso que recaía sobre mim para
dizer o que nunca tive coragem.
Naqueles anos Luzia já não repetia que minha mãe
tinha morrido por minha culpa. Talvez essa história não
fizesse mais sentido diante de tudo o que passamos. Os
dias de silêncio me fizeram remoer o tempo ao seu lado,
e a mágoa, no fim, cresceu sem controle. Ela deixou o
quarto e eu a segui, tentando dar nome ao que me
assolava, atribuindo meus males à vida que ela e meu
pai haviam me proporcionado. Na porta do quintal ela
empurrou uma enxada na minha direção — “Não quer
estudar, vai trabalhar na roça com o pai” — e eu
dominado pela raiva a joguei no chão.
“Você ainda está sob meus cuidados”, disse Luzia,
franzindo a testa. “Enquanto estiver nesta casa, as
regras são do pai, e na ausência dele são minhas. Quer
ser dono do próprio nariz? Estude e depois trabalhe,
tome seu rumo. Enquanto estiver sob este teto será
como eu quero.” Aquelas palavras enrijeceram ainda
mais os meus pesares. Pus para fora os sentimentos mais
vis: a vergonha que eu sentia por Luzia, pelo que diziam
dela e sobre seu corpo, de como ele era “estranho”,
“feio”, “uma aberração”. Queria vê-la experimentar o
sofrimento que me acometia, mas ela permaneceu
inabalável, não pareceu se condoer nem por um
segundo. Antes que eu terminasse me interrompeu,
“Faltou a você uma boa surra”, e lançou o cipó contra
meu corpo.
Eu fui mais rápido e o segurei com minha mão.
Travamos um cabo de guerra. Ao perceber que a nossa
batalha não nos tinha levado para lugar nenhum senão o
da raiva mútua, resolvi falar com franqueza porque não
voltaria à escola. Era provável que a revelação desse um
novo rumo ao nosso embate, Luzia haveria de
compreender meu desânimo.
“Mentira”, gritou mais alto. “Não minta com o nome
de Deus, mentiroso! Não é Deus, é você o desviado
inventando essas histórias cabulosas!”, continuou
transtornada.
Tinha sido derrotado. Luzia não acreditava em nada do
que eu dizia. Àquela altura eu percebi que não era mais o
mesmo, dava meus primeiros passos como homem e
deveria seguir meu próprio caminho.
13

Deixei a aldeia em direção à capital com o dinheiro que


Luzia guardava costurado no colchão, a roupa que
carregava no corpo e uma pequena sacola amparada por
meus pés durante a viagem. Quando cheguei ao destino
me dei conta de que tinha ido longe demais, que era
tudo grande e diferente demais e que não seria tão fácil
me arranjar na cidade, como eu havia imaginado. Tive
medo, mas não cogitei retornar. Estava envenenado pela
raiva e por isso segui em frente. Perguntei às pessoas
que encontrava, andando de um lado a outro, como
chegar ao endereço que trazia no bolso.
O destino era a morada de Joaquim. Eu não o via há
um bom tempo. Tinha encontrado o endereço anotado
num caderno pequeno e sem capa, de páginas soltas,
escrito numa de suas visitas, com o garrancho do pouco
que ele deveria ter aprendido na cidade. Era um livreto
que não pertencia nem a meu pai nem a Luzia. Pertencia
à casa. Consegui decifrar o que estava escrito. Guardei a
anotação dentro de um livro para o caso de seguir meu
plano de deixar a Tapera rumo à cidade. À medida que
crescia, considerei que o melhor momento para partir
seria quando concluísse o período escolar. Só assim,
imaginava, encontraria um emprego. Mas aos poucos fui
percebendo que as mudanças exigiam uma boa dose de
ação e esperar por esse momento não era mais possível.
Da mesma maneira, toda a reprovação dirigida a mim
por Luzia, as acusações de mentira e o mal-estar que se
estabeleceu entre nós, incluindo meu pai, foram
determinantes para eu deixar a casa.
Me informei sobre o ônibus, o percurso e o custo.
Escolhi partir o mais cedo possível, antes que me vissem
na estrada e levassem a notícia a meu pai, o que me
renderia uma boa surra. Deixei a trouxa escondida num
cesto de vime um dia antes de partir, e nela estava a
calça de meu pai e o dinheiro retirado do colchão de
Luzia.
Saí sem olhar para trás. Eu me movimentava com os
animais, e o orvalho frio encontrou os dedos de meus pés
na trilha onde o mato crescia sem limite. Estive alerta
durante a viagem, observando tudo, e meu coração
acelerava a cada recordação de que rumava para o
desconhecido. “Cair no mundo”, como haviam feito meus
irmãos, era uma combinação de sentimentos distintos:
liberdade e estranhamento, coragem e medo, sonho e
pessimismo. Embora tivesse deixado a infância havia
pouco e não pudesse ser considerado um adulto,
precisava decidir sobre minha vida sozinho.
Mesmo alerta a tudo à minha volta, viajar foi como
dormir em casa, na Tapera. Despertei entre carros,
ruídos, um formigueiro humano e ruas onde cabiam
muitas aldeias, como a nossa. Aquele turbilhão de
novidades me atraía na mesma medida em que
provocava a inquietação, a antecipação do medo, mas só
me restava tentar conhecer e compreender as
engrenagens do lugar onde agora estava. O vaivém de
gente, de carros, o comércio, os edifícios altos. Era como
se a grande aldeia fosse o destino de todas as aldeias, de
toda roça que produzia alimento, de toda madeira
retirada da mata para virar móveis e casas, de todas as
pessoas que desejavam sobreviver. O futuro do mundo
era ser asfalto, substituir os animais pelos carros, comer
o que se vendia já pronto sem precisar de fogo para
preparar. A cidade era uma imensa casa de cupim feita
de gente andando de um lado a outro, e só aquietava à
noite quando parecia dispor de certo sossego. Assim
guardei a imagem da minha chegada, dos primeiros anos
de vida na grande aldeia construída pela multidão que a
habitava.
Para me deslocar até o endereço de meu irmão,
consumi quase o mesmo tempo da viagem da Tapera à
capital. No bairro em que ele vivia era tudo diferente de
onde eu tinha desembarcado: um amontoado de casas
velhas e precárias juntas, o chão de barro e uma água
malcheirosa que corria pela beirada da rua. Procurei pelo
número da casa e percebi que não seria fácil encontrá-lo.
Não havia ali ordenamento algum que servisse para me
orientar. Estava perdido. Naquele quinhão, as casas eram
mais pobres que as da Tapera, mas o jeito de viver de
alguma maneira se parecia. Crianças brincavam na rua e
as mulheres conversavam nas portas. Me observavam
como se vigia um forasteiro, tentando descobrir onde o
intruso iria parar. Tive que deixar de lado minha timidez
e perguntar onde morava Joaquim. Apontaram para uma
encosta com degraus esculpidos no próprio barro. Ao pé
do morro as ruas se afunilavam, se tornavam becos,
caminhos onde mal passava uma pessoa.
Cheguei no alto da encosta. Subi mais alguns degraus
para alcançar a soleira. Na frente da casa o mato crescia
e qualquer descuido de quem passava poderia se
reverter num acidente, rolando barranco abaixo. Depois
de muito bater, a porta se abriu, uma pequena fresta
onde mal se via quem estava do outro lado. Uma mulher
se deixou entrever, e logo duas crianças se aproximaram
com curiosidade. Perguntei se era ali que morava
Joaquim. Antes de responder, ela me perguntou o que
queria, se era cobrança, se trazia má notícia. Disse que
Joaquim era meu irmão e ela se antecipou dizendo que
ele tinha irmãos, sim, mas que cada um morava num
canto. Parecia desconfiada e me falou que se qualquer
um fosse visitá-lo — o que nunca haviam feito —,
avisaria antes. Repeti que eu era o irmão mais novo e ela
encurtou a conversa, dizendo que em todo caso eu
deveria retornar à noite porque no momento ele se
encontrava no trabalho. Pediu licença e fechou a porta.
Só me restava caminhar pelo bairro até anoitecer.
Zanzei por ruas estreitas, íngremes, à beira de encostas
que davam em vales habitados como os topos. Me
equilibrava ao descer e subir escadas esculpidas em
níveis no próprio barranco. Era meu primeiro contato com
a cidade e de pronto já me encontrava fascinado e
espantado. A sina de qualquer um que sonhasse com a
sorte de estar na grande aldeia era viver amontoado.
A fome e a sede deram sinais de estarem em seus
limites. Ao fundo de uma viela havia um armazém de
secos e molhados, com ovos pendurados num cesto de
arame, pães, açúcar e biscoito mata-fome. Mediante
pagamento antecipado, um senhor mal-humorado me
serviu um copo de café preto, quase frio, e pão dormido
a um preço alto. Viver na aldeia me fez ignorar o custo
da vida na cidade, e o que eu sabia era de escutar meu
pai contar. Lá se ia mais um pouco do parco dinheiro
subtraído do colchão de Luzia. Se continuasse assim, em
breve estaria sem nada.
Era possível que o medo da mulher de Joaquim fizesse
sentido. Era possível que os perigos na cidade fossem
outros, diferentes dos da Tapera. Quando me senti
cansado de vagar sem destino, me sentei na soleira da
porta da casa de Joaquim e me pus a esperar, enquanto
admirava uma imensa torre metálica sem saber do que
se tratava.
Bem depois, quando a fome, o cansaço e a escuridão
haviam me cercado, senti alguém sacudir meu ombro.
Custou algum tempo para Joaquim me reconhecer, e sem
saber como agir, perguntou o que eu fazia ali.
14

Foram meses na casa de Joaquim, enquanto procurava


trabalho e um lugar onde pudesse viver. Ele morava com
a família num casebre de apenas um quarto, e só me
restava a sala para dormir. Minha presença não agradava
a Jandira, ela só se dirigia a mim quando necessário,
quase sempre para reclamar de algo: por eu ter
guardado pratos e talheres em local diferente do habitual
ou ter estendido a toalha de banho quando o céu estava
nublado e prometia chuva. Eu precisava estar de pé
antes que eles acordassem, para transitarem sem
obstáculos pela sala. Observava ela preparar a marmita
que Joaquim levaria ao trabalho, enrolando-a em tecido
limpo para conservar o calor. Eu saía cedo para procurar
emprego e quando voltava no meio da tarde, cansado de
perambular — as distâncias eram imensas —, precisava
esperar pela hora do retorno de Joaquim para poder fazer
alguma refeição. Mesmo assim esperava a mulher servir
a ele, a si própria e aos filhos, para então me contentar
com as sobras.
Mesmo com as atribulações, e a constatação de que a
vida na cidade poderia ser pior do que na aldeia, a
possibilidade de retornar à Tapera inexistia em meus
planos. À noite, Joaquim me sugeria onde procurar por
trabalho. Contava um pouco de sua história ao chegar na
capital para descarregar a produção da aldeia.
Conhecendo um e outro comerciante, aprendeu a se
entranhar na desordem das ruas, a reconhecer os
perigos e descobrir com conhecidos onde precisavam de
pessoas para trabalhar. Me orientou a buscar pelos
documentos pessoais que ainda não tinha, além de
observar os anúncios de vagas nos jornais. Meus
primeiros passos, todos os dias, exceto nos fins de
semana, eram em direção à biblioteca, onde encontrava
os jornais para consulta. Sem dinheiro para comprá-los,
era preciso andar muito e anotar as ofertas de emprego
sem entender de todo o perfil à procura. O dinheiro
restante servia para o transporte público e para os
telefonemas quando obtinha mais informações. Quando
não, me restava apenas procurar por ofertas mais
completas, com endereço e hora para apresentação.
Quatro meses depois — quando completei dezesseis
anos —, após andar léguas e léguas à procura de
emprego e ouvir muitos nãos, fui trabalhar embalando
compras num supermercado. Sem experiência, nem
formação escolar completa, eram poucas as
oportunidades que se encaixavam em minhas
habilidades. Nas entrevistas, mesmo exagerando sobre
minha disposição para aprender e demonstrando um
temperamento submisso que não tinha, era descartado
por ser menor de idade, por ter vindo do interior e outras
coisas que a princípio não identifiquei. Eu evitava pensar
no amanhã, e talvez por isso continuava sem cogitar o
regresso à aldeia. Minha determinação continuava
inabalável. Seria isso ou nada.
Uniforme grande demais e desajustado no corpo
esquelético, cartão para registrar hora de entrada e de
saída, corpo apalpado por seguranças na saída do
estabelecimento para terem a certeza de que eu não
havia subtraído nada das prateleiras ou do estoque. O
pavor que não sabia existir de que alguém me tocasse.
Envergonhado, aprendi a fechar os olhos, abrir braços e
pernas e esperar pela dispensa. Sobreviver era aprender
a domar os medos, a primeira lição dos meus primeiros
anos de minha precoce vida adulta. Enquanto era
acossado por uma ansiedade paralisante — que talvez
tivesse a mesma origem da enurese de antes —, aprendi
a identificar um fio me aquecendo por dentro, vindo de
onde imaginava não existir mais nada vivo. Então eu
fechava os olhos e atravessava o incômodo profundo em
luta desigual para me dominar. Nesses momentos não
conseguia recordar nem dos rancores nem do orgulho
por trás de quase todos os meus atos. Eu habitava a
escuridão, de olhos vendados, sem a noção real do que
estava à minha volta. Transpunha mais uma batalha
atravessado apenas pela centelha que aquece os
sobreviventes.
Não era sempre que conseguia ter o domínio, mas a
mesma energia vital passou a me invadir nos momentos
em que minha integridade parecia sob risco. Diante dos
seguranças embrutecidos pelo trabalho, treinados para
caçar ilícitos, o medo não era de ser pego por algum
desvio. O medo estava no toque, no desespero que se
apoderou de minha razão, da infinita tristeza de recordar
os anos na escola, de meus passos a caminho da sala de
dom Tomás. Afligido pelo poder do domador de espírito
da aldeia, eu me sentia esgotado ao atravessar a
tormenta para, por sua vez, cruzar o tempo seguinte e
me descobrir a salvo. É certo que parte do que eu era e
parte do que poderia ter sido ficaram na sala escura
preenchida pelos sons da respiração que ouviria para
sempre.
No meu primeiro ano na cidade, saía de casa ao meio-
dia e retornava próximo à meia-noite. Como a casa era
pequena, aprendi a caminhar em meio ao breu para que
meus movimentos não incomodassem Jandira, recolhida
no quarto com Joaquim. Mesmo assim se tornaram
comuns discussões entre eles, quando trocavam ofensas
e a discussão desembocava sempre no tema da minha
presença. Me sentia intruso, humilhado por escutar que
eu não era nem nunca seria bem-vindo. Nos dias de folga
passei a procurar por um lugar onde pudesse morar. A
ideia inicial de alugar uma casa como a de meu irmão
logo foi abandonada quando percebi que o salário não
chegava ao fim do mês. Restava-me buscar por vagas
em pensões e negociar um bom valor.
Apesar das dificuldades acumuladas, me sentia livre.
Tentava não pensar em Luzia, em meu pai, nem mesmo
na igreja ou em dom Tomás. Me sentia de certa maneira
renascido para um momento novo que, se não era
melhor, também não me asfixiava como o da aldeia.
Estabeleci vínculos com as pessoas que trabalhavam
comigo e não passava mais os dias de folga em casa.
Andava pelo centro da cidade, por praias, admirava a
paisagem se transformando sem parar. Havia o
encantamento das descobertas, o fascínio que a
promessa de liberdade é capaz de exercer sobre nós.
Retomei meu interesse pela leitura sem depender mais
dos favores de dom Tomás. A mesma biblioteca onde
procurei por anúncio de emprego nos jornais, foi a que
passei a frequentar para levar livros de empréstimo. Era
muito mais diversa do que a biblioteca do mosteiro.
Mesmo com todas as adversidades, havia a esperança de
recomeço rondando minhas ações, as novas
aprendizagens e o ambiente da cidade.
Talvez por isso não tenha sido tão difícil deixar a casa
de Joaquim, tampouco ele se opôs. Apenas perguntou
para onde eu iria, aliviado por diminuir as tensões com a
mulher motivadas por minha presença. Eu também
sentia um pouco de paz por saber que as humilhações
tinham os dias contados. Não foram poucas as vezes em
que eu, exausto, passava da hora de desocupar a sala.
Jandira dava seu próprio jeito para que eu saísse do
caminho, esbarrando em mim de maneira intencional,
com pedido de desculpa em seguida, sem esforço algum
para que soasse verdadeiro.
Ao ver minha sacola arrumada para seguir para a
pensão, ela passou a procurar pelo lençol que recobria o
sofá onde eu dormia. Fingi não perceber a pequenez de
seu gesto. Eu havia escutado mais cedo ela discutir com
Joaquim sobre a gratidão que inexistia. Sabia que aquela
conversa se dirigia a mim. Era provável que Jandira
esperasse por um agradecimento meu, que, por minha
vez, e por puro orgulho, decidi não expressar. Então ela
foi mais direta e perguntou se eu não tinha pegado o
lençol “por engano” e guardado entre meus objetos.
Sabia que ela queria me ferir, afinal era um dia
importante para mim. Eu poderia vencer aquele embate
se me mostrasse justo e dissesse que não havia nada
comigo. Retirei minhas poucas coisas da sacola com
fúria, bradando que se Joaquim estivesse ali ela não faria
aquilo. Era o pretexto de que ela precisava para iniciar
um sermão repleto de rancor. Enquanto falava, pus tudo
na sacola para sair de imediato.
Quando já me encontrava do lado de fora da casa e
deixava um adeus desajeitado às crianças, ouvi que ela
proferiu rumores sobre minhas origens. Começava da
mesma maneira que a sentença de Luzia — Você é tão
ruim… — e terminava diversa — … que sua mãe te
rejeitou. “Mentira”, gritei, “história tão falsa quanto a do
lençol roubado.”
Foi a minha primeira reação. Mas depois, mesmo
custando a acreditar, passei a remoer aquelas palavras
— seriam confissões ou um segredo antigo a ser
desvendado?
15

Quanto mais a distância do tempo entre a aldeia e a


cidade se alargava, mais minhas recordações pareciam
ser apenas fruto da imaginação de uma cabeça inquieta.
Não revisitar o passado foi a maneira que encontrei de
proteger minha saúde, sem nenhuma autopiedade. Segui
sem me deixar envolver pelo incômodo de ter nascido na
aldeia e vivido sem a mãe que me visitava em meus
sonhos, como se fosse possível preencher o vazio.
Encontrei afeto na atenção recebida de dom Tomás, fui
seduzido por seu interesse nas minhas vontades e pelo
sentimento estranho que me dedicava. Anos depois
compreendi que esse evento retirou mais de mim do que
agregou.
Eu retomei os estudos, embora tenha avançado muito
menos do que desejava. Estudei o suficiente para não
trabalhar como estivador, feirante, ou empurrando
carrinhos de compras em supermercado. Todos os
trabalhos que realizei me maltratavam, mas continuava a
conservar certo orgulho que sempre me acompanhou.
Deixava os empregos quando me cansava da exploração
da vez: auxiliar de reprografia, atendente de farmácia e
de armarinho, voltei outra vez ao supermercado para
trabalhar como caixa, cozinheiro e o que mais se possa
imaginar. Na aldeia, só se poderia sonhar em ser
lavrador, pescador, professor ou padre. Embora este
último fosse uma possibilidade, ninguém que eu
conhecia viria a vestir o hábito dos monges, muito menos
trocaria seu nome por outro monástico; não por falta de
interesse, mas porque o corpo da Igreja era restrito a
uma casta muito diferente de nós.
Os anos que passam são capazes de nos dar
conhecimento sobre o mundo. Não esgotamos os
mistérios, mas desvendamos uma parte expressiva
deles. Se no campo a vida era árdua e de muitas
privações, na cidade poderia ser terrível de igual
maneira, considerando que qualquer movimento só era
possível com dinheiro: comer, ter um teto e uma cama
para repousar, até mesmo tomar um simples banho.
Nem todos eram capazes de cumprir o que se esperava
deles. Ainda era preciso suportar a presença ostensiva
dos que tinham poder, prontos para degradar os que não
tinham. As dificuldades se amontoavam, mas tentei me
convencer de que pior seria uma vida de escassez como
a de minha família. No futuro, seria provável que eu
percebesse que a distância entre uma miséria e outra era
menor do que supunha. A indigência poderia ser pior na
cidade; nem todos aqueles atraídos por seu brilho
conseguiam sobreviver.
Os empregos me ofertavam sempre mais do mesmo:
as horas tomadas por tarefas intermináveis, a
remuneração aquém do necessário para chegar sem
preocupações ao fim do mês. Meus sentimentos
vagavam longe, era quase impossível remoê-los. Em
certa medida isso era um ganho, evitava que eu me
perdesse na solidão e no estranhamento a me
perseguirem. Foi assim que vivi um quase casamento
com Ana e a mudança da última das muitas pensões
deterioradas para uma residência popular. Levei uma
vida ordinária e sem grandes sobressaltos. Ao menor
sinal de agitação, reencontrava o caminho a ser seguido
e quase sempre a contenção própria funcionou.
A primeira oportunidade de autocontrole foi ainda sob
as asas de Luzia. Cansado de seus discursos vexatórios
quando eu urinava na cama, passei a beber água até o
meio da tarde. A boca secava, e eu me esvaziava de tudo
o que podia até a hora de dormir. Se tornou mais fácil
atravessar a noite quando adquiri domínio sobre minhas
necessidades. Depois foram a sombra e a dúvida que me
acometeram quando tentei compreender o que acontecia
na sala de dom Tomás. Me tornei arredio, solitário, mais
isolado do que era. Enquanto estava na Tapera, havia
Luzia para me desafiar com sua rudeza e me chamar
para a vida. Na cidade, só me restava soterrar qualquer
intenção de repetir a melancolia herdada dos
antepassados. Tornei o passado um livro a ser aberto
quando eu queria mas que permanecia a maior parte do
tempo fechado. “O que não tem remédio, remediado
está”, Luzia repetia para se consolar da frustração do
que não poderia mudar. Então, não vivi atormentado por
não saber a verdade sobre meus anos de infância, nem
pelo desejo de vingança caso minha dúvida se
confirmasse. Não sofri mais por não conseguir salvar
Luzia de sua corcunda, nem por não poder levar um
pouco de dignidade à sua vida.
Foi assim na maior parte do tempo.
Até o dia em que servi a um senhor, no restaurante
onde trabalhava, um prato de arroz, feijão, legumes
frescos e um pedaço de carne que sangrava como se
estivesse viva. Seria um gesto corriqueiro como o de
todos os dias, não fosse o fato de aquele rosto me ser
familiar. Mas por mais que tentasse recordar de onde
conhecia aquela fisionomia, mais a imagem fugia em
direção ao abismo. As mãos eram outras mãos, mãos
velhas, brancas e manchadas; os movimentos eram
trêmulos. Uma fragilidade capaz de suscitar até
compaixão. Aquela imagem me perturbou por muitos
dias até encontrá-lo outra vez.
Na segunda vez, não fosse o crucifixo de prata que
pendia do pescoço envelhecido, consideraria que minha
perturbação não tinha fundamento. Mas a posição em
que ele se sentou à janela, junto a dois homens jovens,
pôs o objeto em evidência. O sol refletia com
intensidade, e eu recordei de Luzia me contar assustada
que, nos meus delírios, eu dizia que a cruz me cegava.
Foi pelo objeto que ofuscava meus olhos que pude voltar
aos anos idos.
Se os traços do rosto de dom Tomás permaneciam
enevoados em minha memória, a face daquele senhor
velho caminhando com a ajuda de uma bengala e
precisando do apoio dos seus cuidadores para deslocar
uma cadeira se definiu desde o primeiro dia e foi talvez o
elo para compreender o que de fato teria me acontecido.
As mãos fracas não eram sequer capazes de cortar a
carne servida no prato, o que era feito por um dos jovens
acompanhantes. Eles se portavam como religiosos. Todos
usavam crucifixo, embora o único que brilhasse como
uma joia fosse o do velho. Muito próximo de nós havia
um mosteiro, uma construção imponente, que ocupava o
espaço tumultuado da cidade sem grande interferência,
diferente de toda a vida da Tapera girando em torno da
igreja, das missas e dos sermões do abade.
Da terceira vez, eu que me adiantava aos meus
colegas para servir a carne retirada do braseiro, parei
diante do velho e me coloquei em sua linha de visão
ansiando que me reconhecesse. De início ele continuou
sem atinar. Ou talvez fosse uma incapacidade fingida,
oportunista, e eu, que durante anos não quis pensar no
passado, me descobri determinado a persistir. Cortava a
carne no prato, o sangue escorria quente e se empoçava
contrastando com as bordas brancas. Eu olhava para ele
com uma expressão de intimidade e em troca era
ignorado. Nunca precisou se importar com alguém,
apenas com seu prazer.
Mas eu me importava em saber.
Da quarta vez, eu cortava a carne imaginando o que
eu iria devorar em breve. Guardava a mesma disposição
de servir em meu rosto, mas o que havia por trás dos
bons modos era meu instinto antigo para cativar o
inimigo. Quando o único jovem que o acompanhava
dessa vez se dirigiu ao caixa para pagar a conta, eu me
aproximei da mesa para recolher os restos e disse:
“Bom te ver, dom Tomás.”
Ele esboçou um sorriso ingênuo, me chamou de “meu
filho”, mas parecia mesmo não saber quem eu era.
Porém se atendeu ao meu chamado, não poderia ser
outra pessoa. Olhou com interesse meu rosto, buscando
nos trapos da memória o lugar de onde eu o conhecia. Eu
deveria esperar a próxima vez, a derradeira, antes de
tragar seu espírito no meu ritual de vingança.
Antes que eu prosseguisse, me chamaram na sala do
telefone. Eu pedi licença, fiz uma breve reverência e ele
acenou desnorteado, as mãos continuavam trêmulas. No
semblante transparecia seu pequeno tormento de não
saber quem eu era e o que o aguardava.
Não considerei que o telefonema fosse para mim, era
mais provável que fosse algum fornecedor pedindo mais
prazo para entrega de mercadoria. Eu tinha um telefone
particular, me encontrariam com facilidade através dele.
Do outro lado da linha, falava alguém que custei a
reconhecer e que por fim descobri ser a filha da
madrinha, ainda vivendo na Tapera.
Ela transmitia um chamado de minha casa: que eu
retornasse à aldeia o quanto antes, havia acontecido um
grave acidente. Devolvi o telefone ao gancho,
desnorteado, e voltei à sala. A mesa já estava vazia.
Luzia do Paraguaçu
1

E do céu, do céu para onde elevávamos nossas rezas,


aflições e graças, do céu de onde vinha a água que
regava o chão e enchia o rio, do céu caía uma fina palha
queimada, chuva seca a trazer mau presságio. Aconteceu
num minuto, enquanto abria as peças de roupa torcidas
com as mãos enrugadas de lavar o mundo, enquanto
estendia uma a uma no varal como desde sempre. Parei
por um tempo e abri as mesmas mãos molhadas para
deixar as cinzas caírem sobre elas. Senti o vento
percorrendo o vale, o rio, inquieto, o vento carregando o
que dava. Então comecei a retirar as peças do varal, não
podia deixar as roupas se sujarem com os restos do
canavial. Deve ser do canavial. Que insistência de se
plantar cana, dá tanto trabalho. Só pode haver ganância
por trás dessa plantação. Os antigos plantaram muita
cana, era o que o povo dizia. Por um tempo, a mesma
gente não quis saber mais de cultivo grande, mas agora
os forasteiros que ocuparam as terras estão plantando
cana, cobiçando mais terra para estender os plantios.
E um rumor, um rumor de gente, palha queimada,
rumor e vento, correram a Tapera. Arrodeei a casa com o
cesto de roupa nas mãos para atinar de onde vinha o
rebuliço. Dois homens carregavam um velho e os abutres
da Tapera sobrevoavam, acompanhando para saber de
quem se tratava. Pés descalços, bainhas e facões, as
mulheres ergueram a cabeça de suas obrigações, e as
marisqueiras, por um instante, deixaram latas e colheres
para saber quem vinha nos braços dos lavradores.
Meu pai, meu velho pai, valha-me Deus, e meu corpo
então se retesou frio. Agonizando, sem as vestes,
carregado nos braços da mesma gente que me
desprezava. Deixei o cesto que carregava, e as roupas
lavadas, que zelei e retirei do varal para não se sujarem,
foram ao chão e se misturaram à terra. Deixei que os
homens entrassem em casa e o pusessem na cama, de
bruços, sujo, sem as roupas, que tinham sido rasgadas
na tentativa de acudirem meu pai do fogo.
Era preciso chamar a ambulância, alguém lembrou.
Meu pai, de olhos abertos, pedia perdão por tudo que
não pôde ser. O rosto rosado de um lado era a chaga, a
pele escura se desprendendo da carne. Aquele rosto rosa
era como o rosto das crianças quando nasciam e depois
iam escurecendo à medida que elas cresciam debaixo do
sol. Meu pai, como um menino traquino, a respiração
exalava o cheiro doce da cana, da cachaça, e o corpo
agora estava de bruços porque tinha se metido em
confusão.
Pela manhã, havia garrafa e copo sujo sobre a mesa.
Meu pai estava entregue à bebida. Deus, Nossa Senhora,
Bom Jesus, indiferentes, tinham ouvido minhas preces.
Depois as ervas, os feitiços que se contavam à boca
miúda, por muito tempo, para que os padres não
soubessem que a Tapera ainda mexia com alguma
magia. Agora estava ali, o velho à espera de ajuda,
contendo o choro arrependido por tudo que não
conseguiu ser.
Os homens contavam o que se sucedeu às paredes, se
recusavam a olhar para mim, o encontraram caído no
canavial ardendo. “Mas o canavial de quem, se ele não
cultiva cana?”, quis saber. Não houve resposta. Eles
sabiam, mas se protegiam. Meu pai se recusava a pagar
o foro desde sempre, ainda mais agora que o mosteiro e
a igreja estavam fechados. “Não pago”, dizia. Eu também
não, completava em pensamento. Eu não lavava mais as
roupas dos padres, eles tinham partido da Tapera depois
do incêndio. Nem que eles ainda estivessem vivendo sob
aquele teto, por trás daquelas paredes grossas, eu
lavaria as roupas imundas da igreja. Já não havia dinheiro
no colchão de palha, que serviu ao pagamento do foro
por anos e que o Menino levou quando foi embora e
nunca mais voltou.
Estávamos marcados pelos mesmos cobradores.
Diziam que iríamos ficar sem a tarefa de terra. Nossa
casa não seria mais da família se fôssemos embora ou
depois de nossa morte. Era gente como a gente nascida
e criada na Tapera, mas, sem percebermos, ganharam
importância aos olhos de todos. Gente sem eira nem
beira mas que conseguiu vida melhor que a da maioria.
Meu pai sentiu o peso da idade no corpo. O peso da
vida é coisa que se sente sempre, mas a mente estava
boa e ele ficou danado com os recados vindos de toda
parte de que estávamos marcados para ir embora.
“Quero ver quem vai me tirar da Tapera”, repetia alto
para provocar. E os mesmos camaradas de outros
tempos viraram as costas, como se a promessa de
injustiça não lhes dissesse respeito. Olhei para os que me
ignoravam e perguntei: “Quem fez isso com meu pai?”.
“Ninguém fez nada com seu pai”, disseram, “ele bebeu
demais e andou por onde não devia. Estava caído na
roça de cana que queimava.”
“Ninguém fez nada, Luzia”, ele confirmava, “eu caí
porque sou teimoso.”
O povo se aglomerou diante da casa e os mais
preocupados diziam que deveríamos correr ao hospital.
As queimaduras pareciam graves. Nas costas, tinham o
tamanho de duas mãos espalmadas. A da perna direita
era comprida feito um rastro de cobra. Rita de Mira se
ofereceu para chamar a ambulância. Meu pai pedia: “Não
deixe eles me levarem, Luzia, se eu for, de lá não saio
vivo”. Pela primeira vez na vida vi seus olhos cheios de
um brilho que não existia. “Talvez o senhor nem precise
ficar no hospital”, disse, “é só para limpar a ferida e fazer
o curativo.”
“Eu não preciso disso, Luzia, não preciso de nada. Se
tiver de morrer, que seja em minha casa. Quero mesmo é
ver meus filhos. Você chama sua irmã Isaura?”, me
perguntou, “talvez ela consiga chegar hoje. E o Joaquim.”
Meu pai respirou e o choro parecia aliviar a ferida do
rosto. “Quero ver Moisés”, disse depois de nomear
Raimundo, Humberto e Mariinha. “Quero ver o Menino.”
Dado o tempo de sua partida, o tempo sem que
procurasse por nós, dada a distância de uma palavra e
outra dita pela boca arrependida, dado o espaço entre
um suspiro e outro a deixar seu corpo, do nome de
Joaquim ao de Moisés, havia um sinal importante no
pedido de meu pai. Um sinal de que seu conhecimento
sobre a nossa história estava se transformando, aos
poucos, ao reconhecer o lugar de cada um em sua vida.
2

Quanto tempo cada um levará para chegar?, me


perguntei, sem esperança de conhecer a resposta,
enquanto coava o resto de café e o servia num copo de
vidro para Rita. Ela me disse que a primeira a receber a
notícia foi Zazau, que prometeu chegar, no mais tardar,
no dia seguinte. Joaquim também foi avisado, viria o
quanto antes. Rita, a filha da finada Mira, estava mais à
vontade que o habitual. Por toda a vida se mostrou
desconfiada, jamais quis se aproximar de nossa casa. No
fundo, não queria ficar marcada pela Tapera como
alguém próxima a mim. Mas, naquelas horas, ela venceu
a distância imposta pelo passado e se mostrou de
serventia, pesou a consideração que nossas finadas
mães tinham entre si. Na Tapera todos tinham a ver com
a vida do outro: por apadrinhamentos, por primos em
comum, pelo convívio que nem a maledicência das
línguas conseguia desfazer por completo.
Rita contou que para Mariinha deixou um recado. De
início ninguém sabia quem era a tal Mariinha, e depois
ela pensou que sim, talvez a conhecessem por outro
nome. “Maria”, disse no telefone, “é Maria de fulano.”
“Dona Maria qualquer coisa?”, perguntaram. “Deve ser”,
Rita disse. “Era o telefone público instalado na fazenda
onde morava ou de algum vizinho melhor de vida?”,
perguntei. Havia anos eu não botava os olhos em minha
irmã. Há tempos não via o Menino. Mariinha deixou a
casa dois anos antes de minha mãe fechar os olhos.
Desde então telefonávamos todos os dezembros. Era
quando perguntava a mim ou Zazau, na pressa do
telefone público, que engolia o dinheiro com mais fome
que os famintos, pelos conhecidos da Tapera.
Informávamos sobre os mortos e os nascidos ano a ano.
Mas nos últimos telefonemas a memória dava sinais de
confusão, ela não se lembrava de todos. Mariinha não
retornou desde que se foi, e viveu mudando de um lugar
para outro com o marido, morando de fazenda em
fazenda em troca de trabalho. Quando soube da morte
de nossa mãe, meses depois, desabou desorientada.
“Não deveria ter me juntado a homem”, disse a Zazau,
“não deveria ter deixado vocês sozinhas. Nunca mais vou
ver minha mãe.” Prometeu vir assim que tivesse algum
dinheiro, queria visitar o túmulo, agradar, colocar ali um
punhado de mato e flores. Choramingava sem querela a
própria vida e dizia que, assim que pudesse, voltaria a
viver na Tapera porque não gostava de nenhum lugar por
onde tinha passado.
Os anos correram depressa e Mariinha nunca mais pôs
os pés na Tapera, embora nunca tivesse se acostumado à
vida errante, bastava recordar as longas conversas
travadas depois dos seus telefonemas. Ela contava as
dificuldades a Zazau, porque se inverteu a camaradagem
da infância. Afinal, nós, que éramos próximas, nos
afastamos. Minha irmã Zazau assumiu o cuidado com
nossa mãe durante o tempo da melancolia e talvez por
isso se tornou mais próxima de Mariinha e nos manteve
informados de nossa gente que cedo saiu pelo mundo
para ganhar a vida.
Sabíamos sobre Mariinha, Joaquim, um pouco sobre
Raimundo e o Menino e quase nada sobre Humberto. O
Menino carregava seus ressentimentos, eu não o
condenava. Era minha obrigação cuidar dele depois da
morte de nossa mãe, depois do casório de Zazau, e falhei
no meu dever de protegê-lo. O Menino seria avisado do
desejo de meu pai, Joaquim prometeu, dizendo que
tentaria de toda forma trazer ele, o menino feito homem,
para cumprir a promessa. De todos os que poderiam
adentrar a porta da velha casa da Tapera, era ele o que
mais me causava inquietação e contentamento. O
Menino a quem poucas vezes chamei pelo nome
enquanto esteve nesta casa; o que esperava de mim
mais do que eu poderia dar. Muitas vezes ele me
devolveu as mágoas que lancei sobre a vida da pior
maneira, com malcriação e traquinagem. Enquanto
esteve aqui, vivemos uma batalha nunca deflagrada
entre uma mulher amargurada, sobrevivente como quase
todas as outras, e um menino esperto e agitado, de olhos
inquietos e implorando para ser amado.
Trinta anos se passaram desde que ele nasceu no rio,
do ventre de uma mãe de juízo perturbado. Tantos anos
decorridos e era quase um estranho pelo tempo que
tinha nos deixado sem jamais retornar. O Menino não
voltaria, considerei, por que faria isso se sequer nos dava
notícias? Capaz de já ter se casado e tido filhos. Não
voltaria para recordar a mulher que o criou, carregada de
má vontade para com ele e o mundo. Não retornaria para
atender um pedido de nosso velho pai. Eu o assombrava
com minhas dúvidas e a minha recusa em acreditar no
que contava. Se pudesse voltaria àquele momento e o
deixaria falar mais uma vez, mesmo exigindo como
compensação o silêncio eterno sobre o que me falava.
Mas além de não acreditar, o acusei de pecado, de crime,
o chamei de degenerado e o ameacei com o fogo do
inferno pelo que dizia.
Agora enfrentava meus desacertos com a vida entre
um recado e outro trazidos por Rita. Esperava os irmãos
chegarem para seguirmos ao hospital onde meu pai se
encontrava. A idade avançada me dizia que, mesmo que
ele se recuperasse das queimaduras, carregaria sequelas
para sempre. Foi o que percebi quando o observei
amparado pelo enfermeiro e pelo motorista da
ambulância, uma sucata, enquanto o acomodavam para
o levar à Santa Casa. Os anos passaram sem pedir
licença e arrombaram as portas de nossas vidas. Não
parecia fazer tanto tempo que vi meu pai sair de casa
para seguir uma mulher da vida, morar na capital e viver
vagante enquanto minha mãe afundava numa apatia
sem volta. Como se tudo tivesse acontecido ontem, tão
viva a memória despontava em meio à confusão. Agora
estava velho e dependente, se agarrando aos fios de
vida, como todos parecem querer se agarrar quando
nada mais lhes resta. Ele clamava pela presença dos
filhos e não sabíamos se conseguiria rever todos. O
tempo era uma folha seca atravessando um
descampado.
E no dia seguinte, enquanto arrumava a pequena
sacola para me dirigir à Santa Casa, ouvi palmas soarem
no terreiro, como os sinos da igreja, avisando que um dos
nossos havia retornado.
3

Antes de Zazau, antes de Joaquim, antes de qualquer dos


irmãos, foi o Menino que chegou. Foi assim que o chamei
até o dia de sua partida. Não conseguia imaginar um
novo nome por ser ele a mesma criança que se
entranhou em minha vida como um irmão temporão. O
Menino era agora um homem-feito, de mãos calejadas de
uma maneira diferente e rosto marcado da gente vivida.
À minha frente, à porta, carregava uma mochila. Calçava
sapatos dignos, vestia uma camisa branca de manga
comprida — encardida, eu notava, e pensava na minha
barrela a deixando alva na primeira oportunidade. Como
cresceu, como ficou mais cheio, como escureceu e como
se parece conosco. Com um pouco de cada um de nós; o
cabelo liso, preto — era o de Mariinha; os olhos pequenos
e rasgados, ainda mais na claridade do dia, feito os de
alguma avó índia que meu pai dizia ter; a boca grande
feito a nossa, a boca da gente cabocla e negra da Tapera.
Zazau o embalou na rede quando pequeno e um dia,
um dia quando a esperança pairou sobre esta casa, o
menino no colo de minha irmã parecia ser a criança que
minha mãe desejou para nos redimir do desprezo do
mundo por nós. Mas se minha mãe o visse agora
descobriria estar enganada. Menino cresceu e se
transformou, não tinha a pele mais clara do que qualquer
um de nós. Mas era ainda o mesmo menino nascido das
águas do Paraguaçu.
Como eu poderia olhar para ele e o receber depois de
tantos anos? A soleira da porta separava o mundo da
Tapera do mundo da casa. Não pude deixar de recordar o
dia em que o fogo consumiu as vigas que escoravam as
velhas telhas, e de que a minha primeira reação foi
retirar o menino do meio da fumaça, acreditando que, se
ele pudesse e entendesse, teria feito o mesmo por mim.
Mas naquele espaço pequeno da sala da casa, com a
Tapera e a luz por trás de seu corpo, perguntei ao meu
peito o que duas pessoas que nunca se abraçaram, que
quase nunca se tocaram, poderiam dizer uma à outra
quando se reencontrassem. Moisés bateu os pés na
soleira da porta para retirar o excesso de barro do
calçado e olhou os meus pés descalços como se
estivesse vendo uma coisa de outro mundo. “Luzia”, ele
chamou por meu nome sem me olhar. Quis saber se o pai
estava no hospital. “Luzia”, ele me disse, e aquele nome
não era mais um nome; era a palavra que carregava um
sopro de vida, mesmo que as nossas vidas tivessem
trilhado caminhos diferentes.
Eu queria recuperar o tempo ido e tudo que existe,
mas percebi que as mágoas restavam inteiras sem se
dissolverem. Para saber se ele estava bem, perguntei se
queria um copo de água. Para saber como tinha passado
todos esses anos longe da Tapera — quinze, será que eu
contei certo? —, eu disse poucas coisas, insistindo em
que se sentasse na cadeira velha de pé quebrado. “Não
se preocupe, não cai, está bem amarrada”, o encorajei.
Não lamentamos o tempo passado nem quisemos falar
sobre o que nos aconteceu durante aqueles anos. Para
saber se ele havia sentido falta de mim, do pai e da
Tapera eu disse: “Já, já vou à Santa Casa para saber
como o pai está, mas você não precisa ir, pode
descansar no quarto” — o único mais arrumado — “e
amanhã voltaremos todos juntos”.
Mas Menino não olhava direto nos meus olhos, não
ainda. Olhava a casa, o teto, as paredes manchadas pela
umidade da chuva e desbotadas dos anos. Talvez
procurasse alguma recordação. Talvez aquele reencontro
lhe provocasse algum estranhamento que eu não poderia
saber de todo. Menino se levantou e se pôs na janela, e
no seu horizonte havia algumas árvores, a gente
abelhuda da Tapera e o rio correndo para o lugar de
sempre.
Se percebia pelas vestes e preocupação que carregava
no semblante a boa vida que não tinha. Pelo que
sabíamos das poucas notícias de Joaquim, sua vida
deveria ser como a batalha de todos nós desde sempre.
Relâmpagos e luzes se colocavam entre nós sem que
olhasse por muito tempo para seu rosto. Eu o via e
ansiava por ver mais enquanto me abaixava para
acomodar a roupa na sacola, e depois retirar um copo de
água da moringa. Andava para lá e para cá, perdida,
como se procurasse o que não era possível encontrar. Até
que meus olhos se voltaram para seu rosto sem nenhum
obstáculo e ele estava de boca aberta, enfeitiçado por
minhas costas. A saliência, a ferida que o tocava de
alguma maneira, que me fazia digna do seu afeto e por
causa do qual, quando menino, ele rezava sem saber que
eu o via. Minha corcunda nos uniu e é possível que
despertasse curiosidade sobre minha vida, revelando
algo que minha própria boca e meu coração não me
permitiam fazer. Há muitos anos ele me perguntava:
“Dói, Luzia?”. E quando a amargura e a raiva me
deixavam responder eu dizia: “Não, não dói nada, há
palavras que doem mais, há desprezo que dói mais, há
malcriação que dói mais, existem muitas coisas que
doem mais”.
E de repente o tempo havia passado e Zazau entrou
na casa, carregada de mala e cuia, e nem bom-dia
conseguiu dar. Perguntou onde o pai estava e eu repeti:
“Na Santa Casa”, duas vezes. Ficamos assim
aprisionados em nossas próprias cercas, como animais
em baias sem passar de um lado a outro. Não houve
abraço nem mesmo afago de conforto entre irmãs. Era
tudo uma rudeza de gestos porque o mundo tinha nos
tirado em algum tempo o desembaraço de manifestar o
que éramos capazes de sentir. Não conseguíamos mais
demonstrar afeição nos encontros, e nisso o Menino
parecia igual, sem tirar nem pôr.
Zazau não reconheceu o Menino, não assim,
esbaforida, como havia acabado de entrar. Foi quando se
deteve mais atenta a seu rosto e as expressões de
aflição que tinha se desarmaram um pouco que ela
perguntou: “É você mesmo, Moisés?”. Eu conhecia Zazau
como a palma de minha mão e daria uma moeda se
naquele instante de revelação não tivessem se passado
em sua cabeça os dissabores do nascimento e as vezes
que precisou preparar o mingau e trocar cueiro para
proteger a criança de meu descontrole. Até que por fim
seguiu a própria vida.
Por um tempo, eu achei que ela pediria a meu pai que
a deixasse cuidar do menino, e a quase certeza de que o
levaria consigo me trouxe alívio. Mas quando Zazau disse
que começaria a vida com seu companheiro longe da
Tapera, contou também que eles não tinham um lugar
certo para viver e não poderia tirar a criança do convívio
de meu pai. Foi assim que recebi a notícia, um castigo, e
por isso me mantive amargurada, chamando o dever da
criação de penitência.
“Está um homem.” E só. Zazau não conseguiu dizer
mais nada a respeito do reencontro. Talvez tivesse
mágoa pela forma como o Menino deixou a Tapera. Pelo
dinheiro que havia levado, e por nunca mais ter nos dado
notícia. O pouco que sabíamos era por Joaquim, mas
mesmo com ele havia uma distância. Moisés tinha
passado um breve tempo com a família de nosso irmão,
mas havia deixado a casa depois de fazer desfeitas à sua
mulher.
Contidos, com tantas contas para ajustar, com tanto
por dizer, se é que algum dia seria possível perdoarmos
em silêncio uns aos outros as mágoas que nos
provocamos. Hora de reunir as linhas das vidas
desatadas: perguntei que horas eram e Moisés tirou um
telefone do bolso para olhar. “Meia hora”, avisei. “Meia
hora para a van passar na estrada e nos levar para a
Santa Casa.” Precisávamos nos apressar.
“E Joaquim?”, Zazau perguntou. Não sabíamos a que
hora chegaria, deixaríamos recado com Rita, certos de
que se não nos encontrasse, procuraria por ela. Tirei uma
fita da bolsa e amarrei o cabelo. “Quase não lembrava do
seu cabelo solto”, Zazau me disse. Eu não pude olhar por
pura vergonha e por perceber que Menino me mirava. O
cabelo era um manto grisalho e, solto, era um véu sobre
minha cabeça. Os anos haviam passado e minha
mocidade foi levada pela correnteza dos dias. Contei a
mim mesma, durante o caminho até chegar à Santa
Casa, as coisas que me aconteceram. E por vezes eu
encontrava os olhos do Menino sobre mim, me guiando
pelo caminho por onde a vida havia andado. Me levando
de volta ao passado.
Durante trinta anos usei trança feito uma beata para
que a Tapera me deixasse em paz.
4

Não me perguntem o que se passou na Tapera nos


últimos anos. Vou ter que dizer: a Luzia medrosa, a Luzia
obediente à aldeia, essa Luzia morreu. A lavadeira da
igreja não parou de lavar as roupas dos padres porque a
igreja queimou e todos levantaram revoada feito abutres
apavorados. Parou porque despertei, descobri verdades e
a dor do mundo. Então o muro do medo caiu e não houve
quem o pudesse erguer outra vez.
A Tapera se levantou contra mim de novo. Da primeira
vez eu era uma menina assustada, amedrontada pelos
mistérios do Céu, pela presença assustadora de Deus, e
por meus pensamentos imaturos. Mais tarde eu já era
Luzia, a lavadeira do Paraguaçu, e não seria como antes.
As histórias que contavam sobre minha vida, entre a
menina e a velha que me tornei, eram falatório de gente
mexeriqueira. Anos e anos depois, a mesma calúnia
retornou. Queriam me atingir, ferir como o fizeram outras
vezes, mas antes me acusaram de ter espírito ruim, de
ter parte com o Mal. Contavam histórias em que os
móveis velhos de nossa casa se mexiam sozinhos, assim
como as roupas estendidas no varal, a capoeira crescida
dos caminhos da aldeia, queimavam se por lá eu
passasse. Era menina e muito cedo aprendi a temer o
povo da Tapera. Ensinada por eles, aprendi a ter medo de
mim mesma. Diziam que eu guardava o Mal. Só Cristo,
filho de Deus, poderia me curar dos espíritos daninhos.
Minha mãe adoeceu apavorada e implorou aos padres
para que eu fizesse a primeira comunhão e fosse
crismada às pressas. Não temia só por mim, temia
também pelo destino da família.
Dessa vez não foi por causa do mato incendiado.
Tampouco pelo canavial ardente com o qual não
pareciam se importar. Também não foi por causa dos
boatos de objetos saindo de seus devidos lugares. Mas
no fundo era o mesmo sinal de agouro que me
destinaram há tempo. Um incêndio consumiu a igreja no
mesmo dia em que eu tinha levado uma trouxa de roupa
limpa e passada aos padres. O bastante para me
acusarem outra vez de feitiçaria.
Não houve água do Paraguaçu para apagar o fogaréu
que se levantou da igreja e do mosteiro. Para meu azar,
mas isso ninguém parecia saber, foi justo no dia em que
avisei ao dom Tomás que não lavaria mais a roupa do
mosteiro. Ele quis saber o porquê e eu não consegui
disfarçar meu grave descontentamento. Meu rosto
deveria estar transtornado, embora eu continuasse a
olhar para os meus pés calçados com as sandálias de
sempre. O cansaço era grande, mas ninguém deixaria de
trabalhar por sentir na carne o peso das longas e
extenuantes jornadas. Era o pretexto de que precisavam
para o povo da aldeia me chamar, além de todos os
nomes ordinários, de preguiçosa, vadia, porca. Mas a
minha decisão era mais certa do que meu cansaço. Era o
esgotamento da minha mente, da minha vida, do meu
peito e das coisas que lá estavam. Noutros tempos
continuaria a lavar roupa pela mixaria que eles pagavam.
Mas eu não era a mesma Luzia entrando na igreja num
dia de chuva, em busca do trabalho e do abrigo que a
casa de Deus poderia me dar. Agora eu era a velha Luzia,
forjada nos embates da vida e que não aceitava mais os
insultos e as pedras que o povaréu cheio de ódio me
destinava.
Se tivesse aceitado o tratamento oferecido pela
Tapera, é provável que não estivesse mais aqui para
repetir essa história. Quando começaram a me perseguir,
permaneci calada, sempre tinha sido assim. Nas
primeiras vezes, quando nova, inocente de tudo,
chorava. Depois fiquei exausta de chorar, e por não
reagir parecia que eu havia aceitado o destino escrito
pelas linhas tortas de Deus. Quando o teto da nossa casa
queimou, atiraram pedras em nós, até que uma atingiu o
menino. Senti ódio, mas a minha fraqueza prevaleceu, e
tampouco sabia como reagir. Depois veio o incêndio da
igreja e voltaram a atirar pedras em mim. Me chamaram
de bruxa, feiticeira, macumbeira. “Pois chamem”, gritei,
“e tenham medo do feitiço.”
Em meio ao alvoroço que minha vida se tornou depois
do fogo na igreja, meu pai foi ficando cada dia mais
alheio à hostilidade do povo. Seguia uma rotina de
fingimento e era possível que não tivesse a consciência
do seu fingir. Se dirigia à tarefa de terra carregando a
enxada com esforço para passar o dia limpando tudo
sem plantar nada. O que costumava fazer numa manhã
agora levava mais de uma semana. Os cultivos não eram
sortidos, de nada serviam. Plantava mais aipim, mas o
certo era que morressem antes da colheita por falta de
cuidado. Quase nada vingava e cada vez mais era
preciso comprar a comida que levava à mesa. Meu pai
passava o dia retirando as ervas daninhas crescidas a
esmo. Tinha uma aparência fraca, uma vida desregrada.
Emagreceu, se alimentava mal, e aos poucos ficou com
jeito de doente. Mas o juízo respondia bem — até demais
— e não costumava acatar conselho algum. Para ele, eu
continuava a ser a filha incapaz, a solteirona, e que só
havia vivido para cuidar das roupas da igreja.
As cabeças de Zazau e do Menino balançavam à
minha frente com os solavancos da van. O dia úmido me
fazia suar feito cuscuz. Se metade do tempo eu pensava
em como cuidaríamos do nosso pai quando voltasse para
casa, na outra metade era o cortejo doloroso de
recordações correndo em minha cabeça, e por isso eu
repetia a mim mesma: nem me perguntem por que vocês
não conseguirão acompanhar meu raciocínio. Não
conseguirão sentir tudo o que senti porque nunca
habitaram este corpo. Até você, minha irmã, uma mulher
batalhadora, mulher de trabalho, é incapaz de
compreender. Bom ou ruim, você tem um marido, tem
seus filhos e não foi marcada com o Mal, nem carregou
os mesmos fardos que eu, incluindo o que está nas
minhas costas. E você, Menino, é agora um homem e as
coisas pesam diferente. Não sabe o que se passa no
coração de alguém como eu, alguém que teve que
enfrentar o mundo sem nunca entender por que
precisava ser assim. Então, eu aviso, Menino: não preciso
do seu perdão, assim como espero que não precise do
meu. Advirto também: depois de tudo o que eu vi
naquele mosteiro assombrado, não precisamos do
perdão de Deus nem Ele deve esperar que consideremos
essa possibilidade. Esqueça, tire isso da sua cabeça. Se
você ainda tem alguma mágoa, não a persiga, nem tente
recordar todos os dias o mal que te fizeram. Você não é o
mal que te destinaram, nem Luzia é o mal com que a
desenharam.
O transporte deu um solavanco depois de passar por
mais uma lombada, arre, pensei, segurando a sacola e
me aprumando no assento. Zazau olhou para trás, talvez
para perguntar se faltava muito até a Santa Casa. Eu
devolvi o olhar e bem sabia que era provável que
continuasse a me compreender.
E o Menino me ajudou a descer da van, nos dirigimos
ao hospital apinhado de gente. Camas velhas e
enferrujadas, médicos e enfermeiras passando
apressados olhando os telefones de um lado a outro. “É
por ali”, uma senhora disse antes de me olhar de cima a
baixo. Chegamos à enfermaria e vimos nosso pai com o
rosto, o torso e uma das pernas enfaixados. Nos
aproximamos bem devagar, Zazau primeiro, eu depois e
em seguida o Menino. “Como o senhor está?”, “Dói?”, “O
senhor se alimentou?”, Zazau dirigia todas as perguntas
que queríamos fazer. Ele nos olhava, fechava os olhos,
respondia com vagar. Mas parecia não reconhecer o rosto
do Menino e o chamou de Joaquim. “Não, pai, este não é
Joaquim”, Zazau falou.
“Sou Moisés”, ele corrigiu.
E os olhos de meu pai marejaram. Ele repetiu: “Você
veio, Moisés, você veio!”. Olhou então para mim e falou:
“E não é que ele parece com minha avó índia? E parece
com você também, Luzia”.
Naquele instante percebi que a história mais bem
guardada pelas mulheres da casa, abandonadas no
passado em suas misérias, no ano que a rapariga
perturbou a vida da Tapera, já não tinha como ser
mantida em segredo.
5

E foi há muito tempo que a maré começou a mudar. Foi


antes de meu pai partir num saveiro atrás da mulher
perdida, da mulher da vida, e ao mesmo tempo que
chegou o meu devedor à Tapera. E minha mãe, minha
mãe catando os fiapos da vida diante da beira da
derrota, minha mãe um dia reparou num homem vistoso
e gentil me cercando de cima de seu cavalo. “É preciso
melhorar a raça, Luzia, é preciso se antecipar às moças
da Tapera que põem olho grande nos forasteiros”, ela me
disse. “É preciso segurar um homem que possa te levar
daqui para um lugar melhor. Não faça como sua irmã
Maria que desembestou a seguir um zé-ninguém e deu
no que deu”, repetiu. E eu, sem entender o que minha
mãe queria dizer, deixei aquele homem, aquele homem
bem-apessoado, que os nossos começaram a chamar de
almofadinha, que tinha parentela com os antigos donos
da fazenda vizinha, se acercar e desejar bom-dia, e
deixei também seus olhos percorrerem meu corpo. Seu
jeito requintado de homem de posse me fez suspirar,
como se descobrisse que meu dia havia chegado.
Eu dei corda. Eu, que me achava feia perto das
caboclas da Tapera, não entendia muito bem o que
aquele homem tinha visto em mim. Seguia para o rio
para lavar as roupas de casa com Zazau. Prestava mais
atenção no horizonte, em quem chegava e quem partia,
do que nas nódoas de roupa a serem alvejadas. Mais
importava a minha salvação. Quem sabe não seria ele a
me levar da Tapera, a me levar para a cidade, para viver
numa casa decente onde pudesse ver os carros da minha
janela, onde pudesse andar de ônibus e frequentar os
mercados que diziam existir? Só assim para escapar da
sina de mariscar, de viver da maré, de roçar e ver
homem partir nos saveiros atrás de mulher da vida para
nunca mais voltar.
E vez ou outra ele se achegava pelas beiradas do rio,
diante da porta de nossa casa, pelos caminhos da
Tapera. Olhando de través, sempre, enquanto eu
esperava que se dirigisse a mim, atravessando conversa
com os que lambiam suas botas e infernizavam nossas
vidas com a cobrança do imposto. “Vá ver ele nem está
olhando para a gente, Luzia, isso é coisa da cabeça da
mãe, que está a cada dia mais aluada”, Zazau me
alertava. Mas eu sentia meu corpo mudar, na mesma
medida em que queria encontrar a paz que não tinha.
Buscava meios de me afastar do povo da Tapera, que
criava suas histórias para me ferir. Deixar a casa com um
homem era maneira digna de uma mulher deixar a
Tapera. Nenhuma mulher deixava a casa sozinha; só saía
para o mundo sem homem se estava perdida, se era
mulher do mundo. Minha irmã Mariinha precisou sair com
um zé-ninguém. E mesmo nossa mãe, contrária, não se
opôs, porque qualquer coisa valia quando o destino era
se salvar da vidinha ordinária, rasteira, da penúria da
Tapera, da pobreza e da fome que nunca nos dava
trégua. Mesmo a mãe não tendo nenhuma simpatia pelo
homem que levou Mariinha, mesmo a mãe reclamando
pelos cantos da casa que não fazia gosto pela união da
filha com o tal sujeito, ela arrumou o farnel, a farinha, as
raízes da tarefa de terra do pai. Pediu a Joaquim, com os
últimos tostões de que dispunha, que comprasse um
pacote de bolacha mata-fome para que a filha fizesse a
travessia com alguma dignidade. Minha mãe chorou feito
uma criança quando viu Mariinha partir em pau de arara,
a caminho de destino incerto para viver de morada, em
terra que ninguém conhecia, só porque não havia lugar
para os filhos na Tapera. Essa era a sina dos fracos, dos
que moravam em casa humilde, dos que plantavam roça
ou trabalhavam apanhando peixe, dos esquecidos pelo
Deus das esperanças. Os fortes eram os comerciantes, os
cobradores, os que diziam não ter medo de trabalho, os
abençoados por dom Tomás e por Bom Jesus.
Mas a maré estava mudando e era possível que
tivesse chegado a minha hora também. O meu destino
podia ser diferente do de Mariinha. Aquele homem não
era branco, eu bem via, mas reluzia claro. Era
perfumado, gargalhava, não eram bons modos, tudo
bem, “mas qual o rapaz que não fazia o mesmo?”, minha
mãe perguntou. Ele não podia ver um rabo de saia, as
moças da Tapera atravessando a terra com as latas de
marisco na cabeça, ele olhava. Olhava para todas, mas
também olhava para mim na ausência delas. Eu fui
amolecendo, comecei a retribuir os bons gestos, o
sorriso, o chapéu caindo sobre os olhos, o capim no canto
da boca. Eu ria sem riso, desviando o olhar, fingindo não
me importar. Não fazia mais porque Zazau andava
sempre comigo, era ordem da mãe, uma cuidava da
outra para que nenhum filho de uma égua atrevido
desgraçasse as filhas antes do tempo. As mulheres só
podiam se desgraçar no tempo certo, dizia. Se
desgraçavam cuidando de filhos e marido, se
desgraçavam com o tempo ferino.
E o tempo passava e aquele homem não se achegava
à minha mãe, não se achegava a meu pai, para dizer
qualquer coisa. “Tire isso da sua cabeça”, Zazau
advertia, “não dê ouvidos para essa conversa doida da
mãe. Não está vendo que esse fulano não vai querer
nada com a gente morando nos arrabaldes da Tapera?”
Mas o meu corpo não queria saber, o cheiro forte que
deixava meus braços, minhas pernas, o meu rosto
oleoso, as feridas que se abriam, era por isso, eu sabia,
era porque tinha chegado a minha hora de ser bicho
também. Como seria bom se ele quisesse me conhecer e
que o desejo da mãe se realizasse.
Haveria de ter um dia em que minha irmã não
precisasse me acompanhar, e que o moço, ainda que
vivesse em bebedeira com os sem-trabalho da Tapera, se
chegasse a mim. Então, as coisas poderiam acontecer
mais rápido: um encontro, um pedido de namoro, ou
quem sabe até pulava para o noivado. Dei um jeito de
dispensar Zazau, no dia em que ela me contou da cólica.
Um chá de cavalinha e panos quentes sobre a barriga
foram suficientes para que entendesse que eu precisava
lavar a roupa sozinha. “Olha lá, Luzia”, minha irmã me
disse, e eu devolvi a preocupação dizendo que ela
sossegasse porque eu ia num pé e voltava noutro.
Equilibrei a trouxa na cabeça, essa seria minha sina por
poucos dias, eu tentava me convencer, e segui pelas
veredas para encontrar o rio. Mas o corpo é chama e se
atiça. Pode nos levar pelos caminhos arrevesados, para
longe do rio onde tem água, a água que apaga o fogo.
Foi então que no caminho um menino da aldeia me
deu um bilhete e pediu para eu entregar a um viajante.
“É assim que ele se chama”, me disse, e assim que
estava escrito. Poderia ter perguntado por que ele
mesmo não fazia a entrega, mas era a minha chance,
talvez a derradeira de ficar frente a frente com a fera e
deixar que ele transformasse seu olhar em promessa. Eu
diria: “É com meu pai e com minha mãe, são eles que
decidem”. Mas devolveria o olhar com confiança,
deixaria claro que eu queria. Que quando ele quisesse eu
iria embora para a cidade, porque ele se vestia como os
moços de bons caminhos. Suas roupas não eram puídas,
nem sujas, ou pela metade como as dos homens da
Tapera. Se bem que aquele menino que me deu esse
bilhete, de onde saiu?, me perguntei. Era tarde: eu me
consumia feito folha seca, e minha barriga cantava feito
madeira quando queima.
Me vi diante de um barraco abandonado. “Arte de
homem”, minha mãe diria, “deve ter inventado essa
história de bilhete apenas para criar coragem de falar
contigo.” Deixei me levar com a trouxa na cabeça, era
uma trouxa pequena, metade das peças já que não teria
Zazau para ajudar. O barraco estava sombreado, em
silêncio, era uma penumbra, já não tinha janela e o teto
era palha gasta. Cumprimentei, “Tarde”, ele não
respondeu. Estendi a mão, e nem consegui dizer que o
moleque na estrada pediu para entregar o bilhete. Ele
me puxou com força pelo mesmo braço que estendi, a
trouxa caiu, caiu macia no chão de terra. Ele cheirou meu
pescoço e eu me assustei e olhei para a porta para ver se
vinha alguém. Tentei me desvencilhar: “Não, moço, eu
tenho que lavar a roupa no rio, minha irmã está me
esperando”, menti. Ele chamou baixinho: “Venha,
morena, venha, morena”, e já estava com as calças nas
mãos quando me empurrou e eu caí no chão. Tentei me
rastejar como uma cobra para chegar à porta, mas ele
veio feroz como um cão e me cobriu feito os bichos se
cobrem. Tudo foi ficando escuro, o corpo doía, até que eu
estava sozinha de novo e não conseguia saber como
tinha ido parar ali.
Baixei o vestido, pus a mão na minha perna e uma
linha de qualquer coisa me deixava. Perguntei, depois de
tudo, para onde ele tinha ido, o que tinha acontecido, era
tarde e talvez nunca mais eu soubesse o que havia
ocorrido naquele barraco. E quando cheguei na beira da
estrada desabei de novo, sozinha, era o mormaço, o
vento não corria e a trouxa fez um som de coisa leve
encontrando a terra. Meu corpo parecia macio e depois
foi ficando duro, rígido, seco.
Do chão eu olhei para o céu e vi os galhos de um
jequitibá miúdo. A luz era como as rendas que as
mulheres teciam, um véu a cobrir meu corpo. E lá do
alto, um pássaro, um pássaro preto de olhos vermelhos
olhava para mim como se me conhecesse: e só por isso
soltou um trinado.
6

Mas o Mal não me alcançou naquele instante, enquanto


um fio de qualquer coisa escorria por minha perna. Eu
conhecia o Mal desde antes e era como uma labareda se
estendendo feito uma língua para me encontrar onde eu
estivesse. Quando tudo começou, eu não sei, na barriga
da minha mãe, não sei, quando demoraram de me
batizar, era o que diziam. Quando fui crescendo, vi o
povo encontrando o Mal em todo lugar, talvez tenha sido
por isso que o Mal me encontrou. Estava por toda parte.
Falavam do Mal enquanto os meninos se banhavam nus
no rio. Era o Mal que fazia os homens perderem a cabeça
e surrarem as mulheres. Culpavam o Mal quando uma
mulher deixava a casa para cair no mundo, sem volta,
atrás de um homem. Por isso chamavam por Deus; a
gente não tinha força suficiente para lutar. O Mal invadia
o corpo, invadia os pensamentos, era assim que os
padres diziam nas pregações. Comigo foi pior porque o
povo da Tapera começou a dizer: “As desgraças que se
abatem sobre nós são culpa da menina Luzia”. Começou
quando Edite contou que eu invocava o fogo e depois
desapareceu sem nos dizer como.
Dessa vez o Mal não estava nos olhos dos outros.
Comecei a senti-lo por mim mesma, em minhas próprias
entranhas, e aos poucos ele foi ganhando outros nomes:
fogo, fúria, raiva, ódio, danação. Mas antes de começar a
sentir o grande desconforto, fui tentar entender o
mundo. Talvez o moço que me cheirou o corpo e me
jogou no chão fosse encabulado. Não aguentou esperar
pelo casamento, o instinto tinha sido mais forte do que
ele. Ele voltaria, continuaria a me olhar, não me deixaria
perdida pela vida. Talvez ele já soubesse que se meu pai
descobrisse o que me fez, me mataria. Minha mãe era
capaz de não me olhar nunca mais por vergonha. Ele não
faria tamanha descortesia.
Eu me levantei depois da vertigem, debaixo da sombra
do jequitibá, depois que o pássaro cantou e voou com
seus olhos de fogo. Eu abaixei a saia, o branco se
incrustou na pele e era também o barro do chão e a cor,
a minha cor. Levantei a trouxa e segui para o rio, meus
pensamentos tentavam arrumar a desordem. Ah,
menina! É a vida! E o rio foi se achegando, não fui eu
que caminhei, foi o rio que se achegou até mim. Lavei as
roupas, estendi ao sol e esperei que secassem para
voltar para casa. As águas me lavaram, banharam minha
vergonha entre as pernas, e até ali o Mal não tinha se
apossado de mim.
Ele só começou a me queimar por dentro quando o
tempo foi passando, quando as veredas não sentiram
mais o trotar do cavalo cavalgado pelo moço ora claro,
ora pardo, aquele homem que a depender da luz e da
distância da minha memória, mudava de cor. Aceitei, por
fim, que estava sem minha honra. Não conseguia mais
dormir porque não saía da minha cabeça que, se meu pai
soubesse, me mataria. Que minha mãe não passaria a
mão por minha cabeça, iria me excomungar. Iria dizer
que o moço tinha ido embora porque me entreguei e era
mulher fácil. Quem iria acreditar que eu fui entregar um
bilhete que me deram e a pressa havia sido dele? Talvez
me pusessem para fora de casa. Foi quando eu me senti
mais fraca do que antes. Agora é que essa gente da
Tapera vai pintar e bordar sobre minha carcaça.
Eu não desisti de primeira. Fiquei como besta na
janela, olhando para o povo indo e vindo do rio,
esperando que ele aparecesse. Esperei por muitos dias.
Provável ser um mal-entendido. Ele não iria para longe.
Voltaria, procuraria por mim. Faria chegar a ele a
mensagem sobre minhas prendas: de que iria tratar o
moço bem, que eu já não era uma ignorante, tinha virado
mulher. Não iria ficar pelos cantos esperando que ele se
decidisse e o chamaria à responsabilidade.
Mas ele desapareceu da mesma maneira que chegou.
E o Mal já não estava somente no povo que inventava
coisas sobre mim: se acendeu por dentro e eu estalei de
novo como a lenha numa fogueira. Quando fui sentindo
essa coisa se acender, pude entender por que a vida da
Tapera girava em torno das desavenças, das mentiras e
dos desencantos que foram minando toda a história que
tínhamos em comum. Foi quando a língua de fogo,
invisível, que me chegava pelas intrigas dos vizinhos,
não ficou mais do lado de fora de meu corpo me
lambendo, queimando. Foi se entranhando em mim como
uma alma penada, e ficando aqui dentro para nunca mais
sair.
Zazau percebeu meu desnorteio e tentou falar comigo.
Fiquei quieta. “Minha mãe encheu sua cabeça de
caraminhola, Luzia, agora você está sofrendo”, ela me
disse. O rapaz se foi e nunca mais voltou. Continuei
quieta. “O que dizer?”, me perguntei, mas não conseguia
imaginar uma história que parecesse verdadeira. Meu
rosto foi ficando amargurado. Meus olhos miravam as
águas enquanto lavava a roupa e via o mesmo desgosto
de minha mãe. O que havia se sucedido nos últimos anos
fez a velha Alzira ficar mais velha. Abatida, encurvada,
não vivia bem com o pai e ele perdia a cabeça por
qualquer besteira. E ela foi perdendo o tino das coisas: a
vontade de cozinhar, de se lavar, de se levantar da
cama. Zazau dizia que era melancolia pelos filhos que se
foram. Era marasmo porque meu pai andava cada vez
mais longe de casa, bebendo no bar da Tapera.
Minha desolação pela espera, a certeza de que tinha
sido enganada, foi ganhando traços, como as pinturas
que as mulheres da vida usavam. Mas era uma pintura
sem tinta, feia, sulcos rachando a pele, marcando a
velhice e o desgosto. O Mal era tudo isso e, também, a
náusea que me tomou de surpresa. Como não enjoar
desse mundo mesquinho, me perguntei. O Mal foi o
vômito que não controlei e jogou restos de cuscuz aos
pés de Zazau, apavorada com meu estado. Ela me fez
beber um chá de hortelã miúdo. O Mal endureceu meus
peitos e levou as regras que chegavam de lua em lua.
Quando já tinha se apossado de meu corpo, fez meu
bucho crescer como se estivesse cheia de vermes. E um
dia, enquanto eu lavava a roupa de casa no rio, Zazau
me perguntou se eu estava bem. Que dizer?, me
perguntei, de cabeça baixa, esfregando a calça surrada
de meu pai. “Suas costas, Luzia, tem uma corcova
nascendo em suas costas”, ela me disse.
E eu me arrepiei.
7

Onde mais o Mal nasceria?, me perguntei, enquanto


escutava a missa. Ao meu lado estava minha mãe,
ausente de tudo, junto com minha irmã. Pus um pano
surrado sobre os ombros, um pano ordinário para cobrir
minha corcova. Nasceria um chifre ou um olho no meio
da testa?, quis saber de Deus e de santo Antônio entre
uma ave-maria e um pai-nosso. Mas não foi só a mim que
o Mal apareceu: chegou feito mulher, vindo da capital e
com o nome de Zoraide. Enfeitiçou metade dos homens
da Tapera. Meu pai, Mundinho, estava entre eles. Já não
era diligente com o trabalho. Tinha dias que nem subia o
tabuleiro para limpar o campo. Vivia no único boteco
daquelas paragens entre dominó, palitos e goles de
cachaça. Zoraide também bebia, bebia para espanto das
mulheres maltratadas da Tapera. E gargalhava bem alto.
Depois de sua chegada não havia outro assunto. As
mulheres diziam que a perdida se amasiava com um e
com outro, como se o mundo fosse acabar. Vinha verão
sim, verão não, para visitar a família, gente da Igreja que
comungava conosco. Prima, irmã, nunca soube ao certo.
Não tenho memória de ter visto a perdida quase nunca
antes daquela estação.
Eu só soube sobre Zoraide porque sua presença
naquele ano causou grande confusão. Era provável que,
se não corressem notícias sobre sua presença, como
correram de maneira desenfreada, eu não viesse a saber.
Minha vida era de casa para a igreja e da igreja para
casa, e de casa para o rio durante a semana. Mas tenho
memória de ver Zoraide pintada, a boca rubra, os cílios
grandes e o cabelo arrumado, preto, cheio, pedindo para
ser vista. Usava um vestido curto, os homens paravam
de trançar as redes de peixe apenas para a ver passar.
Zoraide fazia eles revirarem os olhos na esperança de
poderem divisar um pouco mais de seu corpo. As
mulheres andavam aflitas, torciam a boca, cochichavam
entre si e as rezas já não eram suficientes, diziam, então
recorriam aos feitiços das mais antigas da Tapera: nome
do homem no mel, velas e incensos. Água daqui e de
acolá para encantar os maridos. Trocavam magias,
simpatias, mas Zoraide era coisa-feita. Continuava para
lá e para cá arrebatando os homens.
Mais de uma vez chegou notícia à beira do rio. As
mulheres ficaram desesperadas, disputando histórias,
acusando umas às outras de tramarem, inventarem, de
favorecerem a perdida da Zoraide. Isso envolvia as donas
daquela casa, a casa onde Zoraide se instalava, que
levantavam as vassouras e brandiam com as mãos no ar
para demonstrar força e indignação com os boatos
multiplicados. Começaram a dizer que eram católicas,
cristãs, para por fim lembrarem que também eram filhas
de Cachoeira, terra de santo, e sabiam mexer com ebó e
despacho. Uma delas era beata e passou a desconfiar de
um momento para outro. Vivia de fuxicar pela ordem da
gente sem regra, conforme orientada pelos padres da
Tapera. Levava os relatos da esculhambação para a
sacristia. Na missa seguinte o sermão costumava se
estender, render, esticar para além dos sinos. O padre
clamava por decência e repetia que, se não fôssemos
capazes de vigiar o Mal, perderíamos a guerra.
Minha mãe foi se dando conta da ausência de meu pai
quando começou a faltar a comida que nos alimentava.
“Quede o aipim?”, perguntava. “Quede a batata-doce?”,
e revirava os trapos em cima da lenha. “Quede seu pai?”,
perguntava a Zazau. A gente dizia: “Eu não sei, minha
mãe”. Passou a ficar desconfiada. “Ele saiu e não levou a
enxada. Esse homem não quer mais saber de trabalhar.”
Zazau corria para colher algo na roça. Voltava mexida.
“Os pés de planta estão secando, Luzia, que havemos de
fazer, me diga?” O sol forte tornava a brisa um bafo
quente e as nuvens no céu não eram prenúncio de
chuva. Colhíamos as raízes mirradas, as ervas daninhas
se alastravam pelos pés de tudo, matando o que crescia
no terreno sem cuidado. Passávamos longe do boteco e
lá estava ele, rindo, mas nem sinal da perdida. Os
homens batiam as pedras do dominó no tabuleiro com
força, como se atirassem em pássaro no ermo do campo,
só para impressionar a rapariga. Mas não contávamos à
nossa mãe, ficávamos quietas. Trazíamos do caminho
araçás-mirins, pitangas, cocos — que os meninos
trepavam para colher —, as coisas que cresciam livres
sem precisar pagar nem plantar. Pagávamos pelo cacho
de dendê, pilávamos à mão, escorríamos a flor do azeite
nas garrafas de vidro. Tinha a cor do sol alaranjado
quando se punha no começo do ano. Vendíamos os litros
para os atravessadores, que nos davam quase nada. Os
braços se tornavam duros como os dos homens.
Meu pai não era diferente dos homens que
conhecíamos e não abandonou a roça de todo.
Trabalhava dia sim, dia não, mas estava com a cabeça na
gandaia sem fim do boteco. E o pensamento todo em
Zoraide. Minha mãe saía da cama para a janela, da
janela voltava para a cama. Beliscava a comida, afastava
o prato, contrariada. Olhava para Zazau e perguntava:
“Quede seu pai?”. “Deve estar na venda”, minha irmã
respondia. Voltava à janela, inquieta, e mirava a gente
andando para lá e para cá. Eram mulheres, umas
falavam mais baixo, vergonha, outras diziam alto, na
esperança de serem ouvidas, que seus homens estavam
atrás da vadia. Minha mãe conversava pouco com a
vizinhança desde que me marcaram como o Mal, mas
sentia o rumor como um pássaro pressente a chuva. Algo
de ruim estava para acontecer, algo de ruim já tinha
acontecido no passado, então era mais fácil ter atenção
para sentir o ar inquieto, o rumor de homens e mulheres,
as coisas que às vezes sequer são ditas.
Minha mãe foi mergulhando no desespero pouco a
pouco. Desconsolo sem grito, mudo, mas retumbava nos
olhos, no tremor do corpo, nas mãos agitadas que,
exaustas, paravam uma a uma sobre o peito. “Seu pai
está demorando, Luzia, vá chamar.” Ele não voltaria, eu
tinha certeza, mas não conseguia deixar minha mãe
olhando para mim como se fosse seu último recurso para
se manter sã. Então eu ia para a rua, veja bem, seguia
ladeando para não levantar as suspeitas de meu pai, que
não perdoaria uma filha ir buscar um homem-feito, o
provedor da casa, na porta do boteco. Joaquim já vivia no
saveiro Dadivoso, indo e voltando do mercado da capital,
carregando e descarregando suprimentos para a feira.
Humberto, Mariinha e Raimundo já tinham caído no
mundo, não sabíamos por onde andavam nem onde
viviam. Então sobrava para Zazau e para mim. “A gente
chega perto, Luzia”, minha irmã dizia, “mas a gente não
pode chamar o pai senão a desgraça estará feita em
casa.” Depois mentíamos: ele não estava, ou estava
ajudando o fulano na roça, ou que parecia já estar se
aprumando para voltar para casa. Lá estavam eles, os
homens da Tapera, e a puta com as pernas de fora
falando alto e rindo mais ainda. Ria certa de que poderia
ter qualquer homem ao seu lado.
A raiva me alcançava, subia fervendo pelas entranhas.
“É o Mal”, o padre dizia nos sermões. Mas ao mesmo
tempo meus olhos não conseguiam deixar de olhar
aquela mulher. Tinha mistério no jeito escandaloso.
Olhava como ela se sentava, se levantava, deixava os
homens lhe servirem bebida. Havia na falta de recato
qualquer coisa de repulsivo, uma devassidão, a
libertinagem, só para usar as palavras de advertência do
padre aos domingos. Mas também tinha encanto, o
encanto de saber que uma mulher podia fazer o que
quisesse com os homens, sempre dominantes com todas
as outras, mesmo que Deus e o povo não aprovassem.
Tinha sedução nos seus gestos e minha barriga esfriava
como se descobrisse o novo. Uma mulher pode, ela
ensinava para outra. E falava com sua presença,
ofendendo as mulheres. Falava com a boca pintada, as
unhas grandes e vermelhas. Me dizia coisas mesmo que
não olhasse para mim, mesmo que não soubesse meu
nome. Me dizia à alma o que eu nunca conseguiria
revelar.
8

O dia em que Zazau perguntou se eu estava bem foi o


mesmo em que meu pai deixou a casa. Naquela manhã,
minha mãe se contorceu na cama quando percebeu o
vaivém de Mundinho recolhendo os poucos pertences e
perguntou para mim, para Zazau, e sobretudo para ele, o
que estava acontecendo. “Aonde Mundinho vai com essa
trouxa?”, quis saber. Ele vestiu a roupa menos
remendada e que parecia ser mais nova e disse que ia
trabalhar na cidade. Iria viajar no saveiro de seu Valter.
Penteou o cabelo crespo, bateu no rosto depois de se
barbear com a velha navalha amolada no couro e se
mirou num pedaço de espelho. Minha mãe quis saber
que história era aquela de viajar para a cidade, de ir
trabalhar por lá. “Você queria voltar a viver nesta aldeia
onde nasceu e se criou, nunca falou de ir morar na
cidade. Como vamos ficar?”, perguntou, e os olhos
pareciam adormecidos, depois inquietos e, no momento
seguinte, paralisados. “Aqui, me esperando”, meu pai
disse. Desviei meus olhos dos de Zazau, que, observando
meu corpo, começava a entender o delicado estado em
que me encontrava.
Meu pai chegou à porta sem olhar para trás. Então
minha mãe se lançou à sua frente querendo saber sobre
a decisão de viver longe. “É a vadia, não é?”, perguntou.
Ele quis saber de que mulher ela falava. “A rapariga que
anda para cima e para baixo atrás dos homens casados,
as vizinhas estão dizendo.” “Cambada de mulher que não
tem o que fazer e fica por aí falando da vida dos outros”,
ele berrou. Minha mãe se agarrou à manga da camisa de
meu pai que eu tinha passado no dia anterior. Ela estava
tomada pela raiva e por um momento parecia reagir à
melancolia. Sua agonia era pelo apego ao marido, já
sentia a aflição de viver sem ele, de perder, talvez, seu
homem para outra mulher.
Anos vivendo sob o mesmo teto e dividindo a vida, a
labuta, os filhos. “Dividindo” não era bem a palavra, ela
que vivia todas as coisas. Meu pai passava os olhos e se
sentia satisfeito apenas de ver as coisas em seu devido
lugar. Da porta para fora o mundo era seu e as coisas de
que precisávamos também eram sua obrigação. Desde
cedo carregou os filhos para o trabalho, era sua maneira
de ensinar a se virarem, se protegerem, crescerem no
mundo para sobreviver. Da porta para dentro era minha
mãe a provedora. Transformava o alimento em comida.
Agradava, enchia a barriga dos filhos. Ela nos ensinou a
manter a casa limpa. “Casa suja é chiqueiro e nós não
somos porcos”, repetia. Era autoridade a ser
considerada. Trabalhava feito um animal e não dispunha
dos momentos de convivência com o povo da Tapera,
como meu pai. Saía de casa apenas para lavar a trouxa
de roupa no rio ou para mariscar na beira do mangue ou
ainda para ir à igreja, domingos e dias santos, para servir
ao Bom Jesus, sempre acompanhada da renca de filhos.
“Sai de mim, Alzira, deixa de maluquice, mulher.” A
mão de meu pai empurrou minha mãe para o canto da
parede, e ela, fraca, cedeu. Ela gritou, gritou como se
fosse a última coisa que seu fiozinho de força lhe fosse
permitir. Gritou porque as mulheres em algum momento
da vida, as mulheres da Tapera, passaram por destino
parecido. Zazau tentou ajudar minha mãe a se recompor.
Ela recuperou o equilíbrio, mas saiu desembestada pela
porta atrás de meu pai, caminhando em direção ao
saveiro. Gritava mais alto e já não era possível esconder
que nossa família tinha sido atravessada pela mulher
perdida. Enquanto ele se afastava, minha mãe parou,
sem fôlego. Segurou os joelhos com as duas mãos. Zazau
a alcançou enquanto mulheres e crianças da vizinhança
cercavam a paisagem para abelhudar a desavença.
Não tive coragem de seguir Zazau para tentar
proteger minha mãe da vergonha que se abatia sobre a
gente. Da porta, observei a cena com apreensão, mas
também com a certeza de que já tinha visto outras
mulheres gritarem por seus homens na Tapera. Meu
corpo tremeu feito vara verde, o coração prestes a sair
pela boca levando tudo e mais o pouco que tinha comido
ao me levantar. Naquele instante foram passando coisas
medonhas na minha cabeça. Me preocupava como
ficaríamos sem o pai por perto e se daríamos conta das
obrigações. Se não cultivássemos a tarefa de terra, os
padres e os cobradores de impostos iriam destinar o que
era nosso a outra família. Então só nos restariam a casa
e o mangue e as frutas doces da quinta dos padres,
quando nos permitissem colher.
Já sentia mágoa do meu pai por tanta coisa, e assim vi
crescer ainda mais o mal que me assombrava, agora sem
fim. Naquele instante passei a sentir raiva pela
indiferença aos gritos de minha mãe; por ele permitir a
desordem sob os olhos da vizinhança. Por meus olhos
estarem voltados para minha mãe, não vi quando ele
subiu no saveiro, nem quando a embarcação correu o rio
com os ventos enchendo suas velas. Queria apenas que
Zazau a trouxesse para casa, porque meus pés eram
incapazes de sair do lugar.
Os dias se seguiram piores, porque à medida que
minha mãe definhava na cama sem querer falar, comer
ou tomar banho, minha irmã parecia se cansar das
tarefas. Além de vigiar nossa mãe, Zazau implorava para
eu dizer o que acontecia comigo. “Luzia, sua regra
desceu?”, minha irmã sussurrou, com receio de que
algum bisbilhoteiro ou mesmo Deus nos ouvisse.
Respondi. “E quem foi, foi aquele homem que
desapareceu?”, perguntou. Baixei os olhos. “E o que
vamos fazer quando a mãe descobrir, minha Nossa
Senhora?”, Zazau continuou a perguntar, sussurrando. A
pergunta não era para mim, mas ficou repisando a minha
cabeça até me tirar o sono.
No domingo, minha mãe não se levantou para ir à
missa e por isso eu pedi para ficar em casa. Zazau se
ofereceu para ficar em meu lugar, mas preferi não estar
a sós com o povo da Tapera. Não poderia arriscar um
acerto de contas. Foi quando ela me disse: “Eu fico com
você”, mas eu a convenci de que alguém precisava
prestar contas a Deus da condição da nossa mãe e
suplicar para que nosso pai voltasse, do contrário ela não
daria conta de tanto desgosto.
Um mingau de tapioca era a medida do doce e da
quentura para tentar reanimar minha mãe. Com uma
colher aproximei a papa da boca entreaberta, os olhos
ainda fechados, mas para minha surpresa ela despertou
e não resistiu a comer. Como falar com minha mãe sobre
as coisas da vida, eu ensaiava dizer, mas não tinha
coragem. A vida dos pais era imperfeita, e filho nenhum
tinha a medida certa das desavenças. Isso estava além
do meu entendimento. Por isso tentei contornar, dizendo
que ele voltaria, que logo se cansaria da cidade. “O pai
não foi feito para cidade, é homem de roça. Nem pescar
o pai pesca”, falei sem encarar seus olhos. “Não é de
viver errante pelo mundo. O pai tem os pés no chão. Os
pés na terra.”
Minha mãe me olhou e perguntou se eu achava de
verdade que ele voltaria. “Sim”, respondi, “eu não dou
um mês para ele voltar. A senhora precisa estar bem,
minha mãe, para quando ele voltar, ele vai se sentir
aliviado de te ver disposta.” Me levantei para deixar o
prato sobre uma cadeira e quando voltei ela estava
sentada na cama. “Que carcunda é essa, Luzia, aí, nas
suas costas?”, ela me perguntou. Estremeci de medo do
que ela poderia estar vendo. “Eu sempre tive isso”,
disfarcei. “Deve ser da idade.” “Que idade”, me
perguntou, “você é muito moça.” “Pois eu me sinto
velha, minha mãe. Nasceu um fio de cabelo branco esses
dias, logo vou ter cabelo grisalho, como foi com a
senhora.”
Mas tive medo e me afastei para o quintal. Retirei a
tampa do tonel de água e abaixei a roupa que me cobria
o corpo. Virei de um lado a outro, tentando ver o que
minha mãe e Zazau tinham notado. Com minhas mãos
fui me enlaçando, como agarramos as coisas de que
precisamos para sobreviver, e então notei meus dedos
encontrando e percorrendo a saliência rija, uma marca
de tudo o que eu ainda viveria.
9

Depois de dias, depois que o relógio imaginário mostrou


sua vontade de trabalhar, e o tempo era marcado pelas
nuvens do céu, pelo sol e pela lua, pela maré indo e
vindo, meu pressentimento sobre a volta de meu pai não
se confirmou. Minha barriga cresceu, pequena e
malnutrida, despontando visível para que minha mãe,
envergonhada, me rogasse para não sair de casa. “As
mulheres saberão de você, Luzia, se puser os pés para
fora.” Os dias, as semanas e os meses passaram e Zazau
ficou cansada e mal-humorada porque tudo que
precisava ser feito no rio ou na rua passou a ser sua
tarefa. Meu irmão Joaquim ia e vinha da capital como
fazia havia tempos, esperando a oportunidade de se
instalar por lá de uma vez.
Agora que Joaquim se preparava para deixar a casa,
se tornou o portador de notícias, mensageiro entre os
mundos distintos da Tapera e da cidade. Trazia junto com
os peixes, com a farinha de mandioca, com o pacote de
bolacha mata-fome, o pouco dinheiro que o pai mandava.
Minha mãe queria saber se Joaquim tinha visto o pai, se
ele morava com alguma mulher, se estava bem de vida.
O “bem de vida” fazia Joaquim rir bastante. “Meu pai
dorme no armazém, trabalha carregando sacas, não está
sem fazer nada, devia estar desencantado com a roça, é
isso”, retrucou. O pai bebia, imaginávamos, e encontrava
a rapariga, a mãe não tirava aquilo da cabeça. Minha
mãe voltava para a cama, se deitava com as mãos
cruzadas sobre a barriga, esperava não mais se levantar,
como se dali só fosse sair para a cova, nos dizendo sem
palavra que só viveria de novo se meu pai retornasse.
O dinheiro que nos chegava era pouco. “Ele deve ficar
com a maior parte”, minha mãe dizia, esquecendo que
nunca houve conforto algum para a família. Eu observava
o suor abundante correndo pelo seu rosto. Sem a carícia
do vento, o ar de fevereiro era quente e úmido, e o suor
descia em ondas carregadas de mágoa, medo e saudade,
como uma febre que leva a doença embora. Os males
transbordavam de minha mãe, não havia lugar em seu
peito para guardar. Ela estava amargurada e eu a
compreendia porque era assim também que me sentia.
Cheguei a considerar ter sido cortejada. Que aquele
moço gostava de minha aparência, que ele gostava de
me ver. Ele galanteava outras moças da Tapera, mas se
persistia comigo era porque me desejava de verdade.
Meu desejo também foi crescendo, e os conselhos da
mãe para melhorar o nosso destino, embora nada se
dissesse, me fizeram acreditar que era possível. Sentir
desejo era sentir afeição, então bastava, ainda que o
desejo fosse o Mal, diziam os padres, mas não conseguia
deixar de sentir. Rezava, me penitenciava, pedia a
misericórdia de Deus pelo pecado de sentir.
Não foi o bastante para me livrar da desgraça. Fui
atraída como a mariposa que segue a luz do candeeiro. A
luz é bonita, é brilhante, é quente, e quando menos se
espera você é torrada pelo calor. Um pássaro atraído pelo
alpiste fresco para um alçapão. Alimento bom, puro, a
fome de comer e de viver e, pronto!, fecha-se a cancela
para sempre. Dali não há saída. Daqui eu também não
vou sair jamais, desse corpo que agora cresce para a
frente e para trás, uma barriga e um aleijão. Eu entendia
a amargura de minha mãe pelos anos de serviços a meu
pai, aos filhos e a Deus. Tudo o que transbordava de sua
vida começava a se tornar familiar. Eu, daqui a pouco,
estaria transbordando das coisas que não cabiam em
mim, inclusive daquilo que crescia em meu interior.
Como se nossas intimidades fossem uma coisa só, e
sofríamos juntas com o meu estado. Minha mãe se
culpava talvez pelo que me aconteceu, mas não falava,
não tinha forças, então nossas culpas estavam lá,
luminosas como a claridade penetrando as janelas,
juntas, e nossas misericórdias também.
Em breve os cobradores viriam recolher a taxa. Todo
ano a mesma guerra e a constatação era acompanhada
de uma pergunta: de onde retirar o dinheiro do imposto
da Igreja? Quando o pai estava, questionava, se
aborrecia, pintava o diabo para não pagar, e a confusão
estava dada. “Todo mundo paga, compadre, só o senhor
fica inventando história”, era o que diziam Mãozinha e
Chico da Colmeia, padrinhos de metade da Tapera. Não
me recordo se batizaram alguém da nossa casa. Sempre
diziam e eu sempre me esquecia. Eles tinham as
melhores casas: pintadas, telhados novos, portas e
janelas de pau-d’arco maciço. “Deus e santo Antônio
ajudaram”, diziam. Eles definiam os cultivos fora da
Tapera e nas terras da Igreja. Que tarefa de terra seria
trabalhada por família. Eles são justos, o povo dizia.
Gozavam de prestígio junto aos padres, a qualquer
problema eram chamados à casa paroquial, e dali em
diante eles cuidavam. Facão na bainha e espingarda nas
costas. Nem sempre espingarda nas costas; somente nos
dias de caça, mas sabíamos que eles tinham espingarda
nova e boa mira.
Naquele ano de grandes mudanças na vida e na casa,
em meio à mesmice da Tapera, Mãozinha foi ter à nossa
porta. Não perguntou por meu pai, sabia que andava
trabalhando longe, mas perguntou se estávamos
cuidando da tarefa. “Sim”, Zazau mentiu. “Pegamos as
últimas raízes de aipim. Agora é capinar, limpar e fazer a
coivara para plantar milho depois da chuva de são José.
Joaquim cuida da tarefa enquanto meu pai está fora”,
escutei minha irmã falar; mentira, eu sabia. Da janela eu
observava o inquisitório, fazia tempo que meu irmão não
pisava na Tapera. Zazau tinha ido algumas vezes só para
ter certeza de que não nos tomavam o lote. “E comadre
Alzira?”, Mãozinha quis saber. “Está bem, mas hoje está
descansando.” “O médico virá aqui no fim do mês, vou
pedir para passar na casa de vocês”, ele disse. “Carece
não, seu Mãozinha, minha mãe está bem, graças a Deus
e à Nossa Senhora”, Zazau devolveu, olhando firme nos
olhos do cobrador. “Compadre Mundinho deixou o
dinheiro do imposto?”, Mãozinha perguntou, balançando
o carnê de cobrança. “Deixou não, mas decerto Joaquim
vai trazer na próxima semana. O pai sempre manda o
suprimento”, mentiu Zazau mais uma vez. Mandava,
mandava, mas não mandaria o dinheiro da Igreja.
Mentir era a desonra, mas não havia outra saída. “Bom
cristão jamais mente”, o padre dizia em seus sermões.
Mas mentir às vezes era meio de sobreviver. Mentíamos
e confessávamos aos padres, que mandavam nos cobrar,
e mentíamos de novo. Mas não dizíamos sobre o quê.
Pedíamos perdão e recebíamos a penitência: dez ave-
marias, dez pai-nossos. Pagávamos e estávamos livres
de ir viver no inferno. Era mais fácil pagar a Deus do que
pagar aos padres e aos cobradores, aprendemos. Pelo
menos Ele não vinha pessoalmente nos cobrar. Nos
cobrava com doenças, discórdias, aflições e com a perda
da lavoura. Mas tudo isso já enfrentávamos mentindo ou
não e, tenho certeza pelo que os padres diziam na missa,
Deus não iria querer um filho seu sem sua terra para dela
retirar o sustento.
Quando Mãozinha foi embora prometendo voltar,
minha mãe me chamou ao quarto. Contei que era o
cobrador, que tinha vindo buscar o dinheiro do imposto.
Zazau me repreendeu arregalando os olhos, não devia
preocupar nossa mãe. “Veio cobrar, sim, minha mãe”, ela
tentou remendar antes que eu abrisse a boca. “Mas
avisei que o pai está fora e que vai mandar o valor.” “Seu
pai?”, minha mãe perguntou com ironia. “Nós é que
vamos ter que dar um jeito de conseguir o dinheiro para
pagar. Vocês duas não sabem que todo ano seu pai arma
essa confusão com o imposto por não achar justo
pagar?”
Naquele instante, por trás do véu do quarto, sob o
telhado da casa, meu corpo se enrijeceu e a ponta de
alguma coisa se revelou por baixo de minha mão
repousada sobre a barriga. Era como se tudo aquilo fosse
uma grande mentira e eu estivesse morando num sonho
ruim, tamanho o incômodo que sentia.
10

Foi Joaquim quem deu o dinheiro para pagarmos o


imposto da Igreja, para nosso alívio e o de minha mãe, a
cada dia mais abatida. Restava cuidarmos da tarefa de
terra para que não fosse ocupada pelo trabalho de outra
família. Além da roça, o imposto dizia respeito às casas
da Tapera onde vivíamos, porque tudo pertencia a Deus,
e se era de Deus, era da Igreja. Tinha sido assim desde
que desembarcaram os jesuítas, contavam os mais
velhos.
Eu me sentia disposta apesar do calor e da vontade
crescente de beber água e de urinar. Tomei as rédeas das
tarefas de casa, as que Zazau também fazia, para que
ela e Joaquim, quando aparecia, cuidassem dos plantios
de milho e mandioca. Os camboeiros chegaram e
estrondos luminosos lavaram os telhados e as ruas. A
água caía farta, salpicando de lama as paredes das
casas. Se passava um carro pesado era preciso fechar as
janelas porque o barro parava dentro das casas, sobre a
cama, paredes e móveis. As chuvas chegaram
encharcando os vales e enchendo o rio, cobrindo os
mangues e as margens. Eram duas as coisas mais certas
da vida da Tapera: a cobrança do imposto e a chegada
dos camboeiros. Depois da primeira chuvarada, o povo
corria para as roças e cuidava do cultivo da época.
Como os cobradores já tinham passado naquele ano,
então seria difícil alguém bater à nossa porta. Eu
permanecia ao lado de minha mãe entre suspiros,
cochilos e perguntas: “Onde está Zazau? Joaquim trouxe
notícias de seu pai? Quem está cuidando da tarefa de
terra? Você não está saindo, Luzia?”. Eu me resguardava
para não desapontar minha mãe e envergonhar nossa
casa. Bastava o que tinha acontecido, suportávamos a
hostilidade do povo da Tapera desde outros tempos.
Se juntava à indisposição da aldeia comigo a rebeldia
de meu pai, sempre indagando por que ele tinha que
pagar o imposto: “A terra estava aqui desde antes desses
padres novos chegarem” — dizia, iniciando o sermão. A
igreja passou muito tempo abandonada. As terras das
roças pertenciam à viúva e beata Isabel, senhora de
passar o dia de vela acesa e rosário na mão. Vivia de luto
fechado e chegava à missa sempre de preto e véu
cobrindo o rosto. “Minha avó Didita, a que me criou”,
meu pai continuava a contar, “me levava ainda menino
para a igreja depois de restaurada. Essa igreja é antiga,
dos tempos das sesmarias, mas foi queimada, valha-me
Deus, não sei nem porque estou falando disso. Ninguém
quer mais saber dessa desgraça. Minha avó disse que
minha mãe”, meu pai continuava, “deveria ter uns oito
para nove anos quando chegaram os primeiros padres
depois da restauração. Monge, eles chamam, mas o povo
não se acostumou e chama de padre até hoje. Eu mesmo
não alembro de nada, nem está escrito, mas os antigos
sabem de tudo. Quando eu nasci, a igreja já era essa
igreja e passou quase cem anos fechada. Mas foi dona
Isabel, dona da terra, que pagou a restauração. Mandou
trazer engenheiro do Rio de Janeiro e as imagens dos
santos de outros lugares. Promessa feita a santo Antônio,
padroeiro da Tapera, que lhe curou de uma febre sem fim
e fez do marido político respeitado. Essa foi a graça, e a
promessa era doar aos padres. Hoje eles cobram o
imposto, porque de verdade as terras da Igreja, somente
estas, sempre foram deles. Repetem quando mandam
fazer a cobrança que as terras sempre pertenceram à
Igreja. Como nós não temos o documento, mesmo nossa
gente estando aqui há duzentos, trezentos, quinhentos
anos, ficamos de mãos atadas.”
Todos os anos escutávamos a mesma história e não
era diferente de recordar, mesmo na ausência de meu
pai. Ele não deveria estar preocupado em saber como
enfrentaríamos os cobradores. Já tinha cantado o
caminho das pedras, nós que recordássemos da cantiga.
Joaquim e Zazau retornaram da tarefa de terra depois
do meio-dia. Minha irmã tinha as mãos estropiadas. “Não
quero essa vida, não, Luzia”, dizia enquanto esfregava as
mãos na bacia. “Quero ter dinheiro para comprar tudo.
Não quero plantar milho nem aipim nem feijão, nem ficar
debaixo do sol do meio-dia. O primeiro homem de fora
que passar pela Tapera, e me olhar diferente, eu arrumo
minha trouxa e vou embora, como fez Mariinha. Não saio
de casa para viver com homem da Tapera, não. Tudo pé-
rapado. Pena que você não teve sorte, o seu foi embora e
ainda te deixou uma encomenda.”
Senti meu rosto se afoguear com a ofensa. Ah, minha
irmã, boa alma, mas às vezes podia ser traiçoeira. Agora
ela conhecia mais um infortúnio para me azucrinar. “Para
de dizer isso, Zazau”, pedi, me firmando em seus olhos
enquanto ela esfregava as mãos na bacia. “Se você jogar
na minha cara mais uma vez eu vou no seu lugar cuidar
da roça. Também não gosto da Tapera, quero ir embora,
mas não vou te culpar.” “O que é que vamos fazer, Luzia,
você já pensou, quando a criança nascer?”, ela me
perguntou. “O que vamos dizer ao pai quando ele
voltar?”
Com ele me resolveria depois.
Eu me fazia de forte diante de Zazau, mas no fundo de
mim, no fundo do meu coração, eu não pensava em
outra coisa que não fosse a minha desonra. Dormia o
sono dos passarinhos, sem sossego, e pelejava com
meus pensamentos tentando enganar a insônia. Era
Deus e Nossa Senhora de um lado, a memória da minha
desonra e a certeza da má sorte de outro. Me revirava na
esteira de palha, no colchão velho ou na rede de dormir,
dependendo da minha disposição para adormecer.
Passava as manhãs sonolenta, indisposta, os olhos como
se estivessem cobertos de areia fina. Acreditava ser ora
o calor, ora meu embaraço crescendo a olhos vistos.
E veio a dor de dente. “Mulher prenha, os dentes ficam
sensíveis”, escutei minha mãe dizer. Passei noites em
claro e meu rosto começou a inchar. Nunca conseguia
saber se era do lado esquerdo ou direito. Zazau se
preocupou. Disse que ia saber na igreja quando o médico
voltaria à Tapera. “Faz mais de três anos que eles
passaram pela última vez, Zazau, por que passariam
agora de novo?”, perguntei. “Não custa saber”, e lá se foi
em busca de notícia. Quando voltou, disse: “Dentista não
tem, mas me deram esse remédio aqui”, me entregou
um pequeno frasco com um líquido claro. “Embebe em
um pouco de algodão, Luzia, e põe em cima.” Aliviou a
dor por um tempo, mas depois voltou ainda mais forte.
Se fosse Zazau estaria gemendo, mas como era eu,
Luzia, orgulhosa, não dava meu braço a torcer.
Minha mãe, Zazau e até o Joaquim, quando estava em
casa, dormiam durante a noite, enquanto eu zanzava de
um lado a outro para aliviar a dor. O sangue quente da
minha agitação fazia a dor diminuir. Mas era só esfriar o
corpo e voltava tudo outra vez. Continuei andando pela
casa, a barriga mexeu ainda mais, e subia pela garganta
uma vontade estranha de gritar, como se pudesse
expulsar a dor. No fim das contas tive a certeza de que
iria enlouquecer.
“No tempo de minha avó”, minha mãe disse tentando
acalmar minha aflição, “não havia dentista e o povo se
resolvia sozinho. Minha avó era uma mulher chegada às
coisas do espírito, essas coisas que o padre diz que Deus
abomina. ‘Onde já se viu servir a dois senhores?’,
perguntava nas missas, ‘tudo coisa de gente índia e
preta.’ Mas ela falava de uma árvore, o Loco, e do leite
que se tira da raiz. Uma gotinha que embebe o algodão
ou um pedaço de tecido e tiro e queda: amolece o dente
até cair por si. Não há dor que perdure para sempre.”
“Como achar a tal árvore, será que ainda existe?”,
perguntei à minha mãe quase gritando porque minha
vontade era agarrar em seu braço e fazê-la caminhar
comigo até encontrar. Falei tão alto que quase acordei
minha irmã entre a dor e a lágrima que insistia em cair
de meus olhos, desafiando meu limite. “Não gosto de
mexer com essas coisas, Luzia, Deus não gosta porque
tem parte com a religião de gente feiticeira, não
mexemos mais com magia na Tapera. Mas se é
necessidade, então vamos andar para o lado da mata
para ver se a gente encontra o Loco. Vamos antes de o
sol se levantar, assim ninguém nos vê e nossos nomes
não param na boca do povo por causa das nossas
doenças.”
11

Minha mãe se levantou da cama e andou até a mata. Por


um momento, parecia ter voltado à vida anterior. Não
lembrava a mulher abandonada pelo marido e doente de
melancolia. Saímos antes de minha irmã se levantar e
nos convencer de que andarmos as duas, juntas, pelo
sereno da madrugada não era uma boa ideia. Descobri
naquele dia que minha mãe ainda guardava alguns
segredos dos antigos, passados de pais para filhos, de
avós para netos. O povo da Tapera já havia esquecido ou
tinha vergonha de dizer que sabia. Os padres
abominavam as crenças dos mais velhos e diziam ser
superstição. Não era a ciência de Deus, diziam em tom
de reprovação. Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou
homens, Ele próprio ressuscitou e se levantou da morte.
Nenhum chá, nenhum banho de folha, nenhum feitiço
ressuscitou alguém. Mas se Deus faltava, perdoe o
pecado, meu Deus, mas se Ele não conseguia fazer a
solução chegar para nossos males, nem sempre era de
Sua vontade porque decerto queria que aprendêssemos
com a dor. Mas nosso corpo foi aprendendo a conhecer
seus limites, não éramos santas nem bem-aventuradas,
então a sabedoria dos mais antigos poderia nos aliviar. E,
se bem não fizesse, mal também não faria.
Nem mesmo ver minha mãe se levantar e caminhar a
passos pequenos até a mata, uma alma atravessando o
amanhecer, me fez esquecer a dor de dente. Ela se
agarrou a um galho de aroeira perdido no caminho,
retirou as folhas secas e o fez de cajado para afastar
cobras e outros bichos. Levou também uma sacola de
palha com o facão do pai e um pano branco, encardido,
restos de um lençol velho e esgarçado. Minha mãe,
minha velha mãe, andou no seu tempo; minha boa mãe
que sonhava com uma família mais clara destinada a ser
salva da miséria pela sorte que só a gente branca pode
ter. Ela me levou por caminhos por onde eu já costumava
andar e, antes de entrar na mata, retirou um cigarro da
sacola e, valha-me Deus, acendeu a palha para a
Caipora. Deu três tragadas e deixou o cigarro aceso
sobre uma pedra preta onde os caminhos se dividiam.
Fez o sinal da cruz, pedindo perdão mais uma vez. Nem
de longe parecia a mulher que se esforçava para
esquecer o jeito de viver do passado.
Na vereda, no caminho, encontramos as plantas,
velhas conhecidas, até chegar à árvore também
conhecida, sem que eu soubesse ser ela o Loco da
história. Ali, sob sua sombra imensa, o frescor me aliviou
da algazarra de sentimentos, da dor à loucura, do
ressentimento à tristeza, tudo o que não me deixava
pregar os olhos havia dias, agitando meu sono. Minha
mãe olhou para a copa escura e espalmou a mão sobre o
tronco largo coberto de cipós, uma cortina de contas sem
nos deixar ver seu interior. Ela não me disse, mas eu
sabia que naquele instante puxava pelo tempo para
refazer os costumes do mesmo jeito que os mais antigos.
Repetia a toda hora que não acreditava nessas coisas,
mas naquele momento, na mata, era como se estivesse
guiada pelas presenças do outro mundo que tanto
renegava.
Foi assim que ela retirou o pano branco da sacola e
envolveu o tronco. Caminhou por cima das raízes
observando atenta até escolher com cuidado o local onde
golpearia com o facão. Um leite branco, leite do peito,
leite do verde, leite da árvore, leite da terra brotou da
ferida aberta. Um leite generoso e forte. Minha mãe não
tocou o líquido como também não se toca no sacrário da
hóstia. Deixou apenas o sumo escoar, grosso, suculento,
um fio sobre o facão, e esse mesmo fio devolveu ao
pequeno pedaço de tecido que depois eu poria sobre o
dente doente. “Não bebe”, ela me disse, “nem deixe
espalhar e escorrer para outros dentes.” Nem vontade eu
tinha, tamanha a amargura e a queimação em minha
boca. Só cuspia e babava, como se tivesse bebido
veneno.
Mesmo aflita, dolorida de tanto sofrimento, passou por
minha cabeça que a mãe poderia me ensinar o chá das
antigas para pôr para fora os filhos não desejados. O chá
dos anjinhos. O que salvava as moças desonradas, as
mulheres de muitos filhos, as mulheres prenhas de
homens perdidos, as mulheres que não queriam ver os
seus passarem fome. Os antigos deveriam ter a receita
para a perdição. Mas minha mãe ficaria indignada com
meu pedido, e eu tinha vergonha até mesmo de pensar
nesse pecado sem nome.
Nos sentamos sobre as raízes da árvore. Ali, o calor
não nos alcançava e a brisa perene nos envolvia. Aos
poucos a calmaria fez minha mãe relaxar. O esforço de
caminhar até a mata a tinha deixado mais fraca. Ela dizia
que não, que era apenas sono. Foi ficando fria, fria, até
que se deitou no chão de terra e raízes e adormeceu. Eu
também me deitei, os olhos pesavam na mesma medida
em que a dor diminuía. Me perguntei há quanto tempo
não ficava assim ao lado de minha mãe, explorando o
quintal e o rio e o céu, há quanto tempo o bem viver não
se acercava de nossas vidas sem que nos
preocupássemos à exaustão com a bebedeira de meu
pai, com a falta de dinheiro, com os pecados incontáveis
— “Basta estar vivo para pecar”, segundo o padre —,
com a tarefa de terra que poderia parar na mão de
algum desconhecido ou avarento da Tapera, com a gente
da família que saiu pelo mundo e nunca mais deu
notícias. Adormeci pensando em Mariinha. Quanta falta
minha irmã me fazia! Nas chamadas para o telefone
público da Tapera, falávamos por pouco tempo todo
dezembro. A cada dia estava num lugar com o marido,
trabalhando para gente diferente. Me falava do lugar
onde se encontrava, mas eu não era capaz de recordar.
Da última vez contou ter tido um menino. Nos anos
seguintes diria ter tido mais não sei quantos — dois, três
—, isso porque o tempo e a distância fazem a gente
perder a sabedoria de contar e de sentir. Mesmo o rosto
de minha irmã ia se esfumando de minhas lembranças.
Sentia dificuldade de relembrar dos seus olhos, seus
traços, restando apenas seu cabelo liso e preto e seu
cheiro doce que não dava para esquecer.
Quando dei por mim, o sol estava alto e minha mãe
ainda dormia. Despertei do sono babada feito gado
doente de febre. A cabeça estava numa poça de saliva e
o emplastro já havia caído sem que eu desse por falta. A
língua tocou o dente doente e ele balançou mole,
molinho. Foi para a terra com o resto do cuspe
envenenado que ainda tinha na boca. Que alívio. Se foi o
dente, se foi a dor. Bem que poderia acontecer o mesmo
com a barriga e a corcunda. Chamei por minha mãe.
Dormia um sono profundo; o sono que não a alcançava
em casa a venceu na mata. Seu rosto não parecia mais
amargurado. Estava tranquilo, angelical, o rosto dos
santos. O peito subia, descia, e um silvo deixava sua
boca para dizer que era apenas um sono. Senti pena da
minha mãe e esperei mais um pouco para chamar outra
vez.
Zazau nos encontrou e seu rosto apontava aflito.
“Sumiram desde cedo, o que vieram fazer aqui, deveriam
ter avisado”, disse sem esconder a agonia. Minha mãe foi
abrindo os olhos ao ver a agitação de minha irmã e nos
disse: “Vamos nos pondo de pé”. Espanou as folhas
secas e a terra que impregnava a roupa. “E o dente?”,
quis saber. Mostrei a poça de cuspe e o dente carcomido.
Deu a Zazau a sacola de palha e o facão, não tinha mais
forças para carregar coisa alguma e se pôs na dianteira.
Eu tomei a sacola das mãos de minha irmã e levei como
se carrega uma criança, para cobrir minha barriga miúda.
Minha mãe deixou a vara de aroeira para secar ao sol e
se quebrar em pedaços cada vez menores até se tornar
pó. Assim era com os ossos de todos os viventes.
Voltamos para casa, as três, sem temer a maledicência
da vizinhança. O pano amarrado à árvore seria
encontrado mais cedo ou mais tarde, mas quem diria ser
o feitiço de nossa casa? Rezávamos, éramos católicas,
batizadas, crismadas, praticantes. Éramos assíduas às
missas e guardávamos os dias santos. Tanto era que
depois da crisma o povo me deixou mais em paz; está
contida, afastada, diziam, do demônio que cospe fogo.
Íamos às procissões, temíamos a Deus e à Nossa
Senhora dia e noite. Mesmo assim, até nós poderíamos
ser acusadas de praticar as crenças dos antigos. Nos
dirigimos ao Loco por desespero e mais alguns dias tudo
estaria no passado outra vez. Se Deus permitisse, não
precisaríamos mais voltar à mata.
Mas nos dias que se seguiram a maré virou de novo:
minha mãe estava cada vez mais paralisada sobre a
cama, muda, apática. A melancolia a devorava sem
arrodeio. E eu, apesar dos pés inchados e da lentidão,
tinha um corpo magro, a barriga mirrada mexia quase
nada. Talvez fosse um aviso de que a criança não iria
vingar.
12

Quanto mais se aproximava a hora de parir, mais minha


cabeça zunia. Tinha muita gente falando dentro de mim,
o que nunca era boa coisa. Se a Tapera descobrisse esse
falatório em minha cabeça, me acusaria de feiticeira. Por
isso, eu subia em pé de árvore e saltava para o chão.
Subia num galho mais alto e pulava, tomada pela
valentia das feras. No chão, voltava a me sacudir sem
parar, pulava forte, para expulsar o que crescia em mim.
À noite, eu entrava no rio escondida em água mais
afastada das casas, onde quase não se via pescador
lançando malha para apanhar camarão de madrugada.
Me movimentava com violência. Espantava os peixes.
Batia forte em meu corpo. Meu interior ecoava como um
tambor de pele de cabra. Não me preocupava em ser
vista. Molhada, voltava para casa sob o sereno pensando
que poderia ter pneumonia, tuberculose, alguma doença
nos pulmões. Que iria morrer tísica. Tossir até expulsar
tudo o que vivia dentro de mim. Era certo que estava
ficando louca de tanto falarem que eu era louca, de tanto
falarem que eu tinha parte com o Mal. Sentada, esperava
um tempo para pôr a mão por baixo do vestido, na roupa
íntima, e ver se tinha algum sinal, alguma mancha
escura. O corpo doía e a barriga enrijecia.
A boa hora veio nada boa para mim. Chegou junto ao
desespero. Zazau percebeu que eu não estava bem das
ideias. Temia por mim. Além de cuidar de minha mãe,
tinha que cuidar da irmã aluada. O resto de sua paciência
foi embora nos últimos dias. Me recusava a comer, não
olhava para seu rosto. Quando ela percebia que eu iria
trepar mais uma vez na árvore, apertava meu braço com
força e dizia: “Pare com isso, Luzia, vai provocar uma
desgraça. Já não basta tudo o que nos aconteceu, você
quer que toquem fogo na casa, na gente?”, perguntava.
Joaquim passava em casa de tempos em tempos, mas
era como se lá não estivesse. Nem sequer parecia saber
do meu estado, meu irmão, como todo homem, não
desconfiava. Dizia estar próximo a ficar de vez na capital.
Ficaram de lhe conseguir trabalho na construção de um
edifício, onde ele iria morar e dormir. A cabeça sempre
na lua ou na capital.
Foi assim que o silêncio se pôs entre nós. Era como
alguém cuidando de todos e os segredos continuavam
vivos. Só teriam um destino nos dias de confissão na
igreja, quando deixassem nossas almas para expiarmos
nossos pecados.
Naquele dia, no dia derradeiro antes de o menino
nascer, eu vi as mulheres passarem com os cestos para
colherem o que encontrassem no pomar do mosteiro. As
mulheres, humilhadas por seus homens desaparecidos, e
só por isso eram elas a prover a casa com a bondade dos
padres. Elas não se dobravam por inteiro, mostravam
suas cascas orgulhosas, como se não estivessem
sofrendo pela falta de comida e de fé. Eu não queria
acabar como elas e as olhava com desprezo e mágoa.
Elas têm seus homens, podem colocar o nome dos pais
nos registros das crianças, mas isso não faz suas vidas
melhores. Me desonraram e nem me permiti ter raiva
porque achava ser assim mesmo, todos os homens
faziam a mesma coisa. Que o moço matreiro, o nome eu
nunca mais quis recordar, voltaria para fazer o mesmo
outras vezes. Ele iria me derrubar no chão e satisfazer as
vontades. Depois teríamos uma casa e uma cama. Mas o
tempo foi me contando, o tempo fala, sim, se pronuncia
através dos dias e das noites, das paredes descascadas,
do cabelo crescido, dos dentes que deixam nossa boca, o
tempo fala de muitas maneiras, pela saudade e pelo
abandono, o tempo me disse estar errada. E eu teria uma
criança e nem mesmo minha mãe, minha boa mãe,
poderia me ajudar dizendo o que fazer, por estar
definhando sem juízo sobre a cama. E eu temia acabar
do mesmo jeito.
À noite, Zazau dormiu de exaustão. Eu, indiferente ao
cansaço de minha irmã, não conseguia pensar em mais
nada senão em como evitar a minha desgraça. Ela zelou
por mim temendo minha inconstância, mas o cansaço foi
maior e a tomou por completo. As dores nas pernas, nos
quartos e nas costas haviam começado no fim da tarde.
Eu andava de um lado a outro, como nos dias em que
sofri com dor de dente. “O movimento esquenta o
sangue”, minha mãe dizia, e enganava a dor porque
corpo de sangue quente resiste mais. Eu não poderia
dividir aquele momento com Zazau. Só atrapalharia o
que eu tinha decidido fazer.
Eu deixaria a criança na mata depois do nascimento.
Que a natureza se encarregasse do resto.
A dor começou muito cedo, eu mordi as palmas das
mãos para abafar a vontade de gritar. A agonia do corpo
subia à cabeça e eu chamava meu desassossego de
loucura. Quando minha irmã e minha mãe dormiram, eu
arriei meu corpo no chão. Seria ali ou no quintal que eu
iria parir. No quintal era melhor, longe dos ouvidos de
Zazau e de minha mãe. Desfiz a trança com as mãos
agitadas, com violência, a ferocidade era uma maneira
de enfrentar tudo. Os tufos de cabelo ficaram em minhas
mãos, caíram pelo chão. Eu trançava meu cabelo desde
que fora crismada. Cabelo cheio, grosso, ensebado de
suor, e do jeito que o desamarrei ele ficou armado, a
copa de uma árvore. De cabeça para baixo eram raízes
encontrando a terra. “Cabelo ruim como o meu”, minha
mãe repetia. “Cabelo bom é o de sua irmã Mariinha, mas
não lhe serviu de nada, ela se enfeitiçou por um zé-
ninguém. O cabelo de Zazau engana, é meio como o seu,
meio como o de Mariinha”, minha mãe assegurava. Para
ajudar a domar o cabelo e para que não nos acusassem
de desleixo, ela me ensinou a trançar. Três ramas de fios
de cabelo, cruza um por dentro do outro. Um grampo na
ponta impedia que se soltasse. Mas agora eu não
precisava ser domada. Carecia soltar os bichos que
moravam em mim.
A dor cresceu, minha visão ficou fraca, via gente de
outro mundo, via bicho entrando e saindo de casa,
mesmo com a porta trancada, ainda que houvesse
silêncio. A algazarra morava na minha cabeça, enquanto
meu corpo suava feito uma cachoeira. Pobre da minha
mãe; doente de melancolia por causa do pai, mas não só
por causa dele. Ela se sentiu muitas vezes como eu me
sentia agora, mãe não apenas de uma criança, mas
como se tudo vivo no mundo estivesse nascendo junto.
Árvores, bichos bons e ruins, o rio, a terra. Todo o
sofrimento deve ter deixado a cabeça de minha mãe
fraca. Todo o desespero e depois o que vai comer e
depois tem mal de sete dias e depois tem febre porque o
dente nasce e depois cresce e cai na estrada da vida
como todos os outros. E não retornam. Ah, minha mãe,
pena seu juízo estar fraco para me dizer o que fazer.
A lua me convidou a deixar a casa. Um farol me
chamando à rua, luz se esgueirando pelas frestas das
telhas e da única janela. Quase não conseguia me erguer
do chão. A camisola empapada de suor e grudada ao
meu corpo. Pensei em seguir para o quintal e depois
deixar na mata o que ia nascer. Se eu chamasse minha
irmã para me amparar, ela tentaria me impedir. Ela pode
mais do que eu. É mais forte do que eu. Ela cuida de
todos e sua vontade sempre vai prevalecer. De modo que
só me restava sair sem alvoroço e parir em qualquer
lugar longe de casa.
Levantei a barra de madeira que reforçava a fechadura
da porta. “Nunca se sabe”, meu pai disse antes de
prender a barra. “O mundo mudou bastante e a
bandidagem está por toda parte. Nos tempos de seus
avós, o povo dormia de porta aberta”, ele dizia. Não
pude deixar de pensar nele, e de pensar também como
Deus era bom. Levou meu pai para fora de casa. Talvez
ele tivesse me mandado embora depois de uma surra ou
me matado de tanto bater. Uma filha desonrada merece
morrer, era o que os homens diziam na Tapera. Por isso
as mulheres enchiam a mata de anjinhos. Ou então meu
pai caçaria o moço traiçoeiro, o que trouxe uma nesga de
esperança à minha mãe, e o obrigaria a reparar o
malfeito. Antes meu pai longe, com certeza teria sido
pior se estivesse por perto.
Enquanto meus pés se arrastavam procurando o alívio
que meu corpo precisava, os animais deixavam a trilha
por onde eu caminhava. Entravam nas moitas, voavam
pela noite e adentravam os rios sorrateiros. Tudo iria
melhorar quando o Mal deixasse meu corpo. A cabeleira
se tornou um fogaréu e verteu chamas pelo caminho
gota a gota. Minhas mãos, embrutecidas, ajudariam no
que precisava ser feito.
A correnteza tentou me levar em direção à baía.
Finquei os pés na areia para me segurar. O Paraguaçu era
o caminho de toda uma vida, e do povo que andou por
essas terras antes de nós, e tornaria mais leve e mais
pesado o meu fardo. Mais leve por não precisar carregar
um dos muitos pesos que as mulheres carregavam pelo
resto de suas vidas. Mais pesado por, mais cedo ou mais
tarde, ter que acertar as contas com Deus. E minha boca
se abriu como se fosse engolir o céu inteiro sobre minha
cabeça, sem que dela saísse uma palavra. Senti um
corpo deixar meu corpo, um bicho que nasceu e afundou.
“Luzia! Luzia!”
Alguém me chamava. Alguém me fazia despertar
daquele mal-estar. A valentia de passar por tudo sozinha,
como um animal, me deixou sozinha outra vez. Voltei
meu rosto para a terra e vi Zazau entrando no rio. Fui
tomando consciência de estar só, desvalida no meio das
águas, e de que em breve seria vista pelo povo da
Tapera. Nesse despertar eu senti que o menino seguiria a
correnteza em direção ao mar quando o umbigo que
ainda me ligava a ele deixasse meu ventre. O filho
rejeitado ainda estava preso a mim por um cordão de
carne. Ao ver o desespero de minha irmã, eu segurei as
pontas das minhas vestes com as duas mãos e coei o
menino que nasceu debaixo d’água. Coei como um
pescador levanta a malha de apanhar peixe na hora
certa.
Minha irmã segurava meu braço com força, parecia ter
medo de se afogar. “Vamos sair daqui”, e me recordo de
escutar seu medo. “Vamos sair daqui, Luzia, antes que os
vizinhos nos vejam.” Eu, minha irmã, o menino coado,
banhado de lua, os restos de parto presos ao pequeno
corpo, e minha vida, inundada de rio, nunca mais seria a
mesma.
13

Minha mãe despertou e olhou para a rede que Zazau


balançava no único cômodo de dormir de nossa casa.
“Balançando a rede sozinha, minha filha, está variando?”
Zazau permaneceu quieta, sem nada dizer. Eu
continuava deitada na esteira, sem dormir com a
agitação da noite, sem conseguir reagir a nada, alheia a
tudo. Minha mãe se recostou na cabeceira da cama e
com muito esforço tentou se levantar, sem conseguir.
Continuou tentando depois de uma pausa. Se ergueu
assim mesmo, fraca a olhos vistos, se esgueirando pela
parede até chegar à rede. Ela sabia o que tinha
acontecido. Abriu a rede e viu o menino dormindo,
suspirando, e exclamou para Zazau: “Ele é clarinho, ela
tem a barriga limpa!”. Era o que escutávamos quando
nascia uma criança mais clara na Tapera. Minha irmã
permaneceu em silêncio. E minha mãe, no seu estado de
fraqueza, disparou perguntas e mais perguntas a Zazau,
que parecia não ter vontade alguma de responder: se
cuidou do umbigo, se a criança já tinha mamado, se
tinha pedido a dona Nita, a parteira de unhas sujas, o
ferrado para me aliviar dos gases. “Não precisa dizer que
o filho é de Luzia”, falava, olhando para a esteira onde eu
estava, “diga que é o meu derradeiro. Não devemos dar
satisfação à gente da Tapera. Olha para isso, Zazau”, ela
disse com os olhos marejados, ao mirar mais uma vez a
rede. “Seu pai não vai se zangar quando voltar para
casa. O coração há de amolecer quando ele vir o
menino.”
Mas se pôr de pé de qualquer maneira para espiar o
neto, o neto que povoava seus sonhos de redenção,
depois de passar tanto tempo deitada sofrendo de
melancolia, cobrou seu preço. Logo minha mãe estava de
novo apática, como em todos os dias que antecederam
àquela chegada. Fui me levantando aos poucos, mas não
me aproximava da rede. Minha irmã não me deixava a
sós com a criança, parecia ter medo do meu juízo,
duvidava se estaria perfeito, depois de parir dentro do rio
e planejar deixar a criança por lá; depois de pular da
árvore e zanzar pela casa; depois de tomar banho de rio
à noite sem medo de adoecer. Ela preparava o mingau no
velho papeiro de esmalte que serviu boa parte dos
nossos irmãos. Não me perguntou se eu tinha leite nem
se gostaria de dar de mamar. Estava decidida a me
manter afastada até ter a certeza de que nada ruim
pudesse acontecer a partir de minhas mãos.
E logo, sem que soubéssemos como, começou a correr
notícia na Tapera de que tinha nascido criança em nossa
casa. Uns diziam que era de Zazau, outros que o recém-
nascido era meu. Outras notícias davam conta de que
Alzira, minha mãe, havia parido mais um filho. Que a
doença que a deixou acamada era doença de prenha.
Zazau estava exausta e só por isso não desmentia,
apenas agradecia quando alguém aparecia na janela
mais pela curiosidade, pelo mexerico, do que pela
cortesia que se prestava quando se tinha notícia de
nascimento. Até que um dia minha mãe, ouvindo o rumor
de gente arrodeando a casa, perguntou:
“Quem é, Isaura?”
“O povo da Tapera, dona Mira querendo saber se a
senhora ganhou menino”, minha irmã respondeu.
“Pois deixe que pensem”, disse minha mãe, “ninguém
precisa saber o que se passou nesta casa.”
Dias e dias, eu já estava de pé como estive desde
sempre. Zazau continuava a embalar o menino na rede,
a alimentar, a mostrar ele para minha mãe na esperança
de que sua presença a curasse da melancolia. Não
falávamos sobre mim, sobre minhas obrigações, nem
sobre o futuro da criança. Falávamos do menino como se
fosse alguém que estivesse ali há muito tempo. Como
um de nós. Existia entre mim, minha irmã e minha mãe
um trato não dito. Para aliviar o fardo de Zazau, eu me
ocupei mais de minha mãe, de lavar as roupas, de cuidar
da roça, coisa que não gostava de fazer, mas reconhecia
a necessidade. Era a batata-doce e o inhame e o aipim e
o peixe que nos alimentavam. Cuidava não como os
cobradores queriam, mas como minhas forças e
vontades permitiam. Plantava a manaíba, retirava o
mato, colhia o milho. Joaquim já havia seguido em
definitivo para a cidade e só tínhamos notícias, dele e de
meu pai, por seu Valter. Durante aquele tempo eu não
olhei para o menino, não o carreguei nem embalei, nem
troquei fralda, nem queria falar dele. Mas lavava as
roupas de doação da igreja trazidas por Zazau quando já
não era segredo que tínhamos uma criança em casa.
Para compensar seu trabalho, eu cuidava das duas, de
minha mãe e de minha irmã, com todo o zelo.
Num fim de tarde de setembro, meu pai adentrou a
porta, como se estivesse retornando da mesma roça
abandonada. Estava mais escuro de permanecer ao sol e
com as mesmas roupas surradas. Chegou cabreiro e
desconfiado. Adentrou o quarto e chamou por minha
mãe. Aquele rosto de mulher de pouco mais de quarenta
anos, envelhecida pela vida, se iluminou. Mas já não era
o brilho de antes, era como uma flor mirrada se abrindo
no fim da florada. “Quer dizer que você teve menino,
Alzira, e nem me disse que esperava?”, meu pai
perguntou num tom que não era nem severo nem
carinhoso. Minha mãe ficou sem entender o que ele dizia
por um tempo, a boca aberta, procurando uma maneira
de desfazer a confusão. Entrei pelo meio: “Fale, minha
mãe, que a senhora ficou receosa de atrapalhar a lida do
pai e fazer que voltasse às pressas”. “Ora, mas que
bobagem, onde já se viu, se é meu filho”, disse meu pai.
Minha mãe olhou para mim, depois olhou para Zazau,
atordoada com aquele disse me disse, e talvez tenha
percebido ser o menino a salvação a trazer meu pai para
casa, se a verdade que pertencia apenas a nós três não
fosse descoberta. “Você queria que eu fizesse o quê,
Mundinho? Do jeito que você deixou essa casa era como
se nunca mais fosse voltar”, foi o que ela disse, num
sinal para que nós continuássemos a prestar nosso falso
testemunho. “Tenho meu orgulho, Mundinho, não podia
exigir que você voltasse sem vontade”, minha mãe falou,
olhando para mim e percebendo a confusão chegando
em boa hora. “Joaquim deve ter dito que eu não andava
bem de saúde, você voltou para cuidar de mim?”,
perguntou entre lágrimas. Meu pai baixou os olhos,
envergonhado do que tinha feito, mas sem pedir
desculpas. “Nunca na minha cabeça, Alzira, passou que
você fosse ter um menino temporão”, ele disse baixo,
“tanto tempo depois de nascida Mariinha.”
Meu pai se acercou da rede onde o menino dormia.
Zazau olhava de longe, a boca ainda aberta, sem
acreditar nos rumos que o boato da Tapera havia
tomado. “Olha, e não é que ele parece com minha avó
índia, dona Didita, a mãe de meu pai que me criou”,
comentou, olhando para a rede. “Ela era assim, mais
clara, e tinha o cabelo escorrido como o de Mariinha. Que
barriga farta, Alzira, seis filhos e nasce mais outro… nós
que já somos avós!” “É coisa de Deus mesmo”, minha
mãe disse, dessa vez indo longe demais ao colocar o
nome santo no meio da mentira.
Quarenta e alguns anos não era tão tarde assim para
uma mulher parir um filho. Tinha muitos casos na Tapera
de mãe e filha, sogra e nora, que ficavam de barriga no
mesmo ano. Minha mãe se uniu a meu pai ainda muito
nova, quando ainda tinha os peitos miúdos, ela nos dizia.
Contava não saber o ano com medo de que tivéssemos
pressa de casar e parir. Só minha irmã Mariinha se
apressou a sair de casa e ganhar o mundo. Eu e Zazau
ficamos e nos aproximávamos dos vinte anos e ainda
esperávamos marido. E a mãe, se não fosse a
melancolia, era bem capaz de estar parindo mais filho.
Mas a notícia que trouxe meu pai de volta para casa
não tinha corrido só a Tapera. Chegou à igreja, Zazau
soube ao recolher doações de roupa para vestir o
menino. Logo os padres cobrariam o batizado,
escreveriam o nome do bendito no livro de batismo. A
notícia havia chegado à capital, alcançado meu pai.
Chegou também a Joaquim, meu pai disse, que só não
retornou porque estava trabalhando na construção do
edifício e não teria folga para viajar à Tapera. Meu irmão
deveria estar espantado, tamanha inocência. Como não
soube e não desconfiou que a mãe esperava menino,
deveria estar se perguntando.
“E o que você vai fazer agora, Mundinho?” “Não sei,
Alzira, lá na cidade não falta trabalho e mando dinheiro
para casa”, respondeu. “Pouco dinheiro e o trabalho que
você abre a boca para dizer que tem é uma ilusão. Antes
você na roça, pelo menos tem o pão, a batata-doce, o
inhame e os temperos. É aquela mulher, não é?”,
perguntou com a voz baixa. “A vadia que você foi atrás?”
O semblante de meu pai se modificou, e ele jurou nunca
ter tido outra mulher e que foi para a cidade por nossa
causa. Convivia há tanto tempo com meu pai que sabia,
por seu tom de voz e expressões do rosto, quando não
falava a verdade.
Saí do quarto e Zazau carregou o menino para fora.
Deixamos os dois, pai e mãe a sós. Talvez precisassem
daquele momento para poder acertar as diferenças e
refazer o que parecia desfeito entre eles. Talvez meu pai
percebesse a fraqueza da mulher e, se ela continuasse
definhando na cama, sendo devorada pelo desânimo, iria
embora mais rápido do que pensávamos. Ele não podia
abandonar a mãe de seus filhos, deixar a casa, a tarefa
de terra e a família ao deus-dará. Eu me sentei num toco
de árvore na porta de casa e Zazau se sentou em outro
toco na extremidade. Corria a brisa, não agitava os
coqueiros nem as árvores que nos abençoavam com suas
sombras para tornar o calor do vale do Paraguaçu
suportável. Olhei para a criança como acho que talvez
não tivesse olhado nenhuma outra vez desde o
nascimento. Era um menino mirrado, magro, mas com os
olhos espertos e movimentos inquietos. Não chorava.
Parecia conformado com a mãe que o rejeitou, mesmo
que não tivesse discernimento para compreender. Ele
sente, minha irmã refutaria se pudesse ler meus
pensamentos. Mas eu experimentei de novo alguma
coisa no meu peito, alguma coisa que não sabia dizer o
que era. Olhei muitas vezes, disfarçando, enquanto
minha irmã o distraía fazendo sons com a boca para
fazê-lo sorrir, sem que o menino de olhos atentos fosse
capaz de corresponder. Senti paz em meio à revolta ao
ver o menino ali ao meu lado, bem cuidado, e que de
alguma maneira sua chegada poderia ajudar a reunir
meu pai e minha mãe de novo. Minha mãe precisava,
não soube superar o afastamento de meu pai, e
definhava, sem que tivéssemos mais a esperança de vê-
la despertar da doença, da tristeza sem fim, mais uma
vez.
E o tempo me diria: a emoção sem nome era algo
forte que eu tornaria a sentir.
14

Minha mãe morreu no dia de são José, no mesmo dia em


que meu pai plantava na tarefa de terra o milho a ser
colhido em junho. Não se queixou de dor, não ouvimos
nenhum lamento nem mesmo desespero. Se foi em
silêncio, um pássaro caindo do ninho quando o coração
perde o fôlego. Minha mãe estava leve e magra e o
caixão se tornou grande demais, uma caixa sem renda e
flores que dessem conta de preencher o vazio deixado
por seu corpo mirrado. Parecia uma criança e cheguei a
propor à minha irmã, numa lamúria sem fim, se não seria
melhor trocar a urna grande por uma menor. Pagaríamos
prestações menores e ela estaria mais bem acomodada.
Eu mesma fui buscar meu pai no roçado. “Ela não se
levantou e está fria”, disse em meio à terra preparada
para receber as sementes de milho. Ele deixou tudo por
lá e nem passou por sua cabeça que poderiam levar as
sementes do plantio, como descobrimos mais tarde que
eram capazes de fazer. Quando chegamos em casa,
Zazau estava sentada na cama e chorava sem conseguir
olhar para nossa mãe. As lágrimas vieram como um rio e
eu dei por fé de que não poderia mais contar com minha
mãe. Quando minha irmã Zazau se casasse, quando o pai
se fosse para junto da mãe, eu estaria só. Meus irmãos já
tinham caído no mundo e não davam sinal de querer
retornar. Quem vai querer se casar com uma aleijada,
não foi o que pensei naquela exata hora, mas era o que
passava por meus pensamentos desde que a corcova
tinha despontado em minhas costas e a aceitei como
meu fardo.
O menino se aproximou e segurou os meus joelhos. Ele
começou a dar os primeiros passos havia um mês. Era
uma criança atenta e olhava para nossos rostos; mas,
incapaz de perceber algo diferente, continuou a brincar
com o carro de madeira. Eu senti conforto com aquele
toque e me penitenciei por não ser tão generosa como
minha mãe tinha sido com os filhos. Mas agora era tarde
e Inês é morta, era o ditado que nos dizia quando se
deparava com algo que não poderia mais desfazer. Sem
minha mãe era mais difícil contornar toda a mentira que
compartilhamos de que o menino era seu filho, que era
meu irmão e de Zazau. Aquela história tinha sido
inventada por nós e precisaríamos sustentar o que
dissemos até o fim. Não era só meu pai que havia sido
enganado; a Tapera havia sido enganada e os padres da
igreja também. Deixe que Deus nos castigue assim, aos
poucos, pelo que fizemos. O que aconteceu à minha mãe
era a prova de Sua ira. Mas acertar as contas com Deus
era menos complicado do que acertar com a Tapera e
com meu pai, que se sentiria traído não só pela mulher,
mas pelas filhas que ainda estavam ao seu lado, vivas.
Não haveria como perdoar tamanha mentira. Minha mãe
poderia ser perdoada, afinal as razões dela eram
aceitáveis. Nas suas rezas era assim que deveria se
acertar com Deus, que tudo tinha sido por um motivo
importante.
Em meio à sentinela, Zazau foi para o único telefone
público da Tapera tentar se comunicar com os que
estavam longe. Joaquim já havia sido avisado por seu
Valter. Chegaria pela madrugada a tempo de se despedir.
Minha irmã não conseguiu falar com Humberto, que tinha
partido havia anos para a Amazônia, onde trabalhava nos
seringais. Talvez algum dia lhe chegassem notícias sobre
nossa mãe. Raimundo, que morava para os lados de São
Paulo, lamentou, falou muito em Deus, mas era isto, mais
não poderia fazer. Por último, Zazau conseguiu falar com
o telefone da fazenda onde morava Mariinha, e nossa
irmã, aturdida, prometeu viajar sem, no entanto,
conseguir chegar.
Antes de Zazau sair carregando pedaços de papel
velhos com os números, as carpideiras chegaram para
velar minha mãe na sala de casa. As beatas cumpriram a
vocação de chorar pelos que se foram. Não recebiam
dinheiro das famílias porque, exceto Mãozinha e Chico da
Colmeia, o povo da Tapera não tinha onde cair morto. Até
os caixões eram comprados a muitas prestações. Elas
eram tidas em alta conta pelos padres, e por isso
encorajadas a chorar pelos mortos, sem se importar se
foram bons ou maus, compadres ou desafetos. Se
tratava das mesmas fofoqueiras que apregoavam
mentiras no dia a dia da aldeia, que insuflaram a
maledicência na Tapera e fizeram a desgraça desabar
sobre nossa casa.
Naquele dia de aflição, ainda pude me perguntar se
esse não seria meu destino também. Talvez, se eu
ganhasse alguma função na Tapera que me libertasse da
mácula com que me marcaram, pudesse ser deixada em
paz. Unida às beatas, me restaria apenas rezar e falar
mal da vida alheia. Seria como elas, rezando pelas almas
com a boca luminosa e pregando a discórdia com a alma
obscura. Seria perdoada pelo passado e ao mesmo
tempo me penitenciaria por meus pecados. Sem que o
corpo tivesse esfriado, lá estavam elas entre rezas e
lágrimas, dizendo que minha mãe tinha deixado um
menino pequeno, que tinha partido para a casa do Pai
ainda nova, e que sina a das filhas, duas moças; qual das
duas cuidaria do irmãozinho?, ou Mundinho se casaria de
novo?, cochichavam entre elas, apostando como velhas
viciadas em jogo do bicho. Não havia por que ter raiva,
mágoa, esse era o jeito do povo da Tapera.
Depois da missa de sétimo dia, Zazau me disse que o
padre havia lhe perguntado se ela não poderia lavar a
roupa do mosteiro; a antiga lavadeira já não podia com a
erisipela lhe comendo as pernas, como a melancolia
devorou a alma de minha mãe. Zazau disse que ia
conversar em casa, afinal ela cuidava do menino. Era um
sinal de importância lavar as toalhas, as cortinas, as
estolas da igreja. Os padres poderiam convidar qualquer
mulher da Tapera, mas, compadecidos de termos perdido
nossa mãe, fizeram um gesto generoso à minha irmã. Ter
consciência desse prestígio me fez ter vontade de saber
mais. Foi quando eu perguntei se eles pagavam alguma
coisa. “Pagam, sim, só não perguntei quanto”, ela me
disse. “Então se você não quiser… eu quero”, completei.
Cuidaria da casa de Deus e dos homens santos e assim
pagaria minhas penitências, disse a mim mesma. Quiçá
acolhida pelos padres, servindo a Deus como uma boa
lavadeira, conseguisse fazer com que os vizinhos me
olhassem com mais respeito e, por fim, esquecessem do
que me acusavam.
Assim, me apresentei a dom Tomás num dia de forte
chuva. Com medo de perder a vaga de trabalho andei e
depois corri debaixo de um aguaceiro. Cheguei molhada
à igreja. Como eles custaram a abrir a porta antiga,
pesada, rangendo mais do que a porta de são Pedro, os
entendidos diriam! Mas olhando bem era tudo simples e
tomei a bênção nas mãos de dom Tomás, um estrangeiro
vivendo no mosteiro havia muitos anos, incapaz de falar
de forma que eu pudesse compreendê-lo. Ainda bem que
não seria ele a dizer do que precisava; então logo me
encaminhou para um padre jovem de cabelo vermelho.
Fui entendendo do que precisavam: as roupas de cama
estariam separadas no dia certo, era tarefa dos padres
no começo da manhã de quinta-feira recolher os lençóis
usados e trocá-los por outros limpos e passados. Na
sacristia, na sala do abade e no refeitório, poderia entrar
e efetuar as trocas de toalhas, cortinas, estolas e outras
peças. Levaria tudo para lavar no rio, e depois engomaria
em casa. Devolveria lavado, alvejado e bem passado.
Naquele tempo não sabia dizer se o pagamento era bom
ou não, mas era suficiente para nossas despesas.
Havia um empecilho: a quizila de meu pai com a Igreja
por causa da cobrança do imposto. Eu imaginava como
contornar sua resistência dizendo que minha mãe
gostaria de me ver zelando pela casa de Deus. Ele
pareceu não se opor, sabia que eu lavava a trouxa da
igreja. Eram coisas distintas na cabeça de meu pai, ele
não dizia, mas eu intuía. O dinheiro aliviava as contas do
armazém, ajudava na compra das pequenas coisas que
não produzíamos, e ainda salvava a todos nós do
tormento da cobrança do imposto, embora eu fizesse o
pagamento escondido para não contrariar meu pai.
Lavar roupa deixava minhas costas doloridas. Muito
jovem estava eu encurvada sobre o monte de roupa para
esfregar e quarar, carregar de um lado a outro e depois
passar com o velho ferro de carvão. Ao mesmo tempo fui
conquistando meu lugar na Tapera. Já não vivia mais
escondida nem com medo de ser insultada e acusada de
praticar magia pelos mais velhos, pelo menos não a
olhos vistos. Agora, eram as crianças a ouvirem as
maledicências em suas casas e as repetirem contra mim.
Tocavam minha corcunda e faziam um pedido, repetindo
crenças tolas. Me ofendiam, mas as ofensas não me
provocavam o mesmo pavor das pessoas mais velhas,
que poderiam ser perversas se quisessem. Ser a
lavadeira da igreja também era sinal de algum respeito,
e qualquer maldade contra mim teria o repúdio dos
padres.
Ali, no espelho d’água do Paraguaçu, vivi por longo
tempo cercada da brancura dos tecidos. O rio refletia o
branco e muitas vezes a luz me cegava por breves
instantes. Eu procurava um lugar bom para limpar as
roupas. Batia os lençóis nas pedras, esfregava o tecido
encardido e amarelado entre os nós dos dedos. Aquele
rio, e isso não saía de minha cabeça, era o rio onde
muitas fizeram o mesmo antes de mim. Águas que não
lavaram apenas a roupa da Tapera, dos donos das terras
e dos padres. Lavaram nossas mágoas e renovaram
nossos sonhos. Limparam nossos corpos das aflições que
nos consumiam e carregaram segredos que não podiam
ser contados. Foi ali que o menino nasceu e eu, por mais
que não soubesse como dizer, pedia que ele crescesse
forte e bem-aventurado. Com meus pés nas águas, eu já
não era apenas uma corcunda, um cabelo crespo e
trançado e a pele de mãos que afinavam de tanto usar
barrela para deixar tudo mais branco. Entre as águas e
os sentimentos, meu corpo era a própria correnteza.
15

E o tempo passou entre as chuvas, os camboeiros,


certeiros, entre o sol e o mormaço de todos os tempos. E
o vento correu os vales, a baía, o Paraguaçu, o vento
correu as casas e trouxe boas novas e também
atribulação. Levantou a poeira e derrubou o caju no chão.
O vento carregou as folhas das amendoeiras, carregou
ofensas e cuidados, desgastou a terra batida, o
calçamento das ruas onde pisávamos. As águas subiram
do leito e inundaram as margens em anos de aguaceiros
sem fim. Depois baixaram para o lugar de sempre e o
mato cresceu muitas vezes generoso no rastro da chuva.
Cavalos e jegues perambulavam soltos, comendo com
paciência o verde que havia se tornado praga.
E meu corpo foi mudando junto com tudo à minha
volta: ora era rio, ora era vento, ora era mato e tudo
junto crescendo nos descampados. Minha trança foi se
tornando grisalha e ninguém mais acreditava que sob a
casca usada, doente e antiga, habitava uma mulher-
moça. As costas me pesavam ainda mais do que as
trouxas e só me restava me apegar ao meu Bom Deus e
aos santos, ouvintes dos meus lamentos, que nada
diziam sobre a tristeza mas que pelo menos não faziam
intriga com a gente mexeriqueira da Tapera. Lavava as
roupas às quintas-feiras quando as recolhia da igreja e
dos aposentos do mosteiro. Era como se eu, diferente
das outras mulheres, tivesse as chaves da casa de Deus,
mesmo que isso não fosse de verdade. Precisava bater
nas portas, olhava para o chão por quase todo o tempo,
era invisível aos olhos dos padres. Fazia com todos os
panos uma grande trouxa que equilibrava na cabeça. Era
tratada com confiança, como filha de Deus e Nossa
Senhora, e não iria triscar em nada que não estivesse
sob meus cuidados. Abençoada pelo Divino, não corria
mais o risco de ser acusada dos azares e das derrotas da
Tapera, muito menos de bruxaria e de pacto com o
Diabo.
Zazau rumou para longe no ano seguinte, às vésperas
da festa de são Pedro, quando tínhamos cumprido o luto
pela morte de nossa mãe. Foi quando chegou um
caixeiro, vendedor de panelas, que viveu por meses
entre nossa gente vendendo toda sorte de
quinquilharias. Levantou barraca e a fez de venda,
ajudou o povo a assinar com os dedos sujos de tinta
promissórias que custava a pagar. Era agradável e
cortejava as moças com sua lábia contida sem ser
desrespeitoso. Encontrou minha irmã pelos caminhos e
ela percebeu ter chegado o seu momento de partir,
assim como ocorreu com todos os outros. Foi preparando
o terreno da nossa convivência com vagar, insinuando a
partida, falando bem de Belmiro e que em nenhuma
hipótese ele era como o zé-ninguém que havia levado
Mariinha para longe, muito menos como o homem que
tinha me desonrado. “E o menino?”, perguntei. “Ele está
tão acostumado com você.” “Eu também”, minha irmã
me disse, “mas o pai gosta dele, é ‘filho’, Luzia, como
vou explicar que vou levar o menino?”, me devolveu a
pergunta. “Mas não há maneira de você ficar por aqui,
Zazau? Convence Belmiro de que você precisa estar
perto do pai.” “Difícil, Luzia, ele juntou o que precisava e
vai comprar casa e roça na terra onde nasceu, não quer
passar a vida como caixeiro. Você sabe que aqui não tem
futuro, não tem terra, não dá para comprar e dizer que é
nosso, é tudo da Igreja. Ficar aqui é se submeter ao que
Mãozinha e Chico da Colmeia querem. Contando dinheiro
de imposto com aquela mãozinha”, disse rindo, mas sem
tirar descontração de minhas expressões.
Um dia ela se foi numa Brasília onde tinha um espaço
no fundo para amontoar as panelas não vendidas. Ela
afagou a cabeça do menino muitas vezes, e nesse dia ele
pareceu indócil, arisco, tudo que encontrava pela frente
atirava sobre Zazau. Ela pediu: “Pare, pare, Moisés”, sem
conseguir fazer com que o menino obedecesse, e ele
persistiu com a malcriação. Quando percebeu que ela iria
embora, se agarrou às suas pernas e abriu o berreiro. Ela
tentava falar: “Calma, vou voltar, não demora, você vai
ficar com a mãe”, e corrigiu assustada, “com a irmã
Luzia”, mas o menino chorava e esperneava. O pai
chegou da tarefa de terra e deu a bênção a Zazau e
Belmiro. Pediu: “Cuide de minha filha”, e o menino
berrava mais alto. O pai disse: “Vá-se embora, Zazau, o
menino é muito dengoso, depois se acostuma”. Ela me
disse no ouvido: “Cuida dele, Luzia, tenha paciência, o
que você tinha de tristeza e raiva já passou, vocês vão se
dar bem”. E, se tentou olhar por trás da poeira seca que
o carro levantou, deve ter me visto segurando os dois
braços do menino, incontrolável, eu tentando fazer com
que ele ficasse de pé. Recebi chutes, mordida na mão,
tão genioso desde cedo e eu nem tinha ainda absorvido
tudo por completo, de ser a última filha e a que não iria
embora, a que aguentaria a bebedeira e os maus
humores do pai e ainda por cima teria que cuidar da
criança com quem não conseguia ter afinidade. Um
menino que continuaria a ser um estranho por muitos
anos. Senti vontade de chorar e fazer o que ele fazia,
chutar o que havia pela frente e gritar e perguntar:
“Volte, Zazau, volte, como vou aguentar a Tapera
sozinha?”. Mas me contive e, como não havia nada que
fizesse o menino se acalmar, recorri à educação das
mulheres da Tapera, dei dois tapas nas pernas dele e
senti remorso por ter feito isso, mas era como se minha
mãe soprasse em meu ouvido: tome as rédeas senão ele
vai te fazer de gato-sapato. Os tapas não o fizeram parar
com o escândalo, mas passou a temer por mais e se
sentou soluçando, cansado. Quando dormiu, derrotado
de tudo, eu o pus na rede e o cobri com o manto de
Zazau. Desde o seu nascimento, era a primeira vez que
ficávamos a sós. Não poderia ter sido pior, porque eu
sequer o chamei pelo nome e nem mesmo pedi com
paciência que se comportasse.
Depois o menino foi se acostumando à nova vida e
Zazau se tornou uma lembrança distante. Eu lhe dava
banho e punha a refeição no prato, limpava a roupa e as
sujeiras e lhe dei um lugar especial nas minhas rezas, dia
após dia. De pequeno eu torcia o pepino, e o menino
passou a acatar minhas ordens, sem deixar nenhum
espaço para que reclamasse. Seguia comigo para a
igreja, para o pomar, para a terra de quando em quando,
porque eu não tinha com quem o deixar. Na igreja, se
tornou conhecido dos padres e assim pôde entrar na
escola quando pedi por seus estudos. O menino vez ou
outra me contrariava, amolava os padres e me dava dor
de cabeça. Eu o castigava para que não repetisse o
malfeito.
Foi assim que cresceu e se tornou rapaz, inquieto,
bravo feito um bicho da mata, com a língua ferina de
quem não leva desaforo para casa. Se perdia entre as
crianças e trepava no cruzeiro da igreja e lá vinha
reclamação dos padres. Toda a minha contenção, a
privação que passei para ser livre e digna para o povo da
Tapera, despontou sem rédeas no menino. Mexia em
tudo, queria saber de tudo, perguntava dia sim outro
também pelo próprio nascimento, como se me
implorasse a verdade. Às vezes se perdia quieto, nos
poucos momentos em que parecia ter alguma paz,
olhando barcos e jangadas deslizando no Paraguaçu. Me
dizia enquanto eu lavava as roupas na beira das águas:
“Ali na boca do rio, na saída onde nossa visão não
alcança, está o caminho para a cidade e eu vou embora”.
Eu o incentivava, dizendo: “Então estude e não fique
desperdiçando seu tempo com confusão na escola”. Não
dizia mais nada, não dizia que sim nem que não, mas
pensava, sim, você deve ir mesmo, Menino, a vida na
Tapera é vida de fraqueza e de necessidade sem fim,
então estude e tome seu rumo para não acabar como eu,
lavando roupa, ou como Zazau, dependente de marido,
ou como Joaquim, que não consegue dinheiro nem para
vir aqui mais vezes, ou como Mariinha e Humberto e
Raimundo que caíram na estrada e nunca mais voltaram.
Bem de vida não ficaram e eu tinha perdido a fé de que
algum dia voltassem.
Nos meus dias de mais nervoso, de mais desalento, e
quando não conseguia de nenhuma maneira fazer com
que parasse de me aborrecer, e se meu pai não estivesse
por perto, eu repetia para ele uma mentira; de todas era
a que mais tinha jeito de verdade: “A mãe morreu de
desgosto depois de você nascer. Teve melancolia, foi
parto difícil, você era desse jeito desde a barriga,
inquieto, ficou atravessado e ela já não era nova e não
aguentou”. Ele me olhava com ar envergonhado,
imaginava mil coisas, e contra aquela história não havia
como pedir perdão. Eu o olhava, com a mente e o
coração perdidos em algum lugar além da janela, sem
sentir remorso. Sofria com ele, os dois juntos, mas não
me arrependia do dito: depois de tudo, eu havia morrido
de alguma maneira, porque nunca mais fui a mesma.
16

Quando ele já era um moleque, lia bem e andava com


um livro para cima e para baixo, e cumpria ofício como
coroinha na missa para minha graça e satisfação, e eu
achava que tudo caminhava, aos trancos e barrancos, ele
me contou um segredo. Um segredo que eu preferia não
saber. Minha reação à revelação não foi a correta, hoje
eu sei; mas foi a única reação possível para tentar salvar
a mim e a ele.
O que ele me contou sobre o padre era grave, meu
Deus, e como eu iria reagir àquela história? Primeiro é
que era um menino, e meninos mentem. Depois é que eu
não tinha onde cair morta se perdesse o pagamento do
meu trabalho como lavadeira. Mas não só: o que a gente
da Tapera diria sobre mim? O Menino tinha a boca
queimada de mentiras, atacava a santidade da Igreja,
portanto dessa vez o povo da Tapera não iria me perdoar.
Iam dizer que eu havia plantado aquela invenção para
destruir a aldeia ou que eu tinha enfeitiçado a criança
para desviar o padre. Esqueça, Menino, esqueça tudo o
que se passa na sua cabeça, você está sonhando, nada
disso é verdade. Ponha uma verdade na sua cachola: há
coisas mais importantes na vida. Conclua seus estudos
na escola para conseguir um trabalho e viver sua vida
longe da Tapera.
Eram palavras inquietas tecidas em meus
pensamentos e coração, mas não foi bem assim que
chegou aos ouvidos do menino. Chegou com palavras
fortes: “Mentira, demônio, você ouviu isso onde?”,
perguntei. “Está aprendendo essas coisas com aqueles
pivetes que sempre aprontam comigo e com você. Não
levante falso testemunho, Deus vai nos fulminar com um
castigo! Você deve estar vendo essa depravação nas
revistas daqueles moleques, não é?” E sentei a mão na
cabeça do menino, sentei mais outra e mais outra vez e
ele pediu: “Para, Luzia, para, para”. O enfrentei com o
cipó e ele lutou o arrancando de minhas mãos. Eu estava
furiosa, perdida, como proteger o nosso mundo cheio de
defeitos para não se despedaçar de uma vez? Os meus
olhos e os do povo da Tapera não tinham presenciado
aquele relato. Esqueça, Menino, não se deve prestar
atenção em tudo. “Esqueça essa mentira, onde já se viu
falar de padre? Nunca mais torne a repetir o que você me
contou.”
Achava que com minha raiva, pancadas, com minhas
palavras, eu iria apagar o que havia escutado. Achei que
batendo na cabeça do menino iria fazê-lo esquecer o
que, porventura, se entranhou nos seus pensamentos.
Mas não, o que eu fiz foi o encher de mais revolta, de
mais mágoa, e quando dei por mim ele tinha partido.
Encontrei a porta sem a volta do trinco e sem a barra de
madeira escorando. Olhei para a rede e lá não estava o
menino, e abri as janelas para enxergar a escuridão da
madrugada. Até que minhas ideias se iluminaram e eu
corri para o meu colchão e pus a mão no forro. Não, não,
meu castigo estava dado; o menino havia levado o
dinheiro e talvez tivesse se ido embora para sempre.
Se passou outro dia e outra noite e quando dei por
mim era a alvorada. Eu me vi sozinha. Meu pai estava
emborcado na rede de dormir, o que sentiria quando lhe
contasse que o menino tinha caído no mundo, como
todos os outros? Me engasguei, não consegui controlar a
tristeza crescendo como um bolo de saliva na minha
garganta, e os olhos lavaram meu fracasso em ser mãe.
Eu o maltratei desde o dia em que veio ao mundo. Não,
não presto, não valho nada, sou ruim, por isso a Tapera
cismou comigo, por isso o pai do menino não quis mais a
mim depois de me desonrar. Lamentei e depois se seguiu
uma sensação de alívio: não vou mais maltratar o
Menino, ele não vai mais esperar por um afago meu,
agora ele cresceu, vai ser do mundo, vai aprender com a
vida e ficar mais forte. Na Tapera, o futuro não reservava
nada de bom, então, aonde for viverá melhor.
Os dias se sucederam e o tempo não se importou
comigo. Esperava que se importasse com o Menino e
fizesse dele um bom homem, e lhe desse as coisas que
eu não pude dar. Eu retornava à igreja e percorria os
corredores e aposentos do mosteiro para recolher as
peças de roupa. Depois as embrulhava em trouxas e
equilibrava uma na cabeça e a outra levava encangada
entre o braço e o corpo. Dom Tomás me perguntou pelo
menino, e eu disse que ele tinha ido para a cidade,
cansou da Tapera, foi tentar trabalho. O abade parecia
decepcionado, disse que era sempre assim. “São uns
ingratos”, lamentou por ele não ter esperado o fim do
ano para concluir o ensino. “Depois ele volta, dona
Luzia”, me disse, “sempre dá errado. Uma pessoa da
aldeia não tem educação para viver na cidade, leem e
escrevem parcamente, ninguém vai querer um roceiro
para trabalhar numa loja ou supermercado”, riu com
desdém. Nem passou por minha cabeça contar o
segredo, contar o que ele me fez escutar, até porque eu
o havia impedido de dizer o nome, não sabia quem era o
padre. Eu não iria arriscar a paz que tanto havia me
custado, restando a mim guardar aquela história como
um delírio. Só me restava me esforçar para esquecer.
Mas aquela ausência foi crescendo, crescendo, eu não
o vi mais, não tive notícias dele. Deve ter subido em
algum saveiro ou ônibus e partiu para bem longe. Só
Deus sabe para onde. Um mês depois chegou notícia de
Joaquim: o Menino tinha pousado na casa de meu irmão
e procurava trabalho. Tinha prometido se matricular para
concluir os estudos no começo do ano. Meu coração se
aquietou e voltei à vida da Tapera, cuidando das tarefas
de casa, recolhendo os copos de cachaça e a sujeira de
meu pai, indo de vez em quando à tarefa de terra para
ver se havia cultivo, se tudo estava em ordem. A lavoura
estava minguada, já não havia a fartura de antes. O vício
comprometia o zelo de meu pai.
Por essas coincidências da vida, comecei a sentir outra
dor de dente. Sem médico, eu consegui o mesmo frasco
de remédio que Zazau conseguiu da primeira vez para
curar minha dor, enquanto esperava o menino. Como da
outra vez, não deu nem para o gasto e lá estava o dente
latejando de novo. Foi então que decidi voltar à velha
árvore, a árvore para onde um dia minha velha mãe me
levou. Armada de facão retornei ao Loco, vivo,
majestoso, como o conheci. Iria me curar da dor que
irradiava da boca para o fundo do meu corpo. Tentei
recordar como foi que minha mãe se aproximou para
transformar em remédio o leite da árvore. Dessa vez
pulei etapas e não acendi cigarro para a Caipora, por não
saber como fumar. Não amarrei o ojá no tronco e pensei
comigo mesma ser tudo crendice, importava apenas o
leite da raiz.
No meu desespero não havia tempo a perder e mesmo
a ave-maria e o pai-nosso não saíram direito de minha
boca porque a dor me comia o juízo e não conseguia
mais pensar. O padre que me deu o remédio me disse:
“Reze, dona Luzia, e amanhã vá à cidade procurar um
dentista”. Mas eu não podia ir à cidade, faltava dinheiro,
o Menino tinha levado tudo. Quando chegasse o tempo
do imposto, não haveria como pagar, e apenas essa
lembrança era capaz de consumir meu juízo toda vez que
surgia.
Dei uns golpes desconjuntados de facão e quase cortei
a raiz inteira. Golpeei na mesma intensidade da minha
dor e, diferentemente da última vez, era como se a
árvore fosse uma inimiga e estivesse sendo violada,
atravessada pela dor. Vi o leite brotar e era tanto que
encharcou o pedaço de chão. Retirei com pressa o
algodão do mato e o embebi no líquido e o pus na boca.
O leite escorreu pela boca, dente a dente, tudo
adormeceu. Fui atravessada pela lembrança de minha
mãe dizendo: “Não engole, Luzia”. Obedeci a alguns
preceitos, os demais eram superstições dos antigos e eu
era filha de Deus.
Daquela vez eu não repousei em paz, como fiz com
minha mãe aos pés da árvore. Fui-me embora, não
agradeci, e o leite continuava a minar da raiz partida.
Cuspi o que escorria de minha boca e quando retirei o
algodão estava tudo dormente. O alívio me alcançou de
novo e segui olhando para o alto e, já que a boca não se
mexia, elevei meus pensamentos ao Bom Deus para
agradecer o remédio da mata por ter me curado da dor
que me endoidecia.
Quando a dormência passou, eu ainda caminhava para
casa. A boca voltou a se mexer e a língua tateou à volta
encontrando os dentes da frente. Dois bons caíram de
minha boca e encontraram a terra. Parei, arregalei os
olhos, valha-me Deus, e me perguntei o que eu tinha
feito. Depois os dentes, um a um, deixaram minha boca e
caíram no chão. Parei diante das águas do Paraguaçu e
me percebi desdentada. Imaginei: o sorriso que não dei
estava guardado para um dia de liberdade. Uma mulher
como eu, marcada pela Tapera, não poderia sorrir sem
estar cedendo à tentação do Mal. Agora não tinha mais
os dentes e minha nova condição me faria quase sempre
levar minha mão à boca quando encontrasse alguém.
Tudo para não morrer mais uma vez de vergonha.
17

Um ano antes de encontrarem meu pai ferido no


canavial, foi ano de eleição. Tempo de político aparecer
na Tapera e prometer aos pobres mundos e fundos. Às
vezes chegavam antes do dia da votação; outras vezes
mandavam sua gente no dia mesmo para dar um
dinheirinho ou uma cesta de comida. Carregavam o povo
no pau de arara e levavam para votar na cidade. Dessa
vez, a promessa parecia boa: consertar os dentes de
quem precisava. Fui conferir a caridade que corria de
boca em boca.
A hostilidade do povo da Tapera tinha recomeçado e
mesmo assim resolvi ir até a associação. Amarrei meu
cabelo, vesti a roupa guardada, sem uso, para as missas
de domingo — que não existiam mais. Pus um pano
sobre os ombros para cobrir minhas costas. Cheguei de
mansinho, como se aquele lugar não fosse o meu
destino. Não queria chamar a atenção. Pensei que teria
de esperar um dia inteiro e me sentar na cadeira de um
dentista para fazer o molde da minha boca. Se eu tivesse
sorte, antes da eleição eu receberia a peça com os
dentes.
Mas para minha surpresa não tinha dentista nem
cadeira e o que eu vi nem pensava que poderia existir,
coisa de outro mundo. Duas bacias grandes e cheias
d’água no chão: uma com peças de dentes de todo
tamanho e outra somente com água. O povo retirava a
peça, a gengiva rosa, os dentes de todo tamanho, e
lavava na bacia ao lado, para depois experimentar na
boca nua até encontrar a que melhor se encaixava. Claro
que a que melhor se encaixava dançava na boca quando
o afortunado falava. Mulheres pararam na porta e riram,
fizeram caretas, não tinham coragem de se aproximar.
Outros experimentavam como se provassem uma roupa
no alfaiate. Achei que iria golfar na frente de todo mundo
porque o café ralo da manhã veio até a boca do
estômago. Pus a mão no rosto para segurar o enjoo e
clamei por misericórdia, para depois sair de fininho e
retornar a casa.
No meio do caminho uma cambada de meninos se
aproximou. Queriam tocar na minha corcunda, fazer
pedidos em voz alta, me humilhar, rir da situação. Eu
movimentava os braços, olhava para trás, tentava de
todo jeito me libertar daquele martírio. “Maldita a hora
que saí de casa para ver aquela imundice”, praguejei, e
retirei o pano das costas golpeando o ar para tentar
afastá-los. Pediram para eu sumir ou virar lobisomem ou
uma caipora. “Vão amolar suas mães, demônios, me
deixem em paz!”, gritei. Um deles atirou uma amêndoa
encontrada caída, úmida, que se estourou com força em
minhas costas. Os outros se animaram na mesma
medida e começaram a catar a fruta e atirar. Apressava
meus passos quando ouvi a voz de uma mulher gritar e
amaldiçoar os moleques, perguntando se eles não
tinham o que fazer. Que fossem estudar, gritava, e um
deles respondeu: “Agora não temos mais escola”. “Vão lá
na associação e peçam aos políticos”, ela retrucou,
demonstrando domínio para afugentar as pestes. Não me
interessei em saber quem era, mas achei estranho que
uma das mulheres estivesse me defendendo das regras
da própria Tapera.
Ela também apressou os passos, se aproximou de mim
e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Respondi
que não carecia de nada. Agradeci, mas seca, só para
não ser tida como mal-educada. Ela insistiu: “Vou
acompanhar a senhora até sua casa, estou a caminho
das bandas de lá mesmo”. Respondi de novo que não
precisava e pensei com meus botões: era só o que me
faltava, andar com uma protetora. Parei e olhei melhor
para seu rosto. Fiquei surpresa: era a perdida, a rapariga,
agora mais velha, como eu, e mais parecida ainda com
uma cafetina. Tinha o cabelo pintado de preto, mas as
raízes grisalhas mostravam que não era mais a mesma
mulher de encantos que havia feito os homens da Tapera
se perderem.
Ela se pôs ao meu lado e eu diminuí os passos, e
perguntou se eu era filha de Mundinho. “Sou Zoraide”,
ela disse, “andava aqui quase todos os anos, mas depois
a vida foi tomando um rumo diferente.” Achei que queria
saber de meu pai e estava dando voltas, então disse com
rispidez: “Ele está bebendo e deve estar lá na roça, no
tabuleiro, se a senhora quiser falar com ele”.
Ela pareceu não se importar com meu mau humor e
continuou a caminhar ao meu lado. Falava pelos
cotovelos, como se fosse contar a vida inteira na tripa de
caminho que separava a casa da associação. “Sabe…
como a senhora se chama?”, perguntou. “Sabe, dona
Luzia, eu moro na capital, e se eu passar um mês aqui na
casa dos parentes, quando eu volto para lá acho tudo
diferente. Mas esse lugar não muda uma filigrana e
estaria do mesmo jeito, se não fosse a igreja queimada.
Parece maldição porque os mais velhos contam que essa
igreja já queimou num incêndio há duzentos anos” —
cada um aumentava um ponto —, “não sei, mais ou
menos isso, alguns diziam ter sido há cem anos, e agora
ela queimou de novo.” “Vontade de Deus”, cortei a
conversa, “vá ver tem planos melhores para Sua casa.” E
ela explodiu numa gargalhada que me fez parar,
assustada. Olhei ao redor para ver se tinha alguém nos
observando. “A senhora acha mesmo”, ela me perguntou,
“que Ele iria queimar a igreja para depois fazer tudo de
novo?”
“Deus sabe o que faz”, respondi.
Conversa demais para um caminho pequeno e lá
estava eu na porta de casa agradecendo a companhia.
Mas ela não se deu por cansada nem se importou com
minha despedida, nem demonstrou interesse em tomar
seu rumo, seguir seu próprio dia, continuou a tagarelar
na porta e eu não tive escolha senão mandar entrar e se
sentar na cadeira quebrada. “Não cai não, está bem
escorada”, informei. A vadia estava velha e nem de
longe tinha a beleza de outros tempos. Atentei que
minha mãe estava ali, no retrato, olhando para a mulher
responsável por sua desgraça e, decerto, nada feliz com
a visita.
Zoraide suava feito cuscuz e me pediu um copo
d’água. Olhei para suas pernas escuras, a roupa era de
pouco pano, deixando a fartura de carne à mostra. Não
teria coragem de me vestir daquele jeito, ah, isso não.
Mas ela parecia não se preocupar, queria apenas falar,
pôr para fora o que a atormentava. Me falou dos anos
sem vir à Tapera quando esteve casada e trabalhando. O
marido era ciumento, afastou ela da família. “Trabalhei
de tanta coisa, dona Luzia, vendi comida na rua,
trabalhei em casa de família, em quitanda, armarinho.
Sei fazer conta como ninguém”, me explicou. “Criei três
meninos. Estão encaminhados na vida. O marido? Caiu
no mundo, foi atrás de uma vagabunda mais nova.” Não
conseguia interromper o falatório, era como se estivesse
num confessionário e só me restava ouvir.
O tempo passou e parecia que não tínhamos mais
nada a dizer. Peguei minha sacola de costura e comecei a
fazer fuxicos. Ela arfava e falava de novo, dizendo que os
fuxicos eram mesmo bonitos. Depois falava consigo
mesma e eu comecei a rezar em pensamento para que
fosse embora. Entre um gesto e outro tentava encontrar
na minha memória a Zoraide fagueira, rindo entre os
homens, parecendo livre de tudo e sem se importar com
os outros.
“Que crianças mal-educadas, dona Luzia, a senhora
não pode deixar fazerem isso não. Quando for à rua,
carregue um pedaço de pau e o levante assim”, ergueu o
braço e eu vi a carne, antes rija, balançar. “Não precisa
atirar neles, só o gesto afugenta. Onde já se viu
desrespeitarem uma senhora?” “A Tapera não gosta de
mim”, retruquei, e ela quis saber o porquê. “Quem sabe,
dona Zoraide?…” “Não, por favor, dona Luzia, não me
chame de dona, temos idade para sermos irmãs.”
Bom, minhas irmãs eram distintas, mas isso não vinha
ao caso, e me senti no direito de também pedir que
retirasse o “dona”.
“Essa gente de interior é assim, quanto menor o lugar,
mais gostam de falar da vida alheia” — Zoraide
continuou. “As mulheres daqui também não gostavam de
mim, eu sei. Me chamavam de puta pela frente e pelas
costas com ciúme de seus homens. Que culpa eu tinha?
Elas poderiam ter aprendido a fazer o mesmo. Esses
homens da Tapera nunca me disseram o que fazer.”
“Mas seu marido ciumento te prendeu. Pimenta nos
olhos dos outros…”, deixei escapar. Zoraide arregalou os
olhos. Pronto!, agora ela iria me esculhambar. Mas sua
reação foi uma gargalhada que mais parecia um
estrondo, e eu levei a mão à boca para poder rir.
“Oh, Luzia, a senhora é tão bonita. Pena que não
conheceu homem”, me disse. Fiquei em silêncio. Depois
meus olhos se encheram e senti vontade de chorar, não
pelos homens que Zoraide lamentou, não acreditava que
tivessem nada a me oferecer. Os olhos marejaram pelo
“bonita” que ela me destinou, talvez dissesse por
piedade. “Veja seus olhos”, continuou dizendo, “olhos de
mulher trabalhadora, Luzia. Eu vejo que a senhora,
desculpe, vejo que você passou por muita dor, mas nem
mesmo essa dor quebrantou seu encanto. Me dê sua
mão”, me disse num repente. “Mão?” “Sim, sua mão”, e
estendeu a própria para que eu pusesse a minha sobre
ela. Pus a minha com a palma voltada para baixo e vi
minha pele manchada de sabão. Ela também viu, mas
fingiu ver mais além e acariciou minha mão. “Mãos
fortes, Luzia”, ela disse olhando para mim, e depois a
virou para ler a sorte como as ciganas fazem.
“Essa linha é como o Paraguaçu, Luzia, e você vai ter
uma vida muito longa.” Eu não conseguia olhar para ela
enquanto percorria com os dedos e olhos a minha mão
cheia de nós. “Ah, tem tormenta ainda para acontecer,
mas tem bondade, tem visita e é mais de uma pessoa.
Visita de gente que você queria ver há muito tempo. Está
vendo esse traço aqui, tudo mudou de rumo. Luzia
assumiu as rédeas da vida daqui para a frente. Se
prepare, tem surpresas.”
“Que surpresas”, quis saber, “boas ou ruins?”
Ela levantou os olhos da minha mão e segurou meu
queixo como se quisesse confortar meu medo. Soltou
uma risada, fechou minha mão, pôs a outra mão sobre as
nossas e as fechou nesse gesto. “Não digo”, me
respondeu com um meio-sorriso, “os caminhos a Deus
pertencem. Mas tenha fé, será um tempo novo.”
Se levantou e me disse: “Como meu amigo Mundinho
não chegou, eu vou indo, porque está ficando tarde.
Tenha paciência com ele, Luzia, não é fácil aguentar o
vício dos outros. Mas quando é nosso pai, nossa mãe,
nossos filhos, que jeito temos a dar? Entregue a Deus e à
Nossa Senhora, aos orixás, e há de passar”. Se despediu
e ela mesma parecia andar mais leve depois de me dizer
todas aquelas coisas. Parou frente ao retrato pintado de
meu pai e minha mãe e afirmou comovida como a mãe
era bonita. “Acho que me lembro de ver dona Alzira por
aqui, se foi tão cedo”, lamentou. Desceu da soleira
devagar, os joelhos pareciam lhe incomodar. Tomaria o
rumo para a casa onde se hospedava. Mas antes se
voltou para mim e pediu: “Diga a Mundinho que a velha
amiga Zoraide esteve aqui, ele sabe onde me encontrar”.
Eu fiquei na porta por um tempo, um bom tempo, e
senti a brisa e o rio, e o ar se deslocou sem força,
balançando as folhas sem direção. Um pássaro pousou
na beira do telhado. Eu desci a soleira para observar. O
mesmo pássaro preto que cantou para mim quando
estive arriada no chão depois da desonra. Pássaro cada
vez mais raro, ninguém mais o via como nos tempos
antigos. Não conseguia me lembrar do seu nome. Aos
poucos as palavras foram chegando, atravessaram meu
corpo. Seu nome exato eu não conseguia recordar, mas
sabia que misturava olho, renda e fogo.
18

A má sorte de meu pai trouxe as visitas que tanto


esperávamos. Sinais dos anos, do envelhecer, do sentir
que já não há tanto tempo. Não fui ensinada a falar sobre
o que precisava, e por isso jamais me manifestei sobre a
vontade de rever o Menino, Zazau e Joaquim. Queria
encontrar mais ainda os irmãos que viviam distante. O
Menino agora era um homem-feito. Eu conseguia ver os
primeiros fios brancos despontarem de sua cabeleira.
Estava frente ao meu pai, o avô que o acolheu como um
filho temporão. Bom, existia a memória de minha mãe
contando a história do nascimento há tanto tempo, mas
meu pai nunca esteve convencido do fato de que o
Menino era seu filho. Depois da morte de minha mãe e
da viagem de Zazau sem levar a criança, ele
compreendeu que era minha. Um dia, enquanto eu
cozinhava e Moisés brincava distraído no chão, ele se
aproximou e gritou que eu era mentirosa. Levantou a
mão para me bater e a deixou suspensa no ar, sem que
me tocasse. Senti seus olhos fixos em mim,
esbugalhados, ferido estava pela mentira. Eu apenas
olhava para o chão, sem contestar, e a criança nos
observava com curiosidade, sem compreender de fato o
que ocorria. Entendi que meu pai havia juntado os pontos
soltos e se deu conta de que eu havia caído em
desgraça. Mas, diferente do que eu pensava e de todas
as suas promessas de nos castigar por qualquer desonra,
meu pai não tocou mais no assunto e fez descer sobre a
certeza o silêncio, sua forma de me proteger da aldeia e
de me estender o perdão.
Zazau conversava num canto da enfermaria com o
médico, enquanto eu segurava a pequena sacola com a
roupa suja. Trouxe algumas limpas, mas o corpo de meu
pai estava recoberto por faixas e lençóis encardidos do
hospital, não poderia usar o que eu tinha trazido. As
mãos duras e calejadas, as mãos enrugadas do meu pai,
estavam salvas das queimaduras e encontraram as mãos
de Moisés. Conversavam sem mágoa, e o Menino parecia
desconfiado com tanta mudança, cabreiro por ter
passado tanto tempo fora e distante de todos nós. Ele
demonstrava atenção e sua mão não deixou a de meu
pai. Eu ainda pude ouvir ele o chamar de filho, e filho era
um jeito mais largo de chamar a todos os descendentes,
não só os desta família, mas os da família dos filhos da
Tapera.
Alguém percorreu o corredor apressado, passando por
salas e parando nas portas para ver se encontrava quem
procurava. Os passos não me eram estranhos, conhecia
aquele jeito de arrastar os pés ligeiros no chão. Pena que
minha visão já não fosse a mesma, tinha percebido meus
olhos fracos enquanto costurava. Além dos dentes
precisarei de óculos, pus na “nota” de minha mente para
o dia em que me restasse algum dinheiro. Quando se
aproximou, reconheci meu irmão Joaquim, mais pesado
do que a última vez, e cumprindo a promessa feita
quando avisado sobre o acidente.
Joaquim se aproximou da cama, e me senti mais à
vontade para estar por perto, já que o Menino e meu pai
não estavam mais a sós. Os olhos brancos das cataratas
de Mundinho estavam alertas. Olhar em volta e perceber
que uma parte de seus filhos espalhados pela terra
estava ali por ele, fraco e ferido sobre uma cama
enferrujada, deve ter mexido com velhos sentimentos
demonstrados à sua maneira. Joaquim ria dos olhos
marejados do pai. Eles tinham uma cumplicidade
diferente da dos outros. Era o caçula dos homens e foi o
último a deixar a casa. Haviam compartilhado um tempo
de vida na capital, mesmo que não morassem juntos. Se
compreendiam, entendiam suas necessidades, muito
diferentes das minhas e das de minhas irmãs. Naquele
instante um sorriso competiu com os olhos emocionados
no rosto de meu pai. Estávamos atentos aos pedaços de
família se juntando. Relutava em pensar, mas era capaz
que o reencontro ficasse entre nós. Não tínhamos
notícias de Raimundo e Humberto. Nem sabíamos
mesmo se Raimundo estava vivo, muito era o tempo sem
notícias suas. Humberto vivia nos seringais e eu não
conseguia imaginar como seria um lugar assim, nem
mesmo a distância que se encontrava da Tapera. Sabia
apenas que estava a muitas léguas e talvez não se
chegasse por lá nem com os ônibus que cortavam a
estrada.
Faltava também minha irmã Mariinha. Tinha prometido
vir no recado que recebi. Mas já tinha prometido outras
vezes sem cumprir, e minha esperança estava abalada. A
desculpa era a mesma e não a contestávamos. Sabíamos
o que era não ter meios para se deslocar por esse
mundão de terra. Minha irmã mal tinha casa, vivia de
galho em galho com o marido, procurando trabalho e
abrigo. Depois de muito andar foi que pousou num canto
e dali talvez não precisasse sair. Não iria esperar por sua
chegada, não, havia feito isso outras vezes e sofri
quando não aconteceu.
Um rio de histórias correu por minha vida e a vida da
Tapera e eu já não me martirizava pelo calvário de viver
naquela terra. Não sei o que se passava no coração de
Mariinha, o tanto de mágoa, revolta e vergonha que a
entranhavam, que lhe devoravam o juízo. Às vezes me
perguntava, em silêncio, se era por causa somente do
dinheiro que não aparecia. Dinheiro faltava a todos nós.
Passava por minha cabeça se a vergonha ou outro
sentimento a assombrava por não ter estado ao meu
lado quando do que nos aconteceu há tanto tempo. Se
eu pudesse encontrar minha irmã, lhe diria que não
havia o que temer, nada do que me aconteceu tinha sido
sua culpa. Perdemos tempo demais acreditando em tudo
que o povo da Tapera dizia.
De uns tempos para cá passei a desconfiar que o Mal
não vinha do coração daquela gente. O Mal foi plantado
pelos senhores de terra. Tinha sido regado pelos padres
que habitavam o mosteiro de Santo Antônio. Não saía
mais da minha cabeça que nos dividiram para nos
enfraquecer. Tudo se iluminava na mesma medida em
que me assombrava. Não tive estudo como o Menino,
mal sabia ler ou escrever e guardava um missal como
amuleto, feito as beatas carpideiras. Mas os anos me
ensinaram que não há nada que não se possa conhecer
quando criamos atenção para o mundo, quando
deixamos o tempo contar as histórias do seu jeito. Só
assim nós somos capazes de perceber o que existe no
coração dos outros.
Despertei do remoer de vida quando Zazau me
chamou num canto para contar que os médicos queriam
transferir nosso pai para a capital, onde havia mais
recursos para tratar das queimaduras. Fiquei irrequieta:
“Ele está lúcido”, ponderei, “não vai aceitar ficar tão
longe. Quem da família vai poder dar assistência a ele
lá?”, quis saber. “Joaquim e Moisés moram lá”, Zazau
disse, “eu posso ficar por um tempo, depois pode ser
você, e tudo se arranja.”
“Mas não vamos dizer agora”, pedi, “vamos falar aos
poucos para ele se convencer da necessidade de mudar
de hospital.”
“Não há muito tempo, Luzia, o médico deve pedir a
transferência amanhã”, ela disse.
“Então, vamos aguardar até amanhã e pensamos
como vamos fazer.”
Por meia hora ficamos os quatro ao redor da cama. Os
remédios eram fortes, a enfermeira tinha dito, e meu pai
parecia não sentir dor. Estava de lado, com as costas
amparadas por travesseiros. A queimadura maior era a
das costas, eu vi quando o puseram sobre a cama de
casa, e a do rosto que havia deixado a pele rosa. Meus
pensamentos se encheram dos anos ao lado de meu
velho pai, o pai que nunca tomou um rumo certo e vivia
como se não tivesse sido feito para a vida de família. Que
gostava mesmo de estar entre os amigos, rindo, ouvindo
música, jogando dominó ou palito. Que achava injusto
trabalhar o dia todo para não ter nenhum patrimônio.
Então pregava trabalhar apenas o suficiente para ter o
alimento, para dar de comer aos seus. Quando achou ser
a Tapera um horizonte estreito, sem chance de ter mais
tarefa de terra e prosperar, ele seguiu no saveiro de seu
Valter pelo Paraguaçu até a capital. Voltou depois e
nunca mais quis deixar a aldeia. Nada dizia, mas a culpa
que sentia pela partida de minha mãe pesava nos seus
pensamentos. Assim como parecia ter consciência de
que as dores do mundo e das pessoas não se resolviam
apenas por sua vontade.
De todos nós, talvez fosse o que melhor conhecesse os
próprios limites e não se desafiava a ser diferente. A
bebida lhe deu algum prazer e o fez esquecer as
frustrações da falta de paz semeada entre nós por
disputas provocadas pelos vizinhos, quando mudavam as
cercas avançando para o terreno ao lado, quando
soltavam os animais na lavoura alheia e tudo era
tragado. Foi assim que o Mal cresceu entre nós.
Zazau tocou meu braço. Era hora de partir. Joaquim
ficaria o resto do tempo ao lado do pai e no dia seguinte
um de nós retornaria para render meu irmão até tudo se
resolver. Meus pensamentos agora não paravam mais.
Rumavam mais ligeiro do que o transporte e freavam de
supetão nas lombadas da estrada. O céu tinha uma cor
viva e o sol indicava sua partida. O Menino desembarcou
por último. Quando estava com os pés no chão da
Tapera, seus olhos se fixaram surpresos na torre
queimada. Ele perguntou a mim e a Zazau quando havia
ocorrido o incêndio.
No dia seguinte, enquanto Zazau coava o café e eu
lançava milho às galinhas, o Menino se aproximou e
perguntou se alguém cuidava da ruína da igreja. Contei
que todos haviam ido embora. Ele passou a me contar as
lembranças que tinha dos espaços do jardim, dos
cômodos que eram os dormitórios dos padres e onde ele
não podia entrar, além da escola. Quis saber se eu parei
de lavar roupa por causa do incêndio. “Deixei de lavar
um pouco antes, porque já não dava mais conta do
cansaço”, desconversei.
“Tinha um porão lá, não é, Luzia?”, me perguntou.
“Porão? Acho que não”, respondi.
“Tinha, sim, um lugar escuro e sujo de onde se via o
rio e a água entrava nas cheias da maré.” Ele se abaixou
para espiar as galinhas mais de perto.
E perguntou sem olhar para mim: “Lembra, uma vez
eu me perdi e você me encontrou por lá?”.
19

Durante anos e anos meus passos se dirigiram à igreja,


ao jardim do pátio interno, ao cruzeiro, aos quartos do
mosteiro, lugares por onde andei além da nossa casa.
Muitas vezes, me senti protegida por estar na igreja e ao
mesmo tempo ganhei sustento como a lavadeira dos
padres. Me sentia filha de Deus e gozava do agrado que
os vivos esperam. Esfregava a roupa da igreja com os
nós dos dedos, com sabão e barrela, na beira do rio, até
a última trouxa. Batia, quarava e esperava o vento e o
sol cuidarem do resto. Pus barra de sabão atravessada
por um pregador na janela e pedi a santa Clara para
clarear, que a chuva não fosse excessiva a ponto de
atrapalhar meu ganha-pão, vai chuva, vem sol, nem de
menos para prejudicar o cultivo do povo, vai sol, vem
chuva. Antes de ter luz elétrica em casa, passei os
tecidos fio a fio, costura a costura, nas brasas do carvão
que acendia antes de o sol subir ao céu. O fogo me
acompanhava, as coisas queimavam e o povo da Tapera
o temia. Ele cozinhava o alimento e era ao mesmo tempo
luz e pavor, mas me permitiu ser a mais zelosa das
lavadeiras que o mosteiro poderia ter.
Foi na igreja que encontrei reparação para o mal que
me acometeu e me fez rejeitar Menino antes mesmo de
ele nascer. Quando chegou à idade de aprender a ler e a
escrever, pedi a dom Tomás para ele estudar na escola.
Foi na igreja, aos domingos e dias santos, que expiei
meus pecados, pedi perdão pela raiva desmedida do
mundo e mesmo da Tapera. Pedi a Deus: “Toque meu
coração com a gratidão, pelas coisas que temos: a
comida, a saúde, o teto sobre nossas cabeças. Guie cada
um dos meus irmãos por caminhos justos e de proteção.
Cuide do Menino, ele mesmo Seu filho”. Elevava minhas
preces ao céu, o mesmo céu de onde caía a chuva, a
fuligem das queimadas, por onde corria a brisa e os
pássaros. Então nos chegavam notícias quando nos
visitavam ou telefonavam ou mandavam recado por
alguém. Era a certeza de que estavam vivos. E se
estavam vivos, poderiam estar bem. Mesmo o Menino
que deixou a Tapera cheio de revolta, mesmo o Menino a
quem eu não soube educar com bondade, com cuidado,
só com gritos, mau humor e rudeza, quando Joaquim nos
dizia que o tinha avistado trabalhando ou num ponto de
ônibus, meu coração encontrava a paz. Nem sempre era
possível ter notícias, e quando eu perguntava outra vez
ao meu irmão, ele respondia: “Não vi mais, Luzia” ou “A
cidade não é como a Tapera onde todo mundo se
conhece e se vê a toda hora”. Como os irmãos de quem
nunca mais tivemos notícias, e por não sabermos de suas
vidas, não sabíamos de suas mortes. Rezávamos para
que não tivessem sido queimados num abrigo de ônibus
ou mortos numa disputa por terra.
Então a igreja foi meu abrigo e eu segui com a alma
cheia do sentido de dever. A feiticeira, a menina que tem
parte com o Mal, a mocinha maltratada pela Tapera era a
lavadeira dos padres e cuidava das roupas brancas da
casa de Deus. Foi pelos anos que o Menino tem de idade
que caminhei por vielas e veredas equilibrando uma
trouxa na cabeça, da igreja à casa, da casa ao rio. Vivi e
envelheci protegida por essa função. Foi com o Menino
que andei por lá muitas vezes, para não o deixar em
casa sozinho. Desconfiava que ele mexia com fogo,
assim como eu gostava de olhar as labaredas do fogão a
lenha ou as chamas subindo do monte de mato varrido e
queimado. Gostava de espreitar as piras cozinhando as
louças das mulheres, panelas e travessas mudando de
cor quando o barro escurecia. Gostava de admirar as
fogueiras das viúvas. Amava e temia o fogo, e um dia o
Menino põe fogo nesta casa, meu instinto dizia.
O Menino me seguia. Eu pedia que ficasse por perto,
mas depois ele vagava com seus pensamentos, com a
abelhudice que atravessava seu caminho, os insetos, o
piso antigo do mosteiro, a curiosidade de saber o que
estava além dos lugares onde poderia entrar. Quando
achava que estava ao meu lado já o via noutro, distante,
recebendo carambola e cajus das mãos dos padres ou
correndo atrás de um bicho que lhe despertava a
curiosidade. E um dia, um dia de nuvens carregadas de
chuva, um dia que prometia não ser diferente de todos
os demais, eu me desencontrei do Menino e tive medo de
que ele criasse alguma confusão com seu sumiço. Não
queria ser repreendida pelos padres se ele estivesse
contrariando as regras e entrasse em lugar proibido.
Então o procurei em cada lugar e fingi que pegava as
mesmas roupas para fazer a trouxa. Chamava baixo:
“Moisés, Moisés, ô menino, apareça, peste!”, e fazia
breves ameaças: “Além de apanhar, você vai ficar de
castigo”, mas o silêncio continuava. Fiz o sinal da cruz,
pedi perdão a Deus por minha vida, por meus
pensamentos, por tudo o que sentia, e continuei a
procurar. Depois de percorrer os cômodos e de não ter
mais aonde ir, de procurar no cruzeiro e no horizonte do
rio, vi uma velha porta entreaberta, a porta carcomida de
cupim. Não me lembrava de ver gente atravessar a porta
em direção ao vão de paredes úmidas e fedor de mofo.
Um lugar arruinado, vazio, sem nenhuma serventia. Só
não derrubavam as paredes porque a construção era
uma relíquia, dessas coisas que eu não compreendia,
tudo que é velho essa gente estrangeira, ilustrada e
recitando livros como se reza ladainha considera tesouro.
E o povo da Tapera não falava do vão, era como se
aquele lugar não existisse.
Deve ser o salão que dá para o rio, pensei. Todos que
atravessam nos saveiros e nas canoas o Paraguaçu veem
a ruína. Só me restava procurar pelo Menino nesse canto
do mosteiro. Na entrada me deparei com uma chaminé
velha e suja. Parecia estar prestes a desmoronar. Dentro
havia um ninho de urubu. Os filhotes aparentavam ter
poucos dias, tinham os olhos esbugalhados, não voavam
e estavam recobertos por uma penugem clara. Me
aproximei para espiar o ninho e quando os bichos viram
meu rosto, vomitaram a carniça que comeram antes. Pus
a mão na boca para não pôr para fora o que me revirava
no estômago ao ver a papa viscosa deixar os bicos das
aves.
Atravessei um corredor escuro e estreito mudando de
direção, uma, duas, três vezes, até que me vi naquela
imensidão decrépita, ruína e umidade, onde a correnteza
e o vento faziam ecos. Olhei para o alto e o espaço era
recoberto de céu, sol e nuvens. Samambaias e mato
cresciam por toda parte: entre as rachaduras das
paredes, no alto do que parecia ter sido um teto.
Arrebentavam do chão. Desci uma escada e encontrei o
piso de terra, tijolo e pedaços de correntes escuras
enferrujadas, desfeitas pela água e pelo tempo.
Foi então que vi o Menino num dos vãos por onde a
água do rio entrava quando a maré subia. Naquele
instante a maré estava baixa e ele estava sentado justo
na passagem. Olhava o rio sem atinar para o perigo, e
talvez não recordasse minhas ameaças de castigo.
Chamei por seu nome, mas minha voz se perdia na
imensidão, como se o som virasse vento e seguisse por
rumo desconhecido. Avancei para tentar chegar até a
passagem, mas o ar estava pesado e por mais que eu
caminhasse não conseguia me aproximar. Como ele
chegou até lá?, me perguntei, se meus pés andam e
andam e quase não saem do lugar? Cansada, caí de
joelhos no chão. Então me percebi em outro mundo,
como se o meu corpo estivesse transbordando e se
espalhando por toda parte.
Pus a cabeça entre as mãos e me recolhi. O Menino
vivia em meu ventre e eu no de minha mãe, que por sua
vez estava no ventre da minha avó e de todas as outras
que vieram antes de nós. Havia gritos e urros de morte.
Cheiro de corpos doentes e gordura de peixe queimando
nas paredes. Não havia sombra de Deus, nem de santo.
Não havia graça nem paz. Estávamos sozinhos e
contávamos apenas com a boa vontade das águas para
que não fossem tantas a ponto de nos afogar. Não
daquela vez. Meu corpo não se movia porque estava sob
o peso das correntes e da tristeza e da fúria e das
lágrimas dos que estavam presos. Não muito longe
surgiu uma baleia e seus caçadores gritavam do alto do
tumbeiro e a água foi se tornando rubra feito sangue.
Sobre o teto se formou um longo caminho por onde
corriam guerreiros vestidos de mantos de penas
carregando flechas afiadas e incandescentes.
O fogo era promessa e vida. Um grito, outro grito e o
zunido das flechas atravessou o ar.
E então tudo desapareceu: o peso da água, os sons, o
sangue e o rio vermelho. Abri os olhos e ergui minha
cabeça para tentar entender onde me encontrava. O
Menino me olhava assustado, sacudia de leve meu
ombro. “Vamos embora, Luzia, você está doente”, me
disse como se fosse o responsável por mim. “Não, não
estou doente”, falei enquanto me levantava do chão,
limpando os restos de grama e carrapichos presos à
roupa.
“Então acho que você estava sonhando”, ele me disse
segurando minha mão e me guiando para fora do salão.
Manaíba
1

Quando o ônibus se aproximou da plataforma de


embarque, o medo percorreu seu corpo. Um leve arrepio
antecipando a sensação de liberdade. Era a primeira vez
que viajaria sozinha, sem o marido determinando o que
fazer e sem nenhum dos filhos para vigiá-la. Era a
primeira vez que subiria num ônibus com poltronas
acolchoadas, porque antes correu meio mundo de terra
em pau de arara à procura de trabalho e morada. Tinha
acontecido há tanto tempo, mas o frescor daquela
memória a fazia se sentir como se tivesse sido ontem.
Ela não conseguia imaginar quais seriam seus
sentimentos ao avistar de novo a estrada, os campos
cultivados e as pequenas cidades surgindo pelo caminho
de mato crescido em tempo de chuva. Viajou àquela
terra agora sob seus pés com a família havia um bom par
de anos, e dali não tinha saído. Tentaram, é verdade,
afugentá-los como pássaros que devoram a lavoura. O
novo senhor tomou posse da fazenda e deixou entrever
sua preferência por vê-los longe dali, afinal tinha outros
planos para a propriedade. Ele quis que carregassem
seus pertences e deixassem a propriedade da mesma
maneira que haviam chegado. Se sentiram malquistos, é
verdade, mas até aí nada de novo. Por isso resistiram,
mato bravo, tiririca crescendo mesmo quando cortada, a
sina dos desassistidos. Mesmo com sangue derramado,
não recuaram. Mas tudo era parte do passado. Pouco a
pouco eles ganharam confiança para se apossar da terra,
construir casa de alvenaria, distante das ameaças.
Ela voltou seu olhar para os dois filhos ao seu lado,
que pareciam receosos. A mãe não saía de casa sozinha,
mas agora viajaria para encontrar o próprio pai, o avô
que nunca conheceram. O pensamento dessa senhora
estava nesses jovens e quase não acreditou que seriam
eles a cuidar da casa e do roçado. Crescidos, dois
homens bem-criados, e por um instante considerou que
ter todos os filhos vivos, os netos, quando muitas
crianças haviam morrido de fome e doença, era quase
um milagre. “Deus teve piedade de mim”, disse em
segredo, enquanto tomava para si os embrulhos que eles
carregavam. Ali, fez as recomendações repetidas desde o
dia anterior: que alimentassem as galinhas,
armazenassem água da chuva — se chovesse — e
cuidassem da terra como se cuida do corpo. Era preciso
limpar os campos das pragas, além de regar o quintal —
para os pés de tudo, as ervas, o mato, viverem sempre
verdes. Eram os gêneros para abastecer a casa e a
barraca onde trabalhavam na feira.
Pediu para cuidarem sobretudo de si mesmos e de
seus irmãos.
Não houve abraço nem beijo porque não existiam
cumprimentos como esses entre eles. Eram hábitos que
agora viam nas telenovelas, embora ela achasse bonito
uma mãe beijar o filho. Mas não sabia como demonstrar
afetos diante da rudeza com que tinha conhecido a vida.
Quem sofreu o tanto que sofremos, constatava, não dá
tanta importância a essas frescuras. Afeto era roupa
lavada, comida na mesa e união contra as tormentas.
Resistir como família era a maior prova de bem-querer.
Com olhos e gestos deu tudo de si antes de entrar no
ônibus, abençoando-os quando pediram. Subiu os
degraus e repassou os detalhes das intermináveis
recomendações e, por fim, imaginou os mesmos
conselhos a acompanhando por toda a viagem. No alto
da escada enquanto passava próximo à cabine do
motorista, percebeu suas pernas tremerem, e só por isso
fez o sinal da cruz.
Pediu a Deus para acompanhar sua jornada de volta à
Tapera do Paraguaçu.
Pouco tempo tinha vivido naquela terra, mas era como
se a Tapera não fosse um lugar qualquer encravado nas
margens do rio. Antes era a terra que se carrega por
dentro. O tempo distante daquele chão começou com a
jornada dos pais em busca de trabalho nas fazendas do
Recôncavo, de Santo Amaro a Maragogipe, até a notícia
da morte do velho avô que havia criado pai Mundinho.
Ele era herdeiro, tinha a preferência para retornar e
ocupar a casa e a terra onde nasceram e se criaram. Seu
pai contou tudo isso ao preparar a família para o
regresso, sem surpreendê-los porque o retorno era
esperado. Teriam a casa antiga onde o pai havia crescido,
a terra para cultivar, o rio para pescar e a areia de suas
margens para mariscar.
Subiram na boleia de um caminhão e voltaram com
trouxas, latas e uma enxada velha.
O motor do veículo atendeu partida, fez ruído e soltou
fumaça na atmosfera, e ela levantou a mão direita para
fazer um aceno discreto aos filhos ainda de pé na
plataforma. Passou a mão no cabelo grisalho e sentiu a
falta do lenço que o recobria sempre. Se sentia com o
coração partido por todos que ficavam e por estar
privada de sua companhia. Partido porque sentiria falta
de sua casa nova. Partido também pela roça que estava
farta naquela temporada, o que sempre lhe dava muito
gosto. Partido e aflito pelo que a esperava na aldeia.
Havia mais de trinta anos não punha os pés na Tapera.
Temia pelo que encontraria na terra de sua gente. Mais
ainda por seu pai de idade avançada e queimaduras
graves, segundo tinha contado a filha de dona Mira.
“Quase você não tinha o recado”, disse Bibiana logo
depois, “ligaram para o orelhão na frente da escola à
procura de uma tal Mariinha.” “Não, não há nenhuma
Mariinha por aqui”, disse, precisando retornar à sala de
aula, mas quem estava do outro lado da linha insistiu e
disse que poderia ser Maria de Aparecido, o nome do
marido. “Dona Maria Cabocla?”, perguntou Bibiana.
Mariinha e Maria Cabocla, os nomes de suas duas
vidas. Mariinha era o nome da vida de antes, ao lado dos
pais e dos irmãos, enquanto peregrinava de fazenda em
fazenda até se estabelecer por pouco tempo na Tapera.
Maria Cabocla era seu outro nome, pertencia à mulher
que se tornou ao lado do companheiro, adentrando cada
vez mais as terras de preto, mesmo antes de levantar
morada em Água Negra. Se lhe perguntassem àquela
altura qual nome era o de sua preferência, não hesitaria
em dizer: “Maria Cabocla”. Não apenas pelo tempo que o
carregava, mas por ser um nome de “batismo” sem
padrinhos e água. Foi nome forjado na secura do sertão,
percorrendo campos e desejando vida. Era também um
nome a carregar a memória dos seus, a Tapera dos
caboclos e negros às margens do rio. Paraguaçu, rio
negro nascido das águas escuras, soube muito depois, de
um minadouro nas rochas da mesma Chapada onde
levantou morada. No seu percurso se tornava corrente de
águas claras, como o sonho de sua mãe para a própria
descendência. Se o rio corria para o mar, Maria Cabocla
havia corrido para sua origem de água escura. Na Tapera,
a caminho da baía, o Paraguaçu não era mais negro. Era
largo, caudaloso, se preparando para enfim se tornar
oceano.
Mas não deixou de ser Mariinha por escolha, apenas
seguiu o curso dos dias sem perguntas. O nome da sua
breve infância carregou até pouco depois de se unir a
Aparecido, trabalhador do último canavial onde tinha
vivido. Homem que tinha uma força de se admirar e se
tornou seu marido ainda naqueles tempos. Por isso viajou
até a Tapera para pedir a permissão de Mundinho para
levá-la embora. Uma menina, mal haviam despontado os
seios, os ossos ainda se esticavam. Homem jovem,
sentia desejo, encanto, não sabia nomear os
sentimentos, mas queria estar ao lado de Mariinha.
Ninguém estranhou, nem lhe disseram ser muito nova
para se juntar a homem. O destino das meninas era o de
serem levadas de suas famílias para cuidarem de homem
e de casa, antes mesmo de se tornarem mulheres.
Maria Cabocla sabia do grande desgosto que seria
para sua mãe Alzira, porque Aparecido era homem preto,
sem terra nem casa, sem pouso nem família, e decerto
desgraçaria a vida da filha por não ter nada de melhor a
lhe oferecer. Mas ninguém tiraria da cabeça de Mundinho
a decisão de que não era cedo para dar permissão à filha
para se unir a alguém. Para gente pobre não havia cedo,
sempre era tempo de se aprender a dar valor à vida. Para
se unir bastava estar crescida, a filha já se aproximava
dos quinze. Se não fosse um homem direito e
trabalhador, como Aparecido, poderia ser um
desocupado e malandro, ponderava. As mulheres de
antes conheceram homens do mesmo jeito.
“Talvez tenha me feito mal”, era a certeza de Maria
Cabocla depois de tudo o que passou.
Se não fosse viúva era provável que não pudesse
viajar para reencontrar o pai, assim como o marido não
permitiu a viagem para visitar sua mãe doente. Antes
não havia dinheiro, é verdade, mas a primeira
justificativa de Aparecido foi de que sozinha “mulher
minha jamais viajaria”. E se levasse o maior dos filhos?,
Maria Cabocla quis saber. “Quem cuidaria dos outros?”,
ele devolveu. “Eu trabalho feito um animal, mulher”,
gritou. “Você não tem nada na cabeça, não?” Ela insistiu
que iria se pudesse viajar sem pagar. A mão aberta de
Aparecido golpeou seu ouvido esquerdo, a deixou quase
surda e pôs fim à conversa. Não pôde se despedir da
mãe e não se perdoou por sua fraqueza.
Um homem na poltrona ao lado a empurrava cada vez
mais para o canto ao abrir as pernas. Ela se encolheu
contrafeita. “Que diabo esse homem tem no meio das
pernas que não pode fechar?” Estabeleceu um limite
imaginário entre os dois, fincando os pés no piso do
ônibus. Apertou a bolsa de fuxico, costurada para um
momento importante, carregando as parcas economias.
Não poderia se dar ao luxo de perder por distração a
miséria que transportava. Segurava a bolsa desconfiando
da própria atenção. Durante a viagem, entre o passado e
o que estava por vir, corria o risco de esquecer a própria
história, quanto mais perder as economias.
O céu feito breu pontilhado de luzes distantes, a
estrada pontilhada de luzes vez ou outra lançadas pelos
faróis dos carros. Maria Cabocla carregava vidas e
histórias incontáveis. Se dependesse dos fios da memória
refletiria sobre a estrada percorrida desde seu
nascimento durante a viagem.
Mas na distância dos anos prevaleceu o cansaço a
inundar sua mente, um lago parado e recoberto de lodo.
Um sono antigo dividido pelos ruídos da noite e repleto
de sonhos que jamais conseguiria decifrar.
2

Maria Cabocla despertava a cada meia hora e num


desses momentos encontrou o passageiro ao lado
dormindo, um peso apoiado sobre seu ombro. Quem os
visse consideraria a existência de alguma intimidade
entre eles. Por isso não temeu que o homem despertasse
quando inclinou o corpo para a frente, retirando o ombro
onde ele se apoiava. Deveria estar bêbado ou cansado, o
que não tornava tudo menos constrangedor. Mas logo ela
voltaria a cochilar.
Sonhou com as irmãs Luzia e Zazau. Eram meninas,
dançavam ao redor de uma fogueira, riam e se divertiam.
Despertou perturbada, o coração acelerado, o rosto
iluminado pelos raros faróis. Dormiu de novo e a cada
hora alguém diferente aparecia nos seus sonhos
desconexos. Frações de vida sem significado aparente, a
não ser para Maria Cabocla reconhecer o lugar de cada
um em seu espírito. Planejou rezar durante a viagem e
assim permaneceria alerta para qualquer imprevisto. Mas
se rendeu ao balanço do ônibus, feito a rede onde havia
passado a dormir de novo, para não ter que se deitar na
cama onde passou as noites ao lado do marido até o dia
de sua morte.
O sol despontava no céu, um sinal de que estava
próxima de seu destino. O ônibus parava vez ou outra
para desembarcar e embarcar passageiros. Rita, filha de
dona Mira, tinha avisado que seria preciso descer na
rodoviária da cidade e embarcar numa van até a Tapera.
Quando menina, aquele percurso era feito a cavalo e
carroça. “Ninguém anda mais em lombo de animal”,
Maria Cabocla se deu conta durante a viagem. Jegues e
burros vagaram abandonados e foram substituídos por
motocicletas. Tornaram-se pragas responsáveis por
acidentes na estrada. Teve prefeito de cidade do interior
pagando por animal abatido. Mas Maria Cabocla achava
injusto com os animais. “Até mesmo Jesus, Nosso Senhor,
montou um burrinho”, ela pensou. “Não merecem esse
fim.”
O passageiro bocejou e mexeu as pernas com
impaciência. Parecia ansioso para desembarcar. Maria
Cabocla observava a margem da rodovia pela janela
sentindo os cheiros de toda a vida: da capoeira
queimada, do curral e do café coado. Ela pediu ao filho
que comprasse um bilhete próximo à janela para que
pudesse ver a estrada e os campos. Por vezes tinha
viajado sentada em tábua de madeira improvisada como
banco na carroceria de caminhão apinhado de gente.
Queria chegar à Tapera como uma senhora digna e por
isso queria se sentar à janela. Após uma vida de
privações, não via nesse gesto extravagância alguma.
Pena não poder comprar a poltrona ao lado, do contrário
teria viajado deitada, sem disputar espaço com um
abusado qualquer.
Antes que o ônibus estacionasse na plataforma, o
homem já estava de pé e pronto para descer. Ela pensou
em se levantar, estava agoniada para deixar seu
assento, mas decidiu deixar o homem desembarcar
sozinho. “Vou levantar quando o ônibus parar”, decidiu,
“senão é capaz de o homem achar que estou atrás dele.”
Ajeitou o cabelo embaraçado pelo vento, recompôs o
casaco que usou para se proteger do sereno da
madrugada e passou a mão para aliviar o amassado do
vestido. Recolheu seus embrulhos, a bolsa que não saiu
de seu colo, a pequena mala de tecido, e perguntou onde
poderia encontrar uma van para a Tapera. Se espantou
com os gritos dos cobradores ofertando viagens para os
mais diversos lugares, alguns nomes conhecidos, e
outros, com certeza, novos. Esperou anunciarem o nome
da sua aldeia. Demorou um tanto até aparecer um carro
velho, o banco do carona vago. Se surpreendeu com o
preço da passagem, mas teve vergonha de expressar sua
inconformidade. O cobrador a olhou de cima a baixo,
avisando que ela só embarcaria com o pagamento
antecipado.
Maria Cabocla remexeu na bolsa à procura do dinheiro.
“Deve estar aqui”, disse, arrependida por carregar tanta
coisa: uma cabeça de alho, noz-moscada, galho de
arruda, figa de guiné, um terço, uma imagem de papel
de Senhor dos Passos, um lenço perfumado, a fotografia
dos filhos, o documento de identidade e a certidão de
nascimento. Depois de retirar item a item, sacudiu a
bolsa sem acreditar. “Mas estava bem aqui”, conferiu um
par de vezes antes de embarcar. Tentou a todo custo
explicar ao cobrador que dispunha do dinheiro e
precisava de mais alguns minutos para encontrar, sem
que ele lhe desse ouvidos e assim seguisse com a
lotação esgotada. Ao se perceber sem as economias, a
boca e o olho direito se puseram a tremer. Tentou ainda
encontrar entre os passageiros algum vizinho do tempo
em que tinha vivido na Tapera, mas eram rostos
desconhecidos de um lugar agora estranho.
Vagou sem destino como os animais abandonados. O
fato de ter passado tanto tempo reclusa, vivendo a vida
da fazenda, cuidando de filhos e marido, tinha
prejudicado sua capacidade de resolver os próprios
problemas. Eram eventos e ações que não faziam parte
do seu cotidiano. Primeiro, se ocupou de imaginar o que
teria acontecido ao dinheiro que carregava. “Só pode ter
sido aquele infeliz, abusado, fingindo dormir sobre mim.”
Sentiu rancor, para depois pedir perdão a Deus se
estivesse acusando o pobre infeliz sem provas. Conferiu
a bolsa na plataforma, na frente dos filhos, e viu as
cédulas embrulhadas num papel com anotações. Não
estava louca e voltou a acusar o homem: “Vagabundo!
Se fingindo de cansado para surrupiar uma mulher
sozinha. Se fosse um homem ao lado dele, duvido que
faria o mesmo”. E se fosse Aparecido com o facão de
sempre na bainha o bandido estaria retalhado. Depois
veio a indignação: homem pobre, como ela, origem feito
a sua. “Pobre nunca deveria roubar outro pobre.”
O nariz de Maria Cabocla se ressentiu da umidade do
ar, desacostumado estava, e a deixou com vontade de
espirrar. Retirou o casaco, o dia se esticava quente e as
pessoas subiam e desciam dos ônibus na plataforma.
Ainda tinha esperança de encontrar alguém da Tapera,
embora depois de uma hora achasse improvável. Era
capaz de não reconhecer a própria família se
aparecessem zanzando naquela rodoviária.
O cheiro de comida se misturou aos seus problemas.
Recordações da fome, a memória mais dolorida de Maria
Cabocla. Já fazia muito tempo que não se sentia assim.
Nos últimos anos, quase sempre teve comida à
disposição, a não ser quando a estiagem ou a cheia
levavam o plantio. Agora ela recebia o benefício do
marido morto e já não dançava com a fome. As comadres
juravam que a mulher tinha ganhado “carne” e já não
estava magra como nos tempos de sofrimento. Mas o
cheiro da comida na rua a fez lembrar de que a última
refeição tinha sido no começo da noite. Atravessou a
estrada esburacada no balanço do ônibus e não contava
perder o dinheiro bem guardado e permanecer vagando
sem poder chegar à Tapera.
Se seu destino não estivesse distante, poderia arriscar
ir a pé. O mundo não era o mesmo e não era
recomendável se lançar sozinha na estrada para
caminhar até a aldeia. Se num ônibus repleto de
passageiros um infeliz havia roubado seu dinheiro, numa
estrada poderia acontecer coisa pior. Melhor não.
O dia correu depressa sem que Maria Cabocla notasse.
Era tarde e ela estava quase deitada num banco da
rodoviária, atitude justificada pelo cansaço. Se sentia
envergonhada pelo dinheiro perdido, com vontade de
retornar para casa e reencontrar seus filhos. Decidiu
perguntar a alguém mais disposto a responder qual
caminho deveria seguir para lá, porque sabia que a
Tapera ainda existia.
Uma criança se sentou ao seu lado segurando um
pastel na companhia de uma mulher mais velha. O cheiro
da comida agravou ainda mais sua fome. Pensou que se
a velha não estivesse ao lado, ela pediria um pedaço. Era
a fome, justificaria, um animal a lhe roer por dentro. Mas
aquelas horas sem comer não eram nada perto dos dias
passados se alimentando de fruta pêca caída dos pés.
Maria Cabocla se levantou de súbito para afastar os
maus pensamentos e se viu tomada por uma tontura,
velha conhecida, e desabou no chão.
Toda vez que isso acontecia, caía à espera de que
fosse a última vez.
3

Uma brisa leve soprou contra seu rosto, afastando o


cabelo da testa suada. A face de uma mulher de cabelo à
moda das religiosas foi sua primeira visão depois do mal-
estar. Ela movimentava um livreto com energia para
restituir seu fôlego. Outras pessoas observavam curiosas,
enquanto um senhor abria passagem trazendo um copo
com água. Maria Cabocla se viu às voltas com a fraqueza
velha conhecida, que se pôs de novo à sua frente. Se
recompôs, ainda que transpirasse muito. Procurou pelos
pertences antes mesmo de querer saber o que havia
ocorrido e encontrou tudo ao seu lado. A mulher cuidava
dela com atenção e perguntou se se sentia melhor. Com
a afirmativa, ela agradeceu: “Graças a Jeová Deus”.
As pessoas paradas ao redor, curiosas ou solidárias,
voltaram aos seus caminhos sem grandes preocupações.
Maria Cabocla ficou com a mão da senhora de rosto
redondo feito a lua apoiada em suas costas. Era uma
mulher com o semblante das imagens dos santos,
observados sempre que possível com particular
interesse. As imagens das igrejas lhe transmitiam
conforto. Então a mulher perguntou com interesse se ela
iria a algum lugar, se morava na cidade, e se havia
algum telefone para avisar à família que pudesse ir
encontrá-la. Ela disse sim e a respiração voltou a
acelerar. Finalmente Deus e seus encantados enviaram
alguém para lhe ajudar. Porém, depois de procurar pelo
número do telefone para recado na sua bolsa, se deu
conta de que o papel onde estava anotado era o
embrulho do dinheiro perdido.
“Acho que perdi o papel com o telefone, junto com o
dinheiro que trouxe comigo”, disse, esperando que a
mulher acreditasse na sua história. “Por isso não
consegui pegar a condução até a Tapera.”
“Ah, não se preocupe, a senhora não vai ficar sozinha”,
a senhora disse com uma expressão firme, tentando
confortar. “Meu nome é Alzira”, pôs a mão nas costas de
Maria Cabocla, “acho que o último carro para Tapera do
Paraguaçu já saiu, então o próximo só pela manhã. Eu
vim da reunião e deixei minha irmã na condução para
Coqueiros”, disse, tentando contornar o estranhamento.
“Mas a senhora pode vir comigo para casa. É lugar
pequeno, humilde, não repare. A senhora não precisa
passar a noite aqui. Amanhã eu mesma te trago para que
possa encontrar sua família.”
Maria Cabocla não era mulher de grande fé, embora se
interessasse pelos mistérios tidos como sagrados. Desde
sempre escutou e ouviu sobre milagres por onde passou,
durante a infância, e por todos os lugares onde esteve na
vida adulta, sem se deixar intrigar. Mas o fato de o nome
da mulher que a amparava ser Alzira, feito sua mãe, foi
recebido como um sinal. Ela perguntou se era certeza de
que não incomodaria, e Alzira respondeu: “De modo
algum. Como é seu nome, minha filha?”. “Maria”,
respondeu enquanto se levantava. Caminharam pelas
ruas calçadas de pedra até a casa.
Alzira se esforçava para falar com calma, transmitindo
o conforto de que Maria Cabocla precisava. Ela carregava
uma Bíblia e Maria Cabocla se recordou que havia algum
tempo foi levada por uma vizinha para uma das novas
Igrejas na cidade. Fora criada como católica, criança e
mesmo mais velha. Cochilava nas missas, é verdade,
sem entender o porquê de tanta conversa. Mas achou
aquela nova Igreja por demais barulhenta. O senhor de
paletó não discursava, berrava, e no final da cerimônia
muitas pessoas dançavam e falavam coisas que ela não
conseguia entender. Retornou para casa com dor de
cabeça, confusa, mas não disse nada à vizinha para não
a magoar. De qualquer modo prometeu a si mesma que
lá não voltaria. Não tinha mais interesse nas festas de
santo, nem em romarias ou procissões. Se contentava
em conversar com Deus no quintal, ao acender a vela, ao
colher ou semear o milho da lavoura, quando se deitava
à noite e se levantava ao amanhecer.
Agora, esperava que aquela senhora não tentasse
convertê-la. Não se importava que falassem de Deus, e
até gostava de ouvir seus muitos nomes. Gostava de
sentir a afeição das pessoas pelo sagrado, sentimento
que não tinha mais.
“A senhora é crente?”, quis saber. Alzira confirmou.
“E a senhora?”, Alzira perguntou.
“Sou batizada e crismada na Igreja”, Maria Cabocla
disse, esperando a tentativa de conversão, mas Alzira a
olhou com certa dose de compaixão. “Se algum dia a
senhora desejar, podemos estudar a Bíblia”, disse,
levantando o livro.
A casa era limpa e conservava o cheiro da água doce
do rio correndo em frente. “É o Paraguaçu?”, Maria
Cabocla perguntou quando avistou a correnteza no
horizonte. “É, sim, o rio. Passa lá na sua terra também.”
Mesmo sem se aproximar, viu fileiras de casas e ruas
inertes na margem onde se encontrava e tudo o mais na
margem oposta. Não recordava se havia estado naquelas
ruas algum dia. Era possível ter passado por ali com os
pais e os irmãos, quando peregrinavam de um lado a
outro em busca de trabalho.
Alzira pôs café fresco e pão na mesa. Pediu que ela
não se acanhasse, comesse bem, o mal-estar era por
causa da fome. E comer, de fato, restituiu seu vigor e as
preocupações que lhe rondavam desde que havia
decidido viajar à Tapera. Quando se sentiu mais à
vontade, contou a história do dinheiro perdido. Contou
também que estava a caminho da Tapera por conta do
acidente do pai. “Que coisa mais triste, dona Maria!”,
Alzira de novo pôs os muitos nomes de Deus entre as
duas para pedir que tivesse fé e tudo se resolveria.
As horas se passaram e Maria Cabocla não lamentou
por um tempo sua má sorte e toda a confusão da viagem
à Tapera. Pensou não estar de todo desamparada, tinha
encontrado uma boa alma para lhe acolher, alimentar e
dar abrigo até poder retornar à rodoviária no outro dia e
seguir viagem. Na casa, conheceu o marido de Alzira e os
filhos crescidos. Contou-lhes dos seus e já sentia o aperto
da distância. Garantiu que estavam todos bem-criados.
No dia seguinte, antes de levá-la ao terminal, Alzira lhe
deu um discreto rolinho com uma única cédula para que
pudesse retornar. “Não se preocupe”, Maria Cabocla
disse, “vou voltar para pagar a senhora.”
Enquanto se acomodava na van foi tomada por uma
dúvida: se o brilho que viu despontar dos olhos de Alzira
era feito da mesma umidade dos seus prestes a
transbordar por tudo e todos naquele instante.
4

A emoção persistiu ao longo do caminho. Tanto pelos


eventos ocorridos durante a viagem como pelo que a
esperava entre os seus. Quase tudo naquelas paragens
havia mudado. Não existia uma árvore, um morro ou um
rosto que pudesse ser reconhecível nas imagens
guardadas em sua memória. Somente o rio, largo volume
de água, caminho das embarcações e morada dos
peixes, o mesmo de toda a vida a lhe conduzir pelos
meandros de sua história. E o rio, perene, encantado,
ancestral, surgia e desaparecia ao longo da estrada
esburacada por onde trafegava. Àquela altura, Maria
Cabocla se encontrava a curta distância da antiga casa
de seus pais.
Mas se não reconhecia as construções e a paisagem
do seu passado, na Tapera tudo parecia imutável e
embolorado, a começar pela igreja marcada pelo
incêndio. Não se recordava de Zazau ter contado sobre o
incidente, mas constatava ser assustador o edifício
despontar com sua torre arruinada além dos telhados das
casas. Agora a igreja e o mosteiro não passavam de um
monte de entulho mal-assombrado e povoado de
morcegos, símbolos de um tempo para sempre
desaparecido. Maria Cabocla fez o sinal da cruz, não por
medo, mas por respeito a Deus, que não merecia ter sua
casa queimada. Os dias não andavam muito bem na
Tapera para um lugar santo queimar sem que pudesse
ser salvo.
As ruas calçadas com mistura de rocha e areia, ruelas
estreitas que se bifurcavam em becos e emaranhados de
outras ruas onde não passava sequer um automóvel, se
revelavam um desafio a suas recordações. Enquanto
uma motocicleta ultrapassava a carroça puxada a burro,
Maria Cabocla se perguntou se reconhecia aquelas
veredas e se poderia encontrar a casa onde morava
havia tanto tempo, a que deixou para se aventurar por
terras distantes com seu companheiro.
Aparecido veio inteiro às lembranças enquanto ela
tentava se situar no emaranhado de vielas. Chegou como
um homem quebrantado pela vida para se tornar seu
algoz por todo o sofrimento que a havia feito passar.
Anos depois deixaria o mundo feito uma criança
indefesa, sem a valentia que fez sua história, e
dependente da mulher maltratada por toda a vida. Maria
Cabocla não desejava estar ao seu lado nos seus
instantes finais. Quis antes ter coragem para deixar a
casa com os filhos mais novos e voltar de qualquer jeito
para a Tapera. Certa vez se considerou livre do seu jugo
quando percorreu sem destino léguas, com o corpo
alquebrado de pancadas. Quando a fome, a sede e o
cansaço a desorientaram diante dos filhos impacientes
com a escassez, ela retornou para casa e assim
continuou a viver.
Mas quando o marido caiu doente, ela pressentiu que
não haveria remédio para seus males. Então agradeceu a
Deus por poder estar ao seu lado, na mesma casa, e por
poder fazer algo por ele nos seus derradeiros meses.
Como se aquela união tivesse como único propósito
vivenciar esse momento. Se repreendia quando pensava
que, se fosse preciso, faria tudo outra vez. Seria gratidão
pelos filhos nascidos da união ou alguma nesga de afeto
perdida pela violência. Sabia não haver paz a lhe curar
dos maus-tratos, da mesma maneira que não haveria
liberdade enquanto o pai de seus filhos fosse prisioneiro
de si mesmo.
De leste a oeste, Maria Cabocla percorreu a Tapera
beirando o rio em busca da casa onde viveu. Haveria de
encontrar sozinha a morada da família, sem necessitar
de ajuda, mas precisava entrever antes o que deveria
existir em si da vida do Paraguaçu. Foi com a bolsa de
fuxico violada, a mala de tecido e os embrulhos com a
colheita de aipim que se pôs a andar entre ruas e
pessoas sem saber se a reconheciam. Não ousou olhar
para os lados, não naquele momento de desamparo por
tanta estranheza.
As histórias precisavam decantar de novo em seu
espírito. Aquela gente, sabia, a cercou quando menina e
julgaram Luzia sem compaixão por fatos que não
puderam ser explicados. O tempo passou, e Maria
Cabocla viu aquele evento ser eclipsado por outras
adversidades. Remoeu sobre o assunto poucas vezes e
evitou recordar o que não tinha remédio. Nem mesmo na
sua memória as cenas se ordenavam completas. Eram
antes frações de fotografias, desprovidas de sons e
cores, não identificáveis, soterradas pela urgência do
agora. Por isso, voltar à Tapera era estar de novo envolta
em luz e sombra, passado e presente, condenação e
salvação. Não era mais possível se desenredar de suas
reminiscências.
Ao viajar para amparar seu pai, Maria Cabocla sabia o
estar fazendo também pela mãe morta e pelos irmãos e
irmãs apartados pelo destino. Ela, Luzia e Zazau, as
meninas, corriam para o pai quando o viam retornar do
trabalho, a enxada no ombro e o chapéu por vezes nas
mãos. No fim de tarde, o sol descia complacente e o
chapéu já não tinha a serventia de antes. Pelo contrário,
“abafava o juízo”, o pai dizia, e elas o encontravam e o
retiravam de suas mãos, como faziam com o bocapiú ou
a penca de bananas que porventura carregasse,
desejando aliviar seu fardo. Nas disputas próprias da
infância, Maria Cabocla fazia perguntas ingênuas e era
inevitável que as irmãs a ouvissem. “Pai, eu sou bonita,
pai?”, perguntava, esperando um afago, enquanto seus
olhos observavam o entorno, aguardando a reação de
Luzia e Zazau. O pai não cansava de repetir, sem se
voltar às outras filhas, que também não ousavam
perguntar para não competir com a irmã mais nova
carente de afeição. Ela perguntava para que soubessem
que ela, a mais nova, a cabocla de cabeleira lisa —
“Cabelo bom”, a mãe não cansava de repetir —, tinha um
lugar especial na vida do pai. Junto ao irmão Humberto,
era a herdeira da gente índia, a linhagem de seu pai, os
nativos salvos do cativeiro pelos jesuítas e arrancados da
terra pela sanha desmedida dos forasteiros. Era a gente
comparada à murta pelos jesuítas; podada, ganhava a
forma que se queria, mas bastava o tempo para lhes
recordar quem eram e torná-los de novo um arbusto
selvagem. Luzia, Zazau e os outros refletiam a
ascendência da mãe, os viajantes dos tumbeiros. Mas
suas aparências eram apenas o invólucro, porque nas
veias corria o sangue daqueles — inclusive os forasteiros
brancos — que se encontraram nessa terra. Alzira
sonhava em libertar os netos e os bisnetos, não pelo que
eram, mas pelo que poderiam ser se tivessem outra pele.
Quis o destino que fosse um homem preto, o “zé-
ninguém” do Aparecido, a levar Mariinha, a filha a meio
caminho de encontrar a redenção.
Aparecido veio, e Maria Cabocla não pensou duas
vezes antes de dizer que sim, iria embora com ele.
Estaria livre da penúria de viver com uma família
numerosa e sem terra suficiente para trabalhar. Estaria
livre da Tapera e da histeria que tinha marcado Luzia
para sempre como uma criatura maligna. Tudo seria
diferente. Aparecido era trabalhador e tinha coragem
para desbravar o mundo e encontrar um lugar onde
pudessem viver juntos. No começo a tratava com zelo e
adoração. Maria Cabocla interrompeu o projeto de
redenção — dito nas sombras por medo e vergonha — de
sua mãe, e seguiu sua própria natureza. Sentia mais que
refletia, sonhava mais que vivia, e dessa forma andou de
terra em terra.
Ainda andava à procura da casa, enquanto o silêncio
persistente a envolvia em pensamentos que não sabia de
onde brotavam. A Tapera não era mais o lugar para onde
quis retornar como se todos os seus problemas
pudessem desaparecer com o regresso. Passado tanto
tempo, esqueceu das motivações que a fizeram partir.
Todo lugar por onde havia passado estava muito aquém
da sua aldeia, da terra prometida. Sonhou retornar para
cultivar as roças da Igreja, a terra onde seus bisavós
deixaram a saúde e a mocidade para que os sucessores
pudessem dela usufruir.
Quando parou para respirar mais fundo diante do rio
que refletia faíscas da luz do sol, sem nenhum saveiro
singrando suas águas, Maria Cabocla ouviu o trinado de
um pássaro. O som estava próximo, e o pássaro parecia
se comunicar com outros que adentravam a mata. Ela se
voltou para a árvore que sombreava justamente o
quinhão de terra onde seu corpo cabia inteiro. Viu um
olho-de-fogo-rendado lançando sons através do espaço,
preenchendo o dia de memórias. Pássaro raro, ela sabia.
Veio recebê-la na sua chegada. Os olhos vermelhos,
minúsculos, infinitos, e o corpo recoberto de penas
negras, encontrando os olhos de Maria Cabocla cansados
de tanta luz. Naquele instante ela esqueceu por um
tempo ínfimo seus propósitos, suas dores e suas culpas,
agora sabia, porque as carregaria para onde fosse. Se
sentia um animal como qualquer outro, respirando todo o
ar que cabia em seu peito, agarrando, sem ceder, tudo
que pudesse fazê-la se sentir viva.
O céu escureceu com nuvens carregadas e ela
despertou de seus sentidos para ultrapassar a árvore de
onde o pássaro se levantou. A casa se revelou repleta de
detalhes, peças atravessando seu peito. Pequena, telhas
nem velhas nem novas, paredes gastas, caiadas, como
era há muito, muito tempo. Não havia número ou marca
para distingui-la das outras ou para contar que havia sido
a casa dos seus antepassados. Sobre o solo onde a
construção se erguia pisaram também os mais remotos
ancestrais, os da terra e os do mar, os violados e os
violadores.
Uma chuva leve se precipitou, mas Maria Cabocla não
arredou de onde estava. Se pudesse passaria a mão
pelas paredes, cheiraria a madeira da porta e da janela,
comeria um punhado de barro do terreno bem cuidado
em volta, com canteiros de flores delicadas lhe
conferindo alguma dignidade. Se pudesse, mas a
vizinhança trafegando por ali a censuraria por agir como
os loucos. Então ela fixou por longo tempo seu olhar na
casa de janela e porta cerradas. Não havia ninguém por
ali. Era capaz de a família estar no hospital cuidando do
pai. “Ah, meu pai”, suspirou. “Não lhe tenho mágoa por
não ter impedido que eu seguisse com Aparecido para
cuidar de família ainda tão nova. Quero segurar sua mão,
meu pai, pedir a bênção, carregar seu chapéu até nossa
casa e me desculpar por tanto tempo longe.”
“Mariinha?”
Maria Cabocla olhou para trás porque cultivava a
esperança de ser encontrada.
5

“Luzia!”
A face pálida de Maria Cabocla refletia a gravidade do
chamado. Primeiro, um duradouro silêncio. Depois, uma
sequência de gritos seus e de Luzia irrompeu no campo
da infância, revelando o perigo.
Pouco antes ouviram a voz da mãe ecoar na beira da
mata, onde tinham se entocado para brincar. Chamava
por elas, ameaçando com castigo caso não retornassem
de imediato. As folhas secas quebravam sob os pés de
Alzira, a velocidade de suas pisadas e o teor dos sons as
advertiam do castigo por vir. Mariinha abafava o riso
enquanto olhava para Luzia. Era capaz de ouvir o
coração da irmã, quase à boca, retumbando através das
árvores e arbustos sempre verdes por causa da chuva
sem trégua. Corriam, enquanto a mãe se aproximava
cada vez mais, não queriam retornar para a estalagem
onde dormiam os trabalhadores da fazenda. Passariam
vergonha com os castigos que receberiam diante das
outras crianças e de todo o barracão habitado por
homens bêbados, mulheres exaustas e mal-humoradas,
onde o som mais comum era o de choro de criança e o ar
vivia impregnado de odores de doença. Na mata, eram
apenas meninas e brincavam de viver na casa que um
dia teriam. Casa de verdade, não as estalagens ou os
barracos improvisados onde passavam meses, o tempo
em que seus pais trabalhavam na colheita. No lar da
imaginação de Mariinha, Luzia e Zazau — às vezes
Joaquim, o mais novo, também se juntava a elas — havia
quarto para as crianças, comida na mesa e patrões
dando ordens a trabalhadores invisíveis. Assim tinham
visto desde sempre. Naquelas fantasias não havia escola
nem livro nem se escrevia. Os irmãos mais velhos
trabalhavam, tinha passado o tempo da brincadeira. A
família desde cedo andou por fazendas à procura de
trabalho, e os pais não puderam aprender a ler e a
escrever, nem esperavam que os filhos tivessem destino
diferente. Quem sabe os filhos dos nossos filhos,
divagavam sem um fio concreto de esperança.
Brincadeira de menina era casa, marido, filhos. Às
vezes também a morte dava as caras e eram os sabugos
feito gente (ou apenas a imaginação) que morriam dos
males que as benzedeiras não conseguiam curar. Quando
não eram crianças feitas de sabugo, eram imagens
etéreas, vistas com os olhos da alma, porque nem
sempre havia milho para ser transformado em bonecas
nas brincadeiras. Às vezes brincavam de cultivar roça de
cana, de fumo, de mamona. Ou eram pastoras de vacas
e cabras a serem levadas aos campos. E no meio da
itinerância em que viviam só contavam com a
imaginação para lhes recordar que ainda eram crianças
e, portanto, poderiam esperar por uma vida diferente.
Trabalhavam dia após dia ajudando a mãe a colher o
que fosse preciso e por isso as mãos nunca andavam
limpas. Banhavam-se nos rios, mas o ranço do trabalho
por muitas vezes impregnava a pele e deixava as unhas
entranhadas de terra. Por quantas fazendas passaram
durante aqueles anos? Maria Cabocla não saberia dizer, e
por muitas outras ela precisou passar até chegar à
derradeira, onde os pés criaram raízes com Aparecido e
os filhos. Ainda que trabalhassem quando sequer tinham
idade para cuidar de si próprios, uma força
inquebrantável, inocente, emanava das horas de
diversão que ainda não haviam lhes confiscado. Qualquer
intervalo entre a lida e o descanso era tempo de se
distrair, retirando de si a possibilidade do prazer. Mas
daquela vez o jogo era outro, não era brincadeira de casa
nem família, era se sentir livre, descobrindo insetos e
plantas e o que mais estivesse pela frente. Se afastaram
da estalagem e penetraram a mata, sem permissão. Por
isso não atenderam a mãe, sabiam que se o fizessem
poderiam ser castigadas com o cipó guardado para as
transgressões.
Foi assim que Maria Cabocla se viu diante de um ninho
de cascavel. As serpentes se enrolavam vivas numa
coreografia hipnotizante. Aquele momento foi de silêncio,
sabiam pelos contos dos mais velhos que não deveriam
provocar a ira das serpentes. Ela arregalou os olhos,
esperou que a atenção de Luzia se voltasse para a
armadilha e que juntas pensassem numa maneira de
escapar do perigo. Era preciso deixar o lugar o quanto
antes para não serem picadas. Qualquer movimento
poderia assustar as víboras e provocar um ataque.
Luzia permaneceu inerte, se locomovendo a passos
medidos, encantada com os movimentos das serpentes.
As observava com atenção, como se naquela fração de
terra somente elas importassem. Ao contrário de Maria
Cabocla, seu medo não havia saltado à superfície,
permanecia adormecido, latente, pronto para ser
despertado. E, enquanto o medo não vinha, se entregou
ao tempo e disse num tom quase inaudível à irmã: “Fique
quieta”. Continuou a se aproximar do ninho, em direção
ao círculo formado pelas serpentes que deslizavam no
entorno da irmã. Por um momento era como se tivessem
decidido abraçá-la. Então Maria Cabocla se deixou levar
pela experiência de observar Luzia, como se estivesse
envolta em algum encanto. As cobras continuavam a se
movimentar, mas desviavam dos corpos das irmãs, como
se ao redor deles existisse um campo magnético a
impedir o avanço. Nenhuma ergueu o corpo, nem mesmo
chocalhou a ponta da cauda. Deslizavam enfeitiçadas e
traiçoeiras sobre o terreno, enquanto as meninas
permaneciam imóveis.
Foi quando Maria Cabocla percebeu que dos olhos de
Luzia emanavam as cores e o brilho do fogo. Talvez fosse
a luz do fim de tarde refletindo o céu avermelhado de
abril. Naqueles olhos dançavam chamas, duas labaredas
crepitando prontas para devorar o entorno, caso fosse
preciso. Uma imagem que Maria Cabocla guardaria para
sempre como um segredo.
A luz do crepúsculo se modificava com rapidez e
quando as irmãs olharam ao redor perceberam que as
serpentes tinham seguido o caminho da mata. O grito de
pavor abafado pela necessidade de se preservarem
atravessou as copas das árvores em direção à
estalagem. Gritaram despertas do breve silêncio evocado
pelo instinto de sobrevivência.
Por mais que tivessem se afastado da estalagem, elas
conheciam a trilha percorrida e conseguiram deixar a
mata. Maria Cabocla correu enquanto o cabelo grudava
em seu rosto úmido de choro. Luzia saltava como se ela
própria estivesse no ninho das serpentes, agitando os
braços para afastar a presença de animais imaginários.
Alzira esperava as duas com o cipó na mão, pronta para
o castigo que julgava merecido, mas desistiu quando
contaram do ninho de cascavel. A mãe se abaixou para
inspecionar as duas com desespero; braços e pernas à
procura de algum ferimento. Zazau e Joaquim foram ao
encontro das irmãs e observavam tudo atônitos. “Hoje
vocês escaparam de apanhar, mas amanhã vocês me
pagam”, disse a mãe, tentando disfarçar a própria
agonia. Também não contou de imediato a Mundinho,
preferiu deixar tudo se acalmar para poder narrar a
história com a devida ênfase para castigar as duas.
Naquela noite, enquanto dividiam uma rede de dormir,
recordaram as recomendações do pai quando percebia
os filhos brincando inquietos. “Não se deve abrir a porta
de noite, se não estiver esperando ninguém”, Mundinho
dizia, era certeza corrente nas roças por onde passava,
“pode ser uma cascavel, o rabo é um chocalho e a gente
pensa que é uma batida na porta. Deixa que os mais
velhos atendem.” Tudo isso para dizer que as crianças
não deveriam assobiar, para as cobras não atenderem ao
silvo como a um chamado. Luzia adormeceu cansada de
chorar, abalada com o fim da brincadeira. Maria Cabocla
demorou a pegar no sono, ainda que estivesse exausta
da tensão. Com seus olhos fechados ou abertos,
continuava a recordar os de Luzia feito duas labaredas,
ainda mais vivos na escuridão onde se encontravam.
6

Embora o tempo tivesse atravessado seus corpos de


maneira implacável, eles permaneciam os mesmos.
Estavam todos reunidos na porta da pequena casa e
pareciam quase não acreditar que Maria Cabocla, a
Mariinha que povoara sonhos e sentimentos por todos
esses anos, tivesse retornado à beira do Paraguaçu. Uma
longa espera, e o que agora sentiam ao se verem não
podia ser descrito. Zazau foi a primeira a se atirar nos
braços da irmã, pois os gestos de afeto, sempre contidos,
afloraram. Chorou com grande sentimento, e Maria
Cabocla apenas a confortou apertada contra seu
pequeno corpo. Joaquim se aproximou e seus braços
reproduziram a rudeza dos homens quando precisam
expressar emoções. Maria Cabocla o afastou depois de
um abraço e segurou seu rosto, constatando que o irmão,
visto pela última vez ainda adolescente, era agora um
homem de meia-idade. Os olhos de Joaquim estavam
úmidos, mas ele tentava disfarçar desviando o rosto para
o alto. Bem provável que já tenha neto, pensou a irmã,
da mesma maneira que ela tinha os seus.
Moisés se aproximou. Não se conheciam e se viam
agora pela primeira vez. Tudo o que Moisés sabia sobre
Mariinha eram histórias contadas por Luzia e Zazau
durante sua infância. Quando pediu sua bênção, ela não
o identificou de imediato, mas logo deduziu quem ele
era. Um homem com a pele e o cabelo feito os seus
poderia ser seu filho também. Segurou seu ombro e o
chamou de rapaz forte, e ele se pôs a carregar os
pertences encostados na parede, como uma criança se
esquiva de um elogio, seguindo para o interior da casa.
Luzia estava atrás de todos, observava o reencontro
da família cada vez menor. Pelo menos esse núcleo, do
qual nem mesmo Moisés fazia parte a princípio, agora
estava reunido. Maria Cabocla estendeu a mão e de
maneira inevitável Luzia, a rude Luzia do Paraguaçu,
enxugou os olhos. Estava de cabeça baixa, parecia ter
medo de olhar para a irmã e de que o resto de força
habitando seu corpo escapasse sem nenhuma chance de
retorno. Ficaram assim, de mãos dadas, frente à casa, de
onde Zazau espreitava as silhuetas adornando a
paisagem, o rio e seu fluxo correndo através do
horizonte.
“E meu pai? Vocês vieram do hospital? Ele está
melhor?”
Zazau se aproximou das duas e segurou os ombros de
Maria Cabocla. Joaquim retornou à porta e pediu que
entrassem. Depois de breve estiagem, a chuva se
aproximava com as nuvens cada vez mais escuras a
ocupar o céu da Tapera. Elas entraram, mas o semblante
de Maria Cabocla era de expectativa. O pai, precisava ver
o pai, seria possível retornar ao hospital no dia seguinte,
era uma de suas muitas perguntas.
“Meu pai se foi, Mariinha. Chegamos agora do
cemitério”, Joaquim tentou imprimir consolo à voz, como
se ele próprio fosse um pai a confortar a filha.
O vento correu mais forte, sinal de que a chuva viria
pesada. Foi esse mesmo ar em movimento que
preencheu a sala da pequena casa de frescor, e por sua
vez o espaço entre uns e outros. Maria Cabocla estava
perplexa, derrotada mais uma vez pela vida. Não
contaria naquele momento aos irmãos que deveria ter
desembarcado na Tapera no dia anterior. Se
envergonhava da própria estupidez, e por causa de quem
era não tinha visto seu velho pai ainda vivo, nem
estivera presente no velório e no sepultamento. Não
fosse sua falta de desenvoltura com a vida, não teria
perdido o dinheiro, nem mesmo dormiria ao lado de um
desconhecido que surrupiaria suas economias. Para tudo
havia remédio, até para as desventuras da viagem,
menos para a morte. Havia chegado à Tapera viva,
reconhecia que viajar não era nada de outro mundo. Mas
não se perdoaria por ter adiado o regresso muitas vezes.
Por falta de recursos, verdade, mas também por não ter
permissão do marido — e por não o desafiar. Esse era
seu arrependimento. Era por não se sentir pronta para
viajar sozinha e por tantas coisas que, agora percebia,
eram transponíveis. Mas a vida a paralisara.
Moisés trouxe um copo de água, mas Maria Cabocla
não triscou. Sentou-se na cadeira velha encostada à
parede enquanto Zazau e Joaquim contavam sobre os
últimos dias. Zazau fazia esforço para suavizar os fatos
enquanto a voz embargava. Engolia as vibrações que
poderiam dar um tom por demais sentimental ao que
contava, mesmo quando fosse inevitável. Havia tempos
não via a irmã Mariinha, e ela tinha chegado justo nesse
dia. Zazau contou sobre o martírio da internação e como
era penoso. “Ele estava muito idoso, Mariinha, teria
muitas sequelas”, disse, enquanto Joaquim emendava
com notas sobre as dificuldades para conseguir uma
vaga num hospital da capital para cuidar de pessoas
queimadas.
“Ele descansou”, Luzia interrompeu, “sofreu muito
esse tempo todo. Quando iam fazer o curativo, retiravam
a pele queimada.” Ela não poupou os detalhes e sem
querer confortava a todos sendo direta. “Ele estava
inchado, Mariinha, os rins não funcionavam mais, foi o
que o médico disse”, completou. Havia mentiras demais
naquela casa e promessas não cumpridas. Ela própria
havia mentido a Moisés sobre suas origens e mentira
ainda mais para sobreviver às adversidades. Mas não
havia mais tempo para enganos. Então que se dissesse a
verdade, mesmo que ela ferisse. Depois cicatriza, Luzia
aprendeu, fica a marca, mas nos acostumamos. “Olha
este peso que se elevou de minhas costas, Mariinha”, foi
o que quase disse.
Maria Cabocla não chorava, mas tentava administrar a
própria decepção consigo mesma. Os olhos estavam
secos porque foram moldados no barro, na terra seca do
deserto da vida, na terra seca do sertão onde tinha se
abrigado. “Daqui correram rios”, diria a si mesma em
silêncio, “não há mais o que chorar, a fonte secou.”
Quando soube da morte da mãe, desabou aos pés do
telefone. Horas depois chorou outro tanto com o golpe de
Aparecido em seu rosto, que a levou a perder a audição
do ouvido esquerdo. Chorou ao ver os filhos com fome e
chorou todas as vezes que viu Belonísia lhe acudir.
Quando viu Aparecido morto na cama depois de definhar
por meses, sem remédio nem encanto para o que sentia,
com as mãos frias e a pele negra cada vez mais
acinzentada, chorou porque ninguém choraria pelo
homem. “Sabe Deus o que andava dentro dele”, disse
aos filhos, “não tenham mágoa, a vida não foi leve para
seu pai. Sem pai, nem mãe. Desterrado, trabalhando
desde menino para dono de fazenda.” Castigos e mais
castigos. Contados numa roda de vizinhos achariam que
era uma história dos tempos da escravidão.
“Meus olhos secaram”, constatou espantada. Os rios
não morriam, achava, mas os vizinhos juravam que o
Utinga tinha sido perene, profundo, e o garimpo havia
jogado toneladas de areia nas águas o deixando quase
morto. Seus olhos eram o Utinga. Restava se desculpar
com os irmãos por sua indigência, pela calmaria
aterradora, e por não conseguir pôr para fora o que não
mais existia.
“Amanhã vou ao cemitério.” O que dizer, se
perguntava, enquanto se olhavam entre as paredes
descoradas de casa. “E a roça, Joaquim, o pai ainda ia à
roça?” “Sim”, disse o irmão, “foi no caminho da lavoura
que ocorreu o acidente.” “Eu quero ver a roça”, pediu
Maria Cabocla. Mas a chuva começou a cair forte,
ecoando entre eles e fazendo o telhado estremecer sob a
força de sua torrente.
“Amanhã”, Luzia sugeriu. “Se a chuva melhorar,
amanhã iremos à roça onde ele plantava.”
A chuva não cessou e desabou sem trégua durante
dias. Nesse intervalo Maria Cabocla viu um a um deixar a
casa por conta das suas rotinas: Moisés precisava
resolver a própria vida no emprego. Uma semana na
Tapera do Paraguaçu tinha sido tempo demais, ainda que
a justificativa fosse a gravidade do evento e a morte de
Mundinho. Prometeu voltar mais vezes para visitar Luzia.
A promessa deu a Luzia a certeza de que durante as
visitas ao hospital o pai havia firmado com Moisés algum
pacto, uma promessa de perdão pelo passado. Joaquim
também deixou a casa no mesmo dia, seguiram juntos
para a capital. Era um pequeno comerciante e não tinha
empregados para cuidar do armazém.
Por pouco tempo, restaram as três mulheres na casa.
Zazau alegou motivos semelhantes para seguir e cuidar
da própria vida, afinal a família dependia dela. “Ficam
perdidos quando eu não estou”, desabafou para as
irmãs. Antes, pôs a conversa em dia. Depois de tudo, se
sentia em paz entre os irmãos, ainda que houvesse os
que não retornaram de suas jornadas. Via Luzia com
relativa frequência ao longo dos anos, mas não Mariinha.
A imagem que tinha da irmã estava no passado, embora
se falassem por telefone todos os anos. Falaram dos
mortos e nascidos, dos anos de sufoco e de dádiva.
Recordaram os últimos dias de melancolia da mãe e a
suspeita de traição do pai. Falaram sem mágoa, como se
escrevessem uma história para ser contada sem
julgamentos. Comeram as raízes ofertadas por Maria
Cabocla e suspiraram dizendo como tudo era bom —
“Que terra boa essa onde tu vive!”, exclamaram. “Para
dar esse aipim que derrete na boca.”
Até que Zazau, inquieta, não pôde mais esperar. Abriu
o guarda-chuva e se foi ainda sob o temporal para
encontrar a família. “Eu volto”, prometeu, “no tempo de
são-joão.”
Dias depois o céu se abriu em luzes e sons suaves.
Maria Cabocla perguntou a Luzia se o cemitério estava
distante, se ainda continuava no mesmo canto. “Sim”, a
irmã disse.
“Você lembra onde fica? Vamos até lá.”
7

Antes colheram perpétuas e bem-me-queres no canteiro.


As flores se desenvolveram com força após dias de chuva
abundante. O sol das primeiras horas fez a água
evaporar da superfície das folhas e da terra que as
sustentava. Tanto Luzia como Maria Cabocla estenderam
suas redes de dormir no varal do quintal para aliviar o
cheiro de mofo, e abriram a janela e as portas para arejar
o interior da casa. Comeram as sobras do aipim e se
puseram a caminho da cova do pai.
Luzia evitou caminhar por lugares de maior
movimento. Levou a irmã, atrapalhada com tanta
novidade, por becos e vielas longe do centro da aldeia.
Ainda não conseguia pensar sobre o que seria de sua
vida sem o pai por perto. O pior só não tinha acontecido
porque, de alguma maneira, a presença dele a protegia
do ponto-final para onde progredia a hostilidade dos
moradores da Tapera. No dia do sepultamento, estiveram
presentes para confortá-los Rita de Mira, Zoraide, que
parecia ter cada vez mais dificuldades para se
locomover, as duas últimas carpideiras vivas e alguns
homens que conviveram com Mundinho. Joaquim deixou
a cova pronta, e as mulheres entoaram orações e
ladainhas sem as bênçãos de nenhum sacerdote.
Seguiram os próprios ritos para velar e enterrar o corpo.
Maria Cabocla queria saber dos detalhes, uma forma
de compensar sua ausência. Perguntava a Luzia se
tinham vestido no corpo uma roupa decente, e se o pai
estava ao lado da mãe no cemitério. “Não, Mariinha”,
Luzia contou, sem querer decepcionar a irmã. O
cemitério não era grande, explicou, e de tempos em
tempos retiravam os ossos de quem não tinha jazigo
perpétuo para enterrá-los numa vala comum. Assim
abriam vagas para os novos mortos. Maria Cabocla se
calou ao saber do destino da mãe. Onde morava as
covas costumavam ser invioláveis.
“Até que tentaram no passado impedir que
enterrássemos a gente da fazenda, faz um bom par de
anos. Hoje temos a chave e ninguém toca nos mortos”,
contou.
Juntas, concluíram que os pobres não tinham direito
sequer à própria cova. A terra jamais seria dos pobres,
nem mesmo depois de mortos. Decorrido certo tempo,
eram despejados como os fazendeiros faziam com os
trabalhadores imprestáveis, ou como na cidade,
escutavam, com quem não conseguia pagar os aluguéis.
“Então eu não vou conseguir rezar no túmulo de
minha mãe”, Maria Cabocla constatou. Luzia sugeriu que
ela fizesse uma reverência quando rezasse na cova do
pai. “Faça de conta que ela está ali”, aconselhou, “o que
importa é a intenção.”
“Verdade, Luzia. O que importa é o que está aqui”,
disse, levando a mão ao peito, tentando se dar algum
conforto diante da descoberta.
Enquanto caminhavam, Maria Cabocla observou
mulheres mariscando na margem do rio. As latas de
antes tinham sido substituídas por baldes plásticos, mas
ainda carregavam suas colheres para cavar a areia e
encontrar o sururu e o chumbinho.
“Podíamos vir catar marisco para comer, Luzia”, Maria
Cabocla propôs.
“Deus me livre, Mariinha. Só se não tiver jeito”, a irmã
respondeu, esticando a blusa puída para recobrir o corpo
murcho. “Nunca gostei desse trabalho de mariscar, e
graças a Deus eu pude lavar a roupa da igreja, ter algum
dinheiro. Além do mais, eu não me misturo com a gente
da Tapera, quero distância”, disse sem se prolongar. “Mas
você pode ir, claro, se achar graça, ficar acocorada para
catar uns marisquinhos. Nem que eu quisesse, minha
coluna não deixa.”
Maria Cabocla não queria falar por enquanto sobre a
deformidade de Luzia. Notou a corcova crescida nas suas
costas, mas se cercava de cuidado para falar sem
cutucar sua vaidade já ferida. Esperaria que a irmã
contasse sobre as coisas que a afetavam para então
saber o que poderia ser feito. A corcova de Luzia era
como o fardo da sua convivência com Aparecido. Se pôs
em seu lugar e constatou que não gostaria de que lhe
perguntassem sobre sua decisão de permanecer ao lado
do companheiro, em especial depois que ele ficou
doente. As mulheres da fazenda não perguntavam nem
estranharam ao ver Maria Cabocla cuidar de Aparecido
até o momento derradeiro. Os dois filhos mais velhos
remoíam mágoas e pediam à mãe que desse apenas o
mínimo. Ela achou que nunca seria capaz de cuidar de
Aparecido numa circunstância como aquela. Nos
momentos de sofrimento, quando era agredida de todo
jeito, previu que estaria longe quando ele precisasse.
Profetizou que o marido estaria sozinho.
Durante muito tempo Maria Cabocla se afligiu sem
trégua e o corpo secou como uma haste de bambu. Mas,
ao perceber Aparecido doente, o corpo e o espírito da
mulher se iluminaram como se alguém tivesse nascido
na casa. Pressentiu que não haveria salvação para sua
enfermidade. Ela remoçou e parecia sempre disposta a
dar toda a atenção de que ele precisava. Ele estava
fragilizado e queria a mulher ao seu lado, a todo
momento, como uma cria demanda cuidados de sua
mãe. Parecia ter aceitado o próprio destino, vivendo cada
ato como se precisasse ser perdoado pela mulher. Então
ela viu crescer um afeto diferente por tudo o que
enfrentava e isso tornou o peso das mágoas mais leve.
Não que tivesse se esquecido da violência que havia
sofrido, tudo permanecia vivo em sua memória. A
amargura retornaria com força quando tudo tivesse
terminado e aquela dimensão altruísta tivesse se
dissipado. A raiva dos homens estaria no mesmo lugar de
sua consciência quando despertasse dos mistérios que a
envolveram durante aqueles meses. Mas enquanto
esteve ao seu lado desconheceu aflições e medos. Se
esqueceu do desespero constante e da vontade de fugir
e retornar à Tapera. Quando Aparecido se foi, Maria
Cabocla chorou com pesar. Vestiu-o com as próprias
mãos. Beijou sua testa enquanto afastava as moscas
com um abanador de palha de buriti e rezou por sua
alma com sincera devoção.
Contou a Luzia o sucedido enquanto caminhavam, na
língua com que se compreendiam melhor e sem adentrar
nos detalhes dos sentimentos que não sabia nomear.
Nunca havia contado a Zazau ou a Luzia que apanhava
do marido. Não queria que as irmãs soubessem. Quando
se nasce em meio à miséria, não se deve alimentar o
desespero de sua gente com mais histórias de
desgraças. Falaram durante anos sobre a dureza do
trabalho, sobre a estiagem ou como a chuva excessiva
era uma praga de igual inclemência para a vida na roça.
Falaram sobre a necessidade de Maria Cabocla e
Aparecido se mudarem constantemente, repetindo a vida
errante da infância, até que o pai pudesse retornar à
Tapera e viver na casa dos avós. Mas nunca das
pancadas, da bebida em excesso, da fome que às vezes
devastava seu corpo e o do companheiro. Quando havia
alimento, era dirigido antes aos meninos, por último,
Maria Cabocla e Aparecido. Nos tempos de escassez só
se alimentavam quando a parca comida estava dividida
entre os filhos. Quando a roça se infestava de praga ou
Aparecido não trabalhava com o vigor de antes por causa
da bebedeira sem fim, era Belô que lhe ofertava o que
tinha cultivado e colhido por suas mãos na roça do rio
Santo Antônio. Ela não sabia, mas o rio desaguava no
imenso Paraguaçu e atravessava sua aldeia a léguas e
léguas de distância.
Quando chegaram ao cemitério, caminharam em meio
às cruzes de madeira, algumas tortas, outras pintadas de
azul e branco. Havia também flores plásticas desbotadas
pelo sol, e poucas espécies vivas cultivadas como se
estivessem num canteiro. Luzia apontou para a cova, e a
terra que a recobria estava úmida da chuva. Era possível
ver linhas parecidas com os rastros dos insetos, por onde
a água da chuva escorrera durante os últimos dias. Maria
Cabocla se agachou, pôs a mão sobre a terra e rezou em
silêncio. Luzia permaneceu de pé e com o coração
apertado enquanto observava a irmã. O incômodo na
garganta parecia não ter fim. De cima, via o cabelo
grisalho de Maria Cabocla e sentia algo quente percorrer
seu interior quando constatava admirada que sim, “ela
está aqui, veio de longe e está entre nós”.
Ela é o que fomos e o que somos, talvez pensasse, e
estaria ao seu lado, ainda que por pouco tempo.
Depois do sinal da cruz declarando o fim de suas
preces, Maria Cabocla abriu pequenos buracos com os
dedos e plantou as flores, que aguentaram mesmo sob o
forte sol da caminhada, luz que descia inteira sobre a
aldeia. Quando as flores estavam plantadas e firmes, um
rasgo de emoção fez Maria Cabocla chorar. Soluçava por
todas as coisas guardadas e sobre as quais não houve
tempo para lamentar. Deixou que encontrassem o
caminho do mundo enquanto brotavam de seus olhos,
seguindo por corpo e chão. Luzia escutava quieta os
soluços e fechou os olhos e rezou mais uma vez pelo pai,
pela mãe, pelos que andavam pelo mundo e dos quais
não tinha notícias.
Maria Cabocla se sentia como que plantada no solo e
Luzia recordou que até a vigília pelos mortos tinha um
tempo definido. Não se pode prantear para sempre,
senão os mortos não têm sossego, vagam sem paz pelo
mundo para consolar os vivos. Tocou o ombro da irmã
para que se levantasse. Maria Cabocla enxugou o rosto,
se levantou de onde estava ajoelhada e limpou as pernas
da terra grudada.
Deixaram o cemitério e durante um tempo
caminharam como se fossem voltar para casa. Até que
Maria Cabocla perguntou a Luzia: “E a roça? Quero ver o
que o pai ainda cultivava.” Luzia não se sentia disposta
para caminhar até a roça do pai, mas precisava
compensar a irmã por tantos desencontros. Deixaram o
caminho de casa e subiram uma ladeira que dava num
tabuleiro. Enquanto caminhavam, passava um ou outro
homem de motocicleta carregando enxada, cesto e
outras ferramentas. Maria Cabocla estava admirada de o
pai, mesmo velho, andar por aquele caminho íngreme.
Luzia disse que ele fazia o percurso mais devagar, a
saúde estava abalada porque bebia uma ou duas doses
de aguardente no café da manhã. Ele afirmava que a
bebida lhe daria coragem e disposição para trabalhar.
Afirmação enganosa, mas Luzia não retrucava. Não
mudaria o velho teimoso que nunca dera ouvidos para a
família.
Tinha arame e estacas novas cercando a área
cultivada por Mundinho. Luzia se surpreendeu com as
mudanças porque o pai não tinha comprado arame para
fazer cerca. Havia tempo não andava por aquele lado e
de repente tudo parecia diferente. Só a terra tinha a cor
vermelha de sempre. Dois homens a remexiam com suas
enxadas e o rosto de Luzia estava feito brasa com aquela
visão.
“Era aqui?”, Maria Cabocla perguntou à irmã, que não
lhe deu atenção e apressou os passos em direção aos
homens. Segurando a cerca de arame farpado,
perguntou:
“O que vocês estão fazendo aqui?”
Eles se entreolharam e riram. Continuaram a revolver
a terra com suas enxadas como se tivessem sido
interrompidos por um inseto zumbindo de maneira
incômoda próximo à orelha. Luzia quis atravessar a cerca
entre um fio de arame e outro, mas percebeu que seu
corpo não cabia entre o vão sem nenhum machucado.
“Podem deixar tudo aí”, Luzia gritou. Maria Cabocla
olhava para o embate preocupada. Apressou os passos e
se pôs ao lado da irmã. “Podem deixar tudo aí. Essa
tarefa de terra é de meu pai”, disse mais alto enquanto
os olhos, injetados de fúria, encontravam os dos
desconhecidos.
“Essa terra não é de seu pai, não, senhora. Essa terra
tem dono.”
Maria Cabocla segurou o braço de Luzia enquanto era
tomada por arrepios. Já havia experimentado a
humilhação dos despossuídos outras vezes e tinha a
impressão de que, se não controlasse a irmã, as coisas
não acabariam bem.
8

Aparecido tremeu de ódio e Maria Cabocla não ousou


segurar seu braço para não receber um empurrão
seguido dos gritos habituais: “Deixe que isso eu resolvo,
mulher!”. Ele tinha arado a terra e separado as sementes
para o plantio a ser feito no chão de onde esperava
retirar o sustento da família. Depois da chuva, que caiu
com regularidade em dias alternados, ele lançaria os
grãos no solo revolvido. Isso se não descobrisse antes
dois homens trabalhando o pedaço de terra que lhe foi
prometido. Ainda não tinha completado um mês desde a
chegada da família à fazenda, a meio caminho do sertão,
a meio estirão de Água Negra. Não houve tempo para
levantar casa e por isso se abrigaram num galpão em
ruína, onde os trabalhadores armazenavam de sementes
à sucata. Quando chovia, a construção improvisada
parecia descoberta, tanta era a água a entrar pelo
telhado mal-ajambrado.
Então disseram a Aparecido que ele havia
compreendido errado. O terreno onde poderia plantar
estava na extremidade da fazenda, próximo à cerca. Ele
não estava louco, sabia, jurava ser aquele o lugar a que o
administrador o conduzira para mostrar e dizer: “É aqui”.
Seu corpo foi atravessado por uma eletricidade
perturbadora, como os loucos dizem sentir nos
momentos de maior desespero. Ele pediu sem paciência
para lhe mostrarem de novo onde poderia trabalhar. Ao
mesmo tempo, percebia o prazer do administrador e um
leve desdém de sua parte enquanto caminhava até o
lugar permitido, cuja superfície se encontrava recoberta
de pequenas pedras.
Maria Cabocla não o seguiu. Por isso também não
pôde ver a crescente humilhação a que estava sujeito
enquanto caminhava por considerável distância até o
limite da propriedade. Quando, por fim, Aparecido viu a
terra que lhe havia sido destinada, engoliu a saliva que
tinha na boca quase seca. Ele também não quis ver o
sorriso do administrador reluzindo em sua face cínica,
esculpida, como a sua, pela sobrevivência. Sabia do
escárnio, estava lá o sorriso e o deboche. Sabia, e se
olhasse não resistiria à tentação de ameaçar o homem
com o facão que levava à cintura. O administrador era
um sobrevivente da seara do “manda quem pode,
obedece quem tem juízo”. Ninguém deveria ser julgado
por ter vontade de viver, mesmo que para alguns isso
significasse afligir os mais fracos. Mas não era preciso
mirar a face do outro para alimentar o ódio crescente. Foi
quando disse: “Se é aqui, é aqui que eu planto!”.
As mãos ásperas seguraram a enxada e desceram à
terra, chispando fogo junto a seu corpo humilhado. Se
daquele chão não brotava urtiga nem capim-navalha,
muito menos nasceria batata, inhame e aipim para
alimentar a família. Mas precisava trabalhar com
sofreguidão, com raiva, com ódio, afinal era a terra o
animal a lhe devorar os anos, e a cada golpe ele devolvia
o recebido. Para aquele homem sem futuro, a terra era
tão rara quanto o ouro que diziam existir a caminho da
serra. Era ainda pior: o ouro não se via em todo canto; o
metal não habitava o mundo de uma maneira tão
ostensiva quanto a terra. Para a certeza da desgraça de
sua gente, a terra não apenas estava em todo canto, em
todo lugar; a terra era o canto, era o lugar, e sem este
chão não haveria vida para ninguém. Dos pássaros às
árvores. Dos ricos aos pobres. Nem mesmo os montes se
sustentariam em pé, e os rios morreriam antes mesmo
de correr.
Aparecido blasfemou aos Céus por conhecer um
mundo imenso e dividido entre pouca gente. Maria
Cabocla não ousou intervir e dizer: “É assim porque Deus
quis” ou ainda: “Essa gente trabalhou e comprou com o
próprio esforço”. Sabia bem que suas respostas não
satisfaziam nem a si própria, quanto mais ao marido. Foi
sozinha que lamentou sua sina. “A mãe tinha razão”, foi o
que muitas vezes considerou ao recordar a decepção
com a sua partida e com a decisão dela de viver com um
“zé-ninguém”. A má vontade da mãe se devia à pobreza
e à má sorte de ver a derradeira, moça, peregrinando de
fazenda em fazenda à procura de morada como eles
tinham feito até retornar à Tapera. Se devia também à
crença pessoal de que, para se redimir da crueldade da
vida e ter alguma sorte, era preciso ser como a gente
abastada que conheciam das andanças de um lado a
outro. Ser como os estrangeiros que habitavam o
mosteiro, rezavam as missas e culpavam as pessoas da
aldeia por toda a desgraça que lhes acontecia. À gente
mestiça, índia e negra, restavam as sobras, era o que a
mãe dizia, por mais que pensasse ser essa a sentença de
uma mulher amargurada. “Com ele, tu vai caminhar para
trás”, vaticinou. Anos depois a rudeza da vida fez Maria
Cabocla concordar com a mãe. Não pelos mesmos
motivos, achava inclusive um despautério a ideia de se
ter uma descendência clara, perseguida pela mãe com
tanto afinco. Concordava que teria tido destino melhor se
seguisse o Paraguaçu à frente, a caminho do mar, e não
para trás, para o olho-d’água onde o rio surgia.
Do chão destroçado nada nasceu e Aparecido se
levantou com as mãos feridas para percorrer a estrada.
Tirou os filhos e a mulher daquela terra e partiu para um
lugar qualquer onde pudesse encontrar dignidade. Era a
história dentro da história e Maria Cabocla cumpria o
destino de seu pai e de sua mãe, repetindo os passos
errantes na esperança de um dia regressar em definitivo
para sua terra. Algum dia voltaria à aldeia abandonada,
arrodeada de mata e de ruínas antigas do mosteiro
ditando como seria a vida de todos? Era o que se
perguntava todas as noites, antes de dormir, e quando a
fome parecia roer o estômago. O pai e a mãe
descansaram dos passos vagantes pelas margens e
margens do Paraguaçu, porque o dia de regressar para a
casa da família tinha chegado. Poderia ocorrer com ela,
não por esperar que os pais se fossem para assumir o
seu minguado quinhão, mas porque talvez as regras de
ontem não fossem as de hoje. Seria mais fácil levantar
qualquer barraco na Tapera e não precisar viver errante
pedindo morada. Seria mais fácil, se a Igreja não
controlasse a vida da aldeia com as mãos da tirania, sem
ceder um palmo do chão em volta para construir uma
tapera.
Quando tudo parecia estar em paz — a paz enviesada
e precária dos sobreviventes —, acontecia algo. Era a
violência dos matadores vingando seus mortos ou
eliminando os obstáculos que impediam a prosperidade
de outrem. Era a barragem a inundar o solo para o
sepultar sob água e fúria. Era a transação cordial dos
homens de posse que vendem e compram sem pensar
por que o fazem. A terra era a riqueza que não se
carrega para onde se vai. Se não a podemos levar
conosco, assim como as casas, que pelo menos retiremos
os dejetos que se encontram nela, nos livrando das
tralhas vivas que lá se encontram para nos recordar a
feiura do mundo. Maria Cabocla só não correu do fogo
porque não chegaram a incendiar seu galinheiro, como
fizeram com o dos vizinhos, nem as choupanas onde
habitava. Mas tinha notícias de gente que correu das
chamas. Fossem acidentais, provocadas pela má sorte,
ou causadas pela cobiça dos que limpam suas terras da
capoeira velha. Queimar os arbustos e a erva daninha
era desculpa aceitável, afinal não podiam queimar bicho
e gente. Mas nada mau se a raposa que mata o
galinheiro aparece esturricada ou se o fogo espantasse a
gente teimosa que fazia de sua a propriedade alheia.
O tempo pode ser um adversário implacável, mas
também ajuda a criar couraça nos resilientes. Quando
tentaram fazer o mesmo no último chão — esperava com
a fé dos vivos —, Maria Cabocla e Aparecido deixaram de
lado as diferenças e se juntaram aos vizinhos para
enfrentar os desmandos sem fim dos que podiam tudo.
Não levantaram armas, nem incendiaram a mata, mas se
puseram juntos, lado a lado, como as hastes finas e
flexíveis dos bambus, as que vergam, rangem, mas
jamais se quebram. O bambuzal resistiu aos ventos
fortes. Mas a vida na Tapera era diferente e solitária,
desagregada, cada um, na impossibilidade de salvar o
todo, se esforçava apenas por salvar a si mesmo.
Por isso não saía da cabeça de Maria Cabocla, e talvez
da de Luzia, que as cinzas que quase não se viam e se
misturavam à terra úmida não eram vestígios do
acidente que vitimara o pai, mas de um crime. Não eram
cinzas das queimadas da cana, a lavoura destinada a
esse cultivo não estava próxima. O fogo espalhou uma
fina poeira sobre a aldeia, desordenado, e serviu para
confundir um velho bêbado, estorvo para a prosperidade
de outro. Terra malcuidada onde nada mais se
desenvolvia e estava nas mãos de um incapaz, só porque
tinha sido assim desde sempre. Não havia mais igreja
para ditar regras, embora os cobradores de foro lá
estivessem para azucrinar a vida. Não era Mãozinha,
muito menos Chico da Colmeia, velhos e sem voz. Eram
homens de quem não se tinha notícia, apoiados pelos
que não se importavam com vivalma na aldeia.
Viram no dinheiro esperança e promessa que já não
viam na terra de antes.
9

Luzia não perguntou sobre o tal “dono”. Não queria saber


o que tinham a dizer os desconhecidos sem antes
procurar pelos cobradores do foro, ou por quem pudesse
explicar com alguma propriedade o que estava
acontecendo na Tapera. Engoliria a seco a raiva sentida
por todos, mas precisava saber sobre seu destino. Cada
vez mais isolada de sua comunidade, e em definitivo
após o incêndio do mosteiro, ela não sabia que depois da
partida dos monges — até que o mosteiro pudesse ser
recuperado — os cobradores passaram a vender lotes de
terra para comerciantes, funcionários públicos e
fazendeiros desejosos de ampliar as propriedades
vizinhas. Aproveitavam-se das famílias desagregadas, da
gente que partia todos os dias para a capital em busca
de sorte ou dos idosos que viram seus descendentes
deixarem a aldeia em busca de oportunidade.
A falta de conhecimento de Luzia não lhe permitiria
compreender que a tarefa de terra trabalhada por seus
bisavós e herdada por seu pai, e que pertencia à Igreja
sabe-se lá desde quando, não tinha nenhum documento
para certificá-la como propriedade da família. Para ela,
estaria tudo resolvido quando retirasse do colchão velho
os recibos mal escritos e manchados pelo tempo. Não
pagaram os últimos anos, é verdade, não contava mais
com o trabalho de lavadeira da igreja. Mas tudo estaria
resolvido quando mostrasse os papéis àqueles homens,
dizendo: “Meus senhores, vejam, é um engano, essa
tarefa de terra é da minha família”.
Foi o que fez no dia seguinte ao retornar ao local com
uma sacola plástica cheia de papéis, alguns roídos por
traças e outros indecifráveis pelo mofo que grassava na
estação das chuvas. Um dos homens foi até a cerca,
estendeu a mão suja de trabalho para ler o que havia no
papel, contudo sem se deter. Disse, olhando nos olhos de
Luzia: “Isso não é o documento da terra, senhora. O dono
tem a escritura”. Mas Luzia não era de se render às
explicações fáceis. Não disse não saber o que era uma
escritura, nem mesmo que não sabia ler
satisfatoriamente, nem mesmo que Maria Cabocla, a
irmã a lhe fazer companhia nessa busca por explicação
sobre o que estava acontecendo, não sabia também. Ela
disse então querer ver o tal documento do senhor. Os
homens riram e disseram que ela precisaria pedir ao
“dono”. “Pois digam quem é o tal dono”, ordenou sem
paciência enquanto seu corpo tremia. Maria Cabocla
sentiu o desconforto na garganta ao ver a tensão da
conversa. Os homens riram de novo e um deles
respondeu: “Ele mora na cidade”.
A cidade era maior do que a aldeia e a resposta era
para fazer, decerto, Luzia desistir de reaver o terreno. Ela
não se deu por vencida e quis saber o endereço exato.
“Numa rua”, o outro homem informou enquanto ria e
colocava mudas nas pequenas covas abertas, sem dar
atenção às duas. Eram mudas de mamona, Luzia tinha
observado, e apertou os lábios murchos pela ausência
dos dentes. “Que rua?”, ela quis saber, e eles fingiram
não ouvir.
“Que rua?”, gritou mais alto e eles riram com mais
vigor.
Maria Cabocla quis proteger Luzia. Puxou a manga da
camisa que a irmã vestia e pediu: “Vamos sair daqui,
pelo amor de Deus”.
Luzia estava determinada e puxou o braço para que a
irmã largasse a manga de sua roupa. Se abaixou e colheu
uma fruta pêca no chão e a jogou na direção onde os
homens trabalhavam. Eles fingiram não ver e riram. O
que será que diziam? Foi a primeira pergunta de Maria
Cabocla. Será que a chamavam de feiticeira, como os
moradores da Tapera? Será que riam da boca sem dentes
ou do cabelo solto e grisalho feito a copa de uma árvore?
Ou punham-se a gargalhar do desespero de uma mulher
ao descobrir que o canto trabalhado por seu pai nunca
fora de fato dele? Sentia raiva por ver Luzia humilhada, e
por ver o trabalho do pai destroçado, mas precisava
preservar algum equilíbrio para ampará-la. Logo ela, que
havia sofrido aflições iguais por toda a vida, estava de
novo diante do menosprezo que sua gente sofria. Viu o
pai e a mãe com os filhos passando por humilhações sem
fim. Viu o vizinho caído morto por questionar o
pertencimento do chão onde sua família e a dos vizinhos
nasceram. Viu outros tantos morrerem adoecidos, com os
nervos abalados por disputas desiguais.
Mas Luzia não se dava por vencida. Se apropriou de
outra fruta pêca para lançar na direção dos homens.
Quando Maria Cabocla gritou: “Pare, Luzia!”, o fruto
ressecado já tinha estalado nas costas de um deles. Ele
se voltou para trás, tirou o chapéu e correu até a cerca.
Segurou no braço de Luzia com força, mas ela não se
mexeu. Olhavam-se com raiva mútua e Maria Cabocla se
enfureceu, ordenando que ele largasse o punho da irmã.
A mão direita do homem, a mesma a segurar a enxada
agora caída no chão, apertava o corpo de Luzia. Era
tanta força percorrendo o corpo negro reconhecível dos
filhos da terra — “É um de nós”, qualquer pessoa
constataria — que o punho parecia próximo a se esfarelar
sob a mão calosa de trabalho. Sem baixar a cabeça e
engolindo a seco a dor de seu braço comprimido, Luzia
repetiu quase sem abrir a boca e de maneira pausada:
“Que rua?”. E ele disse entre os dentes: “Perto da igreja
matriz”.
O homem soltou o braço de Luzia, e Maria Cabocla se
pôs ao seu lado enquanto estava ameaçada. “Não se
bate num homem”, ele disse, “a senhora deveria temer o
que pode lhe acontecer. Muito menos se bate num
homem armado”, completou com os olhos injetados de
cólera.
“O senhor está na terra do meu pai e não é só porque
sou mulher que vai me tirar daqui”, Luzia devolveu.
“Pode até me tirar”, continuou, reconhecendo que sua
resiliência tinha limite, “mas vai ser morta.”
O outro homem segurou o braço do companheiro,
pedindo que deixasse a “doida” sozinha, antes de se
afastarem da cerca.
Luzia estava plantada no mesmo lugar. Não sentia
medo algum do presente, dos homens e suas ameaças.
Temia o futuro, o porvir, o desconhecido, não eles. Gritou
de novo: “O nome! O nome do que diz ser ‘dono’. Eu
procuro por quem?”.
“Estêvão”, o homem gritou, levantando o braço num
gesto de desdém enquanto caminhava em direção à
enxada largada no chão. Maria Cabocla sentiu o coração
desacelerar e viu um longo suspiro deixar as narinas da
irmã. Luzia tremia, nervosa, enquanto se afastava do
local.
Seguiram o caminho para casa. As duas
permaneceram em silêncio enquanto andavam. Talvez
ruminassem sobre a tensão e se aquilo significava uma
declaração de guerra. Maria Cabocla pensava, sobretudo,
no desprezo com que Luzia sempre tratava a roça,
dizendo preferir lavar a roupa da igreja a ter que cuidar
da terra. Repetia o desdém a Zazau, que por sua vez
contava a Maria Cabocla nos telefonemas. Agora a irmã
estava ali, como se ferida, mas era provável que não
fosse pelas razões mais aparentes. A princípio, a disputa
pela terra destinada aos seus antepassados era mais
uma questão de honra que de sobrevivência. Ou talvez
Luzia percebesse agora que, em sua iminente velhice,
fosse precisar retirar o sustento da terra, já que não
havia as roupas da igreja para serem lavadas, nem o
dinheiro do pai para prover a casa. Em pouco tempo,
quando Maria Cabocla retornasse à própria casa, Luzia se
tornaria a última remanescente da família na Tapera. Só
poderia contar consigo mesma e teria que encontrar
meios para tocar a vida.
Maria Cabocla rompeu o silêncio e perguntou se não
seria melhor falarem com Joaquim. Luzia nada disse, mas
passou por seus pensamentos não envolver o irmão. Não
poderia contar com ele por toda a vida. Agora seria ela a
resolver os problemas que a afetavam. Em algum
momento Joaquim seria informado. Da mesma maneira
contaria a Zazau. Mas sabia que, se não agisse por conta
própria, seria engolida pela aldeia que definhava.
Quando chegaram em casa, Luzia permaneceu calada,
sentada na cadeira escorada na parede. Trocou de lugar
com a irmã, sentada em choque, ainda emudecida pela
notícia da morte do pai. Não havia brisa e o ar estava
impregnado de um mormaço adentrando a casa e a
paisagem. Do seu rosto minavam gotas de suor que ao
longe recordavam o orvalho sobre as superfícies nas
manhãs de maio. Maria Cabocla colheu cidreira no
quintal, fez uma boa quantidade de chá e serviu num
copo de vidro.
“Beba”, disse. “vai te fazer bem.”
O silêncio de Luzia advinha da preocupação sobre o
que seria de sua vida sem a terra. O que Maria Cabocla
poderia fazer pela irmã? Só lhe restava aguardar por
mais informações sobre a transação envolvendo o lote.
No dia seguinte, quando o sol ainda se levantava,
Maria Cabocla despertou do sono leve, mas não viu Luzia
dormindo nem na cama nem na rede. Temeu que
pudesse ter retornado à tarefa de terra e saiu do quarto
num sobressalto. Mas Luzia estava à porta, pronta para
deixar a casa. Ela levantou os olhos para a irmã e a
convocou:
“Vamos procurar o tal Estêvão.”
10

Pouco mais de uma semana antes, Maria Cabocla estava


desamparada na mesma cidade para onde se
deslocaram. Se não fosse Alzira, a senhora cristã que
prometeu catequizá-la, talvez ainda estivesse perdida
por lá. Quando chegaram à igreja de Nossa Senhora do
Rosário, puseram-se a observar o entorno intuindo onde
poderia morar o tal Estêvão. Não estavam à vontade
transitando por ruas e calçadas e se sentiam
estrangeiras naquela paisagem nada familiar. Se
chocavam com pessoas apressadas, cães vadios e
tabuleiros vendendo de tudo um pouco. Até decidirem
quem abordariam primeiro, para saber sobre o invasor,
se passou um bom tempo. Estavam fatigadas pelo calor
e pela indiferença das pessoas. Foi Maria Cabocla que
rompeu o silêncio e dirigiu a pergunta ao senhor com o
tabuleiro de araçás e jambus. Perguntaram também à
mulher que vendia cocadas, aos homens jogando dominó
na porta de um boteco e ao amolador de facas e
tesouras, com sua gaita estridente desestabilizando
ainda mais o juízo das duas, que buscavam por
respostas. Ninguém sabia.
Passava do meio-dia e sem mais esperança de que o
mistério se resolvesse, encontraram uma senhora
regando pequenos vasos dispostos na janela. Pediram
um copo de água e a mulher empurrou a filha com má
vontade para o interior da casa, dizendo: “Água não se
nega”.
Ao dispor os dois copos ordinários — guardados para
matar a sede dos indigentes —, a mulher perguntou o
que elas faziam ali. Tinha observado as duas caminhando
pelas mesmas ruas desde cedo por mais de uma vez.
Procuravam por alguém? “Um senhor de nome Estêvão”,
disse Maria Cabocla, enquanto a irmã limpava a boca
com a barra da camisa. “Estêvão, Estêvão…”, a mulher
pousou os olhos além das mulheres e ajeitou os óculos
como se seu gesto fosse ativar a memória. “Não,
senhora, não lembro”, disse, “talvez o povo do Mercado
Municipal saiba dizer.”
Enquanto Luzia e Maria Cabocla se recompunham da
jornada e atravessavam a rua em direção ao lado oposto
para continuar suas buscas, a mulher gritou: “Ei,
senhoras!”. Elas retornaram à janela. “Se não me
engano, esse Estêvão é dono daquela casa ali, fechada”,
disse, apontando para o imóvel no final da rua. “A casa
amarela. Mas ele já não vive lá há muito tempo. Vez ou
outra alguém de sua confiança aparece, abre a casa,
limpa e vai embora”, disse, enquanto se pôs mais
próxima, para completar: “Não sei se é verdade, mas
dizem que a casa de material de construção perto da
ponte é dele, e que as bancas de jogo do bicho também”.
Maria Cabocla agradeceu e seguiu com Luzia à procura
da ponte. Atravessaram as ruas calçadas com pedras
antigas, irregulares, gastas pelo trânsito e que exigiam
equilíbrio. Ladeando o rio Paraguaçu, neste canto sujo e
tomado por uma vegetação daninha crescendo sem
controle nas margens, avistaram a ponte, caminho do
trem. A armação em ferro se destacava, e por ali
passavam veículos, vagões e pessoas, num vaivém
interminável. O comércio de material de construção
deveria estar nas imediações e elas precisavam
encontrá-lo e, para tanto, contavam que os comércios
dessa natureza próximo à ponte não fossem muitos.
Luzia parecia ser a mais cansada. Seu corpo carregava
uma corcova e uma presumível má nutrição, tornando
evidentes suas limitações. Caminhar sob o sol forte e o
calor permanente, além da fome que as alcançava
ultrapassado o meio-dia, a debilitava ainda mais. Maria
Cabocla comentou sobre a ausência de uma sombra
onde pudessem repousar do cansaço. Seguiram e
pararam em um, dois, três imóveis comerciais que
poderiam ser chamados de casas de material de
construção até que, depois de muitas negativas, um
homem perguntou:
“Mas o que as senhoras querem com seu Estêvão?”
Era a certeza de que ali era o lugar que tanto
procuravam. Dessa vez foi Luzia a explicar que era uma
mulher, uma filha da Tapera do Paraguaçu, ali nascida e
criada por quase todo o tempo. Lugar esquecido por
Deus, embora a vida de todos girasse ao redor do
mosteiro. E aquela era sua irmã, Mariinha, mas não
contou que vivia longe. Omitiu também os períodos em
que a família precisou trabalhar fora da aldeia para não
dar margem à falsa interpretação. Seu pai, seu velho pai
— “Que Deus o tenha” —, lavrador desde menino, havia
herdado a roça dos avós e cuidava dela há quase
quarenta anos. Suas mãos carregavam os documentos
carcomidos pelo tempo e embrulhados numa sacola
plástica. Eram os recibos dos pagamentos feitos todos os
anos aos cobradores da Igreja, com conhecido sacrifício.
Luzia não contou os detalhes: da recusa do pai em pagar
o foro por se considerar herdeiro; nem ser ela a
responsável por quitar e guardar os recibos no colchão
de palha até pouco tempo antes.
Maria Cabocla a interrompeu e começou a contar que
a família fora surpreendida com o cercamento e a
ocupação do lote por desconhecidos dizendo ser da parte
de seu Estêvão. Que a informação era de que o suposto
proprietário morava na cidade, perto da igreja matriz. E
assim chegaram ao comércio onde esperavam encontrá-
lo para saber o que estava acontecendo.
“Ele quase não aparece por aqui, donas. Mora na
capital.”
Não havia um telefone, um familiar, alguém que
pudesse explicar a nova posse, já que aquela terra nunca
foi posta à venda, e nem mesmo alguém da família o
faria sem consultar os demais. Luzia não revelou ser a
última de uma numerosa família a habitar a casa, a
aldeia de Tapera do Paraguaçu e o rio sem fim a se
entranhar em cada palmo do mundo que conhecia. Se
soubessem que a frágil mulher era a derradeira da
família Silva a viver naquelas paragens, era provável que
dessem um jeito de retirá-la dali sem mais delongas.
“Sinto muito, dona, não podemos informar o telefone
de seu Estêvão. Mas não se preocupe que quando ele
aparecer direi… — como se chama? — que a senhora
esteve aqui.”
O cansaço de Luzia pareceu se dissipar com a resposta
evasiva do homem de meia-idade, atrás do balcão com
uma balança onde se pesavam pregos e parafusos, e
estantes com toda sorte de quinquilharias ao fundo: de
tubos plásticos a solventes; de massa corrida a lixas de
todos os números. Aqueles objetos dispostos de maneira
caótica, o ambiente escuro e o cheiro de produtos
químicos lhe deram náuseas. A fome e o tempo abafado,
o vale do Paraguaçu onde não corria vento, a bexiga
cheia da água tomada minutos antes, a deixaram com
vertigem. Sentindo que poderia cair a qualquer
momento, perguntou se havia um banheiro onde
pudesse se esvaziar e molhar o rosto para se recuperar.
O homem indicou o caminho.
Maria Cabocla perguntou se ela queria companhia,
Luzia negou. “Volto logo”, disse, “me espere aqui.”
Sentada no vaso manchado — de quê?, se perguntou —,
sentiu a urina quente deixar seu corpo. Não sabia muito
bem por quê, mas se recordou do Menino deixando seu
corpo e a persistente vontade de urinar que a
acompanhou pelos últimos dias de gravidez. “Que sina,
meu Deus!”, disse alto, admirada pela persistente
batalha que tinha sido sua vida. Não encontrou papel
para se limpar, então fez um movimento sobre o vaso
para deixar qualquer resquício de seus fluidos. Abriu a
torneira plástica e agradeceu pela água a refrescar seu
rosto e sua nuca. Não resolveria seus problemas, mas
aliviaria a sensação de desmaio que a acometeu antes.
“Mas quando ele aparecer por aqui, daremos o recado,
dona, não se preocupe”, disse o homem no intuito de se
ver livre das duas e poder atender os poucos clientes à
espera.
“Pois diga mesmo”, Maria Cabocla reforçou sem
disfarçar seu sentimento de revolta. “Se ele comprou
sem saber e foi enganado por alguém, isso precisa ser
resolvido”, completou se apoiando na irmã.
“Do contrário ele vai ficar no prejuízo”, Luzia emendou.
11

Os dias seguintes foram de perguntas e silêncio,


palpitações e vazio. Luzia não se deu por vencida e ficou
entocada em casa pensando no que fazer para reaver a
terra. Logo ela que sempre desejou estar longe da Tapera
e sonhava com sua travessia pelo Paraguaçu,
desembocando na baía. Ela que jamais quis lavrar a roça
e só o fez quando assumiu as funções do pai, durante a
temporada em que ele viveu na capital. Trabalhou
porque Zazau cuidava do menino, e por mais que tivesse
feito algum esforço não conseguia assumir os cuidados
que a criança precisava naquele primeiro ano. O criou
entre a irritação e o cuidado, até ele partir para a cidade
levando suas minguadas economias. Imersa naquele
profundo silêncio, talvez buscasse coragem para encarar
os vizinhos. Quantos já tinham deixado a aldeia e
quantos teriam que deixar? Precisava saber. Quem
estava comprando as terras e por quê, se durante anos
prevaleceram os códigos da Igreja e da comunidade?
A ausência de diálogo se impôs. Maria Cabocla se
manteve calada entre as paredes da casa. Já conhecia as
agruras dos despossuídos. Vagou sem destino com o
marido e os filhos por caminhos que não gostaria de
recordar. Pernoitou dias ali, outros acolá. Trocou o
trabalho de seus braços por saco de farinha tornado papa
salgada para saciar o vazio do estômago das crianças.
Naqueles dias, mais que em todos os outros, a memória
regressou abundante, fazendo alarido, em contraste com
o ambiente imerso em silêncio à sua volta. Talvez Luzia
intuísse, mas não sabia da sua jornada inteira. Não
julgava que a vida de Maria Cabocla fosse fácil, muito
pelo contrário; conhecia a dureza que acompanhou a
família e o povo da Tapera.
Quando as chuvas regressaram após breve intervalo, a
mudez se afastou. Depois, o aguaceiro deu uma pequena
trégua, e Maria Cabocla a seguiu em busca de pessoas
que pudessem explicar a nova posse da tarefa de terra.
Venderam? Invadiram? A primeira inquirida foi Rita de
Mira, que disse nada saber mas prometeu se inteirar
junto à família. Falou com certo distanciamento, como se
desejasse não se envolver naquela quizila. Se exprimiu
em poucas palavras, guardando a mesma reserva de
sempre. Luzia não lamentou e contou a Maria Cabocla o
quanto Rita tinha sido prestativa durante os dias da
enfermidade do pai. Ela própria deu a notícia à irmã.
Ligou à procura de “Mariinha” e por pouco não pôde
avisá-la. “Mas a vida toda foi assim”, Luzia contrapôs.
“Apesar de nossas mães serem comadres, não se dirigia
a mim com atenção nem mesmo quando eu lavava as
roupas da igreja”, completou, alimentando a ilusão de
que a função de lavadeira dos padres havia lhe dado
alguma imunidade. Portanto, não eram surpresa suas
poucas palavras e adivinhou que dali não viria resposta.
Mesmo que soubesse, a vizinha não iria se envolver.
Numa tarde de vento carregado de umidade, elas
deixaram de novo a casa. Dessa vez em busca de
Zoraide. Maria Cabocla perguntou com discrição se a
mulher tinha sido mesmo pareceira do pai. “Era o que o
povo da Tapera dizia naquele tempo. Mas eles também
me acusavam de feitiçaria e de ter parte com o cão”,
Luzia respondeu. O vento sibilou entre as duas e
levantou as folhas secas adormecidas no chão, como a
confirmar o desabafo. Desde a chegada de Maria
Cabocla, era a primeira vez que o véu sobre o interdito
com que eram tratados os males de Luzia se erguia. Ela
sentiu uma pontada no peito e percebeu a boca seca. A
origem dos males remontava a eventos que recordava
com vivacidade incomum. Não foram poucas as vezes
que acordou no meio da noite aflita por imagens e
angústia a evocarem os dias de terror. Eram gritos,
espanto, dores e a sanha de uma comunidade contra
uma menina que não conseguia compreender o que lhe
acontecia. Passados tantos anos, Maria Cabocla ora
recordava de tudo com detalhes, ora era assolada por
uma sucessão de fatos desconexos plantando a dúvida
sobre o que de fato ocorreu. Às vezes se perguntava se
tudo não teria sido um pesadelo ou fruto de sua
imaginação. Sabia da responsabilidade do seu receio, do
seu silêncio, sobre a confusão com que os fatos se
sucederam. Mas era a estranha intensidade do medo de
perder Luzia — de que a castigassem e por fim “dessem
cabo de sua vida” — que vinha como uma correnteza a
levar tudo.
Uma âncora dos saveiros no leito do Paraguaçu a
fincá-la em definitivo nas areias do instante.
Luzia bateu na porta da casa onde Zoraide se
instalava sempre que voltava à Tapera. Um postigo se
abriu e uma senhora idosa, talvez uma das irmãs ou
primas de Zoraide, apareceu na abertura para depois
fechar e gritar com firmeza: “Não tem pão, não!”.
“Ela me viu”, Luzia disse sem precisar explicar o óbvio,
“mas não quer falar.”
Quando não a queriam insultar, fingiam que não a
conheciam. A mulher estava velha, disse, os olhos
embaçados de catarata. O que não mudava era o apego,
como acontecia com todas as outras, às convicções do
passado, aos dogmas da Igreja e à sombra a recair sobre
o pouco discernimento da gente da aldeia. Nos últimos
anos se somou à lista dos males de Luzia o incêndio do
mosteiro. Quando se tratava de fogo, era ela a primeira
suspeita.
Maria Cabocla não considerou que a irmã, comedida
nas confissões desde sua volta, fosse contar algo sobre
seu calvário. Não imaginava também que creditassem o
incêndio aos “poderes” de Luzia. “Enquanto a igreja
esteve aberta, e eu lavava a roupa dos padres, o povo da
Tapera me deixou um pouco em paz. No dia em que
entreguei a última trouxa de roupas, comuniquei que não
as lavaria mais.”
Maria Cabocla não se conteve e perguntou o porquê.
“Meu espírito pedia que eu deixasse aquele trabalho”,
tentou explicar sem adentrar nos detalhes. Não se sentia
pronta para avançar. “Tinha algo errado naquelas roupas.
Elas não ficavam mais brancas e consumiam as minhas
mãos”, disse, parando próxima ao meio-fio e se
certificando de que estavam sós para prosseguir. “A água
do rio se pintava de sangue toda vez que eu lavava a
roupa, Mariinha.”
“Misericórdia”, Maria Cabocla elevou a voz sem
perceber. “Mas por que isso, Luzia? Estavam sujas de
sangue?”
Luzia olhou nos olhos da irmã. “Não sei. Não foi
sempre assim. Tinha acontecido poucas vezes antes. A
primeira foi quando eu me perdi do Menino dentro do
mosteiro e o procurei aflita, sem encontrar. Ele estava
num vão abandonado que se enche de água quando a
maré está alta.”
“Credo! Não sabia desse lugar.”
“O Menino me contou depois que os padres chamavam
de salão do mar. Você sabe que ele estudou na escola da
igreja?”, perguntou à irmã, que confirmou mesmo não
lembrando de imediato; era provável que Zazau tivesse
contado e ela esquecido, mas fingiu saber para que a
conversa avançasse. “O galpão onde a escola funcionava
está inteiro ainda. Acho que não queimou por não estar
rente ao edifício antigo. Quando passarmos por lá, eu te
mostro. Uma boa escola”, afirmou. “Os padres e uns
poucos professores ensinavam as crianças. O Menino
aprendeu a ler e escrever. Sabia muita coisa. Coisa até
demais. Eu estava satisfeita porque ele estava
crescendo. Teria um destino diferente do nosso.”
“E o sangue, Luzia, de onde vinha o sangue?”, Maria
Cabocla aproveitou a disposição da irmã para falar.
“De muita coisa errada, Mariinha. Muita coisa errada
acontecia ali. Um dia você vai saber”, disse se
esquivando da confissão.
Avançaram pelas ruas e se afastaram da aldeia em
direção ao descampado. Luzia parecia querer encontrar
algo, mas nada disse. Enquanto isso, falaram sobre os
pés de araçás-mirins cada vez mais raros, os tapetes
lilases da florada do jambeiro e dos carcarás que voavam
em pares, inatingíveis. Falaram sobre como os caminhos
para as lavouras ficavam intransitáveis com qualquer
chuva. Luzia contava que nem animal era capaz de
transpor os obstáculos, quanto mais carro de passeio e
boa parte dos veículos, à exceção do trator. Quando
estavam mais afastadas das casas e tudo que viam eram
lavoura e descampado, Luzia se aproximou de uma cerca
e viu ramas de folhas de mandioca caídas no chão.
Tinham colhido as raízes e deixado o resto para queimar,
limpar depois ou fazer mudas.
“Acho que ninguém vai se importar se eu pegar uns
caules e aproveitar a manaíba”, disse, procurando por
uma passagem entre a cerca para poder colher.
“Ave Maria, Luzia! Não é perigoso entrar e pegar o que
é dos outros?”
Luzia não respondeu à irmã. Avançou para os restos de
colheita em busca dos caules caídos. Quebrou-os com as
próprias mãos, com uma habilidade que ela considerava
não ter mais. Formou feixes, e Maria Cabocla os amarrou
com fibra da própria vegetação encontrada nas porções
sem roçados. Enquanto caminhavam para casa, Maria
Cabocla comentou:
“Mas é muita manaíba, Luzia. Você vai plantar isso
tudo no quintal?”
“Não. Vou plantar no lote do pai”, disse, seguindo em
frente.
12

Foi no alvorecer que Luzia deixou a casa rumo à porção


de terra trabalhada pela família Silva desde sempre.
Andou quase na ponta dos pés pela casa, com toda a
dificuldade que a deformidade em suas costas infligia,
para não despertar o sono leve da irmã. Apanhou os
feixes no chão do quintal e saiu carregando a enxada
velha. No caminho, pensou nas histórias escutadas nos
galpões, acampamentos, nas boleias dos paus de arara
transportando a família de um lugar a outro. O pai,
quando menino, ajudou o avô a cultivar aquele mesmo
lote. Essa foi a primeira e única escola que teve, e seu
aprendizado lhe permitiu sobreviver por longo tempo.
A relação de Mundinho com o quinhão de terra não era
isenta de conflitos. Amaldiçoava, maldizia as pragas, o
tempo, o solo empobrecido à exaustão. Foi capaz de
deixá-lo sem trabalho no período em que se retirou para
a capital. Mas retornou, se conformou com o destino e
viveu remexendo cada palmo como se aquele ato
confirmasse a sua posse. Viu pulgões, gafanhotos,
insetos desconhecidos e se arriscou até a usar o veneno
que os cobradores traziam da cidade e juravam resolver
os males e que abandonou de imediato quando teve
urticária, falta de ar e encontrou tatus e teiús mortos.
Envelheceu subindo o tabuleiro, se equilibrando no
cascalho que calçava o caminho, medindo os passos
atrapalhados pela cachaça. Luzia se irritava com a
bebedeira do pai. Se pudesse, despejaria a garrafa no
mato. Mas nada dizia, o pai era a autoridade, e no fim da
vida ela não se importava mais de vê-lo beber. Restava-
lhe se entorpecer diante das dificuldades sem fim, da
saudade de Alzira e dos filhos ausentes. Enquanto
caminhava, Luzia pensou que não havia semana que ele
não falasse de Mariinha, a filha que partiu sem voltar.
Talvez não passasse por sua cabeça morrer sem vê-los,
nem que os anos fossem tantos a indicar que estava a
caminho do fim.
Os feixes de manaíba estavam num cesto de palha
acomodado sobre uma rodilha de tecido sobre a cabeça
de Luzia, à moda das trouxas de roupa. Quem a visse
caminhar tão cedo se admiraria da sua força para levar a
enxada pesada e do equilíbrio com que carregava o
balaio na cabeça. O corpo estava mais encurvado,
acentuado pela força dos anos. Era o começo do declínio.
Mas, se lhe perguntassem se o fardo era grande — o
fardo de manaíba e da enxada, não o fardo de uma vida
—, ela diria que não, que lhe caía leve. Havia uma
energia diferente a atravessando de ponta a ponta,
vibrando como nos anos de juventude. Como quando
sentiu seus cheiros e desejou o homem, que por fim
desgraçou sua vida. Mas nada parecia importar com a
mesma intensidade do passado. Nada mais era capaz de
lhe tirar o sono nem amargurar seu espírito.
Se resignou com sua guerra cotidiana e sua vitalidade
emergia com uma força incomum. “Não vou dar a terra
de mão beijada aos invasores”, e fez daquela raiva uma
âncora poderosa para o controle de que precisava. Como
será que seus avós tinham chegado àquele lote?
Herdaram dos antepassados? Foi benesse da carola
abastada, que depois doou tudo à Igreja? Como saber, se
a memória se apaga, se as pessoas se esquecem com a
mesma urgência com que recordam ser preciso viver? Os
que vieram antes, muito antes dos que aqui estavam,
foram embora de que maneira? Jamais saberia a história
dessa terra, dos seus, jamais poderia contar com o
sentido de uma história antiga, remota, para justificar a
vida presente. Luzia compreendia o hoje e um pouco
mais além, mas não era capaz de avançar o suficiente
para saber de que era feito seu espírito. Se sua história
se resumia às lembranças de sua família, em seu sangue,
mal sabia, corria um rio imemorial.
Quando alcançou a porção que considerava terra da
família, estava ainda mais disposta para trabalhar. Se
achou que não suportaria, que sucumbiria ao cansaço,
deve ter se surpreendido com o vigor esbanjado naquela
manhã.
Muitos passos atrás dela estava Maria Cabocla,
despertando da rede e estranhando a ausência do cheiro
de café coado. Por um instante imaginou ser a escassez
batendo à porta. Não poderia se oferecer para comprar,
mas poderiam fazer algo para conseguir o café. Se
levantou com vontade de chamar de novo Luzia para
mariscar no mangue. Poderiam vender os mariscos e
depois comprar o que precisavam. Mas não encontrou a
irmã e de imediato não se preocupou. Abriu a lata de
café e viu que tinha pó. Aproveitou o fogo aceso e pôs a
água para ferver. Não encontrou o coador de tecido — se
sentia perdida, não era a sua casa, onde sabia o lugar de
tudo, mas havia achado um cartão telefônico enquanto
procurava o coador, e deixou o líquido decantar. Tomou
sua caneca matinal pensando nos filhos, se estavam
bem, se precisavam de algo. Nunca havia estado longe
deles e aquelas quase três semanas era tempo demais
para seu costume. Faria uma chamada para o telefone
público frente à escola, pediria que chamassem Paixão, o
terceiro, para saber se tudo estava no mesmo lugar.
Maria Cabocla se aproximou do quintal para lavar a
caneca e deu por falta dos feixes de manaíba deixados
no canto da casa no dia anterior. Primeiro considerou a
possibilidade de a irmã os ter armazenado em outro
lugar. Até que se recordou da promessa do dia anterior.
Se pôs pensativa, fez cálculos sobre a probabilidade de
Luzia ter ido sozinha ao lote onde o pai trabalhava. Não
pôde mais esperar: subiria o tabuleiro para evitar um
conflito maior. Enquanto dava seus primeiros passos fora
de casa para alcançar os da irmã, Luzia atravessava o
arame farpado que passou a delimitar o lote de terra.
Lançou os feixes de manaíba para dentro. Escorou com
um galho uma das linhas de arame para deixá-la erguida.
Colocou as mãos pequenas entre as farpas pontiagudas e
pressionou a linha inferior da cerca. Foi assim que passou
o corpo com poucos danos na pele e nas vestes. Olhou à
sua volta e viu quase metade da área com o cultivo de
mamona. A outra metade estava pronta para ser
semeada.
Luzia decidiu plantar a manaíba na parte sem mudas.
Depois resolveria o que fazer com o cultivo de mamona.
Destruiria? Deixaria crescer? Devolveria aos homens
para que fizessem o que bem entendessem? Agora só
queria demarcar sua posse naquele pedacinho de
mundo, como se faltasse o rito para entenderem que
aquele chão era seu por direito e ancestralidade.
Houvera ritual também para que seu pai se apossasse
daquele lote, quando seu bisavô tinha morrido de
saudade da bisavó que Luzia e Maria Cabocla não
conheceram? Quando avisaram da morte do velho
Leandro, seu pai se desesperou em busca de transporte
que levasse a família e as mudas de roupa, trapos
carregados de um lugar a outro, de volta à Tapera do
Paraguaçu. Bem sabia que se demorasse um pouco mais
outro seria posto no lugar. Foi assim que do dia para a
noite entraram na aldeia num carro de boi, depois de
percorrer grande parte do caminho num pau de arara. A
estrada final ainda não era de rodagem e foram no carro
de boi de um conhecido da família.
Algumas poucas ruínas de engenho de açúcar
despontavam na paisagem, mas o que ficou como
memória da viagem foram duas imagens: a pequena
igreja caiada de branco num descampado a perder de
vista — “Ali o dono do engenho mandava batizar os filhos
e também a gente cativa!”, disse o condutor do carro,
que desapareceu anos depois sem que Luzia soubesse de
que jeito; e, ao entrar na Tapera, o pináculo da torre da
igreja visto muito antes dos telhados das casas. A família
se apossou da casa e dos poucos móveis velhos. As
roupas puídas dos mortos foram dadas a um passante.
Mas o rito, a transmissão do lote para seu pai, disso Luzia
não tinha lembrança alguma. Foram os homens da aldeia
e um dos cobradores que cumpriram, em respeito, o
desejo do avô. Tempo em que a palavra valia algo. Mas
só se tornou de fato de seu pai quando conferiu à terra o
usufruto pelo trabalho. Foi quando ele lançou a enxada e
plantou a manaíba que virou aipim, depois farinha e beiju
para alimentar sua gente. Da mesma maneira Luzia
tomaria posse do lote que havia alimentado sua família.
“O que você está fazendo aí?”
Luzia não escutava nem temia. Era Maria Cabocla
próxima à cerca, suada, armada até a alma para proteger
a irmã.
“O que você está fazendo aí?”, gritou um dos homens,
o mesmo que apertou o braço de Luzia a ponto de
imaginar que poderia fazê-la desaparecer em suas mãos.
13

Luzia não olhou para trás e continuou a abrir a cova com


a enxada. Lançava uma estaca de manaíba para dentro e
depois fechava. Estava em paz consigo mesma, apesar
do conflito iminente. Maria Cabocla atravessou a cerca
junto ao mesmo homem que a havia ameaçado,
observando como ele fazia para passar no pequeno
espaço entre as linhas de arame farpado. A irmã estava
de pernas abertas, equilibrada sobre o chão, e a enxada
quase escandia palavras, o som do instrumento ecoando
ao encontrar o solo argiloso, úmido e vermelho. O sol
começava a aquecer o ar, e a luz caía sobre seu corpo
acentuando ainda mais a cor terrosa de sua pele.
O homem repetia que o lote tinha dono e que ela
precisava sair dali, do contrário tudo iria acabar mal.
Maria Cabocla o seguia, repetia que não, aquele lote
pertencia ao pai, à família, que elas procuraram pelo tal
Estêvão para resolver a situação, mas não o
encontraram. Passaram um dia na cidade andando de
um lado a outro. O corpo do pai sequer havia esfriado
sob a terra, disse com um nó na garganta, e já haviam se
apossado de seu quinhão, sendo que ele tinha herdeiros
— falou no plural, para que não soubesse que se tratava
apenas da irmã. O homem repetia o que tinha ouvido,
que aquela terra não pertencia à Igreja, diferente da
aldeia no entorno do mosteiro, mas que o verdadeiro
proprietário estava vendendo lotes. Maria Cabocla nem
se estendeu nas suas justificativas, sabia que aquela
confusão por terra era igual em todo lugar e, por mais
que explicasse, não surtiria efeito. Precisava proteger
Luzia do ódio explodindo nos olhos do homem, pronto
para pará-la de uma vez por todas.
Luzia continuava impassível, concentrada no trabalho
pelo qual não tinha estima alguma. Sonhou em viver na
cidade, trabalhar em qualquer lugar onde não precisasse
sujar o corpo e as mãos, suar, ou ver o alimento comido
pelas pragas ou pelo tempo. Em lugar, pensava com
ingenuidade, onde não precisasse se dobrar ao tempo e
aos vizinhos. Mas os anos se passaram e ela não
esperava muito mais da vida. Moisés havia partido e era
provável que não regressasse. Nada o unia a Luzia, as
mágoas eram feridas abertas, e o pai já não vivia para
justificar seus retornos eventuais. Zazau espaçava suas
visitas, tinha uma numerosa família que a consumia.
Joaquim era comerciante do bairro na capital, tinha vida
própria e não voltaria à aldeia uma vez por ano, como
fazia com regularidade. Humberto e Raimundo estavam
no mundo, não sabia se vivos ou mortos. Mariinha
retornaria para os filhos, para a terra conquistada com
dificuldades, não se arriscaria a regressar à aldeia e viver
em meio a conflitos, com pessoas hostis à irmã. A
decisão de lavrar a terra tinha sido tomada de um dia
para outro, depois de muito remoer sobre o passado e o
futuro. Era arriscada, mas algo precisava ser feito. Não
esperaria que lhe tomassem os restos e se pôs na linha
de frente para reivindicar o que considerava legítimo. Se
não fizesse algo por si, estava fadada a desaparecer
como tantos outros desejaram.
Resignada, lançava a manaíba na cova aberta, e
fechava, paciente, ignorando tudo mais à sua volta. O
homem gesticulava com os braços, Maria Cabocla falava
cada vez mais alto. Então, ele ordenou que ela parasse a
irmã, do contrário ele não responderia por si. O outro
homem se aproximou e começou a insultar as duas.
Mandou que procurassem o que fazer, que eles
precisavam trabalhar para levar comida para casa. Duas
mulheres velhas… deveriam estar em casa cuidando da
família — se exasperou. A medida do tempo eram as
cabeleiras grisalhas, os fios brancos. Eram as rugas e a
pele começando a se tornar flácida. Era a deformidade
nas costas de Luzia, que parecia ter diminuído mas ainda
demarcava seu corpo como um espaço indissociável do
mundo onde se encontrava. Era a aparente fragilidade da
magreza de Maria Cabocla.
Percebendo que Luzia não parava, o homem passou a
abrir as covas onde ela lançava a manaíba. Procurou pela
primeira, abriu com a enxada, jogou o toco para o lado.
Abriu outra e outra, jogava o toco para cima com uma
porção de terra úmida. Maria Cabocla o seguia para
evitar uma tragédia, não saía de sua cabeça que ele
poderia parar a irmã com a pá que carregava. Um golpe
e ela estaria aniquilada. Ela se pôs alerta, com os braços
soltos mas firmes para agarrá-lo caso tentasse agredir
Luzia. Ele seguia abrindo as covas e lançando no ar terra
e toco de mandioca. Uma dessas porções parou sobre o
cabelo de Maria Cabocla, que limpou a boca e os olhos
com a mão. Até que ela não suportou mais o medo à
espreita, já tinha visto a morte por causa de cerca e de
terra, por causa de briga de vizinho e por ganância de
fazendeiro. Gritou para Luzia parar.
“Deixe disso, Luzia, vamos! Esse homem vai te fazer
uma desgraça.”
A princípio ela não respondeu. Cavava, tirava um toco
do cesto que empurrava com o pé direito, lançava-o no
buraco, fechado logo após com a enxada. Mas o homem
tentava ser mais rápido, tinha força e juventude, e se
aproximava cada vez mais de Luzia, que por muito que
estivesse disposta era mais lenta. Quanto mais ele se
aproximava, mais Maria Cabocla gritava, repetindo a
sentença como uma ladainha. Pedia que Luzia deixasse
tudo ali, tentariam resolver de outra maneira. Luzia
trabalhava como se estivesse em transe, atravessada
pela vida, pela necessidade, por indignação e raiva. O
homem arrancou o último toco do chão antes que ela
plantasse o seguinte. Parecia ter vencido a guerra.
“Luzia, Luzia, pelo amor de Deus, deixe o diabo dessa
manaíba aí! Estou vendo a hora de esse homem te
matar.”
Luzia parou, levantou o rosto suado e coberto de terra.
Ela estava suja porque ele se aproximava arrancando os
tocos e os fragmentos de terra e mato recaíam sobre seu
corpo. Agora uma lama grossa feita de barro e suor
descia de sua face. Mas ela não guardava nenhuma
expressão de desgosto ou desânimo em seu semblante.
Ignorou o homem e a ameaça. Olhou para Maria Cabocla
com um ar de insubmissa satisfação.
“Não paro, Mariinha.”
“Mas ele vai fazer uma desgraça”, Maria Cabocla
disse, olhando com firmeza para o homem que respirava
ofegante e tinha o ódio incendiando suas expressões.
“Pois que faça! Se ele me matar, vai matar uma
mulher honesta e que está trabalhando. Não posso mais
ter medo.”
Prosseguiu com o plantio. A irmã a cercou com um
galho retirado do chão para protegê-la. O homem
continuava a retirar os tocos de manaíba e dizendo
palavrões aos quatro cantos. Até que, no momento
seguinte, Maria Cabocla puxou com força a enxada das
mãos de Luzia. No início a irmã resistiu, achou que ela
havia se deixado vencer pelo pavor da violência. A
mulher que trabalhava concentrada, conciliando urgência
e paciência, resistiu, gritou, mas já tinha perdido o
instrumento. Mas quando a outra estava com a enxada
nas mãos, se pôs a abrir as covas com mais rapidez.
“Coloque as manaíbas. Eu abro o buraco”, ordenou
Maria Cabocla.
As palavras agressivas se tornaram mais abundantes,
mas elas agora estavam juntas. Não havia ninguém da
Tapera por perto e eles poderiam golpeá-las sem que
houvesse chance de defesa. O homem continuou a
retirar os tocos com violência e a terra pesada de
umidade voava recaindo sobre os corpos das irmãs. Elas
sabiam que o trabalho estava perdido, mas enviavam
uma mensagem de que não seria tão fácil afastá-las. O
homem as humilhava com palavras e ações. Contudo,
elas não engoliam o desaforo e reagiam trabalhando
antes de serem vencidas pelo cansaço.
Quando o último toco de mandioca foi jogado na cova,
elas se olharam satisfeitas com o trabalho e a energia
despendida. Luzia agora estava sem fôlego, curvada, o
rosto era feito de lama. Maria Cabocla pôs as mãos nas
cadeiras, mirava o campo como se as mudas estivessem
no lugar correto para crescerem fortes. Ignoraram os
homens. Luzia pôs o balaio debaixo do braço, a rodilha
de tecido estava aberta no seu interior. Elas começaram
a caminhar juntas para atravessar a cerca.
Passariam pelas farpas do arame, lanhariam a pele,
rasgariam um pouco mais as vestes. Mas não se sentiam
derrotadas. Pelo contrário: sem que dissessem palavra,
experimentaram a força sem nome que só os que se
consideram vivos conseguem sentir.
14

Ao avistar a margem do Paraguaçu, Luzia apressou os


passos, enquanto Maria Cabocla tentava acompanhar
sem que o corpo, ainda trêmulo, respondesse às suas
vontades. Foi assim que a primeira se agachou sem
dificuldades, o corpo ainda sob o instinto de
sobrevivência. Mirou seu rosto nas águas encontrando a
areia e o viu recoberto de terra e suor. Permaneceu
quieta por um tempo antes de levar as mãos em concha
ao rio e logo depois ao rosto, lavando-se dos restos de
sua batalha. O cabelo permanecia sujo. Maria Cabocla a
observava enquanto apoiava as mãos sobre os próprios
joelhos, o corpo encurvado se esforçando por não
desabar no chão.
Em casa, o silêncio se fez presente enquanto as duas,
sentadas, recuperavam as forças. Até que Luzia olhou
para a irmã para informar que seu cabelo estava repleto
de barro.
“O seu também”, disse Maria Cabocla com ar sério.
“Parece que você estava enterrada no cemitério.”
Luzia começou a rir e cobriu a boca com as mãos para
esconder a falta de dentes. A irmã se deixou contagiar
pela reação inesperada e logo as duas riram, como se
fosse um ato contínuo e necessário para lhes devolver a
energia deixada no embate com os homens de quem
sequer sabiam os nomes.
Maria Cabocla se aproximou de Luzia, retirou sua mão
do rosto para que pudesse sorrir, livre, sem vergonha. Ela
não resistiu e apenas disse que estava sem os dentes.
Maria Cabocla escancarou a própria boca para mostrar os
que lhe faltavam, e dizer que entre elas não era preciso
se esconderem. Luzia contou do candidato político que
levou uma bacia repleta de dentaduras para as pessoas
experimentarem ao mesmo tempo e como tudo aquilo
lhe provocou enorme repulsa. A irmã parecia não
acreditar — “Jura? Mas como pode? Não sabemos onde
puseram a boca antes…” —, e de repente o riso se
tornou incontrolável. As duas quase foram ao chão entre
lágrimas enquanto imaginavam as pessoas escolhendo a
prótese que se ajustava melhor à boca.
Aproveitaram a descontração e falaram mal dos
políticos. Diziam que nenhum prestava, só apareciam
quando precisavam de votos.
“No mais a vida continua a mesma, nada mudou para
a gente que vive na beira deste rio velho”, Luzia refletiu
controlando o riso que vinha de vez em quando como a
réplica de um tremor. “Eles parecem ter nojo da gente”,
continuou, enquanto a irmã enxugava as lágrimas.
“Não vê como abraçam as pessoas? Como comem a
nossa comida?”, perguntou Maria Cabocla. “É tudo
mentira, nada daquilo é verdadeiro.” Então disse que a
aldeia ainda tinha sorte, porque onde morava os
candidatos nem apareciam.
“Não estão perdendo nada”, Luzia disse antes que a
irmã concluísse: “Talvez seja um livramento”.
Maria Cabocla foi ao fogão aceso e pôs batatas-doces
para cozinhar. “Enquanto cozinham, vamos lavar os
cabelos.” Luzia se apoiou numa tora de madeira feita de
assento no quintal enquanto Maria Cabocla carregava
algumas panelas com água do tonel. Ela pediu que Luzia
inclinasse a cabeça para não se molhar.
“Não tem importância. Vou tomar banho e trocar a
roupa depois”, disse Luzia, procurando pela barra de
sabão de coco.
Demoraram-se naquele gesto. O sabão, a água fria do
sereno da madrugada, as pontas dos dedos de Maria
Cabocla encontrando o couro cabeludo da irmã para
aliviá-la dos desânimos. Era como se o tempo não tivesse
passado para as duas e agora fossem as meninas recém-
chegadas à aldeia carregando esperança porque teriam
uma casa e o pai trabalharia a própria roça. Luzia não
disse, mas evocava o significado daquele regresso para
justificar o porquê de não renunciar ao lote da família.
Enquanto água e sabão escorriam de seu cabelo, falaram
do passado e também das coisas boas que tinham vivido.
Recordaram momentos de genuína felicidade. Como
quando o circo se instalou numa cidade próxima a uma
das fazendas por onde o pai passou. Não tinham dinheiro
para pagar o ingresso, mas espiaram com Zazau através
dos furos na lona, enquanto os pais andavam sem rumo
pela cidade com preocupações que não gostariam de
compartilhar com os filhos.
Depois voltaram ao presente e riram da cara do
homem quando percebeu que as duas mulheres
desarmadas o desafiavam. Repetiam: “Você viu a cara
dele?” ou: “Ele estava prestes a nos matar”, fazendo
troça de si mesmas diante da hostilidade com que foram
tratadas. Mesmo sabendo que dos tocos de manaíba não
nasceria um pé de mandioca — “O desgraçado arrancou
tudo” —, consideravam-se vitoriosas por tê-lo enfrentado.
E riram com o mesmo desembaraço do começo.
Ficaram ao sol para secar os cabelos e comeram as
batatas com a urgência da fome rugindo em seus corpos.
Tinham destinado muita energia ao embate. Durante
aquelas horas não pensaram no que fariam, nem nos
seus destinos diante das mudanças. Não quiseram saber
sobre o que o futuro lhes reservava: nem Luzia sobre o
que faria sozinha na aldeia; nem Maria Cabocla sobre o
retorno a sua casa. Sobretudo não pensaram como seria
a vida dali por diante. Viveram aquelas horas com
intimidade, como se anos e lugares não as tivessem
separado. Era como estar juntas desde a infância, e em
breve saberiam o que se passou entre um tempo e outro,
apenas rememorando algo que se encontrava embotado
em meio às lembranças.
Depois Luzia quis que Maria Cabocla falasse dos
sobrinhos. Queria saber detalhes sobre cada um, as
características, se eles se pareciam com os familiares
conhecidos. Quem tinha se saído teimoso como a tia
Luzia ou determinado como tio Joaquim. Quem tinha
saído gracioso como Maria Cabocla. Quem tinha saído
aos avós e aos tios sobre os quais não tinham notícias. A
irmã foi contando, sobre um a um, e sem pressa.
Nenhum nasceu na fazenda onde ela morava, mas todos
em lugares diferentes por onde passaram. Analice e
Maria das Dores já haviam deixado a casa com seus
companheiros. Tinham filhos e voltavam uma vez ao ano
para visitar a mãe. Gildásio, a quem chamava de Paixão
— o sobrenome de Aparecido —, era o que assumiu
algumas funções do pai na sua ausência. Depois vieram
Noel, Joseval e Raimundo, que ainda viviam sob suas
asas. “Sinto a falta deles. Nunca nos separamos”, disse
com os olhos fechados e o rosto voltado para o sol
enquanto se secava.
“E o Menino?”, perguntou pelo segredo contado por
Zazau, sem temer que a irmã se desviasse da afinidade
instaurada entre elas.
“O Menino é um homem, Mariinha”, Luzia disse de
olhos também fechados, porque talvez fosse mais fácil
falar assim. “Mas me pareceu bem quando esteve aqui.
Não nos víamos há muitos anos.”
Continuou, sem pressa: quando ele deixou a Tapera
não sabia que era filho da “irmã”. Maria Cabocla quis
saber por que esconderam as suas origens durante tanto
tempo. Luzia confessou que tudo começou com o medo
da mãe sobre o que as pessoas da aldeia diriam sobre
ela. Já se encontrava marcada como o demônio, talvez
tenha achado que, além da filha, o Menino estaria em
risco. Depois Alzira criou a história de que era a mãe do
Menino. Já se encontrava doente, e desesperada para
manter Mundinho por perto e esperando assim que ele
não voltasse à capital. Mas o pai não era bobo, e a
história se desfez para ele depois da morte da mãe,
depois que Zazau se foi deixando a criança. Mesmo
mantendo o segredo para todos da Tapera, e por
consequência para Moisés, com o único intuito de
escapar da moral da Igreja. “Minha cabeça não estava
muito boa, Mariinha”, Luzia disse com o rosto já quente
da luz do sol. Não sabia o que fazer com a criança. O
parto ocorreu dentro do rio por desespero. Por pouco a
criança não seguiu com a correnteza, não fosse Zazau
convocando a irmã de volta à vida, e ela a amparando na
camisola, “coando” a criança. Foi a irmã, Zazau, quem
cuidou do menino por mais de um ano, porque embora
Alzira desejasse criá-lo, não era capaz de cuidar de si
própria, quanto mais de uma criança. Luzia contou como
foi tomada de aversão, uma necessidade de o impelir
para longe, sem nunca conseguir explicar seu sentimento
de forma coerente. Achava que se ficasse só com a
criança nos primeiros meses seria capaz de afogá-la no
tonel.
Maria Cabocla ouvia a irmã sem julgar, queria que
continuasse a se exprimir com franqueza e contasse
mais sobre o que a sufocava. Luzia prosseguiu: essa
tristeza fez nascer a corcunda surgida de um dia para
outro. Enquanto crescia a barriga à frente, crescia o fardo
ao fundo. Mesmo depois da morte da mãe, manteve a
mentira da maternidade por continuar sem saber o que
fazer. Como reagir, como educá-lo, como amar alguém
que não foi desejado? Alguém que enquanto esteve em
seu ventre cresceu como o Mal de que os vizinhos a
acusavam? Mantiveram a história do filho derradeiro, do
caçula, e o pai, mesmo nos dias de bebedeira, não
ousava falar a verdade sobre o neto em respeito à
memória de Alzira. Guardaram tudo como um segredo a
ser contado quando fosse o tempo, embora o tempo
tenha transpassado a todos.
“E o pai do menino?”, Maria Cabocla quis saber.
“Nunca se fala nesse homem.”
“Ele me desgraçou”, Luzia disse conformada, sem que
parecesse um lamento. Contou que ele não era da
Tapera, aparecia de vez em quando e usava as moças a
bel-prazer. Era um homem claro, bem-vestido, andava a
cavalo como se fosse gente de posse. Deveria ser das
fazendas da redondeza, mas nunca souberam ao certo.
Iludiu Alzira com os bons modos e com tudo o que ela
projetava em pessoas como ele, afinal seus sonhos
estavam se cumprindo. Ele era tolerado pelo povo da
Tapera. Deve ter concebido muita criança que se desfez
antes de nascer com os chás das mulheres mais velhas.
Mas o pior ela nunca havia contado: nem à mãe, nem à
irmã Zazau, tampouco quando se confessava na igreja.
Ele a tinha violado, sem que ela pudesse se defender. Foi
surpreendida com a história do bilhete e quando deu por
si estava perdida. Levou meses para compreender o que
lhe aconteceu. Talvez por isso a tormenta tenha se
instalado em seu espírito, o estado de torpor em que seu
corpo esteve sem se reconhecer durante a gravidez, a
repulsa pelo filho. Não se lembrava do nome de seu
malfeitor. Nunca mais ele voltou à Tapera.
“Vamos entrar”, disse se levantando e interrompendo
a conversa. “O sol está comendo meu juízo.”
15

Maria Cabocla lembrou do cartão telefônico encontrado


quando procurava o coador de café e supôs que deveria
ter algum crédito para anunciarem aos irmãos os fatos
dos últimos dias. Ela falaria a Joaquim para que viesse à
Tapera na primeira oportunidade; o lote de trabalho do
pai estava ocupado por desconhecidos e era preciso
conversar sobre o destino de Luzia — ainda que a irmã
não soubesse ser esse um dos motivos do contato.
Joaquim repassaria as preocupações a Zazau. Maria
Cabocla não sabia se a notícia chegaria a Moisés, mas
prometeu a si mesma o procurar assim que possível.
Esperava ter todos reunidos mais uma vez na aldeia
antes de sua partida. Só ficaria em paz se percebesse a
vida de Luzia encaminhada, quando tivesse a certeza de
que a irmã não estaria mais em perigo. Enquanto a
família não chegava, não tornaram ao lote, embora
continuassem a buscar notícias sobre o tal “dono”. Talvez
Joaquim conseguisse informações das pessoas pelo
simples fato de ser homem e, por isso, dispor de alguma
autoridade.
Nas caminhadas que faziam pelos becos da Tapera,
Luzia seguia de cabeça erguida, cabeleira solta, diferente
da rigidez de sua aparência anterior. A cada vez que
saíam, se davam conta de que a aldeia estava esvaziada.
Casas estavam fechadas há algum tempo e esse
movimento não parecia ser provisório. Luzia constatou: a
mudança não ocorreu do dia para a noite. Era possível
que o êxodo tivesse se sucedido aos poucos. Talvez
tivesse aumentado depois do incêndio da igreja, quando
as pessoas se sentiram desprotegidas, além de cansadas
de viver num ermo onde nada acontecia nem evoluía. Ou
então que, sem a onipresença dos religiosos, os
pequenos agricultores tivessem vendido suas posses por
quase nada e partido para não voltar, antes que os
monges retornassem, e com eles as restrições de antes.
Por sobrevivência não se interessaram por saber qual
seria o destino de suas posses. Venderam a comerciantes
e desconhecidos. Venderam a quem apareceu com
dinheiro vivo para cobrir a oferta insignificante. Os
compradores quase nunca poriam os pés na terra, mas
reuniriam os lotes antes pertencentes às famílias para
formar propriedades maiores.
Aquela constatação consumiu o pensamento de Luzia
sobre o que de fato teria acontecido ao pai. Ele
contestava o foro e talvez tivesse recusado sucessivas
ofertas de terceiros por sua posse. O dinheiro não enchia
os olhos do velho, ela sabia. Era cioso, sim, de justiça.
Recusava pagar o foro não por avareza, mas por achá-lo
injusto. A herança de seus avós não iria parar por
qualquer preço nas mãos de desconhecidos. Naquela
terra tinha trabalho, suor, raiva, desesperança, mas
também afeto e dádiva. Retirou dali o sustento para os
filhos. Era uma fração pequena, não permitia grande
plantação, mas tinha sido daquelas medidas de braços
que retirou o alimento da família. Na terra, a fome não
prosperou, diferentemente dos campos onde viveram
trabalhando para outrem, bem diverso do ocorrido com
os que deixaram a Tapera por falta de trabalho. A fome
visitou a filha Maria Cabocla e os filhos Raimundo e
Humberto. Todos haviam experimentado mais de uma
vez a carência nas suas andanças.
Enquanto Joaquim não chegava, as irmãs recontavam
suas histórias entre os afazeres dos dias. Naquelas
poucas semanas revisitaram passagens de toda a vida.
Algumas impressões eram compartilhadas pela primeira
vez. Outras eram apenas rememoradas para pontuar
situações e sentimentos, fazendo analogias com o tempo
presente. Ou apenas para aplacar a saudade do que não
voltaria mais. Maria Cabocla contou como cada filho
tinha nascido, se em tempo de chuva ou estiagem, quem
havia sido a parteira e como surgiram os nomes. Contou
sobre o que considerava sorte: a construção da escola
justo quando chegou à fazenda onde morava.
Diferentemente dela, os filhos puderam aprender a ler,
escrever e seguir com suas vidas. Ela só hesitava falar da
vida de violência junto a Aparecido. Não contava dos
maus-tratos, da bebedeira sem fim e dos seus últimos
dias. Embora o sofrimento habitasse sua memória e
jamais fosse deixá-la, não queria compartilhar suas
mágoas. Considerava que o marido tinha sido
atormentado pela vida mais do que poderia suportar e
revidava todo o seu martírio aos que estavam à sua
volta. Nos seus meses derradeiros, ele demonstrou ter
consciência dos malfeitos e lançou a Maria Cabocla e aos
filhos gestos de arrependimento.
Remoer os pesares de Aparecido a fez voltar aos seus
próprios sentimentos. Alguns a acompanhavam desde a
infância. “Eu me sinto culpada por tudo que aconteceu a
você, Luzia”, Maria Cabocla começou a falar enquanto
dobrava as roupas secas retiradas do varal. Luzia parecia
não ter despertado para a conversa, continuava a varrer,
seguindo o ritual de contar e escutar instalado na casa
que o rio prometia, num dia de grande cheia, devorar.
“Você sabe do que eu falo”, Maria Cabocla disse para
chamar a sua atenção.
Por um instante Luzia parou de varrer o chão. Segurou
a vassoura como um pastor seguraria o seu cajado e
evitou olhar para a irmã. “Não, por favor, agora não,
Mariinha. Foram dias pesados demais, não precisamos
falar sobre isso agora.”
A intervenção de Luzia restaurou o silêncio. Maria
Cabocla nada mais disse naquela manhã, mas estava
disposta a recuperar a história. Quando, Deus?,
perguntou a si mesma. Quando voltarei para a Tapera de
novo? Quando iria poder olhar Luzia para falar sobre os
sonhos recorrentes, os gritos, sobre a lembrança
esgarçada como um véu antigo recobrindo sua vida?
Precisava recuperar os acontecimentos, exorcizar os
fantasmas e iluminar as sombras para se sentir em paz
em definitivo com a irmã. Suas recordações estavam
entremeadas de dor, desvios, histeria, uma turba pronta
para transformar Luzia na encarnação do mal pregada
pelos religiosos em seus sermões. Mas essas mesmas
lembranças já não eram críveis nem mesmo íntegras.
Não conseguia separar verdade e imaginação porque a
história do povo da aldeia ecoava soberana e inconteste.
Havia sido inscrita em sua mente com gritos enquanto
erguiam paus e pedras, enquanto crianças choravam e
seus pais tentavam defendê-las. Precisava falar com
Luzia e atar de uma vez os fios do dito e do não dito.
Depois de uma longa caminhada por ruas e casas cada
vez mais abandonadas, se pôs a contar como estavam os
filhos na velha morada. Contou que a mesma chuva
irrompida ali também desabou por lá. Envolveu Luzia
como se envolve uma criança em segurança. A irmã quis
saber mais sobre a terra, os rios, sobre as pessoas que
viviam naquele lugar mágico das histórias de Maria
Cabocla. “É um lugar bom de se viver”, Maria Cabocla
garantiu. “Não é perfeito. Tem de tudo, como aqui. Há
gente que não se une como os dedos das mãos.” “Aqui
os dedos se foram”, Luzia disse, mas permanecia com o
mesmo interesse de antes para escutá-la. Por fim, Maria
Cabocla abriu a sacola e mostrou as folhas de babosa
brilhantes que tinha encontrado.
“Estavam num terreno abandonado. Vou cuidar de seu
cabelo”, disse com os olhos iluminados.
Eram os gestos a substituírem as palavras de um
vocabulário onde verbos como “amar” inexistiam. Maria
Cabocla untou os cabelos revoltos de Luzia com a polpa
gelatinosa, enquanto a pele e as extremidades
serrilhadas da planta ficavam ao lado. A irmã
permaneceu de olhos fechados, uma manta gasta e
desfiada sobre os ombros impedia que a seiva pintasse
de nódoas a roupa puída. Ela também fechou os olhos e
as poucas palavras que a deixaram evocavam a infância,
a liberdade dos que demoram a identificar os cativeiros
do mundo, as investidas mata adentro.
Estavam as duas e Zazau percorrendo o chão
descalças, as solas dos pés engrossando espessas e
rachadas sobre a terra. Além delas havia uma menina
reunida às irmãs participando das explorações e
brincadeiras. Tudo isso se deu quando voltaram à Tapera,
e Luzia começou a viver de uma maneira diferente. A
aldeia era um mundo à parte: gente habitando casas,
roçando seus lotes, se embrenhando na mata e
navegando o Paraguaçu; era povoada de pessoas e
histórias, e ninguém parecia mais notar. As árvores
andavam, os pássaros falavam e o fogo dançava, mas os
olhos cansados das pelejas já não conseguiam ver. Luzia
via, escutava, contemplava. Quis dividir com as irmãs
sua descoberta de que tudo estava vivo. Elas riram,
disseram ser mentira, zombaram da menina e
continuaram suas vidas. Apenas Edite, a menina a quem
havia se unido, quis saber mais. Logo se tornou mais
próxima, se fez companheira e confidente, estava ao seu
lado a todo instante. Eram quase moças, cuidavam dos
afazeres da casa e dos irmãos menores. Seguravam os
restos do dia com seus dedos pequenos para que não
escapassem, como se as horas de liberdade fossem as
mais sagradas de todas, as mais preciosas a que tinham
direito. Se encontravam à tarde ao pé de uma árvore,
“sagrada”, diziam os invisíveis, e dali só saíam quando
contavam sobre as coisas que não podiam ser vistas.
Seguiu-se o tempo de desvendar, de imaginar e de
moldar o mundo com o que tinham em si. Mas algo
maculou para sempre os dias, culminando em acusações
e ódio, mudando para sempre os cursos de suas vidas.
“Ainda penso em Edite”, Luzia disse, enquanto as
mãos de Maria Cabocla se afastavam de sua cabeça.
16

Era um verão mais quente que o habitual, e o ar estava


carregado de eletricidade. Faíscas, à deriva,
atravessavam o espaço em meio a um ambiente cada
vez mais seco. O fogo grassava em terrenos
abandonados e campos de cultivo, ressequidos pela
escassez de água. Não havia recordação de estiagem tão
prolongada na Tapera. Naquele lugar assolado por uma
intempérie atípica, Luzia desenvolveu os sentidos e os
viu se tornarem aguçados: sonhava com os mortos,
compreendia a língua dos animais, sentia em cada fibra
as oscilações do mundo natural. Seu corpo se modificava
a cada dia, se preparando para uma tormenta própria da
estação: os seios arrebentavam o peito magro, a pele do
rosto se tornava mais oleosa e parecia pontilhada de
borbulhas. O cabelo tinha se tornado ainda mais crespo e
os odores do corpo eram intensos, uma flor aberta a
atrair insetos. Ela costumava buscar por seu próprio
cheiro, era assim que entendia mais sobre seu corpo.
Porém, de tudo o que a cercava, era o fogo a lhe chamar
com força para que descobrisse mais sobre si mesma.
O fogo não corria, tampouco escorria ou se tornava um
bloco compacto. Não ocupava um lugar, nem podia ser
aprisionado. Tentou guardá-lo numa caixa, mas percebeu
que se extinguia quando encerrado. Tentou apresar uma
ínfima chama sob um copo de vidro, desaparecida
quando não pôde mais respirar. Foi a sua primeira lição:
o fogo só existe livre. Por assim ser, só poderia ser
observado e sentido, admirado e respeitado,
reverenciado e temido. Quando se deu conta de sua
descoberta, passou a observar com atenção as chamas
crepitando nas lenhas do fogão de casa. Mas, se não
fosse para ajudar, a mãe a espantava da contemplação
sem propósito: cozinha é lugar de trabalho. Então se pôs
a admirar a fogueira das ceramistas da aldeia onde
queimavam as louças cruas. Eram pilhas de madeira
levantadas às margens do rio com uma gruta para
armazenar pratos, travessas e moringas de barro em seu
interior. O fogo crescia e se alimentava da morte da
madeira. Naquele mesmo mês, pôde contemplar mais
fogueiras, as das viúvas, instaladas nas portas das casas
das enlutadas. Escutou com interesse o som emitido pela
pilha de lenha que queimava. Reproduziu o canto
delicado e voraz do fogo com seus sons, sonhos, com sua
vontade de experimentar.
Guardava seus segredos e sentia vontade de
compartilhá-los com quem tivesse interesse. O fez com
as irmãs, mas apenas Edite deu importância às suas
histórias. Quando se encontravam juntas antes do meio-
dia, Luzia dizia: “Espiem”, e então apontava para um
lugar qualquer carregado de uma energia que apenas ela
sentia. Aguardavam inquietas à espera da flama e,
quando surgia depois de um tempo, olhavam para Luzia,
que sorria satisfeita. “Foi você quem fez o fogo?”, uma
delas quis saber.
Luzia não se voltou a quem perguntou, continuava a
contemplar a combustão.
Na maior parte das vezes a chama se extinguia com o
facho tal como começou. Mas, se saísse de controle,
homens e mulheres corriam para apagar. Nesse caso, as
meninas se afastavam para não serem
responsabilizadas. Sabiam dos castigos que lhes seriam
destinados se fossem pegas nessa brincadeira. Com o
tempo, elas próprias aprenderam a domar os focos onde
surgiam, abafando a queimada com folhas de bananeira
verde crescidas na margem ou com água do rio
carregada em latas. Faziam isso antes que os adultos
chegassem guiados pela fumaça e percebessem a
relação entre suas presenças e o fogo. E seguiam com
suas brincadeiras como se nada tivesse acontecido.
A estiagem se acentuou e os pequenos incêndios se
tornaram mais frequentes. Se alastravam e era comum
ter reservatórios de água improvisados para afastá-los
das casas e das roças. Os sermões de dom Tomás se
tornaram repetitivos. Tapera do Paraguaçu estava
queimando pelo persistente pecado de seu povo que
continuava a cultuar “demônios” e a praticar magia.
Pagavam o preço da desobediência contumaz dos
pagãos. Era preciso censurar e repreender os culpados.
Dom Tomás recontava histórias sobre as pragas do Egito,
alertando que a ira de Deus seria implacável. Se
persistissem, logo veriam a fome grassar na aldeia pela
falta de chuva.
Os mais castigados pela agitação, ao assistirem às
missas, passaram a conspirar. Era preciso acabar com os
maus hábitos, as práticas de magia, abandoná-los de
uma vez. A salvação estava na Igreja, em Deus, na reza
do rosário, na recepção do sacramento da Eucaristia, na
penitência, no pão de Cristo.
Luzia estava no limiar entre a infância e a puberdade,
ainda não conseguia dar a devida importância às
preocupações dos adultos. Permanecia convivendo entre
as almas que se foram e os que ali estavam. Admirava as
línguas de fogo deixando os fachos secos e encontrando
o ar, porque contemplar a beleza das labaredas não
parecia fazer parte do rol de pecados de dom Tomás.
Mas, sem observar grandes melhoras com as
advertências do abade, os moradores da Tapera se
convenceram de que o Diabo estava entre eles
espalhando infortúnios. As pessoas ainda deviam estar
praticando magia. Formaram brigadas para vigiar o Mal e
logo os moradores da aldeia passaram a inquirir as
crianças.
Surpreendidas por um desses agrupamentos formados
pelos cobradores de impostos, enquanto admiravam um
varal de roupa incendiado, Maria Cabocla e Edite
começaram a chorar e disseram que apenas
observavam, não tinham provocado as chamas.
Dispostos a encontrar os culpados pelo fogo a se alastrar
sem explicação, passaram a perguntar às meninas o que
sabiam sobre o fenômeno, quais os espíritos invocados
para iniciar a combustão. Disseram que ainda poderiam
salvar suas almas se entregassem quem sabia da magia.
Enquanto chorava assustada com o inquisitório, Edite
contou que Luzia sabia quando o fogo iria começar.
Diversas vezes a menina tinha previsto onde as chamas
surgiriam. Maria Cabocla tentou correr para casa, mas foi
contida por duas mulheres que a sacudiam, perguntando
se era verdade o que a outra contava.
“Fale antes que os demônios te levem para o inferno”,
as mulheres pediram com os olhos arregalados pelo
desespero que havia tomado a aldeia.
“É verdade?”, os homens interrogavam mais alto.
Maria Cabocla consentiu com a cabeça. Chorava de
forma tão agitada que nem percebeu para onde era
levada, e quando se deu conta, estava na porta de casa
acompanhada de Edite e da pequena turba de
moradores. Alzira os atendeu, escutou e depois os
acusou de proferir mentiras. As pessoas berravam ainda
mais, convocavam a “irmã” a reconhecer a maldição da
filha. Luzia surgiu à porta ao lado da mãe. Os olhos
pousaram candentes sobre Mariinha e Edite sem esboçar
tristeza, a não ser uma ponta de decepção pela fraqueza
das duas. Os filhos foram chamar Mundinho na tarefa
onde trabalhava tentando diminuir os danos da
estiagem. Os vizinhos mais uma vez relataram a
descoberta. Quando contaram a razão do desespero, ele
riu nervoso e chamou tudo aquilo de histeria, além de
dizer que a Igreja estava acabando com o resto de juízo
que as pessoas tinham. Depois convidou-os a se retirar
da porta de sua casa, pedindo que cuidassem de suas
vidas.
Dali seguiram por becos levando Edite até a família.
Os embates continuaram na casa da menina para
desespero da mãe, recém-viúva. Sem ter como
contestar, prometeu redobrar a vigilância sobre a filha,
além de aplicar castigos e de determinar a proibição de
sua saída.
Mas a chuva não tardou a chegar. Por um tempo os
incêndios cessaram e os ânimos exaltados arrefeceram.
A vida parecia ter retomado a rotina habitual e talvez em
algumas semanas já não recordassem daquela história.
Até que Edite desapareceu da casa onde estava sendo
vigiada, acusada de ser uma das incendiárias da aldeia.
Passaram dias à sua procura, e até mesmo os
responsáveis por seu castigo se integraram às buscas.
Perguntaram nas estradas, nos saveiros que partiam
para a capital, adentraram as matas sem nenhum êxito.
Luzia, agora liberta de seu cativeiro, se pôs a caminhar
e procurar por evidências de que a amiga havia apenas
fugido, não suportava mais a clausura em que foi
encerrada. Ao passar pelos campos queimados
rebrotando verde-vivos, encontrou restos de um vestido
queimado.
Era o vestido de Edite para os dias de missa.
Com os olhos marejados, Luzia apanhou os trapos e
correu para avisar a aldeia do seu achado. Mas pela
estrada esbarrou com as mesmas pessoas envenenadas
que não lhe permitiram sequer explicar onde tinha
encontrado o que agora segurava. Arrancaram os restos
de tecido de suas mãos para em seguida a condenarem
para sempre como uma alma maligna.
17

Joaquim chegou à Tapera e em seguida se dirigiu ao lote


de terra do pai. Pediu a Luzia e Maria Cabocla que
permanecessem em casa, tentaria resolver o assunto de
maneira pacífica. Depois do pedido, pairou sobre Luzia a
dúvida: o irmão de fato reclamaria a terra do pai ou,
descrente da sua capacidade para continuar trabalhando,
tentaria conciliar os interesses dos invasores? Era uma
possibilidade diante do abandono em que a aldeia se
encontrava. Então esperaram pacientes, enquanto Maria
Cabocla se movimentava preparando o regresso a Água
Negra.
Dias antes tinham voltado à cidade para Maria Cabocla
receber no banco a pensão, com o documento de
identidade que tinha permanecido na bolsa. Era com
esse recurso que viajaria para casa. Com o dinheiro
guardado nos recantos inacessíveis do corpo, por medo
de roubo, caminharam por um bom tempo. Se deixaram
guiar pelo horizonte do rio até encontrarem a casa de
dona Alzira. Palmas no portão e a senhora de vestes
recatadas saiu ajeitando os óculos para depois recordar
da mulher a quem estendeu a mão semanas antes.
Pareceu animada por revê-la acompanhada da irmã e por
saber que quase tudo — exceto se despedir do pai ainda
vivo — tinha dado certo. Maria Cabocla retirou a cédula
escondida na cintura, entremeada a sua roupa, e a pôs
na mão de Alzira, agradecendo o empréstimo de grande
valia.
“Se não fosse a senhora”, disse, “minha aflição seria
ainda maior.”
E se despediram com um “Jeová Deus lhe
acompanhe”.
Viver era percorrer o tempo e o espaço retribuindo as
dádivas ofertadas, Maria Cabocla tentou dizer o mesmo
com histórias e palavras conhecidas. Luzia aquiesceu,
conformada com a partida da irmã. Caminhava
equilibrando o corpo cada vez mais instável nas ruas de
pedras gastas. Não se lamentou do que seria dela,
estava disposta a prosseguir na aldeia até o último dia.
Joaquim regressou do encontro e contou que os
homens não foram hostis, e que o escutaram quando
revelou que o lote de trabalho era posse da família há
gerações. Alegaram não ter mais informações sobre o tal
Estêvão, a não ser um número de telefone, e que agora
vivia na capital. Ficou acertado que ele o procuraria para
tratar da situação. Luzia não deveria se preocupar, não
estaria desamparada. Antes de voltar, tentou fazer com
que a irmã prometesse deixá-lo tratar do assunto, que
não iria se indispor com os trabalhadores, nem mesmo
desafiá-los como havia feito. Ela não concordou,
continuou esbravejando que não ficaria assim, que
encontrassem logo o tal comprador para poder
esclarecer de uma vez por todas o engano.
O irmão se foi e deixou uma pequena quantia sobre a
mesa. Luzia recolheu o dinheiro e continuou a regar as
plantas do quintal. Viveria do mesmo jeito e faria o que
lhe desse na cabeça. Maria Cabocla estava preocupada e
considerou ser melhor a irmã fechar a casa por um
tempo. Poderiam viajar juntas até sua morada.
Conheceria os sobrinhos, pousaria os pés e a cabeça
num lugar novo e arejaria as ideias. Luzia agradeceu,
disse que gostaria de visitar a morada da irmã, mas não
seria logo.
“Qualquer dia eu apareço por lá”, disse, “mas agora
eu preciso ficar aqui. É capaz de me tomarem a casa
também se a encontrarem fechada.”
“Mas você pode continuar por lá, comigo, se quiser.
Você sempre quis deixar a aldeia e morar em outro
canto.”
“A vida mudou, Mariinha. As vontades também”, disse
sem completar o que talvez só não contasse porque a
achariam louca. Luzia não se considerava alguém
distante desse rio largo, dessa comunidade hostil,
distante da mata, do Loco e dos pássaros de toda sorte.
Ali estava sua história, suas referências, a memória dos
pais, dos irmãos e do filho. Desejou ver a mesma aldeia
habitada pelos que lá se encontravam e pelos que se
foram, como aconteceu quando era apenas uma menina
se tornando moça e observava o mundo à sua volta com
olhos e consciência ampliados, sem fronteiras entre seu
corpo e o meio. Aquele estado de vida plena e consciente
perdurou até a violência que havia gerado o menino. Mas
mesmo agora, quando já não via sua terra com a alma de
antes, e depois de toda a perseguição sofrida ao longo
dos anos, das crianças que lhe lançavam pedras às
pessoas a estigmatizando como feiticeira, não se via
mais longe da Tapera. Deixar aquele chão àquela altura
da vida seria apagar sua própria história. Sem a aldeia,
Luzia seria apenas um corpo oco e sem vida.
Era Luzia do Paraguaçu, Maria Cabocla a reconheceria
assim e para sempre. Da mesma maneira, ela já não se
considerava alguém longe do lugar que lhe permitiu
renunciar à vida peregrina, errante, sem terra para
trabalho e morada. Luzia não existia sem o rio, sem a
aldeia, sem o percurso de sobrevivência desenhado com
seu fôlego. Naquela fração do mundo estava a narrativa
de sua gente, diziam seus pais num tempo já remoto,
embora o povo não mais recordasse. Pisaram e
guerrearam sobre o solo, sob os mantos encarnados de
penas das aves. Naquele chão se abrigaram os
sobreviventes da travessia do oceano, o grande rio,
adentrando a foz do Paraguaçu como presas engolidas e
depois regurgitadas por uma fera. Em algum momento
pessoas de histórias distintas tinham se reconhecido na
dor e se unido para resistir às aflições que lhes eram
infligidas.
Assim continuaria a ser até que o último morador
habitasse a aldeia. Talvez fosse Luzia, um rio correndo,
transpondo os obstáculos, impossível de ser represado.
Se a constatação deixava Maria Cabocla apreensiva com
o futuro da irmã, ela também lhe dava em alguma
medida a certeza de que só sobrevivem os que têm um
propósito. Essa era a intenção de Luzia: permanecer na
aldeia, semeando sua própria vida e o que considerava
ser justo.
Então não houve choro nem lamento quando chegou o
dia de sua partida. As duas se despediram como se
fossem se encontrar na semana seguinte. Nos dias
anteriores cuidaram uma da outra. Maria Cabocla se
sentiu confortada com os cachos brilhantes e grisalhos
que despontaram na cabeça da irmã. Satisfeita, Luzia
brincou que ela poderia fazer do cuidar do cabelo das
pessoas um trabalho, afinal levava jeito. Riram e
recordaram detalhes de um tempo que carregavam
apenas consigo.
Maria Cabocla recebeu da irmã, quase incrédula, um
convite para mariscar na beira do Paraguaçu. Ali
reviveram anos idos e falaram com afeto dos que já não
viviam entre elas. Com as hortaliças crescidas no quintal,
prepararam uma moqueca e se fartaram como havia
tempo não faziam. Luzia não lamentou não ter cultivos
na terra para compartilhar. Do pomar fértil e cada vez
mais livre do mosteiro abandonado, ela colheu frutas e
ofertou um generoso farnel para Maria Cabocla levar na
viagem. Eram tantas que poderia compartilhar com os
filhos e vizinhos quando chegasse.
Quando a van deixou a Tapera rumo à rodoviária da
cidade, Maria Cabocla agradeceu à vida o seu retorno à
casa dos pais e o encontro com os irmãos. Agradeceu e
pediu por Luzia. Já não temia a viagem e fez planos para
regressar quando possível. Pensou nos filhos, no trabalho
por fazer quando estivesse em casa. Retirou o lenço da
bolsa e o perfume ia longe. Levou-o ao rosto. Sentia falta
de Belonísia e decidiu que a visitaria assim que
chegasse, para levar uma parte das frutas maduras do
mosteiro. Prometeu a si mesma fazer aquela viagem
vigilante para não ser surpreendida por nenhum
contratempo. Conseguiu permanecer assim durante a
primeira hora, admirando a paisagem, as luzes
arrebentando a escuridão, revisitando as últimas
semanas na aldeia. Mas depois foi tomada por um bem-
estar incontrolável e dormiu, com a agitação do ônibus
pela estrada, embalada pelo cansaço, como se
repousasse em sua rede.
A alma selvagem
1

Uma labareda caminha pela aldeia deserta. Percorre as


ruas tomadas pelo silêncio e chamusca as pedras do
calçamento sob seus pés. Não teme a ira de sua gente.
Os olhos ardem e o peito inteiro é uma flâmula oscilando
no ritmo da própria batida. A labareda atravessa o que
restou do mosteiro, os vãos escuros impregnados do
fedor do incêndio. Percorre os espaços entre o rio e a
igreja, mas também o passado e o presente, a memória e
o esquecimento. Constata que o salão do mar continua
ali, de pé.
Seu interior não é apenas um vazio, embora entre as
velhas paredes não haja móveis e o telhado tenha sido
reduzido a cacos. Restam fragmentos de objetos e a
vegetação que cresce nas frinchas do edifício. Como no
passado, o fogo poupou a ruína do salão, seja pela
permanente umidade das águas do rio se entranhando
nas paredes, seja por algum mistério impossível de
explicar.
É mais que a curiosidade habitual a convocar Luzia
para o recanto secreto da aldeia. Naquele espaço
ocupado pelas águas da maré alta recobrindo o chão de
terra, há pedaços de correntes de ferro corroídas pela
ferrugem, ripas de madeira escuras e podres, paredes
molhadas ao relento resistindo ao tempo. Nas entranhas
do mosteiro vive a história da aldeia. Tendo penetrado a
construção no dia em que procurou pelo menino perdido,
experimentando a amplidão dos próprios sentidos, Luzia
esperou muitos anos para retornar àquele lugar. Somente
depois do incêndio — a construção desabitada —, ela se
dirige com regularidade aos restos do mosteiro.
Luzia deixa a casa antes de o sol se levantar.
Ultrapassa os escombros e empurra a grande porta
emperrada, a única que foi poupada pelas chamas,
pondo os olhos sobre a chaminé onde existem ninhos de
diferentes pássaros. Antes de descer ao vão, admira a
vastidão do espaço. E basta pôr os pés no recinto para os
sussurros, as vozes, os lamentos, os gritos preencherem
seus sentidos. O vento traz os sons — de onde? — e o rio
penetra as passagens devagar, formando no chão um
espelho d’água.
Embora não seja capaz de compreender o desenrolar
da história da aldeia, Luzia sente o aportar das
embarcações de outros tempos na margem do
Paraguaçu. Divisa através do espelho formado pela maré
alta o desembarque de homens brancos vestidos de uma
maneira que não se vê mais. Inala o forte odor que
trazem nos corpos pelas longas distâncias em meio à
imundice dos navios onde viajam acompanhados de mais
homens de hábitos escuros. Estes juram ter o poder de
conversar com os deuses e decidir sobre a vida e a morte
de qualquer pessoa.
No começo, o povo acredita serem os visitantes os
xamãs da terra sem males andando por cima das águas.
Por isso se põem a escutar com atenção ao redor da
cruz erguida, mesmo sem entender sua língua. Riem dos
olhares de espanto quando eles se mostram surpresos
por tudo o que admiram: o corpo forte, as penas
coloridas, o conhecimento dos caminhos para chegar às
fontes da vida. Mas não se sentem confiantes nem
mesmo seguros na presença dos visitantes e os vigiam
tentando compreender aonde querem chegar.
Percebem então que, embora os homens brancos
dominem o fogo e disponham de tacapes que lançam
chamas, não podem ser xamãs, por sempre
demonstrarem medo diante do desconhecido. Mas logo
em seguida a teoria de que são xamãs se fortalece por
carregarem os males para o povo da aldeia, que começa
a adoecer. Luzia é mais um dos da terra e sente, como
eles, a fraqueza os tomar de assalto. O conhecimento
dos pajés não é suficiente para curá-los.
Antes que todos que aqui estavam desapareçam,
alguém marca os homens brancos como inimigos e
conclama para que os mortos sejam vingados.
Decidem então que serão devorados, como aqueles
cuja punição é irrevogável. Mas para tanto precisam se
tornar humanos. É quando raspam seus pelos porque são
parecidos com os uacaris, e cortam seus cabelos como
os dos homens da aldeia. Depois pintam seus corpos e se
sentam para comer e beber cauim por muitos dias,
vivendo juntos como se fossem da família.
Todos dançam sem suspeitar que a morte está à
espreita.
Os homens brancos acreditam que se tornaram, cada
um, um deles, mesmo que seus pensamentos estejam
em busca de rotas e meios de fuga. Antes de reclamar a
si a nova condição de homens da terra, são mortos —
com bordunas —, cozidos e devorados. Quando os
demais sabem do sucedido, fogem acossados pelo medo.
A vida se esvai como água escorrendo entre os dedos.
Os que ficam passam a repetir os gestos e a história
dos homens brancos. Agora vivem entre eles os filhos
dos estrangeiros, paridos pelas maués. Não se passa
muito tempo até que novos homens brancos retornem
com os xamãs deles em embarcações maiores
carregadas de tijolos e cativos trazidos de além-mar.
Erguem dia e noite uma grande maloca de pedra onde
todos irão trabalhar e morar com os deuses. Alguns
cativos morrem de exaustão por trabalharem sem
descanso até nas noites de lua cheia. A persistência dos
homens brancos faz um grupo da aldeia se render,
seduzido pelos deuses alheios. Outros morrem doentes. A
maior parte abandona a terra e viaja por léguas,
enquanto os homens brancos espalham dor e morte.
Quando a grande maloca está pronta, os cativos
sobreviventes continuam a trabalhar para os xamãs dos
homens brancos. O rio traz mais e mais cativos
desterrados à comunidade. Alguns se unem às mulheres
da aldeia nas cerimônias dos padres, para não ter que
viver na terra dos males. Continuam a trabalhar no
canavial sem fim ao redor da maloca.
A grande maloca é chamada de igreja, e mais
trabalhadores desembarcados dos tumbeiros são
transportados por oceano e rio até a aldeia.
Luzia deixa o salão do mar e segue pelos caminhos da
Tapera. Passa as horas reverberando os ecos de sua
experiência. Quando se sente preparada, retorna às
ruínas do mosteiro. Penetra na umidade do salão, os pés
fincados no charco da maré baixa enquanto os sons
invadem os sentidos e projetam imagens desconexas em
seu espírito. Ela reúne os fios da história como se
dispusesse de um tear e urdisse um cobertor para
estender sobre a Tapera.
A terra e o céu, as paredes carcomidas pelo fogo e
pelo tempo, as ervas crescendo nos campos
abandonados, as cheias e as vazantes do rio e da maré,
os ventos ora mansos ora violentos, contam a história de
vida e morte de sua gente.
Quando a água para de oscilar no chão, Luzia vê
imagens sobrepostas ao céu e ao seu rosto murcho
refletidos na poça. Um cativo passa por ela e grita,
desafiando o feitor que segura um vergalho. É dia de
serviço de enxada, corte da safra de cana no engenho ao
redor da igreja. Outro cativo se dirige furioso ao padre.
Diz que não vai limpar os pés de cana porque era
trabalho feito. Resmunga, amaldiçoa a vida no engenho.
O padre promete castigo e ordena que o feitor e outro
prisioneiro o levem para o salão do mar.
Quando deixam o canavial, o trabalho é paralisado.
Um clamor irrompe em meio às folhas verdes das hastes
de cana e encontra o céu. A súplica é carregada pelo
vento, atravessa os anos e encontra Luzia em seu tempo.
Ela fecha os olhos quando não se sente capaz de
assistir ao sofrimento. Aquela dor também é sua e
percorre seu corpo cada vez mais vulnerável. Luzia
precisa proteger a mente e o coração. Quer manter
intocável algum ponto de seu espírito. Mas escuta os
gritos de uma mulher cativa quando o tacho da garapa
fervente é entornado sobre ela. Não se sente capaz de
olhar a pele se desfazendo ao ser queimada.
Luzia vê o homem castigado pelo vergalho ser preso
por correntes à parede do salão do mar. Ao seu lado uma
mulher esquálida, pele e osso, e um prato de comida
coberto de moscas que parece não ter sido tocado. Ela o
distrai contando que não é ladra nem revoltada, mas que
está presa para não comer mais terra. Por um momento
ele esquece a agitação e se põe a ouvir a mulher. Ela fita
os olhos do revoltado com os seus, amarelos, e conta:
sem poder cavar a própria cova, ela se enterra por
dentro na esperança de um dia concluir seu próprio
sepultamento.
Luzia se sente tonta, sacode a cabeça, a respiração
acelera. Se recorda quando os lençóis da igreja tingiram
de vermelho as águas do Paraguaçu. Ela levantava as
mãos e as cheirava. Olhava o tecido sem acreditar no
que via, erguendo-o contra a luz. Precisava saber se
havia mancha capaz de tingir a água daquela maneira.
Rezava pai-nossos e ave-marias e dizia a si que era o Mal
a desafiá-la. De tanto a gente da aldeia dizer que Luzia
era o Mal, ela havia se tornado parte dele. Depois achou
ser um sinal de Cristo, as chagas de seu suplício. Mas
quem acreditaria na feiticeira? Não podia confessar a
dom Tomás suas visões, era capaz de ser impedida de
lavar as roupas, pondo um fim ao seu sustento.
Seus olhos pousam de novo sobre a poça d’água.
Um grupo de cativos para de trabalhar e se dirige ao
local para onde o rebelde foi levado. Pedirão o indulto do
irmão, do vizinho, do camarada. São os cativos da
religião servindo a Deus e à ordem. Eles retiram o
chapéu diante do sacerdote e pedem misericórdia pelo
rebelde. Dizem que estão dispostos a limpar juntos os
pés de cana. Mas dom Lucas está possesso, vocifera
inclemente, considera insubordinação o pedido de
perdão. Decide que todos serão castigados e lançados à
míngua no salão. O padre olha para trás à procura do
feitor e de seus ajudantes, mas não os encontra. É
preciso castigá-los para o descontentamento não se
tornar uma rebelião.
Um dos cativos ergue a enxada e golpeia a cabeça de
dom Lucas. Foices, enxadas e barras de madeira
destroçam seu corpo.
Luzia abandona a ruína com passos ligeiros. Contudo,
a história não a abandona nem durante o sono. Ela sente
ser imperioso voltar até não ter mais nada a conhecer.
Regressa, atravessa as paredes erguidas por seus
antepassados e penetra o portal até o núcleo do salão.
Encontra a poça seca, não poderá mais ver. Mas os sons,
os sussurros, os gritos, começam a invadir o vão. Luzia
ouve os homens se aproximando do canavial. A calmaria
se faz quando os instrumentos cessam de trabalhar.
Alguém grita aos que ficaram:
“Matamos o Diabo. Está estirado na porta da igreja.”
Algumas mulheres choram e fazem menção de ir em
direção à igreja e os homens obstruem a passagem.
Antes que todos possam prosseguir, uma coluna de
fumaça se ergue em direção ao céu. O dia se torna noite
no passado, e agora o corpo de Luzia estremece. Uma
mão pousa sobre seu ombro.
É o Menino.
“Era desse lugar que eu falava.”
2

Nos dias que seguem seu retorno da Tapera após o


sepultamento do pai, Moisés não tem notícias de dom
Tomás. Continua a servir às mesas, e esquadrinha
cômodos e corredores do antigo casarão colonial nos
horários de maior movimento. Observa os eventuais
noviços que surgem para a refeição. Não consegue se
lembrar dos jovens que haviam acompanhado o abade
nas vezes em que esteve no restaurante. Refaz os dias
em sua mente, mas não é capaz de recordar, da mesma
maneira que o rosto de dom Tomás continua a ter traços
indefinidos em sua memória.
Não irá prosseguir com seu interesse de saber o que
se passava na mente do abade para fazer o que fez. Não
esqueceu da violência, mas tampouco desejou um acerto
de contas. Se deixou levar pelas urgências. Era preciso
sobreviver à cidade e, mais ainda, contornar os desafios
mais imediatos: a fome para matar, um teto para se
abrigar e um trabalho para se sustentar. O ressentimento
foi ultrapassado pelas necessidades, embora descobrisse
que o desejo de reparação poderia ser uma semente
adormecida pronta para brotar em meio ao deserto da
existência.
Quando se dirigiu à Tapera para visitar o pai, temeu
encontrar Luzia. A imaginava cheia de mágoa por sua
fuga, por ter interrompido o sonho de vê-lo formado na
escola do mosteiro, por ter subtraído o dinheiro que ela
havia economizado às custas de privações. Temeu os
próprios sentimentos, afinal se ofendeu com as dúvidas
que ela devolveu à sua confissão sobre os abusos que
sofreu. Deixou a aldeia carregado de mágoa por todos os
maus-tratos recebidos e pelo que Luzia não conseguia
expressar.
Remoeu inclusive a ausência de notícias sobre sua
busca. Luzia e pai Mundinho pareciam ter desistido dele.
Enquanto esteve na casa de Joaquim, não teve
informação de que o procuravam, nem mesmo de que
quisessem saber onde vivia. Ao deixar a casa de
Joaquim, escutou de Jandira, num rompante de
humilhação, que ele não era irmão do marido, mas o filho
rejeitado de Luzia. Conhecia a história do seu
nascimento, de como Alzira o coou com a própria roupa
para que não morresse afogado no Paraguaçu. Não
imaginava que a indisposição de Jandira com ele fosse
grande a ponto de ela inventar uma mentira tão grande
para o ferir. Num primeiro momento, pensou em tirar a
prova da história junto a Joaquim — Luzia era sua mãe?
—, mas o orgulho o impediu de buscar uma explicação,
restando-lhe ecoar as palavras implacáveis em sua
consciência.
O regresso ao Paraguaçu lhe devolveu um mundo
perdido. Não sentiu vontade de evocar as ausências,
nem de se lamentar ou obter reparação.
Pai Mundinho se mostrava fraco e o hálito guardava a
gravidade de seu estado. Talvez por isso estivesse
afetuoso como raras vezes tinha sido. Riram sem jeito da
inaptidão que Moisés demonstrava para o trabalho na
terra por estar com a cabeça nos livros e os sonhos
navegando o rio. Naqueles instantes a tristeza dos anos
habitava o passado e não provocava o mal-estar de
antes. Ainda assim, Mundinho desejou o perdão por ser
incapaz de compreender que aqueles eram valores
criados por outrem. Se o mundo poderia ser diferente,
talvez fossem necessários outros sentimentos para
substituir os consagrados. Se rendeu às velhas emoções
por prever que sua hora se aproximava. Não queria
fechar os olhos sem levar consigo os males que
porventura tivesse infligido aos seus.
Moisés pousou os olhos em Luzia e naquele instante
não quis que sua mágoa continuasse a ter o lugar que
um dia teve. Foi além: no corpo frágil da mulher que
começava a envelhecer, a mulher que não havia
desejado ser mãe e que talvez tivesse motivos para tê-lo
rejeitado, continuava a despontar o espírito irrequieto e
magnético, jamais sufocado, nem mesmo nos anos de
medo e perseguição. Descobriu sentir falta de sua
presença inflexível demonstrando uma força difícil de
definir, sempre exigindo o melhor para que ele
aprendesse a sobreviver. A imagem de Luzia equilibrando
a trouxa na cabeça, resistindo às zombarias, suportando
o fardo da vida nas costas e sem nunca deixar de se
levantar quando levada ao chão, era a única a perdurar.
Por isso mesmo voltou da aldeia, talvez
desconsiderando revirar o passado. Por mais que
reconhecesse o sofrimento a que tinha sido submetido, e
mesmo o impacto da sua decisão de se retirar da Tapera
do Paraguaçu quando era pouco mais que um menino,
lembrar seria reviver, e não estava disposto a atravessar
tudo outra vez.
Seria assim, não fosse o despertar da alma selvagem
atravessando seu corpo depois de percorrer os séculos.
A intuição o levou a descobrir que a incapacidade de
perdoar ou esquecer tudo que o mortificava era também
a necessidade de recriar a memória. Um monumento a
ser narrado ao tempo, celebrando a devoção em
oposição ao esquecimento, a transformação em
contraponto à constância. Era preciso preparar o inimigo
a ser devorado pela história.
A consciência remota, inscrita nos rios que percorriam
seu corpo, o fez parar na porta do mosteiro da cidade,
mais suntuoso do que o que havia sido queimado na
aldeia, quando se dirigia à praça onde a condução o
levaria para sua residência. Com a voz baixa e os olhos
domados por uma falsa consternação, se apresentou
como um ex-aluno muito grato por tudo que recebeu de
dom Tomás. Ouviu que o abade estava cada vez mais
debilitado e não recebia visitas. Mostrou os olhos úmidos,
a voz embargada e uma vulgar compreensão da
fragilidade de seu estado.
Sem se dar por vencido, retornou outras vezes, com
frutas frescas e depois com um livro roubado, anos antes,
da mesa da diretoria da escola do mosteiro. Fez questão
que lhe entregassem com um bilhete assinado por ele,
com palavras de preocupação com o preceptor. Esse
livro, o bilhete eivado de pieguice, e a descrição do
homem que retornava com regularidade à portaria do
mosteiro na esperança de ter a oportunidade de
reverenciar o velho mestre, tornaram o encontro
possível.
Moisés caminhou pelos longos corredores do mosteiro
com incontida admiração: as paredes ostentando
pinturas antigas, o assoalho de madeira nobre rangendo
com seus passos, os monges — como os que
atormentavam a vida da Tapera — andando em silêncio e
conjurando os próximos atos da guerra moral a serem
incutidos no pensamento do rebanho. Matar a imagem —
Moisés profanava em sua mente a linhagem de prelados
exposta na parede — e prosseguir em direção ao ato
derradeiro.
Quando transpôs a porta do quarto de dom Tomás,
observou o ambiente abastado de madeira negra,
cortinas pesadas e lençóis de linho, como os lavados por
Luzia. A compaixão pelo trabalho exaustivo dela,
desgastando as mãos nos tecidos encardidos do
mosteiro, alimentava ainda mais o desprezo pela religião.
“Então é assim que vivem?” — fingir surpresa a si
mesmo, fogo aquecendo o metal onde o inimigo seria
cozido. Dom Tomás não era o mesmo, à exceção da
respiração ruidosa preenchendo o ambiente. Um monge
havia deixado o recinto sob a ordem da mão trêmula de
seu superior e fechado a porta.
De um lado havia a expectativa do perdão. Do outro, o
compromisso com a vingança. Sem preâmbulos, dom
Tomás quer saber as razões para Moisés insistir em
encontrá-lo.
“O senhor sabia desde o encontro no restaurante
quem eu era, embora fingisse não saber”, diz de maneira
direta.
Nesse ponto dom Tomás silencia e depois tosse,
encurvando o corpo para ressaltar a própria debilidade.
Diz ter necessitado de tempo para refletir, se aconselhar
com Deus e decidir como pedir perdão. Tenta travestir
seus atos com o manto da inocência ao tratar seus
sentimentos como genuínos e por vezes mal
interpretados. Insiste em chamar Moisés de “meu filho”,
antes de ser advertido para o chamar pelo nome.
“Por que o senhor agiu daquela forma? Eu era apenas
uma criança” — Moisés procura os olhos do abade, que
não se desviam.
“Eu queria cuidar de você. É verdadeiro que era meu
preferido, o filho que Deus havia mandado para mim.”
“Um filho para servir aos próprios propósitos de quem
o concebe” — Moisés diz algo pior.
“Não!”, dom Tomás reage. “Desejei o melhor para
você.”
Se Moisés pudesse olhar para trás, muito além do que
viveu ou do que seus pais, avós e bisavós viveram,
talvez, entre os tupinambás, é provável que pudesse
conhecer a contenda entre o matador e o cativo a ser
devorado, antes do ato de morte. Todo o drama, debate e
sacrifício, e a discussão calorosa girando em torno da
honra do guerreiro.
“Veja como você anda. Olhe seus trajes”, disse dom
Tomás. “Enquanto se educava, eu sonhava com você
como professor, engenheiro, diferente dos miseráveis
moradores ao redor do mosteiro. Mas você foi trabalhar
num restaurante como um serviçal…”
Moisés considera não prosseguir. A crueldade do
discurso enfraquece sua determinação e deixa seus olhos
marejados com a lembrança da tormenta, dos pesadelos,
da enurese que deteriorava ainda mais a relação dele
com Luzia. Mas uma flecha atravessa seu peito para
despertá-lo dos desenganos a guiarem o debate.
“A vida não acabou para mim e só estou aqui diante
do senhor para que eu mesmo consiga prosseguir”, diz
com um tom de voz mais alto.
“Abra aquela gaveta, meu filho”, dom Tomás diz,
reproduzindo o mesmo gesto de antes com a mão que se
encontrava livre, a mão sempre disposta a dar ordens
aos subalternos. “Traga a caixa que está logo à frente.”
Moisés cogita não se levantar, temendo romper o
encanto da reparação, mas é movido por curiosidade, a
necessidade de escrutinar tudo. Abre a gaveta arrumada
com esmero e retira uma caixa polida. Deixa-a próxima
às mãos do abade.
Dom Tomás retira um envelope, e dele cédulas de
dinheiro. Põe tudo sobre a mesa e empurra o volume
devagar em direção a Moisés, que não se cobre de
vergonha, nem de indignação. Apenas se concentra para
não perder o controle da situação.
“É para você se arrumar na vida”, diz dom Tomás
antes de suspirar visivelmente cansado. “Para mostrar
minha preocupação.”
Moisés continua a observar o abade e cita o nome das
crianças que atravessaram a porta da sala da diretoria. O
velho sacode a cabeça como se não quisesse escutar,
mas confessa que sim, que não quis macular, mas
iluminar a vida das crianças conforme os desígnios de
Deus. Ele recorda que cada toque era desonra, mancha
que não se apaga com o tempo. As vozes travam um
crescente duelo até que dom Tomás baixa a cabeça.
“O senhor se sente pronto para morrer?”
“Eu estou velho, mas ainda tenho tempo. Por que
deveria estar pronto para morrer?” Parece aterrorizado.
“Porque seu corpo fede, dom Tomás. É como se já
estivesse morto. Viver atormentado pela culpa é morrer
um pouco a cada dia. Seu tempo acabou.”
3

Ao notar a projeção de uma sombra extensa, Luzia se


aproxima da janela. Ela observa uma coluna de fumaça
em movimento encobrindo o sol. A corrente negra se
ondula e atravessa o céu sobre o telhado, forma uma
ponte ao percorrer o ar ligando as margens do
Paraguaçu. O cheiro da queima invade a atmosfera,
enquanto vozes se acumulam pelos becos formando uma
algazarra sem fim.
Um arrepio percorre o corpo de Luzia. Por mais que
guarde o encanto pela dança e pelo crepitar do fogo,
sabe que, no fim, o dedo será apontado na sua direção.
Ainda assim deixa a casa e segue em busca do foco que
originou o incêndio. Se mantém à distância, observando
homens e mulheres unidos tentando apagar o fogo.
Percebe a formação de uma corrente de moradores ao
redor da construção para conter a destruição. Não
guarda lembrança de algo parecido ter acontecido antes.
Só houve união na Tapera quando formaram uma
pequena turba após a morte de Edite para acusá-la e
exigir sua punição. Agora, de mão em mão, passavam os
recipientes mais diversos — panelas, baldes, outros
objetos em reúso — carregando a água do Paraguaçu
para debelar o fogo.
Luzia então sente a visão turva e as pernas se
enfraquecem a ponto de seu corpo quase desabar. Seus
olhos estão fixos no mosteiro ardendo em chamas.
Ela se apoia na parede de um casebre abandonado e
as pessoas não parecem notar sua presença. Mulheres
correm aflitas e colaboram com os homens na tentativa
de extinguir a chama. Há os que contemplam a tudo
perplexos, e ainda os que esperam pelo porvir,
agradecendo secretamente o prenúncio da vida sem a
Igreja. Mas Luzia não mantém contato com nenhum
desses grupos. Sua carne e seu sangue são trespassados
por perturbações de outra ordem. Pela manhã, percorreu
as vielas carregando a trouxa de roupa. Não parecia
resignada como de outras vezes. O corpo estava em
brasa, estalando, alimentado pela ira, e a trouxa pesava,
uma âncora, o que a fez demorar mais tempo que de
costume até o destino. Pesava como se naquele fardo
estivessem todos os lençóis lavados nos últimos trinta
anos, além das transgressões e da crueldade que
habitavam o mosteiro.

Mais cedo, enquanto caminhava com a trouxa, Luzia foi


assaltada por muitas imagens. Uma delas era a do
recanto do rio onde lavava a roupa tingido de sangue.
Por um tempo acreditou ser culpa dos males que
carregava, sem cogitar outra motivação. Tentou afastar o
mal rezando com mais frequência, pedindo a Deus que
mantivesse longe de sua vida aquela aparição. Sem
resposta, começou a considerar que o sangue vertia de
estigmas que não conseguia ver. O rio, as árvores
derrubadas para ampliar o plantio de cana, os pássaros
aprisionados pelos alçapões dos homens e meninos que
os vendiam na estrada, os peixes anunciando o
desaparecer. Talvez fosse a chaga do mundo, e Luzia era
incapaz de estancar a ferida.
Conformada, não contou a ninguém sobre o que via.
Prosseguiu com a lavação e frequentando as missas. Se
benzia quando dobravam os sinos e a ave-maria tocava
no rádio da cozinha. Precisava do dinheiro do trabalho, e
qualquer deslize identificado em sua confissão faria a
revelação se voltar contra ela mesma.
Foi assim que ela prosseguiu com a labuta. Para os
lençóis mais encardidos usava barrela. Fervia os tecidos
num caldeirão alimentado por uma fogueira no quintal;
deixava para quarar à espera do branco imaculado
exigido pelos monges. Não conseguia deixar de pensar
em sua mãe à espera da graça de uma descendência
cada vez mais clara para se redimirem da miséria.
Pudesse embranquecer os filhos como se alveja um
tecido, ela teria feito. Se antes Luzia considerava um
desatino o delírio que a levou à desonra, diante das
dificuldades acentuadas pelos anos passou a considerar
os sonhos da mãe sintoma da crueldade de seu tempo.
A mãe elevava as mãos ao céu à espera da graça, sem
nunca a alcançar.
Remoendo o passado, Luzia tremeu no jardim do
mosteiro esperando pelo pagamento. Ensaiava em
silêncio o comunicado a ser feito sobre sua decisão de
não lavar mais a roupa do mosteiro e lhe veio a imagem
das roupas de criança no cômodo usado pelo abade.
Observou aquele achado com estranhamento. Depois se
agitou com o vaivém de meninos a caminho da sala do
abade. “Provável que fosse sempre assim. São demônios
e já não se interessam pela escola.” Mas as acusações do
Menino retornaram, semeando a dúvida.
Antes que viessem até sua presença, e Luzia pudesse
dizer, controlando a indignação, que não lavaria mais a
roupa, ela se ocupa de evocar os fatos da última semana.
Se sentia indisposta, não gozava da mesma energia do
passado, embora a necessidade de trabalho
permanecesse. As mãos doíam nas manhãs de inverno
depois de encontrar a água fria do Paraguaçu. As
mesmas mãos empunhavam o pesado ferro de passar
para livrar os tecidos dos vincos e amassados. Mas Luzia
não guardava o interesse de antes pelas coisas do
mosteiro. Entrou e saiu distraída dos cômodos, com a
certeza de que havia se tornado invisível.
Enquanto recolhia as peças que seriam lavadas,
percebeu a porta da sala do abade entreaberta. Se
certificou de que estava vazia. Provável que fosse a hora
das preleções aos monges e ela aproveitou para recolher
o que podia antes do fim do dia. Em meio à distração, os
pensamentos percorrendo veredas incontáveis, ela abriu
a porta do banheiro para retirar as toalhas.
O abade esfregava as costas de um menino durante o
banho e voltou o rosto para trás, enquanto Luzia fechava
a porta tomada pela surpresa.
Num primeiro momento, Luzia sentiu vergonha de ter
invadido o espaço por aparente desatenção e deixou a
sala sem as peças recolhidas. Mesmo com o andar lento,
ela conseguiu avançar até o cômodo seguinte. Quando
dom Tomás surgiu no corredor para se certificar sobre
quem havia deixado o recinto — uma corrente de ar
fechara a porta esquecida entreaberta? —, Luzia se
encontrava num ambiente abafado, ofegante, desejando
abrir a janela, mas sem coragem para emitir ruído algum.
Aos poucos a vergonha ficou em segundo plano. As
confissões de Moisés voltaram precisas, plenas de
sentido, enquanto sua incapacidade de perceber o que
ele dizia e o fato de ainda o acusar de mentira deixaram
seu corpo mais encurvado e abatido.
Restou a certeza de que havia falhado de maneira
desprezível. As lembranças da impaciência, da violência
dos castigos, das mentiras sustentadas até sua partida
para que ele não conhecesse sua exata origem
retornaram intactas. E veio mais: os pesadelos que o
atormentaram, os lençóis empapados de urina, o
desinteresse pelo estudo. A vergonha não tinha mais o
mesmo sentido de minutos antes, mas era agora uma
flecha a atravessar seu peito. Luzia foi incapaz de tratar
a revelação de Moisés sobre sua desonra como uma
dúvida. Pelo contrário: lançou sobre ele a certeza da
mentira — sem hesitar por um instante —, tão confiante
se sentia nas virtudes da Igreja.
Na manhã antes do incêndio, Luzia continuou a remoer
a revelação que a havia atormentado durante os últimos
dias. Por fim, quando dom Tomás se aproximou, ela se
cobriu de coragem para fazer o anúncio:
“Eu não vou mais lavar a roupa do mosteiro.”
Ele quis saber por quê. “Não posso mais”, Luzia
respondeu, “já não tenho a saúde de antes” — e inexistia
inverdade na sua resposta. Só não conseguia dizer o que
a sufocava. Na correlação de forças com a Igreja sabia
estar fadada à derrota. O abade tinha a aldeia nas mãos
e poderia fomentar a perseguição de Luzia, como havia
ocorrido em anos idos, e seu pai poderia ser privado de
trabalhar a terra.
Dom Tomás não insistiu. Talvez já esperasse que a
lavadeira abdicasse de seu posto. A lavação de Luzia não
tinha o mesmo esmero de outrora. Pediu então que
esperasse pelo pagamento. Ela permaneceu de pé
observando o mosteiro à sua volta. Anos percorrendo o
edifício à exaustão sem receber nenhuma palavra de
gratidão. Se tratava de sua obrigação, afinal era paga
para tanto, e não havia por que os monges agradecerem
por um trabalho contratado. Desnorteada, caminhou
pelos corredores à procura do salão onde tinha
encontrado o Menino depois de tê-lo perdido de vista.
Mas, em vez de encontrar o salão, Luzia subiu a
escada e terminou por entrar num dos cômodos. O calor
era grande, e quase sem ar, abriu a única janela do
ambiente. O voal da cortina envolveu seu corpo e uma
revoada de maritacas emitiu sons estridentes. Enquanto
as seguia com olhos e sentidos, notou sobre o parapeito
da janela um olho-de-fogo-rendado. Luzia ficou
paralisada pela raridade do pássaro, segurando a
respiração para não o espantar. O animal inclinou a
cabeça em busca de um ângulo, devolvendo o olhar
curioso, como quem tivesse descoberto uma espécie
nova.

Enquanto o fogo se alastra sem controle, um pequeno


grupo de moradores a cerca. É quando têm início as
acusações, os insultos, e ela, percebendo o perigo,
começa a se afastar apressando os passos.
“A feiticeira que queimou a igreja!”, uma mulher grita,
passando a perseguir Luzia acompanhada de uma turba
sedenta de vingança pelo que perdiam. Gritos, palavras
de ordem, uma pedra, outra, outra, uma saraivada
atravessa o ar e duas atingem sua corcunda.
Luzia cai abatida, certa de que chegou a sua hora.
4

Maria Cabocla encontra Luzia encolhida no chão


enquanto os agitadores vociferam acusações contra a
irmã. Não nota que ela está agarrada ao vestido de Edite,
que encontrou durante a caminhada. Os olhos estão
úmidos e brilham dominados pelo medo. A boca se abre,
seca, e o corpo se sacode como se estivesse em pleno
transe. Observa que a irmã tem um corte na testa, além
de um ferimento no joelho. Provável que tenha se
desequilibrado tentando fugir da perseguição. Maria
Cabocla sente que precisa ajudar Luzia a voltar para
casa, mas está paralisada pelo ódio que transborda da
face do povo da aldeia.
Percebe o pavor comedido nos olhos de Luzia e corre
para buscar o pai, a mãe, os irmãos, alguém que ajude
no resgate. Ao ver Maria Cabocla correr sem nada dizer,
Luzia se sente abandonada e começa a gritar em pânico,
não por estar diante do ódio, mas por estar diante dele
sem alguém em quem confiar.

“Tá pensando na morte da bezerra, mãinha?”, Noel


pergunta interrompendo Maria Cabocla, que parece
dispersa. Ela permanece inerte diante da mesa, os grãos
de feijão na mão direita, a boca contraída, os olhos fixos
num ponto indistinto, transpondo as paredes da casa de
alvenaria. Desperta, despeja os grãos na panela e se
volta para o filho, abandonando os próprios
pensamentos:
“Já vai trabalhar?”
Ele assente com um gesto e pede a bênção antes de
sair. É o último a deixar a casa naquela manhã, e Maria
Cabocla compreende que qualquer dia eles a deixarão
em definitivo. “Deus lhe abençoe”, diz antes de retornar
à separação do feijão dos restos de palha da casca e
pedriscos que se juntaram durante a batida no terreiro.
Os pensamentos flutuam e avançam feito aragem
adentrando janelas e portas, da primeira à derradeira.
Maria Cabocla decidiu economizar o botijão de gás
porque o cozimento do feijão leva tempo demais. Separa
uma parte da lenha empilhada no canto do quintal e
acende o fogo para assegurar o cozimento. Nos últimos
meses, retornava ao evento da infância com relativa
frequência. Antes não havia tempo para se deter em tais
fatos. Os problemas se avolumaram com os anos, sendo
que os novos soterravam os de antes. Viúva, e com os
filhos cuidando dos próprios destinos, os dias passaram a
se estender e vez ou outra o passado invadia o agora.
Mãe, pai, irmãos, anos incontáveis e sem nenhum
protesto de sua parte. Hora de se acertar com o tempo, e
ela avança em busca dos detalhes que permitirão
compreender o que precisa ser entendido.
Desde sua partida da margem do Paraguaçu com
Aparecido, Maria Cabocla não tornou a encontrar Luzia,
embora estivesse nos seus planos — porque ainda cultiva
a esperança. De alguma maneira rever a irmã significa
voltar ao episódio do desaparecimento de Edite. Para
entender o que se passou, Maria Cabocla precisa
assimilar também as implicações do ocorrido na vida da
família. Intenta revelar a confissão da desaparecida —
“Será que ela contou a Luzia?” — sobre a qual havia
silenciado, assolada pelo medo de piorar o que já era
intolerável.
Enquanto o reencontro não ocorre, volta a rememorar
a roupa de Edite para os dias de missa. O vestido que um
dia desejou e que da última vez que viu tinha se tornado
um farrapo. O tecido estava rasgado e queimado onde
antes despontavam flores de diferentes cores. O corpo
leve de Edite andava desajeitado sob o tecido, mas
transmitia a graça que Mariinha e Luzia cobiçavam. Ver o
objeto destruído transformou o desejo em repulsa.
Depois sempre recordaria das vestes como uma
mortalha, o presságio de que a morte se mantém numa
espera velada para prevalecer sobre a vida.
Quando a chama começa a crepitar no fogão a lenha,
o fogo se transmuta em amuleto, criando um campo de
ilusão responsável por levá-la ao dia em que muitos
destinos foram decididos.

Eis que diante da família ocorre algo que se pode chamar


de julgamento. Mundinho se levanta indignado com as
acusações, as responde com rudeza, amparado por Alzira
e pelos filhos. Antes caminham todos, a família e a gente
ensandecida da Tapera, para o local onde o vestido foi
encontrado. As irmãs seguem próximas e, apesar da
idade, Luzia marcha resignada em direção à vereda onde
ela, Zazau, Edite e os antepassados comuns, os da terra,
os cativos, os estrangeiros, caíram em desgraça. Alguns
dos presentes alimentavam a esperança de encontrar a
menina. Outros vaticinavam a tragédia. Não encontram
nada senão rastros de animais e de pés pequenos —
crianças? —, além das marcas do fogo na roupa
confirmando a tese de maldição.
Luzia está perplexa e não responde ao inquisitório, não
se sabe se por incapacidade, se por protesto. Parece
obstinada a nada entregar, não porque saiba o que de
fato aconteceu, mas por não poder explicar o que sente
sem ser incriminada pela ignorância alheia. Sua
resiliência é malvista e encarada como atrevimento de
menina sem educação. Por isso, Maria Cabocla se sente
desencorajada a falar. Tudo o que os pais dizem é
refutado com mais Deus, mais religião, mais explicações
mágicas. Ela teme que seja verdade — Edite está morta?
— e se retrai ainda mais no segredo. Não há corpo nem
restos mortais, então ela ainda pode ser encontrada, é a
tese que prevalece. Poderiam ter sequestrado a menina,
ou mesmo um animal feroz poderia tê-la levado para
longe não fossem as marcas de fogo no vestido de flores
berrantes.
Em meio ao suor, ao choro e ao ranger de dentes da
mãe de Edite, e sem que ninguém se prontifique a
convidar o abade para arbitrar o que fazer, o povo marca
Luzia para sempre como a encarnação do Mal. Dão corpo
ao inimigo para manter vivos os mistérios que são
incapazes de explicar. Se Deus está na cruz, nas imagens
dos santos na igreja, na contrição dos monges, o Mal
precisa ter um corpo. Ninguém melhor do que a menina
caminhando para a vida adulta, com sentidos para
prever o fogo — não apenas o fogo, mas também a
chuva, as cheias e as marés. Enquanto não lhe
ensinavam, reconhecia sua habilidade como uma
brincadeira, que era um pouco magia, porque fora assim
que acontecera com os que caminharam naquela terra
antes e carregaram o que poderiam chamar de
sensibilidade.
O que está aprisionado no peito de Maria Cabocla, lá
mesmo fica, não há remédio para a condenação. Anos
depois, ela leva a amargura do que passa a considerar
fraqueza por não ter pelo menos tentado dizer o que
sabia, ainda que não acreditassem. Como contar que um
jovem, cria dos poderosos, e que andava a cavalo por
aquelas paragens, poderia estar envolvido no
desaparecimento? A comunidade o conhecia e o aceitava
entre suas meninas por ser quase branco e ter parte com
os que mandam no mundo. Esse jovem exerceu fascínio
sobre Edite e a atraiu com quinquilharias, sem que a
aldeia, encorajada a vigiar o Mal sem corpo e sem rosto,
percebesse o perigo atocaiado.
Edite mostrava as ofertas a Maria Cabocla e Luzia e as
escondia na mata para não ter que dizer à mãe de quem
as recebia. As meninas riam, brincavam, sem, contudo,
compreenderem as intenções por trás daqueles gestos
de aparente generosidade. Luzia havia conhecido o
jovem naquele momento e mais tarde se recordaria de
sua presença sem que nenhuma dúvida sobre sua
participação no destino de Edite fosse aventada. Sua
presença não durou mais que umas semanas, mas foi
suficiente para contribuir com a devastação de muitas
vidas.
“O que aconteceu a Edite?”, foi a pergunta
reproduzida à exaustão.
Talvez o jovem a tivesse levado para longe para que
cuidasse de sua casa, de sua família. Todos escutavam
histórias de meninas tomadas de sua gente para
satisfazer o desejo dos homens. Mas o mais provável era
que Edite estivesse morta, porque seu corpo, nunca
encontrado, guardava um segredo. Talvez estivesse sob a
terra numa cova rasa em meio à mata, e dessa prisão
jamais seria resgatada. O vestido foi queimado para não
deixar rastros do crime e confundir os que se deixavam
guiar pela cegueira das pregações.
Mas o povo da aldeia preferiu acreditar que ela vagou
pelos campos como uma tocha humana sem queimar
nada pelo caminho. Da combustão restou o vestido
reduzido a trapo. Acreditavam que quem transformou a
menina em fogo foi outra criança. Por um breve tempo,
Luzia, a menina, encarnou o conhecimento dos antigos e
desafiou o antes e o agora.

Maria Cabocla afastava a imagem da menina rodando,


correndo em chamas, acontecimento sem testemunhas
mas que por ser contado à exaustão se tornou
recordação coletiva cravada no imaginário da aldeia.
História transmutada em sonhos recorrentes que a
acordavam repleta de angústia, rezando preces para
afastar os maus espíritos e para que Edite encontrasse o
sossego onde estivesse.
Mas, ao despertar, voltava à imagem do jovem e de
sua presença estranha. Recordava-se de detalhes: o
olhar de desejo que também sugeria agressão; o jeito
presunçoso; os gestos pouco confiáveis anunciando a
tempestade que se sucederia. Após aquela temporada,
Maria Cabocla não o viu de novo. Poucos anos mais
tarde, ele retornaria sem que ela soubesse. Cortejaria as
virgens da aldeia e levaria algumas ao chão, dentre elas
Luzia, que não o reconheceu, marcando sua vida para
sempre.
5

Luzia ergue o rosto da terra para onde estava voltado e


retira uma porção de barro da boca. Tem o corpo fatigado
de trabalho e ressentido pelas pedras que se chocaram
contra suas costas, e mesmo assim encontra forças para
se levantar. Um pequeno grupo à sua volta brada
orações e maldições. Mas ela está resignada, afinal se
prepara há anos para o acerto de contas. Nesse exato
momento seu pai deve estar desolado no campo,
embriagado, retirando ervas daninhas crescidas onde
não há cultivo ou deitado sob a sombra do jequitibá à
procura de forças para voltar para casa. Passa pelos
pensamentos de Luzia que, antes do retorno do pai,
darão cabo de sua vida e não restará mais nada para
contar a história.
“Não quero morrer sem ver Mariinha”, é o pedido que
a atravessa com angústia enquanto se levanta. Ao
mesmo tempo deseja boa sorte ao Menino, onde quer
que ele esteja, sem conseguir se perdoar pela injustiça
de sua descrença quando ele confessou a violência que
sofreu. A facção carrega paus e pedras e brada furiosa.
Quanto mais fragilidade Luzia aparenta, mais
determinados parecem para o juízo final. Percebe que a
queda ou as mãos que a encontraram rasgaram sua
roupa, deixando um dos seios à mostra, o que a faz se
encolher na tentativa de recobrir sua nudez.
Luzia tenta, mas não encontra meios de deixar o
centro do círculo formado à sua volta. Sob seus pés está
a terra, a mesma terra por onde andaram viajantes de
muitos caminhos, a mesma terra de onde retiravam os
alimentos e onde recolhiam seus mortos. Ela observa
seus pés desnudos sem encontrar as sandálias, que
devem ter se perdido enquanto fugia da perseguição. Do
barro vermelho, teve a impressão de ver olhos
aterrorizados brotando feito cogumelos depois da chuva,
os olhos de Maria Cabocla quando a viu cercada pelas
mesmas pessoas no dia em que o vestido de Edite foi
encontrado.
Enquanto ergue o corpo, imagina uma coruja se
levantando do chão para percorrer a noite. Ave de mau
agouro — a aldeia diria —, e por trás da repulsa existe
também admiração. Toda vez que observa uma coruja se
levantar para encontrar o céu, Luzia se benze, e, no
entanto, não descansa os olhos até perdê-la de vista na
escuridão. Há dias Luzia retorna a uma das muitas
histórias contadas por sua avó Didita, depois por seu pai,
e que diz respeito às crenças dos pioneiros. Os antigos
guerreiros se recobriam com um manto de penas das
aves da mata que circunda a aldeia. Araras, carcarás,
canários-da-terra, sabiás, galos-da-serra, guarás,
maritacas, corujas e o olho-de-fogo-rendado,
emprestando seus ornamentos para vestir os eleitos. Nos
rituais de dança se tornavam grandes pássaros a alçarem
voo.
Se por dentro Luzia é uma candeia que aos poucos se
torna uma fogueira, por fora ela quer se cobrir com o
manto imaginário. Sem ter como escapar da emboscada,
só lhe resta encarnar a salvação e se libertar da fúria do
povo da Tapera. Quando se põe de pé, recebe outra
pedra no ombro. Não se curva à dor nem à morte, e
levanta os braços como as aves erguem as asas quando
se preparam para cruzar o espaço. Tem que assustá-los,
e para tanto é preciso fazer com que temam o
desconhecido. Os seios estão descobertos e quando
percebe ri sem controle. Quem pudesse ver Luzia
admiraria a efígie libertária. Gira o corpo o mais rápido
que pode, agita os braços e parte para cima do rebanho
formado por homens, mulheres e crianças. Grita, e o som
penetrante clamado por vozes de todos os tempos
paralisa a algazarra, mobilizada por preceitos difundidos
através dos séculos. Alguns parecem despertar do
transe, embora não se redimam da perseguição
implacável. Recuam porque despertaram “o Mal” e se
sentem desafiados por um espírito perigoso. Alguns
correm para longe, outros se afastam devagar,
atordoados, e o agrupamento se desfaz.
Após retirar a terra da roupa e de fazer um inventário
dos ferimentos deixados em seu corpo, Luzia se afasta
sem olhar para trás, enquanto as labaredas que
consomem o edifício vão escalando o céu. Horas depois,
o som da sirene do carro de bombeiro anuncia o socorro
à Tapera, mas aí já é tarde demais: o mosteiro e a igreja
estão destruídos.
Nos dias seguintes Luzia não pensa no incêndio, nem
na pequena multidão prestes a castigá-la sem
julgamento. Se deixa invadir por algo a ser compreendido
como um regresso ao começo, a um tempo primordial,
sem memória ou narrativa. Passa a vagar pelas margens
do rio, por matas e estradas, por vielas, de cabeça
erguida e sem o temor de antes. Mundinho estranha a
mudança de comportamento da filha, mas não a
considera má. Sem nada dizer, sente agora Luzia liberta
da religião, assim como ele poderá estar desobrigado de
atender os cobradores de impostos.
Nesse vagar Luzia recolhe plumas e penachos, penas
de toda sorte encontradas nos quatro cantos da terra que
conhece. Guarda tudo num grande saco de aniagem e o
deixa escondido longe dos olhos do pai e de quem mais
chegar à casa. Sem rezas e lamentos, sem missas e
procissões, Luzia pode olhar para dentro para encontrar
seu âmago. Depois da morte do pai, do retorno dos
irmãos e, por fim, de suas partidas, ela retira o fardo de
penas guardado sob a cama e as espalha pela casa,
imaginando como coser o manto.
Luzia pretende se vestir da história e decide refazê-lo.
Não há fotografias ou ilustrações para guiá-la em seu
intento, então lhe resta a imaginação. No manto pensava
quando viu Maria Cabocla se emaranhar num ninho de
cascavel no meio da mata. Os sonhos iniciais
permaneceram ao largo, e a religião se entranhou
profundamente na sua vida. Os sermões dos padres a
envolveram e a tragaram, um mundo perigoso dividido
entre o bem e o mal, e estar ao lado da Igreja era estar
ao lado dos bons. Não havia meio-termo nessa teologia
do medo. Mas os segredos guardados entre as paredes
do mosteiro, as injustiças reveladas com o cair do véu da
farsa, lhe deram a oportunidade de examinar a vida para
poder decidir para onde prosseguir. Habitando o desterro
do mundo, e em meio às penas espalhadas pelos quatro
cantos da casa, Luzia decide preparar o manto.
É depois da decisão que passa a encantar abelhas
selvagens para colher sua cera. Encera o cordão de
algodão. Trança uma tela à moda jereré das malhas dos
pescadores da Tapera. Pena a pena, a peça ganha forma
e cores num trabalho delicado de inteira entrega que
suspende o tempo na aldeia.

Enquanto Luzia se ocupa da feitura do manto, Maria


Cabocla retira uma peça de tecido do cesto de palha de
buriti em sua casa em Água Negra. Não recorda quando
o adquiriu, mas deduz ter sido há pouco tempo. É um
tecido florido com estampas semelhantes às do vestido
de Edite. Se a polícia não tivesse levado a roupa para a
perícia, talvez a tivesse escondido para si sem que
ninguém soubesse. Contudo, a única herança daquele
acontecimento é a memória, e nela se apoia para poder
refazer o que a assombra.
Transfere as linhas do desenho para um papel de
embrulho e o recorta com uma tesoura nova, comprada
ao receber a pensão do último mês. É um vestido
simples, sem detalhes, e por isso fácil de ser costurado.
Maria Cabocla dispõe de linha, agulha, e das mãos para o
trabalho. Alinhava com suavidade para depois coser
pequenos pontos definitivos, deixando o vestido próximo
à perfeição.
Enquanto conclui a costura, Analice surge
acompanhada do marido e das filhas. Maria Cabocla
interrompe o trabalho para contar sobre a viagem à
Tapera e sem perceber uma das netas se aproxima e
pergunta: “É para mim, minha vó?”. Maria Cabocla ri sem
jeito, explica que aquele é um presente para outra
criança. A menina esboça um beicinho de decepção. A
avó promete escolher um tecido e costurar dois vestidos
novos ainda mais bonitos para as netas. Depois torna a
costurar enquanto conta sobre o encontro com a família.
Com os olhos embotados de nostalgia, fura a ponta do
dedo na agulha. Uma gota de sangue mancha o vestido e
ela interrompe a conversa, desapontada por seu
descuido.
Luzia leva o polegar esquerdo à boca e suga o dedo
machucado pela agulha de tucum. Interrompe o trabalho
e observa o manto emplumado enquanto a poucos
passos de casa o rio segue em direção ao oceano. Há
meses se dedica à feitura da peça, ocupando seus dias
de maneira inabalável. De vez em quando pensa em
Joaquim e na tarefa de terra da família, se perguntando
se algum dia reconhecerão ser ela a herdeira do chão
trabalhado pelo pai. Mas ainda não é hora de retornar ao
lote, se preserva por não saber qual será sua reação
diante da recusa dos homens em deixá-lo.
Ao concluir a peça, Luzia passa os dias admirando a
composição suspensa num pequeno mastro de madeira.
A avó Didita contava que somente caciques e guerreiros
vestiam o manto emplumado; às mulheres cabia a arte
de costurar as penas. Mas ela é inquieta e o deseja, sem
pensar nas limitações impostas pelos homens. Aprecia
com vaidade sua realização.
Na Chapada Velha, Maria Cabocla corta o último ponto
da costura rente ao tecido. Ergue o vestido, e as flores de
tons claros lhe parecem mais graciosas do que as do
passado. Ela se dirige ao espelho repleto de manchas
escuras e estende o vestido contra o corpo. Não esboça
sorriso nem sinal algum de contentamento, apenas
aprecia sua obra, como se ainda fosse a criança que um
dia a cobiçou.
6

Uma mão pousa sobre o ombro de Luzia sem causar


desconforto pela proximidade. Moisés regressou, como
havia prometido. Ela faz um movimento para se reerguer
e o acompanhar para fora do mosteiro. Sente que precisa
protegê-lo daquele lugar e se apoia no seu braço para se
levantar. Os dois caminham juntos para longe da ruína.
Ela poderia falar muito sobre tudo que ainda não foi
dito, mas ainda assim prefere se abster de qualquer
manifestação. É minha natureza, reflete. Parece
conformada ao perceber que o Menino, diferentemente
do que ocorria no passado, não espera por um afeto.
Moisés cresceu e a criança que um dia foi permaneceu
em algum lugar do passado. O tempo seguiu seu
caminho e a ansiedade de se sentir amado se tornou
noutros quereres. Enquanto esteve distante, retribuiu à
vida a rudeza e o sofrimento que lhe foram dispensados.
Agora, prefere a recompensar pelos cuidados de antes
com sua presença na Tapera.
Ele não deixa de notar a sutil transformação de Luzia.
O semblante permanece sereno, livre da tensão que a
acompanhou durante boa parte da vida. A corcunda não
lhe parece maior nem menor, e nem mesmo sente
motivos para vergonha e piedade. Os vincos na sua face
lhe conferem um ar de mulher mais velha, embora ainda
esteja na meia-idade. A trança deu lugar a uma cabeleira
vasta, cacheada e grisalha, inspirando uma aparência de
descuido, mas também de liberdade.
Luzia se mostra curiosa e quer saber sobre o trabalho
de Moisés. Ele aproveita o súbito interesse e conta que
foi despedido — sem detalhes —, mas que tem uma
entrevista para um novo emprego assim que voltar à
cidade. Ela insiste em saber mais, pergunta se o novo
trabalho renderá dinheiro. Ele se evade a uma resposta
ao perceber que se encontram diante do rio Paraguaçu.
Saveiros, jangadas e canoas navegam à distância. As
poucas embarcações da aldeia restam abandonadas.
Moisés pergunta pela terra de trabalho e Luzia relata o
conflito ocorrido depois de sua partida há poucos meses.
Conta pormenores do enfrentamento, confessando não
ter retornado ao lote enquanto espera por notícias de
Joaquim sobre o tal comprador. Luzia está confiante ao
lado de Moisés e mais à vontade para contar até os fatos
vividos por seus bisavós. Se mostra determinada a
reaver a terra, e seu argumento simples — “Sempre foi
nossa” — é suficiente para dissipar qualquer dúvida
sobre a legitimidade de sua reivindicação.
Ele quer saber se deve ir até a roça, se identificando
como da família e conhecedor dos direitos, para
convencer os invasores de que a terra é posse deles.
Luzia permanece em silêncio e sente uma ponta de
emoção ao perceber a preocupação de Moisés com os
assuntos da casa. Depois, promete pensar, e reitera a
confiança em que Joaquim trará enfim boas notícias. De
qualquer sorte nada impede que eles caminhem nos
próximos dias para o tabuleiro.
Ao entrar na sala de casa, ele se depara com o manto
de penas cobrindo uma estaca de madeira. Se aproxima
da peça, curioso para saber como e por que Luzia fez.
“Parece fantasia de Carnaval”, ele diz sorrindo, e Luzia
conta ter recolhido as penas durante meses para ter a
quantidade necessária para compor o manto. Não o fez
com nenhum propósito, mas talvez quisesse recordar a
bisavó, o pai e as histórias que ouviu na infância. “Era
roupa dos índios”, diz, e explica que se ocupou da
costura para o tempo passar mais depressa.
Então, ela colhe raízes no quintal e prepara uma
refeição para os dois. E deseja que o Menino “se sinta em
casa, como nos velhos tempos”, enquanto capricha nos
cuidados. O cheiro de café coado e a luz da manhã
envolvem Moisés no espaço que nunca abandonou por
completo. Ele senta na soleira da porta e o olhar avança
além da casa. Enumera as lutas travadas nos últimos
anos e se sente aliviado como um soldado que regressa
da batalha mais sangrenta de uma guerra.
Ao se levantar na manhã seguinte, Luzia não encontra
Moisés. Se põe a lavar a louça, tenta recordar os sonhos
da noite. A rede de dormir está no mesmo lugar. Ao abrir
a janela, ela o observa nadando no rio e só naquele
momento tem a certeza de que sua presença na Tapera
não era mais um devaneio. Sente o mesmo alívio que
sentia ao encontrá-lo todas as vezes que precisava saber
onde estava — isso é ser mãe? Estava além de sua razão
saber o que a fez rejeitar a criança ao nascer. Era um
mistério jamais desvendado. Um impulso incontrolável
que nasceu dentro de seu corpo abrigando outro corpo
que não foi querido, e precisava mantê-lo à distância
para sobreviver. Um corpo crescendo no seu sem
qualquer perspectiva de que ela conseguisse cuidar de
alguém, esmagada que estava por toda a vida. Mesmo
assim, de alguma maneira insondável até mesmo para
ela, Luzia era mãe. Lavar, cozinhar, pôr na cama, rezar
pela sorte, exigir que estudasse, castigar quando preciso,
ensinar o que considerava justo e bom. Em seu juízo isso
era ser mãe. Ainda que se sentisse incompleta nesse
papel por motivos que não poderia enumerar. Fez o que
era possível, sente um certo dever cumprido, mas não se
perdoa por não ter acreditado no Menino quando contou
sobre a violação, e por isso suportaria a culpa até o fim
dos seus dias. E enquanto vivesse faria o que estivesse
ao seu alcance para se redimir.
E pôde se redimir muitas vezes. O procurou
desesperada pelo mosteiro quando se perdeu, até o
encontrar no salão do mar. Vigiou com cuidado e
responsabilidade todas as vezes que ele adoeceu.
Defendeu e protegeu quando ele foi atingido por uma
pedra dirigida a ela. Desejou sempre o melhor, tanto que
mal pôde esperar para pedir por uma vaga na escola da
igreja. Não eram poucos os sinais de dedicação
destinados ao Menino.
E havia também outro sinal guardado em segredo por
todos esses anos. Para ela, aquela era a marca mais
especial do seu afeto. Quando o recém-nascido
atravessou a noite, inquieto e sem conseguir sugar o
mingau preparado por Zazau deitada exausta na rede ao
seu lado, Luzia o carregou sem que a irmã percebesse
para o cômodo ao lado. Alzira estava na cama, os olhos
se abriram, mas sem reagir, tamanha a melancolia. Ou
talvez confiasse que o momento deveria ser apenas de
Luzia e da criança.
Ela deixou a alça do vestido cair e ofereceu o seio
esquerdo ao menino. Ele continuava com dificuldades
para sugar, mas ela estava mais paciente que o habitual
e persistiu na oferta. Luzia acreditava que seu rancor era
grande e era muito provável que o leite tivesse secado.
Feito a água que mina de um olho-d’água depois da
chuva, o leite ralo pingou e o menino mamou com tanta
avidez que tirou um sorriso desajeitado de Luzia. É o
mesmo sorriso sem jeito — murcho, envelhecido,
desdentado — desse instante em que observa Moisés
homem-feito se banhando no rio.
O leite — maná da vida — trouxe em definitivo o
menino ao mundo. Foi seu batismo.
Nos dias que se seguem, Moisés aproveita que Luzia
está na beira do fogão enquanto abana a brasa para
queimar a madeira, e diz que precisa lhe dar algo. Ela
para e escuta com atenção. Ele começa a falar, fazendo
muitos rodeios, buscando encontrar a melhor maneira de
realizar o que tanto queria, mas sem saber como.
“Luzia, quando fui embora eu levei todo o seu
dinheiro.” Ri, achando um tanto óbvio falar dessa
maneira, como se ela não soubesse o que ele tinha feito.
“Mas eu não esqueci do empréstimo.” E os olhos de Luzia
se movem contestando a palavra “empréstimo”.
“Trabalhei e consegui juntar algo para te devolver.”
“Não, não, não…”, Luzia protesta e dá as costas para
Moisés.
“Sim, Luzia. Aceite. Pode comprar qualquer coisa de
que precisa.”
“Não precisa. Estou bem”, replica demonstrando certo
orgulho.
“Aceite, Luzia, vai.”
Ela não olha para Moisés por reserva, mas sente nele a
expectativa de que aceite a oferta. Recusar pode
decepcioná-lo, e isso é tudo que não gostaria de ver
acontecer. Luzia estende a mão e recebe o envelope. O
guarda no bolso da saia, e continua a abanar o fogão até
que o crepitar das chamas lhe dê a certeza de que o fogo
se assenhorou da madeira.
Quando está sozinha conta o maço de notas e decide
sem pestanejar o destino do dinheiro. Dali a uns dias
estará no consultório do único protético da cidade para
orçar o custo de uma dentadura. Vai abrir a boca o
suficiente para a impressão do molde de sua arcada. Vai
realizar o desejo de ter dentes de novo para mastigar e
falar sem as limitações que a ausência lhe impõe — a
língua a encontrar os dentes incisivos quando pronunciar
“pe-dra”, “mun-do”, “la-ba-re-da”.
Ele lhe dará um pequeno espelho para que veja o
resultado. Luzia escancarará a boca, verá os dentes
iluminando onde antes era breu. Aproveitará a distração
do protético enquanto recolhe os instrumentos, e, com o
espelho nas mãos, se sentirá livre para esboçar um
sorriso outra vez. O primeiro, ao fim de tantos anos.
7

A mochila de Moisés está encostada na parede do quarto.


Dali a algumas horas embarcará na sucata que
transporta moradores da Tapera para a rodoviária de
Cachoeira. Mas permanece estendido na rede à espera
do momento de deixar a casa, pensando se deveria
prolongar sua estadia, ao mesmo tempo que é
atravessado por pensamentos que refluem feito a maré.
Sente um bem-estar duradouro quando Luzia permite
entrever, com discrição, os dentes novos. Só por isso não
se arrepende de ter recolhido o dinheiro ofertado por
dom Tomás na visita ao mosteiro. Verdade que, a
princípio, quis recusar, ofendido se sentia pela ousadia
do abade de imaginar que o perdão poderia ser
comprado. Ao mesmo tempo encontrou a resposta à
pergunta feita a Luzia anos antes: “O que Deus faz com
todo o dinheiro do imposto que os cobradores
recolhem?”. Levar o dinheiro consigo — não o maço
minguado, mas tudo o que existia — era um ato de
justiça.
Nada repararia o mal sofrido, e aquele montante muito
menos. Moisés não tinha pretensões de obter vantagens
e, se tivesse alguma crença, era capaz de considerar
aquele dinheiro amaldiçoado. No entanto, percebeu
serem as economias do abade importantes para ele,
tamanho o zelo — a segurança, as chaves que abriam e
fechavam caixas e gavetas. O dinheiro era um sinal do
poder que o velho homem julgava ter. Percebendo o
apego, Moisés regressou outras vezes para subtrair mais
e mais. Aos poucos, em meio às exigências, às ameaças,
em meio à lembrança dos abusos narrados com a
precisão da história de horror que era, dom Tomás entrou
em colapso. A presença permanente de Moisés exigindo
mais levou o religioso ao desespero. Assim ele foi
entregando tudo o que tinha — dinheiro, anéis, ouro —
até jurar não ter mais nada de valor.
Dom Tomás foi despido de todo poder pelo medo e
pela culpa, destituído da riqueza acumulada ao longo de
anos de injustiças e abominações. Se tornou alguém
comum, alguém como a gente da comunidade
desprezada. Ao se tornar um igual, estava pronto para
ser aniquilado. Moisés era da estirpe dos tupinambás, os
devoradores de inimigos — nativos ou estrangeiros —,
que tocavam o sagrado com seus rituais de vingança.
Transformavam o outro num humano — um semelhante
— para depois o roer com a voracidade do que
consideravam ser justo. Da última vez que encontrou
dom Tomás, Moisés avistou apenas um corpo oco, sem
viço e lume nos olhos, destituído do fôlego que pudesse
chamar de alma. Toda a razão tinha sido tragada pelo
embate com os próprios atos, a tentativa de se justificar,
expiar, sem um arrependimento genuíno. Almejava se
salvar do escândalo, mas se tornou um morto em vida.
Sua sina havia se cumprido.
O manto no canto da sala irradia o brilho natural das
penas, lançando faíscas na meia-luz da casa.

A sombra dos anos ronda a casa e Luzia termina por


juntar as folhas do quintal com um rastelo enferrujado
quase imprestável. Quando põe fogo no monturinho é
tomada por imagens que combinam sonhos, revelações
do salão do mar e o que viveu nos últimos anos. É certo
que o mosteiro foi queimado muito antes pelas mãos dos
cativos. Foram eles que se rebelaram contra a religião e
puseram fim ao tempo de terror. As histórias foram
sopradas pelo vento a Luzia, projetadas por luz e sombra
no resto das águas do Paraguaçu empoçadas no chão. O
que ela não sabia era que eles viveram em liberdade,
afastados da aldeia e sem a tirania dos religiosos
enquanto eram caçados pelo regime. Depois, privados da
terra com o avanço dos falsificadores de títulos, se
tornaram desterrados e voltaram pouco a pouco para
trabalhar nas fazendas da região do mosteiro.
Sobreviveram como puderam e continuaram a se unir à
gente que habitava a Tapera.
Luzia não sabia, mas intuía. Uma torrente de sangue
corre em seu corpo e nela viajam memórias antigas de
um tempo duro e impenetrável. A epopeia ancestral
navega o rio da vida e promove o despertar de sua
existência selvagem. Não a transporta para o passado,
mas conduz o que há de valioso neste tempo até o
presente.
Depois de comunicar que não mais lavaria a roupa da
igreja, Luzia aguarda o abade fazer o pagamento por seu
trabalho. Ela é tomada por uma disposição estranha de
percorrer os corredores do mosteiro. Quer chegar ao
salão onde encontrou o menino perdido e esteve envolta
em vozes e visões. Talvez seja a última vez que possa
experimentar o que viveu com liberdade. Mas Luzia está
inquieta e caminha para o andar superior. Naquele dia de
calor e rupturas quase se sufoca, a respiração se acelera
refletindo a ansiedade que a atravessa. Entra num
cômodo e abre a janela. O tecido leve e branco de uma
das camadas da cortina foi lavado por ela em algum
momento daquele ano. O voal se ergue com o vento e
envolve seu corpo. Luzia gira o corpo e levanta os braços
para se desvencilhar da armadilha. Os trinados dos
pássaros ecoam convocando os pensamentos para uma
aterrissagem, mas os olhos de Luzia encontram os olhos
do fogo e sua mão quase toca sua penugem negra. O
pássaro inclina a cabeça para admirar a espécie rara que
encontrou: Luzia prestes a se tornar senhora da vida e do
mundo por onde caminha.
Ao sair do cômodo, esbarra na mesa de canto, derruba
o castiçal, as velas apagadas rolam pelo chão e o tecido
da cortina se alonga ao vento, fazendo de Luzia algo
próximo a uma aparição. Enquanto se encurva, ela tateia
o piso à procura das velas caídas. As devolve de qualquer
jeito ao castiçal e avança para o ponto de partida, onde
dom Tomás a espera para repreendê-la — “O que a
senhora fazia lá em cima?”. Ainda assim, ela sairia liberta
e vivendo o mundo de uma maneira diferente.
Quando o monge jovem que habita o cômodo acende
a vela, não se dá conta do vento por chegar. O ar é
calmaria e ele adormece de leve na cadeira de balanço
com o rosário na mão. É assim que a brisa avança e no
segundo seguinte é vendaval. O lume da vela oscila, é o
fogo que dança e finge desaparecer para logo depois
ressurgir, ondulante e feroz. O tecido imaculado da
cortina se encanta e parece enfeitiçado pelo lume,
invocando que se aproxime. É uma língua em movimento
lambendo as franjas do tecido e sussurrando a palavra
“desolação”. A chama se reproduz voraz, alimentada
pelo sopro que vem da direção do rio.
O monge desperta envolto na fumaça e por muito
pouco não permanece preso à incandescência, que pode
ser um dos muitos nomes do fogo. Os religiosos se
evadem do edifício com agilidade — os mais novos
empurrando os mais velhos —, e a visão que resta é de
uma grande fogueira consumindo a matéria que um dia
foi árvore, foi terra, que um dia foi vida, até que reste
apenas a ruína.
Luzia volta seu olhar para a casa quando o monturinho
se torna um punhado de cinzas varrido para a terra.
Do seu interior, Moisés pergunta se Luzia quer falar
com Maria Cabocla antes que ele se vá. Caminham
juntos para uma área descoberta onde o telefone pode
funcionar. “É como um rádio que precisa ter uma boa
antena”, ele diz, e Luzia espera, arrancando alpiste do
chão para lançar aos pássaros. Alguém atende do outro
lado o telefone público — lá não há sinal para telefones
como o de Moisés — e depois de alguma espera dizem
que Mariinha não está em casa. Luzia estranha a irmã
não estar — “Ela vive pra casa” — mas parece não se
preocupar excessivamente — “Notícia ruim avoa”.

Maria Cabocla percorre a trilha em direção ao rio Santo


Antônio — “Sabe que esse rio corre para o Paraguaçu?”,
Noel perguntou um dia à mãe para afirmar que se
educou —, mas antes decide se desfazer de algo
importante. É o vestido costurado com cuidado num
tempo anterior, um exercício pessoal para compreender
a própria história. Ela coseu, passou e guardou antes de
viajar à Tapera para tentar rever o pai moribundo.
O fiar — pontos, nós, corte —, a mão e o tecido
entremeados alinhavavam o mundo estranho e por vir: e
não é assim que se tecem os dias passados e os dias à
frente? Costurar o vestido enquanto tinha em mente os
seus, Luzia, Zazau, Joaquim, os irmãos mais velhos, o pai
e a mãe. Edite. Nessa recordação, o que mais a
entristece é o inexistir de rastros da menina — para onde
ela teria ido? Por quem teria sido carregada? Quem teria
violado seu corpo? Quem a teria estrangulado ou
afogado? Quem a reduziu a uma mera lembrança
incorpórea dos que permaneceram na terra? —, e
quando não há, imagina o desfecho mesmo sabendo dos
riscos de incorrer em erros e injustiças. Para Maria
Cabocla o ponto-final é o vestido florido que Luzia
encontrou queimado. Alguém tentou eliminar todos os
vestígios do que ela foi, sem conseguir.
Por isso ela o retira dentre os guardados para colocar
na sacola de palha. Segue por veredas e matas em busca
de um lugar adequado para seu último ritual. Pensa em
enterrar a roupa que costurou e rezar o que lhe vier à
cabeça, mas ao se aproximar de uma pequena clareira,
ao se agachar e inspecionar a terra, descobre que não
deseja encerrar sua história sob um punhado de barro.
Então caminha mais um pouco, arrancando do chão as
ervas que crescem a esmo nas trilhas, avançando, uma
fera que reconhece o viver.
Diante do rio, Maria Cabocla retira o vestido da sacola
de palha sem olhar de forma detida — “Se olhar muito,
vá que desista” — e o estende na direção da correnteza.
A peça se inclina, o vento carrega por curta distância,
pluma, e repousa na superfície das águas. Depois corre,
oscila, o redemoinho a engole para sempre.
Está feito. Talvez encontre o leito e por lá se desfaça.
Quando se volta para retomar o caminho de casa
escuta um ronco alto. “Qual bicho?”, pergunta, e aguarda
por outro som. “É ronco de gente”, percebe, e anda com
vagar para não assustar quem dorme.
Não muito distante alguém estendeu uma esteira de
palha, onde uma mulher de lenço encarnado recobrindo
o cabelo e vestindo a roupa surrada de seu velho pai
dorme. Um chapéu, que Maria Cabocla reconhece,
descansa ao lado, onde se encontra também uma vara
de pescar e um pequeno cesto de vime. Ela então dá a
volta e observa a face da outra.
É Belonísia envolta num sono profundo — a boca, uma
pequena abertura revelando a escuridão que a habita.
“Vou chamar Belô”, decide. “Onde já se viu ficar
abandonada na beira das águas correndo risco de ser
mordida por gente ou bicho?” Ela se aproxima mais e se
agacha, mas constata um sono tão quieto que desiste de
chamá-la em seguida. Apenas senta para lhe fazer
companhia. Tomada por especial ternura, se deita ao seu
lado e sobre as folhas mortas, enquanto a luz do céu
rasga as frestas das copas se refletindo nas águas do rio
à frente.

Antes de o sol se levantar, Luzia põe fim à espera.


Decide subir o tabuleiro e retornar à roça do pai. Há dias
de calmaria — e nesses dias espera controlando a
impaciência —, mas há outros de grande fúria, e nesses
é melhor medir os passos, avançar e recuar conforme a
necessidade. Ela se veste, e sob o manto de penas a
corcunda desaparece. Luzia não pode evitar a risada ao
imaginar a loucura que será quando a olharem naquele
traje.
Ao levantar os braços, se tornará um grande pássaro
vindo do mundo dos mortos, e seus olhos refletirão o
fogo que é vida e a habita desde sempre.
Está consciente dos riscos que corre, mas é tomada
por um sentimento mais forte que não lhe permite voltar
atrás. Se sente disposta a enfrentar o mundo — seria
capaz de enfrentar tudo? —, e por isso se põe a caminhar
até a terra de trabalho.
Seu nome é coragem, e já não teme a morte.
Agradecimentos

À minha querida mestre Maria Rosário de Carvalho, que


um dia me apresentou aos pressupostos da vingança
tupinambá.
A Vital Jonas pela prece a são Vicente, que eu
desconhecia.
A Glicéria Tupinambá, que, movida pela paixão de
recuperar a história de seu povo, refez o manto dos
ancestrais a partir de um modelo do século XVI exposto
no Museu do Quai Branly, em Paris.
Renato Parada

Vencedor dos prêmios Leya, Oceanos e Jabuti, Itamar


Vieira Junior nasceu em Salvador, na Bahia, em 1979. É
geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela
UFBA. Seu romance Torto arado é um dos maiores
sucessos — de público e crítica — da literatura brasileira
nas últimas décadas, tendo sido traduzido em mais de
vinte países, adaptado para o audiovisual.
© Itamar Vieira Júnior, 2023
Publicado mediante acordo com MTS Agência.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da


Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.

Esta é uma obra de ficção. Embora inspirada na vida real,


qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos terá
sido mera coincidência.

capa
Elisa v. Randow
ilustração de capa
Aline Bispo
preparação
Márcia Copola
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Vieira Junior, Itamar (1979-)


Salvar o fogo / Itamar Vieira Junior. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2023.

ISBN 978-65-5692-416-8

1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.

CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : Romance B869.3

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
Ao amigo que não me salvou a vida
Guibert, Hervé
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224 páginas

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Reler Ao amigo que não me salvou a vida trinta anos


depois é como voltar a um mundo ao mesmo tempo
ultrapassado e perdido, com um sentimento contraditório
de alívio e nostalgia. Com esse mundo desapareceu a
ameaça da morte inexorável pela aids, assombrando as
relações sexuais e amorosas, mas também um projeto
literário para o qual a autoficção era um dispositivo de
consagração mais da dúvida do que do eu, no qual a
morte ocupava um papel central e reflexivo.
As bases desse projeto estavam enunciadas desde La
Mort propagande, romance de estreia de Hervé Guibert,
publicado quando ele tinha 21 anos: "[A morte] será
minha única sócia, serei seu intérprete".
A aids foi o ato final — e inesperado — em que o autor,
encarnando a morte, terminou por convertê-la em obra,
afirmação vital.
Embora centrado no autor, Ao amigo que não me salvou
a vida é composto de quem o cerca, da magia das
relações amorosas e afetivas, dos amigos (como Michel
Foucault e Isabelle Adjani) cuja identidade aparece mais
ou menos velada sob iniciais e pseudônimos. O livro
narra a descoberta da aids no corpo do autor, quando a
doença ainda era uma sentença de morte. A enfermidade
não permite ao autor reduzir o relato à afirmação de si, a
um conto de superação. A experiência literária é antes
"enunciação do indizível". Quando se olha no espelho, o
autor vê o "olhar do cadáver vivo". A obra é o exorcismo
da sua impotência. [Bernardo Carvalho]

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Desta feita, contudo, vamos achá-lo em um apartamento
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político que tomou conta do Brasil. Nos últimos anos,
Marcos Nobre se consolidou como um dos analistas
políticos mais agudos do país. Seus artigos e entrevistas,
publicados de forma regular em diversos veículos da
imprensa, iluminam a realidade brasileira com doses
generosas de clareza e complexidade. Neste livro, essas
qualidades saltam à vista. A pandemia, segundo o autor,
acentuou o traço decisivo do governo Bolsonaro: a
política de guerra, em que o adversário político se torna
um inimigo a ser exterminado. Em sua cruzada
autoritária, o atual governante visa nada menos que a
destruição da democracia. Como foi possível a eleição de
um líder assim? Que tipo de governo ele conduziu até a
chegada da Covid-19? O que a pandemia significou para
a maneira de fazer política que ele instaurou? Com
lucidez e sobriedade, Nobre responde a essas e outras
questões. Seu texto é um chamado ao diálogo. "A raiva
desmensurada que desperta o escárnio presidencial pela
vida precisa encontrar a sua devida canalização
institucional democrática", lembra o autor. É preciso
encontrar um modo de sair do impasse. Insistir na
intolerância contra seus apoiadores é aceitar o desejo de
morte que fundamenta o discurso do presidente. E isso
apenas fortalece a cultura bolsonarista.
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