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GIORGIO AGAMBEN Meios sem fim Notas sobre a politica Traducéo Davi Pessoa auté dito fe-Te eMart llie Ruel NIC) = LN Vettes sem tim 6, segundo 0 proprio Agamben, um conjunto de textos (escritos entre 1990/e 1995) que se referem, cada um @ seu modo, a um canteiro de obras Uf atentcliconimViCon inlet tone) publi- Cacgao do primeiro volume de Homo Sacer (O poder soberano e a vida eer Einaudi, 1995). Embora nao se consti- tuam propriamente como um dos vo- Ue Ne EMC Maton Co ONT e €nsaios de Melos sem fim antecipam os Seuss nucleos originais e apresentam alguns de seus “estilhagos e fragmen: Moka ENE) biopolitica; o estado de exceeao; o campo de concentracao; © refugiado; as sociedades democra- tico-espetaculares; a politica como a sfera dos meios puros ou dos PAHO Mas Meios sem fim é também o exerci- Clo de confronto visceral entre um fil6 Sofo Vivo e os mals urgentes aconteci- Mentos de seu tempo (0 que se passou Nos territ6rios da antiga lugoslavia; 4 situagaéo de um Estado sem povo, Como © Kuwait, ou de povos sem Es- tado, como os curdos, os arménios, os Palestinos e os judeus da diaspora; os eventos de Timisoara, na Roménia, (olUe) levaram @ queda do ditador Nicolae Ceausescu; os protestos na China, na Praca da Paz Celestial; a Guerra do Golfo), Todos esses eventos pedem um WWMoM Xefner=Tunleta tone [UCM nee EMT Clll a1 bilidade, E 6 esse novo pensamento que 0 leitor tem diante dos olhos nes- tes ensaios. Uma nova filosofia, como toda filosofia, surge somente no em- EeKecMcoln MoM anlela tele que a cerca e que Ele Ie Toye noeeyg ligdes. Os filésofos ExefONE- oft ecsire|Cect-telelnn} aprendé-las. Giorgio Agamben -Meios sem fim: notas sobre a politica Claudio Oliveira Copyright © 1996 Bollati Boringhieri editore Copyright © 2015 Auténtica Editora Titulo original: Mezzi senza fine: note sulla politica Todos os direitos reservados pela Auténtica Editora, Nenhuma parte desta publicacao poderd ser reproduzida, seja por meios mecanicos, eletrénicos, seja via cépia xerogréfica, sem a autorizacao prévia da Editors. CCOORDENADCR DA COLEGAOIFLO Gilson fanninié A SER FLOVAGA HO EDITORIAL Gilson fannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris) Carla Rodrigues (UFR); Cléuaio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernant Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFR); Jodo Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris): Olimpio Fimenta (UFOP); Pedro Sissekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG), Romero Alves Freitas (UFOP); Siavoj Ziek (Liubliana}; Vladimir Safatie (USP) EDITORA RESPONSAVEL Rejane Dias EDITORA ASSsTENTE Cecilia Martins REVSAO DA TRADUCKO Claudio Olvera esto Lira Cérdova Livia Martins PROIETO GRArco Diogo Droschi capa Alberto Bittencourt (Sobre foto Alex Healing de garrafa dee Klein em espiral: http:l4go0.gllsQXZxU) CAcRAMAGAO ‘Christiane Morais Dados internacionais de Catalogaggo na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) | ‘Agamben, Giorgio ‘Meios sem fim notas sobre a politica / Giergio Agamben ;raducio Davi | ed,; 2. reimp. -- Belo Horizonte : Auténtica Editora, Pessoa Carneiro | 2015. F.O/Agamben) { | SBN 978-85-8217-511-8 Titulo original: Mezzi senza fine: note sulla politica | 1, Filosofia italiana 2. Filosofia politica |. Titulo. Il. Série 1412383 cob-195 | "dices para catélogo sistemas ~—=~*~*~*~S* 1. Filosofia italiana 195 @cruroaurentica Belo Horizonte Sao Paulo Rio de Janeiro Rua Carlos Turner, 420 Av. Paulista, 2.073, Rua Debret, 23, sala 401 Silveira . 31140-520 Conjunto Nacional, Horsa | Centro , 20030-080 Belo Horizonte . MG 23° andar . Conj, 2301 Rio de Janeiro . RU Tel.: (55 31) 3465 4500 Cerqueira César. 0131-940 Tel.: (55 21) 3179 1975, ‘S40 Paulo . SP Televendas: 0800 283 1322 Tel: (55 11) 3034 4468 ‘ww grupoautentica.com.br Guy Debord, in memoriam Sumario I35 Phy 355 41. fh 63. 71. 87. 97, 101. 109, 129. 131, 133. Adverténcia 1: Forma-de-vida Para além dos direitos do homem O que é um povo? O que é um campo? 2. Notas sobre o gesto As linguas e os povos Glosas 4 margem dos Comentérios sobre a sociedade do espetaculo 0 rosto 3. Policia soberana Notas sobre a politica Neste exilio. Diario italiano 1992-94 Notas aos textos Colecao Filé Série Filé Agamben Adverténcia Os textos aqui recolhidos tentam, cada um a seu modo, pensar determinados problemas da politica. Se a politica parece, hoje, atravessar um eclipse permanente, no qual se apresenta em posigdo subalterna em relagio 4 religido, 4 economia e até mesmo ao direito, isso ¢ porque, na medida em que perdia consciéncia de seu estatuto onto- légico, ela deixou de se confrontar com as transformagées que progressivamente esvaziaram de dentro suas categorias e conceitos. Assim, acontece que, nas paginas que se se- guem, paradigmas genuinamente politicos sio procurados em experiéncias e fendmenos que habitualmente nio sio considerados politicos (ou o sao de modo unicamente marginal): a vida natural dos homens (a zoé, por muito tempo excluida do imbito propriamente politico) restitui- da, segundo o diagnéstico da biopolitica foucaultiana, ao centro da polis; o estado de excegao (suspensao temporaria do ordenamento, que revela, ao contrario, constituir a sua estrutura fundamental em todos os sentidos); o campo de concentragio (zona de indiferenga entre piiblico e privado ¢, ao mesmo tempo, matriz escondida do espago politico em que vivemos); 0 refugiado, que, rompendo 0 nexo entre homem e cidadao, deixa de ser uma figura marginal para se tornar um fator decisivo da crise do Estado-nagio moderno; a linguagem, objeto de uma hipertrofia e, jun- tamente, de uma expropriacao, que definem a politica das sociedades democratico-espetaculares nas quais vivemos; a esfera dos meios puros ou dos gestos (isto é, dos meios que, mesmo que permanecam como meios, emancipam-se de sua relagdo com um fim) como esfera especial da politica. Os textos aqui reunidos se referem todos, de varios modos e segundo as ocasiées das quais nascem, a um espago de trabalho ainda aberto (cujo primeiro fruto é 0 volume einaudiano Homo sacer,! Turim, 1995), do qual antecipam, as vezes, os niicleos originais e, outras vezes, apresentam estilhagos e fragmentos. Como tais, eles sio destinados a encontrar seu verdadeiro sentido apenas na perspectiva do trabalho concluido, que é o de repensar todas as catego~ da nossa tradigio politica 4 luz da relagio entre pod soberano e vida nua, " Referéncia & editora Einaudi, que publicou na Itélia o primeiro volume de Honio Sacer, O poder soberano e a vida nua. (N.T) FILOAGAMBEN Forma-de-vida 1. Os gregos nio tinham um termo tinico para ex primir o que entendemos pela palavra vida. Serviam-se de dois termos semantica e morfologicamente distintos: zoé, que manifestava o simples fato de viver, comum a todos os viventes (animais, homens ou deuses), ¢ bios, que signifi a forma ou mancira de viver propria de um individuo ou de um grupo. Nas linguas modernas, em que essa oposi¢io desaparece gradualmente do léxico (onde é conservada, como em biologia e zoologia, ela nao indica mais nenhuma diferenca substancial), um dinico termo ~ cuja opacidade resce proporcionalmente 4 sacralizagao de seu referente ~—designa o nu pressuposto comum que é sempre possivel isolar em cada uma das inumeraveis formas de vida. Com o termo forma-de-vida entendemos, ao contrario, uma vida que jamais pode ser separada da sua forma, uma vida na qual jamais é possivel isolar alguma coisa como uma vida nua. 2. Uma vida, que nao pode ser separada da sua forma, 6 uma vida para a qual, no seu modo de viver, est4 em jogo o proprio viver e, no seu viver, est4 em jogo antes de tudo o seu modo de viver. O que significa essa expressio? Define uma vida ~ a vida humana — em que os modos singulares, atos ¢ processos do viver nunca sio simples- mente fatos, mas sempre e primeiramente possibilidade de vida, sempre ¢ primeiramente poténcia. Comportamentos e formas do viver humano nunca sio prescritos por uma voca¢io biolégica especifica nem atribuidos por uma ne- cessidade qualquer, mas, por mais ordindrios, repetidos e socialmente obrigatérios, conservam sempre o carater de uma possibilidade, isto é colocam sempre em jogo © proprio viver. Por isso — isto é, enquanto é um ser de poténcia, que pode fazer e nao fazer, conseguir ou falhar, perder-se ou encontrar-se ~, 0 homem é 0 tinico ser em cujo viver esta sempre em jogo a felicidade, cuja vida é irremediavel ¢ dolorosamente destinada a felicidade. Porém isso constitui imediatamente a forma-de-vida como vida politica. (“Civitatem... communitatem esse institutam propter vivere et bene vivere hominum in ea” [A cidade se constitui em comunidade para que os homens vivam nela juntos e bem]: Marsilio de Padua, Defensor pacis, V, I)2 3. O poder politico que conhecemos sempre se fun- da, a0 contrario, em tiltima instancia, na separacéo de uma esfera da vida nua do contexto das formas de vida. No direito romano, vida nao é um conceito juridico, mas indica o simples fato de viver ou um modo particular de vida. Ha um tinico caso no qual 0 termo vida adquire um significado juridico que 0 transforma em um verdadeiro € peculiar terminus fechnicus: & na expressio vitae necisque potestas, a qual designa o poder de vida e de morte do pater * Marsilio de Pédua (1275-1342), filésofo, pensador politico, médico ¢ tedlogo italiano. (N/T) A FILOAGAUBEN sobre o filho homem. Yan Thomas’ mostrou que, nessa formula, gue nio tem valor disjuntivo, vida nao é senio um corolario de nex, do poder de matar. a A vida aparece, assim, originariamente no direito, somente como parte contraria de um poder que ameaga de morte. Mas o que vale para o direito de vida e de morte do pater vale com maior razdo para o poder SS ee perium), do qual o primeiro constitui a célula originaria. Assim, na fundagio hobbesiana da soberania, a vida no estado de natureza s6 é definida pelo seu ser incondicio- nadamente exposta a uma ameaga de morte (0 direito jlimitado de todos sobre tudo), e a vida politica, isto é, aquela que se desenvolve sob a protegio do Leviati, nao é sendo essa mesina vida, exposta a uma ameaca que repousa, agora, apenas nas mios do soberano. A puissance absolue et perpetuelle,’ que define o poder estatal, nao se funda, em diltima instancia, em uma vontade politica, mas na vida nua, que é conservada e protegida somente na medida em que se submete ao direito de vida e de morte do Sao (ou da lei). (Este, e nao outro, é 0 significado originario do adjetivo sacer referido 4 vida humana.) O estado de excegio, sobre o qual o soberano decide todas as Need precisamente aquele no qual a vida nua, que, we Se normal, aparece reunida 4s multiplas formas de vida social, é colocada explicitamente em questo como fundamento ultimo do poder politico. O sujeito ultimo, que se trata de excetuar e, ao mesmo tempo, de incluir na cidade, é sempre a vida nua. + Yan Thomas (1943-2008), jurista ¢ historiador francés; autor da tese de doutorado Cansa: sens et fonction d’un concept dans le langage du droit romain, apresentada em 1976, na Universidade de Paris II (NT) i ‘Tim francés, no original. Tradugdo: “poténcia absoluta e perpétua”. (NT) GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA 4. “A tradigdo dos oprimidos nos ensina que 0 ‘es- tado de excegio’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de historia que corresponda a esse fato.” Esse diagnéstico de Benjamin, que jé tem mais de cinquenta anos,’ nao perdeu nada de sua atualidade. E isso nao tanto ou nao apenas porque o poder nao tem, hoje, outra forma de legitimagio que nao seja a emergéncia, e por todos os lugares e continuamente faz apelo a ela e, ao mesmo tempo, trabalha secretamente para produzi-la (come nao pensar que um sistema que pode agora fun- cionar apenas na base de uma emergéncia nio esteja do mesmo modo interessado em manté-la a qualquer preco?), mas também e, sobretudo, porque, nesse interim, a vida nua, que era o fundamento oculto da soberania, tornou-se por toda parte a forma de vida dominante. A vida, no es- tado de exceg4o tornado normal, é a vida nua que separa em todos os Ambitos as formas de vida de sua coesio em, uma forma-de-vida, A cisio marxiana entre 0 homem e 0 cidado sucede, assim, aquela entre a vida nua, portadora ultima e opaca da soberania, ¢ as miltiplas formas de vida abstratamente recodificadas em pessoas juridico-sociais (0 eleitor, o trabalhador dependente, 0 jornalista, o estudante, mas também 0 soropositivo, o travesti, a estrela pornd, o idoso, 0 progenitor, a mulher), que repousam todas nela. (Ter permutado essa vida nua separada de sua forma, em sua abjecao, por um principio superior —a soberania ou o sagrado — é 0 limite do pensamento de Bataille, que para nés se torna inservivel,) 5. A tese de Foucault, segundo a qual “o que esta colocado em jogo é hoje a vida” —e a politica, por isso, * A primeira edigio italiana de Meios sem fim € de 1996, (N/T) oe FILGAGAMBEN se tornou biopolitica -, é, nesse sentido, substancialmen- te exata. Decisivo é, porém, o modo como se entende o sentido dessa transformagio. Aquilo que resta de fato nao interrogado, nos debates atuais sobre a bioética ¢ sobre a biopolitica, € precisamente aquilo que mereceria ser, an- tes de tudo, questionado, e, portanto, o préprio conceito bioldgico de vida, Os dois modelos, simetricamente con- trapostos por Rabinow® — da experimental life’ do cientista acometido de leucemia, que faz de sua propria vida um Jaboratério de pesquisa e de experimentagao ilimitada, e aquele de quem, ao contrario, em nome da sacralidade da vida, exaspera a antinomia entre ética individual e tecno- ciéncia —, participam ambos, de fato, sem se darem conta disso, do mesmo conceito de vida nua. Esse conceito — que se apresenta hoje sob as vestes de uma nogao cientifica — é, na realidade, um conceito politico secularizado. (De um ponto de vista estritamente cientifico, 0 conceito de vida nao tem nenhum sentido: “as discuss6es sobre o significa do real das palavras vida e morte”, escreve Medawar,* “sio indice, em biologia, de uma conversa de baixo nivel. Tais palavras nao tém nenhum significado intrinseco, e este nao pode, por isso, ser esclarecido por um estudo mais atento e aprofundado”) Dai derivam a frequentemente inadvertida mas de~ cisiva fungio da ideologia médico-cientffica no sistema do poder e 0 uso crescente de pseudoconceitos cientificos com fins de controle politico: a mesma operagio da vida Paul Rabinow (1944 -) é professor de antropologia na Universidade da Califétnia (Berkeley). (N.T.) Em inglés, no original. Tradugio: “vida experimental”, (N.T}) Peter Brian Medawar (1915-1987), bidlogo britinico nascido no Brasil, em Petrépolis. Recebeu o Nobel de Medicina, em 1960, com pesquisa sobre o sistema imunolégico dos animais, (N.T) GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA nua, que o soberano podia fazer, em certas circunstancias, sobre as formas de vida, é agora macica e cotidianamente atuada pelas representacées pseudocientificas do corpo, da doenga e da satide e pela “medicalizagio” de esferas sempre mais amplas da vida e da imaginacdo individual, A vida biolégica, forma secularizada da vida nua, que tem indecibilidade e impenetrabilidade em comum com esta, constitui literalmente, assim, as formas de vida reais em formas de sobrevivéncia, permanecendo nelas intocada como a obscura ameaca que pode atualizar-se imediatamente na violéncia, na estranheza, na doenga e no acidente. Ela € 0 soberano invisivel que nos olha por tr4s das mascaras insensiveis dos poderosos que, percebendo ou nio isso, nos governam em seu nome. 6. Isto é, uma vida politica orientada pela ideia de felicidade e coesa numa forma-de-vida $6 é pensavel a partir da emancipagao dessa cisio, do éxodo irrevogivel de toda soberania. A pergunta sobre a possibilidade de uma politica nao estatal tem, portanto, necessariamente a forma: é possivel, hoje, existe hoje algo como uma forma- de-vida, ou seja, uma vida para a qual, no seu viver, esteja em jogo o proprio viver, uma vida da poténcia? . Chamamos de pensamento o nexo que constitui as formas de vida em um contexto inseparavel, em forma- de-vida. Com isso no entendemos a atividade individual de um Orgiio ou de uma faculdade psiquica, mas uma ex- periencia, um experimentum que tem por objeto o carater potencial da vida e da inteligéncia humana. Pensar nao significa simplesmente ser afetado por esta ou por aquela coisa, por este ou por aquele contetido de pensamento em ato, mas ser, ao mesmo tempo, afetado pela prépria receptividade, fazer experiéncia, em cada coisa pensada, de uma pura poténcia de pensar. (“O pensamento é 0 ser 18 FILOAGAMBEN cuja natureza é ser em poténcia... quando o pensamento se tornou, em ato, cada um dos inteligiveis... permanece ainda, de algum modo, em poténcia, ¢ pode, ent4o, pensar asi mesmo”: Aristoteles, De anima, 429 a-b). Apenas se eu j4 nao estou sempre e somente em ato, mas sou entregue a uma possibilidade e a uma poténcia, apenas se, nas minhas vivéncias e nos meus entendimentos, esto sempre em jogo o viver e o entender eles mesmos — ou seja, se ha, nesse sentido, pensamento —, entéo uma forma de vida pode tornar-se, em sua propria facticidade e coisalidade, forma-de-vida, na qual nunca é possivel isolar algo como uma vida nua. 7. A experiéncia do pensamento, que esta aqui em questdio, é sempre experiéncia de uma poténcia comum. Comunidade e poténcia identificam-se sem residuos, por- que o ser inerente de um princfpio comunitario em toda poténcia é fungio do carater necessariamente potencial de toda comunidade. Entre seres que estivessem desde sempre em ato, que ji fossem sempre esta ou aquela coisa, esta ou aquela identidade ¢ tivessem, nestas, esgotado inteiramente asua poténcia, nio poderia existir nenhuma comunidade, mas somente coincidéncias e partiges factuais. Podemos nos comunicar com os outros s6 através daquilo que em nds, assim como nos outros, permaneceu em poténcia, e toda comunicagio (como Benjamin intuiu para a lingua) é, antes de tudo, comunicagao nfo de um comum, porém de uma comunicabilidade. Por outro lado, se houvesse um finico ser, este seria absolutamente impotente (por isso os tedlogos afirmam que Deus criou o mundo ex nihilo, ou seja, absolutamente sem poténcia) e onde eu posso, ali ja somos sempre muitos (assim como, se hi uma lingua, isto é, uma poténcia de falar, entio nio pode haver um nico ser que a fala). GIORGIO AGAMBEN MEICS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA 19 Por isso a filosofia politica moderna nao comega com © pensamento classico, que havia feito da contemplagio, do bios theoretikos, uma atividade separada e solitaria (“exilio de um s6 junto a um 36”), mas somente com 0 averrofs- mo, isto é, com o pensamento do tinico intelecto possivel comum a todos os homens, e, especialmente, no ponto em que Dante, no De monarchia, afirma o ser inerente de uma multitudo 4 mesma poténcia do pensamento: Como a poténcia do pensamento humano nio pode ser integral ¢ simultaneamente atualizada por um tinico homem ou por uma tinica comunidade particular, 6 necessario que haja na espécie humana uma multidio através da qual a poténcia seja toda atuada... A tarefa da espécie humana, apreendida na sua totalidade, 6 0 de atuar incessantemente toda a poténcia do intelecto Possivel, em primeiro lugar em vista da contemplacio © consequentemente, em vista do agir (I 3-4), 8. O intelecto como poténcia social eo General Intel- lect marxiano adquirem seu sentido apenas na perspectiva dessa experiéncia. Eles nomeiam a multitudo que é inerente a poténcia do pensamento como tal. A intelectualidade € © pensamento no sio uma forma de vida ao lado de outras nas quais se articulam a vida 6 a produgio social, mas sio a poténcia unitdria que constitui em forma-de-vida as tmiltiplas formas de vida, Diante da soberania estatal, que s6 pode afirmar-se separando em cada ambito a vida nua da sua forma, eles sio a poténcia que incessantemente liga a vida 4 sua forma ou que impede que se dissocie dela. O diferencial entre a simples, maciga inscricdo do saber social nos processos produtivos, que caracteriza a fase atual do capitalismo (a sociedade do espetaculo), e a intelectualida- de como poténcia antagonista ¢ forma-de-vida Passa pela experiéncia dessa coesdo e dessa inseparabilidade. O pen- samento € forma-de-vida, vida insegregavel da sua forma, 20 FILOAGANBEN e em qualquer lugar em que se mostre a intimidade oe vida insepardvel, na materialidade dos processos corpéreos e dos modos de vida habituais nio menos do que na teoria, ali e somente ali ha pensamento. E é esse Deca: cae forma-de-vida que, abandonando a vida nua ao “homem’ €20 “cidadao”, que a vestem provisoriamente e a represen tam com 0s seus “direitos”, deve tornar-se 0 conceito-guia € 0 centro unitario da politica que vem. GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA Para além dos direitos do homem 1. Em 1943, Hannah Arendt publicava em uma pe- quena revista hebraica, em lingua inglesa, The Menorah Journal, um artigo intitulado “We refugees” [Nés, refugia— dos]. No fim desse breve, mas significativo escrito, depois de ter esbogado polemicamente o retrato de Mr. Cohn, o judeu assimilado que, apés ter sido 150% alemao, 150% vienense, 150% francés, precisou dar-se conta amarga~ mente no fim de que on ne parvient pas deux fois,’ Arendt inverte a condi¢ao de refugiado e de apatrida em que vivia, para propé-la como paradigma de uma nova consciéncia histérica. O refugiado que perdeu todo direito e cessa, porém, de querer assimilar-se a qualquer custo a uma nova identidade nacional, para contemplar lucidamente sua. ° Bm francés, no original. Trata-se de uma referéncia a Balzac, Les Secrets de la princesse de Cadignan (em portugués, Os segredos da princesa de Cadignan), uma novela publicada no jornal La Presse, em 1839, sob o titulo de Une Princesse parisienne (Uma princesa parisiense), depois publicada em volume no tomo XI da edi¢io Furne da Co- média Humana. Paz parte das Cenas da vida parisiense, Literalmente, a expressio significa: “nio se consegue duas vezes”, mas no sentido de que “nio se encontra a sorte duas vezes”. (N.T.) condi¢io, recebe, em troca de uma impopularidade segura, uma vantagem inestimavel: “a histéria no é mais, an cle, um livro fechado, ¢ a politica deixa de ser o privilégio dos Gentis. Ele sabe que o banimento do povo hebreu, na Europa, foi imediatamente seguido por aquele da sae parte dos povos europeus. Os refugiados cagados de pais em pais representavam a vanguarda dos seus povos”. , Convém refletir sobre o sentido dessa andlise, que hoje, exatamente a cinquenta anos de distincia,” nao perdeu nada de sua atualidade. Nio s6 0 problema se apresenta na Europa e fora dela, com idéntica urgéncia mas, no declinio agora irrefreavel do Estado-nagio e ima corrosio geral das categorias juridico-politicas tradicionais © refugiado 6, talvez, a tinica figura pensavel do povo i nosso tempo e, ao menos até quando no for realizado o Processo de dissolugio do Estado-nagao e da sua sobera- nia, a nica categoria na qual é hoje permitido entrever as formas © os limites de uma comunidade politica por vir. £ possivel, alids, que, se quisermos estar a altura das een absolutamente novas que esto diante de nds. fenhamos que nos decidir a abandonar sem reservas a roncerns fundamentais com os quais até 0 momento representamos 08 sujeitos do politico (0 homem e 0 cidadio com seus direitos, mas também o povo soberano, o trabalhador cca) ea reconstruir nossa filosofia politica a partir dessa tinica figura, 2. A primeira apari¢o dos refugiados como fendme- no de massa se deu no fim da Primeira Guerra Mundial, quando a queda dos impérios Trusso, austro-hiingaro : otomano, € a nova ordem criada pelos tratados de paz devastam profundamente a ordem demografica e territorial Opn i © presente texto foi publicado pela primeira vez em 1993, (IN. T) 24 FILOAGAMBEN da Europa centro-oriental. Em pouco tempo se deslocam de seus paises 1.500.000 russos brancos, 700.000 armé- nios, 300.000 biilgaros, 1.000.000 de gregos, centenas de milhares de alemies, htingaros e romenos. A essas massas em movimento incorpora-se a situagao explosiva deter- minada pelo fato de que 30% das populagdes dos novos organismos estatais criados pelos tratados de paz a partir do modelo do Estado-na¢io (por exemplo, na Iugoslavia e na Checoslovaquia) constitufam minorias que deviam ser tuteladas por uma série de tratados internacionais (os assim chamados Minority Ticaties), permanecidos muito frequentemente como letra morta. Alguns anos depois, as leis raciais na Alemanha e a guerra civil na Espanha disseminaram pela Europa um novo e importante con- tingente de refugiados. Estamos habituados a distinguir apatridas de refu- giados, mas nem naquela época, nem hoje, a distingdo é simples como pode parecer 4 primeira vista. Desde o inicio, muitos refugiados, que néo eram tecnicamente apitridas, preferiram tornar-se um destes em vez de voltar para sua patria (6 0 caso dos judeus poloneses e romenos que se encontravam na Franga ou na Alemanha no fim da guerra, ¢ hoje os perseguidos politicos e muitos outros para os quais 0 retorno 4 patria significa a impossibilidade de sobreviver). Por outro lado, os refugiados russos, ar- ménios e hangaros foram prontamente desnacionalizados pelos novos governos soviético, turco, etc. F importante notar como, a partir da Primeira Guerra Mundial, mui~ tos Estados europeus comegaram a introduzir leis que permitiam a desnaturalizagio e a desnacionalizacio de seus cidadaos: em primeiro lugar, a Franga, em 1915, em relagio aos cidadios naturalizados de origem “inimiga”; em 1922, o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revo- gou a naturalizacio dos cidadios que haviam cometido GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA 20 atos “antinacionais” durante a guerra; em 1926, 0 regime fascista emanou uma lei andloga no que diz respeito aos cidadaos que se mostraram “indignos da cidadania ita- Tiana”; em 1933, foi a vez da Austria, e assim por diante, até que em 1935 as leis de Nuremberg dividiram os ci- dadaos alemaes em cidaddos em sentido pleno e cidadaos sem direitos politicos. Essas leis — ea massa de apdtridas resultante delas — marcam uma virada decisiva na vida do Estado-na¢io moderno e sua definitiva emancipacio das nog6es ingénuas de povo e cidadao. Aqui nao é 0 lugar para refazer a histéria dos varios comités internacionais através dos quais os Estados, a Sociedade das Nagées e, mais tarde, a ONU procuraram lidar com o problema dos refugiados, do Bureau Nansen‘! para os refugiados russos e arménios (1921), ao Alto Comissirio para os refugiados da Alemanha (1936), a0 Comité Intergovernamental para os refugiados (1938), 20 International Refugee Organization da ONU (1946) até © atual Alto Comissariado para os refugiados (1951), cuja atividade nao tem, segundo o estatuto, cardter politico, mas apenas “humanitirio e social”. O essencial é que, todas as vezes que os refugiados nio representam mais casos individuais, porém um fendmeno de massa (como aconteceu entre as duas guer € novamente agora), tan- to essas organizagSes assim como cada um dos Estados, malgrado as evocagées solenes dos direitos inaliendveis do homem, demonstraram-se absolutamente incapazes nado s6 de resolver o problema, mas também, simplesmente, de enfrenté-lo de modo adequado. Toda a questao foi, "© Comité Internacional Nansen para os Refuugiados foi uma or ganizagio da Sociedade das Nagdes. O noruegués Fridtjof Nansen foi seu criador e diretor, O Comité teve um papel fundamental na protecdo de refugiados provenientes de zonas de guerra, entre os anos 1930 e 1939. Nansen recebeu o Nobel da Paz em 1938. (N.T.) 26 FILGAGAMBEN portanto, transferida para as mAos da policia e das org: nizagdes humanitarias. 3. As razGes dessa impoténcia nao estio apenas no egoismo e na cegueira dos aparatos burocraticos, mas na ambiguidade das mesmas nogSes fundamentais que regu- lam a inscrigio do nativo (isto é, da vida) no ordenamento juridico do Estado-nagio. Hannah Arendt intitulou ° quinto capitulo do livro sobre o Imperialismo, Glasitensto ao problema dos refugiados, de O declinio do ee eo fim dos direitos do homem. E preciso tentar levar a sério tal formulagio, que liga indissoluvelmente os destinos do direito do homem e o destino do Estado nacional moderno, de modo que o declinio deste implique necessariamente o devir obsoleto daqueles. O paradoxo, aqui, é que justamen- te a figura — o refugiado ~ que deveria ter encarnado por exceléncia os direitos do homem assinala, pelo contrario, a crise radical desse conceito. “A concepgao dos direitos do homem’”, escreve Arendt, “baseada na existéncia suposta de um ser humano como tal, arruina-se nao s6 frente Aqueles que a professavam e que se encontraram pela primeira vez diante de homens que perderam verdadeiramente qualquer outra qualidade e relago especifica — exceto 0 puro fato de serem hiimanos”. No sistema do Estado-nagio, os assim chamados direitos sagrados e inalienaveis do homem mos- tram-se desprovidos de toda tutela no préprio momento em que nao é mais possivel configura-los como direitos dos cidadaos de um Estado. Isso est4 implicito, se refletirmos bem, na ambiguidade do proprio titulo da Declaragio de 1789: Déclaration des droits de Vhomme et du citoyen, no qual iio esta claro se os dois termos nomeiam duas realidades distintas ou se fornecem, ao contrario, uma hendiadis, na qual o primeiro termo jé esta, na verdade, sempre contido ho segundo, GIORGIO AGAMBEN (VEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA : Que, para algo como o puro homem em si mesmo. nao exista) 10 ordenamento politico do Estado-nagio, a &spaco autonomo € evidente no minimo pelo fato as ue © estatuto de refagiado foi sempre considerado, me ‘ no melhor dos casos, como uma condigao eer a deve levar ou a naturalizacg3o ou 3 repatriacio, Um ee estavel do homem i i em si mesmo € inconcebi irei ‘ivel n do Estado-nagio. oes are! tempo de parar de olhar para as Declaragdes dos le 789 até hoje como proclamagées de valores eternos metajuridicos, inclinados a vincular 0 legislad ao respeito a eles, e de considerd-las segundo ale me sua fungio real no Estado moderno. Os direitos do os . representam, de fato, antes de tudo, a figura a eens Inscri¢ao da vida nua natural na ordem eee om do Estado-nagio. Aquela vida nua (a criatura buranay: meno Ancien Régime, pertencia a Deus € que, no mun a : classico, era claramente distinta (como zoé) da oa polit o (bios), entra agora em Primeiro plano no cuidado do Ts tado e se torna, por assim dizer, seu fundamento terreno. Estado-nacao significa: Estado que faz da natividade, di ascuinertto (isto €, da vida nua humana) o Ament da propria soberania. Esse é 0 sentido (nem mesmo ont ae dos primeiros trés artigos da Declaracio de Somente porque inscreveu (art. 1° ¢ 2°) o elemento nativo no coragio de toda associagao politica, ela pode unir firmemente (art. 3°) 0 principio de soberania 4 na- sao (conformemente ao étimo, natio significa na orig simplesmente “nascimento”), oe As Declaragées dos Direitos sio, entio. vistas com ° lugar no qual se atua a Passagem da os real de origem divina A soberania nacional. Elas asseguram a i . sergdo da vida na nova ordem estatal que ce sane 28 FILGAGAMBEN A queda do Ancien Régime. Que, através delas, o stidito se transforme em cidadéo significa que 0 nascimento ~ ou seja, a vida nua natural — torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformacio cujas consequéncias biopoliticas s6 podemos agora comegar a calcula) o portador imediato da soberania. O principio de natividade e 0 principio de soberania, separados no Ancien Régime, unem-se agora irrevogavelmente para constituir o fundamento do novo Estado-nagio. A ficg’o aqui implicita é que o nascimento se torne imediatamente nagao, de modo que nao possa existir nenhuma separagao entre os dois momentos. Ou seja, os direitos sio atribuidos ao homem apenas na medida em que ele é 0 pressuposto imediatamente dissipador (¢ que, ao contrario, nunca deve vir 4 luz como tal) do cidadao. 5. Se o refugiado representa, no ordenamento do Estado-nacao, um elemento tao inquietante, é antes de tudo porque, rompendo a identidade entre homem e ci- dadao, entre natividade e nacionalidade, p6e em crise a ficgdo origindria da soberania. Excegées particulares a esse principio, naturalmente, sempre existiram: a novidade do nosso tempo, que ameaga o Estado-na¢ao nos seus proprios fundamentos, é que partes crescentes da humanidade nao so mais representveis no seu interior. Por isso, na medida em que se rompe a velha trindade Estado-nagao-territério, o refugiado, essa figura aparentemente marginal, merece ser, pelo contrario, considerado como a figura central da nossa histéria politica. E importante no esquecermos que os primeiros campos foram construidos na Europa como espaco de controle para os refugiados, ¢ que a sucessio ampos de internamento-campos de concentragio-campos de exterminio representa uma filiagdo perfeitamente real. Umma das poucas regras nas quais os nazistas se apoiaram constantemente ao longo da “solugio final” era que, s6 GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM; NOTAS SOBRE A POLITICA 29 depois de terem sido completamente desnacionalizados (mesmo daquela cidadania de segunda classe que Ihes cabia apés as leis de Nuremberg), os judeus e os cere podiam ser enviados aos campos de exterminio. Quando seus direitos no so mais direitos do cidadio, entio o homem é realmente sagrado, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico: votado 4 morte. 6. a necessdrio desvencilhar resolutamente o conceito de refugiado daquele dos direitos do homem e parar de considerar © direito de asilo (de resto agora em via de dras- tica contragdo na legislacao dos Estados europeus) como sendo a categoria conceitual na qual inscrever o fenémeno (um olhar 4s recentes Teses sobre o diveito de asilo de Agne: Heller! mostra que isso ndo pode senio levar, hoje, a ad uae Ioportunas). O refugiado é considerado a aquilo que is seja, nada menos do que um conceito-limite que poe em crise radical os principios do Estado-nagio ® 20 mesmo tempo, permite liberar 0 campo para uma renovacao categorial doravante inadidvel, _Nesse interim, de fato, 0 fendmeno da imigra¢gao considerada ilegal nos paises da Comunidade Europeia assumiu (e ira assumir sempre mais nos préximos anos, com 05 20 milhées de imigrados previstos dos paises da Europa Central) caracteristicas e ProporgGes capazes de perce plenamente essa inversio de Perspectiva. Aquilo ae Os Estados industrializados tém atualmente diante deles é uma massa estdvelmente residente de nao-cidadaos, que nao foe deca nem querem ser naturalizados nem repatriados. Esses ndo-cidadios tém frequentemente uma nacionalidade ce origem, mas, enquanto preferem nao usufruir da protegio de seu Estado, encontram-se, tal como os tefugiados, na gnes Heller (1929-}, filésofa hingara, discfpula de Lukics. (NT) 30 FILOAGAMBEN condigaio de “apatridas de fato”. Tomas Hammar'* propés usar, para esses residentes nio-cidadios, 0 termo denizens, que tem 0 mérito de mostrar como o conceito citizen é, agora, inadequado para descrever a realidade politico-social dos Estados modernos. Por outro lado, os cidadaos dos Es- tados industriais avancados (tanto nos Estados Unidos como. na Europa) manifestam, através de uma desercio crescente em relagio as instancias codificadas da participacio politica, uma propensao evidente em se transformar em denizens, em residentes estaveis nao-cidadaos, de modo que cidadaos e denizens esto entrando, pelo menos em certas faixas so- ciais, numa zona de indisting%o potencial, Paralelamente, em conformidade com 0 ja notdrio principio segundo 0 qual a assimilagdo substancial em presenga de diferengas formais exaspera 0 6dio e a intolerancia, crescem as reagdes xenofdbicas e as mobilizacdes defensivas. 7, Antes que se reabram na Europa os campos de exterminio (0 que ja esté comegando a acontecer), é ne- cessario que os Estados-nacg4o encontrem coragem para colocar em questo o préprio principio de inscrigio da natividade e a trindade Estado-na¢io-territério que nele se funda. Nao é facil indicar a partir de agora os modos nos quais isso poderd concretamente realizar-se. Basta, aqui, sugerir uma dire¢io possivel. E notério que uma das opgoes levadas em consideragao para a solucao do problema de Jerusalém é que ela se torne, contemporaneamente € sem divisio territorial, capital de dois organismos estatais diferentes. A condic¢ao paradoxal de extraterritorialidade reciproca (ou melhor, aterritorialidade) que isso implicaria poderia ser generalizada como modelo de novas relagdes *® Tomas Hammar é professor do Centre for Research in Internatio- nal Migration and Ethnic Relations (CEIFO) da Universidade de Estocolmo. (N.T) GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA internacionais. Em vez de dois Estados nacionais separados por incertos e ameagadores confins, seria possivel imaginar duas comunidades politicas insistentes numa mesma regido e em éxodo uma em relag3o a outra, articuladas entre si por uma série de extraterritorialidades recfprocas, na qual © conceito-guia nao seria mais o ius do cidadao, mas o refugium do individuo. Em sentido andlogo, poderiamos olhar para a Europa nio como uma impossivel “Europa das nagdes”, da qual ja se entrevé a curto prazo a catastrofe, mas como um espago aterritorial ou extraterritorial, no qual todos os residentes dos Estados europeus (cidadios nGio-cidadiios) estariam em posigio de éxodo ou de refiigio © 0 estatuto de europen significaria o estar-em-éxodo (ob- viamente também imével) do cidadio, O espaco europeu assinalaria, entio, uma separacao irredutivel entre o nasci- mento ¢ a na¢do, na qual o velho conceito de povo (que, como se sabe, é sempre minoria) poderia reencontrar um sentido politico, contrapondo-se decididamente Aquele de nag4o (que até entao o usurpou indevidamente). Esse espago nao coincidiria com nenhum territério nacional homogéneo nem com sua soma topografica, mas agiria sobre eles, penetrando-os e articulando-os topolo- gicamente como numa garrafa de Klein“ ou numa fita de Moebius,’ onde exterior e interior ficam indeterminados. Nesse novo espaco, as cidades europeias, entrando em * Garrafa de Kleiti é uma superficie nio orientivel, na qual nio hé distingao entre interno e externo, Bla foi descrita pela primeira vez, em 1882, pelo matemitico alemio Félix Klein. A garrafa de Klein & um espago topolégico obtido pela unio de duas fitas de Moebius, no entanto, diferente da fita de Moebius, que tem uma superficie com borda, a garrafa de Klein nio possui borda. (N.T) * Fita de Moebius ¢ um espago topolégico obtido pela uniio das duas extremidades de uma fita, apés a realizagio de uma meia-volta numa delas. Foi inventada por August Ferdinand Moebius, em 1858, (N.T) se FILOAGAMBEN relagao de extraterritorialidade especifica, reencontrariam. sua antiga vocagio de cidades do mundo. Numa espécie de terra de ninguém entre o Libano e Israel, encontram-se hoje 425 palestinos expulsos do Estado de Israel. Esses homens constituem certamente, segundo a sugestéo de Hannah Arendt, “a vanguarda de seu poyo”. Mas nao necessariamente ou nao Ca no sentido de que eles formariam o niicleo originario de um futuro Estado nacional, que resolveria o problema palestino provavelmente de modo igualmente insuficiente tal como Israel resolveu a questdo judaica. Antes, a terra de ninguém na qual est3o refugiados retroagiu até agora sobre o territério do Estado de Israel, furando-o e alteran- do-o de modo que a imagem daquela colina coberta de neve se tornou mais interior a ele do que qualquer outra regiio da Terra de Israel. Somente numa terra na qual os espacos dos Estados tiverem sido, desse modo, perfurados ¢ topologicamente deformados e nos quais 0 cidadio tra sabido reconhecer 0 refugiado que ele mesmo é, é pensdvel hoje a sobrevivéncia politica dos homens. GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA O que é um povo? 1. Toda interpretagio do significado politico do ter- mo povo deve partir do fato singular de que este, nas linguas europeias modernas, sempre indica também os pobres, os deserdados, os excluidos. Ou seja, unt mesmo termo nometia tanto o sujeito politico constitutive como a classe que, de fato, se nao de direito, est excluida da politica. Em italiano popolo, em francés peuple, em espanhol pueblo [em portugués pove] (como os adjetivos correspon- dentes popolare, populaire, popular e os latinos tardios poptlus e popularis dos quais todos derivam) designam, na lingua comum e no léxico politico, tanto 0 conjunto dos cidadaos como corpo politico unitaério (Como em “povo italiano” ou em “juiz popular”) quanto os pertencentes as classes inferiores (como em homme du peuple, rione popolare, front po- pulaire). Também em inglés people, que tem um sentido mais indiferenciado, conserva, porém, o significado de ordinary people em oposi¢ao aos ricos e 4 nobreza. Na constituigio americana lé-se, assim, sem distingao de género, “We people of the United States...”; mas quando Lincoln, no discurso de Gettisburgh, invoca um “Government of the people by the people for the people”, a repeti¢ao contrapSe implicitamente 35 a0 primeiro pove um outro, O quanto essa ambiguidade era essencial também durante a Revolugio Francesa (isto é, exatamente no momento em que se reivindica © principio da soberania popular) é testemunhado pelo papel decisivo que cumpriu ali a compaixio pelo povo entendido como classe exchaida. Hannah Arendt lembrou que “a propria definigio do termo havia nascido da compaixio e a pa- lavra tornou-se sindénimo de azar e de infelicidade — fe peuple, les matheurenx napplandissent [0 povo, os infelizes me aplaudem], costumava dizer Robespierre; le peuple tou- Jours malheureux, [o povo sempre infeliz] como se exprimia até mesmo Sieyés,"” uma das figuras menos sentimentais © mais licidas da Revolugio”, Mas J& em Bodin,” num sentido oposto, no capitulo da République no qual é defi- nida a democracia, ou Etat Populaire, © conceito € duplo: a0 peuple en corps [povo como corpo politico], como titular da soberania, corresponde o menu peuple [o povao], que a sabedoria aconselha excluir do poder politico, 2. Uma ambiguidade semantica tio difundida e constante ndo pode ser casual: ela deve refletir uma an- fibologia inerente 4 natureza e a fungao do conceito de ove na politica ocidental. Ou seja, tudo ocorre como se aquilo que chamamos de Povo fosse, na realidade, nao um sujeito unitirio, mas uma oscilagio dialética entre dois polos opostos: de um lado, 0 conjunto Povo como corpo politico integral, de outro, 0 subconjunto pove como multiplicidade fragmentaria de corpos necessitados “ Emmanuel Joseph Sieyds (1748-1836), politico, escritor ecclesidstico fancts, Autor de “Qu’est-ce que le tiers état2”, panflete politico Publicado as vésperas da Revolugio Francesa, (N/T) * Jean Bodin (1830-1596), jurista francés, membro do Parlamento de Paris ¢ professor de diteito em Toulouse. A questio da soberanin se Sncontra sistematizada por ele em Les sx lees dela républig. (NT) “6 FILOAGAMBEN e excluidos; ali uma inclusio que se pretende sem ree siduos, aqui uma exclusio que se sabe cous oe num extremo, o Estado total dos cidadaos integrados e soberanos, no outro, a reserva - corte dos behets ey campo ~ dos miseraveis, dos oprimidos, dos venc! ° a foram banidos. Um referente tinico e compacto e err povo nao existe, nesse sentido, em nenhum mes como muitos conceitos politicos fundamentais ome Hee nisso, aos Urworte de Carl Bote Freud ou as rel oes hier4rquicas de Dumont), povo é um ee pol Hs qual indica um duplo movimento e uma comp! exalt entre dois extremos. Mas isso significa, er gue a constitui¢io da espécie humana num corpo Eooaed passa por uma cisio fundamental e que, no conceito de pove, podemos reconhecer sem dificuldade os pares Cate gonals que vimos definir a estrutura politica original: vida nua (povo) e existéncia politica (Povo), exclusio e Se e bios. Ou seja, 0 povo ja trax sempre em si a fratura op. a fundamental. Ele é aquilo que nao pode co inclufdo ee ie qual faz parte e ndo pode pertencer ao conjunto no qual ja ¢. desde sempre inclutdo. ; pate Dai as contradigdes € as aporias a que ele da lugar todas as vezes que é evocado e colocado em jogo na coos politica. Ele ¢ aquilo que ja é desde sempre e a beeen no entanto, realizar-se; é a fonte pura de toda identid ae e deve, porém, redefinir-se e purificar-se ae através da exclusao, da lingua, do sangue e do ee Ou seja, no polo oposto, é aquilo que falta por essén ‘ a si mesmo e cuja realizacdo coincide, por isso, com a propria aboligio; é aquilo que, para set, Llc a a seu oposto, a si mesmo (daqui as aporias especifica ti vimento operario, direcionado ao povo e, ao em ‘ a voltado para a sua aboligio). De tempos em eae an deira sangrenta da reag’o e insignia incerta das revolug: ch 37 GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE # POLITICA ¢ das frentes populares, 0 povo contém em todo caso uma cisio mais originaria do que aquela amigo-inimigo, uma guerra civil incessante que o divide mais radicalmente do que todo conflito e, ao mesmo tempo, o mantém unido e © constitui mais solidamente do que qualquer identidade. Observando bem, alias, aquilo que Marx chama de luta de classe e que, mesmo permanecendo substancialmente indefinido, ocupa um posto muito central em seu pensa- mento, nao € senao essa guerra interna que divide cada Povo € que ter4 um fim somente quando, na sociedade sem classes ou no reino messianico, Povo e povo coincidirem e nao houver mais, especificamente, povo algum. 3. Se isso for verdade, se 0 povo contém necessaria- mente em seu interior a fratura biopolitica fundamental, sera entio possivel ler de modo novo algumas paginas decisivas da histéria do nosso século, Visto que, se a luta entre os dois povos ja estava certamente em curso desde sempre, no nosso tempo ela sofreu uma tiltima, Paroxistica aceleragio. Em Roma, a cisio interna do Povo era sancio- nada juridicamente na divisio clara entre populus e plebs, os quais tinham, cada um deles, suas instituigdes e seus magistrados, assim como na Idade Média a distingao entre povo mitido e povo gordo correspondia a uma articulagio precisa de diversas artes e profissSes; mas quando, a partir da Revolugio Francesa, o povo se torna o depositdrio tmico da soberania, o povo transforma-se numa presenga emba- zacosa, ¢ thiséria ¢ exclusio aparecem pela primeira vez como um escindalo em qualquer sentido intolerivel. Na idade moderna, miséria ¢ exclusio nao so apenas conceitos econdmicos e sociais, mas sio categorias eminentemente politicas (todo 0 economicismo e o “socialismo” que pa- recem dominar a politica moderna tém, na realidade, um significado politico, aliés, biopolitico). 2 FILOAGAMBEN Nessa perspectiva, 0 nosso tempo ee é sendo G sea — implacdvel e metédica — de atestar a cee divide o fee) eliminando radicalmente 0 povo dos excluidos. Essa tentati va retine, segundo modalidades e oad one esquerda e direita, paises capiralistas eas sola ist 2 unidos no projeto — em ultima analise pes leone se realizou parcialmente em todos Os paises eee izes dos — de produzir um povo uno e indivisivel. A obsessio do desenvolvimento é tao eficaz no nosso tempo porque coincide com o projeto biopolitico de produzir um povo _ ee dos judeus na Alemanha nazista adqui- re, nessa perspectiva, um significado Cal nee Como povo que recusa integrar-se no corp) pounce na: cional (supde-se, de fato, que toda sua pesmnilasag seja, = verdade, somente simulada), os judeus s40 os ae por exceléncia e quase o simbolo vivente do pove, daquels vida nua que a modernidade cria necessariamente ne seu interior, mas cuja presenga nio consegue mais de al oe modo tolerar. E na fiiria lacida com a qual o Volk ew representante por exceléncia do povo como oe co integral, procura eliminar para sempre os gudets, le ver a fase extrema da luta interna que divide Povo e ee Com a solugio final (que envolve, nio por acaso, também os ciganos € outros nfo integraveis), 0 pecan ae obscura e inutilmente liberar a cena politica do Oci ce ce dessa sombra intoleravel, para produzir Finalmente 0 Le alem4o como povo que atestou a fratura biopolitica original (por isso os chefes nazistas repetem tao obstinadamente que, eliminando judeus e ciganos, esto, na verdade, tra- balhando também para os outros povos europeus). - Parafraseando o postulado freudiano ce arelacio entre Es e Ich, poderiamos dizer que a Cet ee na é sustentada pelo principio segundo o qual “onde ha f 39 GIORGIO AGAMBEN NEIOS SEM Fil: NOTAS SOBRE A POLITICA vida nua, um Povo devera ser”: sob a condigao, porém. Ce acrescentar imediatamente que tal Principio vale oo bém na formulagio inversa, que quer que “onde ha Povo, ali haverd vida nua”. A fratura, que seieditaanies sanado eliminando o povo (os judeus que sao cam alte lo), reproduz-se, assim, transformando novamente todo © povo alemio em vida sagrada votada A morte e em corpo biolégico que deve ser infinitamente purificado (climinando doentes mentais e portadores de doenga hereditarias). E de modo diferente mas andlogo. es A Projeto democratico-capitalista de eliminar, cane ae desenvolvimento, as classes pobres nao sé an an seu interior 0 povo dos excluidos, mas transforma em vida nua ees as Populacdes do Terceiro Mundo. Somente uma politica que tiver sabido Prestar contas da ciséo biopolitica ee do Ocidente podera deter essa oscilacao : Sewie pee guerra civil que divide os Povos € as 40 FILOAGAMBEN O que é um campo? O que aconteceu nos campos supera de tal modo o conceito juridico de crime que com frequéncia se omitiu simplesmente de considerar a estrutura especifica juridico- politica na qual aqueles acontecimentos se produziram. O campo é somiente o lugar no qual se realizou a mais absoluta condicio inhumana que ja se deu sobre a terra: isso é, em Altima anilise, aquilo que conta, para as vitimas e para seus pdsteros. Seguiremos, aqui, deliberadamente uma orientagio contraria. Em vez de deduzir a definigio do campo dos eventos que se deram ali, iremos nos perguntar antes: 0 que é um campo, qual é sua estrutura jurtdico-politica, por que acontecimentos semelhantes puderam ter tido lugar ali? Isso nos levar4 a olhar para o campo nfo como um fato histérico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo. que, eventualmente, ainda verific4vel), mas, de algum modo, como a matriz oculta, 0 nomos do espago politico no qual ainda vivemos. Os historiadores discutem se a primeira aparigdo dos campos deve ser identificada nos campos de concentraciones criados pelos espanhéis em Cuba, em 1896, para reprimir ainsurreig¢do da populac4o da colénia, ou nos concentration 4 canips nos quais os ingleses, no inicio do século XX, ma- taram os béeres; 0 que importa, aqui, é que, em ambos os Casos, se trata da extensio a uma inteira populagio civil de um estado de exce¢io ligado a uma guerra colonial. Ou SeJa, Os campos nascem nio do direito ordindrio (e menos do que nunca, como também se poderia acreditar, de uma ear sformagiio e de um desenvolvimento do direito carce- Tario), mas do estado de excegio e da lei marcial, Isso € ain- da mais evidente para os Lager nazistas, sobre cuja origem € sobre cujo regime jurfdico estamos bem documentados. E sabido que a base juridica do internamento nao era 5 direito comum, porém a Schutzhaft (literalmente: custédia Protetora), um instituto juridico de derivagio prussiana, que os juristas nazistas classificam, As vezes, como uma medida de policia preventiva, enquanto permitia “prender em cust6dia” individuos independentemente de qualquer comportamento penalmente relevante, unicamente com o fim de evitar um perigo para a seguranca do Estado. Mas a origem da Schutzhaft est na lei prussiana de 4 de junho de 1851 sobre o estado de sitio, a qual em 1871 foi esten— dida para toda a Alemanha (com excegio da Baviera), e antes ainda, na lei prussiana sobre a “protecio da fiberdace pessoal” (Schutz der persénlichen Freiheit) de 12 de fevereiro de 1850, que foram aplicadas macigamente na ocasiio da Primeira Guerra Mundial. Esse nexo constitutivo entre estado de exce¢do e cam- po de concentracio nio poderia ser superestimado para uma compreensiio correta da natureza do campo. A “protecio” da liberdade que esté em questéo na Schutzhaft 6, ironica- mente, Protecdo contra a suspensio da lei que caracteriza a emergéncia, A novidade é que, agora, esse instituto se libera do estado de exce¢io sobre o qual se fundava ¢ lhe é permitido vigorar na situagio normal. O campo é 0 espago que se abre quando o estado de excegdo comeca a se tornar a regra. Nele, 42 FILOAGAMBEN o estado de exce¢io, que era essencialmente uma suspensio temporal do ordenamento, adquire uma ordem espacial permanente que, como tal, fica, porém, constantemente fora do ordenamento normal. Quando em margo de 1933, em coincidéncia com as celebragdes para a elei¢o de Hitler como chanceler do Reich, Heinrich Himmler" decidiu criar em Dachau um “campo de concentra¢ao para prisioneiros politicos”, este foi imediatamente confiado as SS e, através da Schutzhaft, colocado fora das regras do direito penal ¢ do direito carcerario, com os quais nem naquele momento, nem em seguida, jamais teve qualquer relagd0. Dachau ¢ os outros campos que foram imediatamente construidos (Sachsenhausen, Buchenwald, Lichtenberg) permaneceram virtualmente sempre funcionando: aquilo que variava era a consisténcia da sua populagio (que, em certos periodos, particularmente entre 1935 e 1937, antes que comegasse a deportagiio dos judeus, reduziu-se a 7.500 pessoas), mas 0 campo como tal havia se tornado na Alemanha uma rea- lidade permanente. E necessario refletir sobre o estatuto paradoxal do campo como espago de excegdo: ele € um pedago de territério que € colocado fora do ordenamento juridico normal, mas nio é, por isso, simplesmente um espago exterior. O que nele é excluido, segundo o significado etimolégico do termo excecio (ex-capere), é capturado fora, incluido através de sua propria exclusio. Mas aquilo que, desse modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é 0 proprio estado de excegio. Ou seja, o campo é a estrutura na qual o estado de excegio, sobre cuja deci- sio possivel se funda o poder soberano, € realizado de modo estavel. Hannah Arendt observou uma vez que S Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945) foi um Reichsfihrer das Schutzstaffel (SS), comandante militar, e um dos principais chefes do Partido Nazi (NSDAP) da Alemanha Nazista. (N.T)) GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA a cacs emerge em plena luz 0 principio que rege © dominio totalitario e que o senso comum pote Se aa a admitir, ou seja, 0 principio segundo ae eerie S6 porque os campos representam, es qe vimos, um espaco de excectio, no qual a lei é integralmente suspendida, neles tudo & realmente possivel. S nao se compreende essa estrutura particular juridico- . litica dos campos, cuja vocagio é, de fato, a de ae estavelmente a exce¢ao, o inacreditavel que neles can ean totalmente ininteligivel. Quem entrava n campoise movia numa zona de indistingdo entre exter — ¢ interior, excecao e regra, licito ¢ ilicito, na qual (ae a toda protegio juridica; além disso, se era um juden ele jé havia sido privado, pelas leis de Nuremberg, de caus es de cidadio e, sucessivamente, no oes ae Solucio final”, j4 havia sido completamente d . cionalizado, Como seus habitantes foram despidos aa ee politico e reduzidos integralmente a Pai ° a ; E também o mais absoluto espaco biopolitico que jé existin a qual o poder no tem diante de si sendo a pura vida biolbei a ee mediagao. Por isso, 0 campo é0 ieee nl Tacligma do espago politico no ponto 2 itica se torn biopoltica ¢ o homo ster se confunde Gata ieee ° fre A pergunta correta em telagao i cometidos nos campos nao é a Ce uestiona! aoe como i ee! crimes tao atrozes contra seres humanos; mais h 5 e, sobretudo, mai ' a Lone S ie Se neat atentamente através pd s juridicos e de quais dispositivos eae sens humanos puderam ser tao integralmente vados de seus direitos e de suas prerrogativas, até cometer nNOS seus confrontos qualquer Asai heed mais como um delito (nesse ponto, de fato, tudo ti ih se tornando realmente possivel), ‘ i 44 FILOAGAMBEN Se isso é verdade, se a esséncia do campo consiste na materializagio do estado de exce¢ao e na consequente criagio de um espago para a vida nua como tal, teremos que admitir, entio, que nos encontramos virtualmente em presenca de um campo todas as vezes em que for criada uma estrutura semelhante, independentemente da entida- de dos crimes que sio cometidos ali e qualquer que seja a sua denominagio e topografia especifica. Sera um campo tanto 0 est4dio de Bari, no qual, em 1991, a policia italiana amontoou provisoriamente os imigrados clandestinos alba- neses antes de devolvé-los a seu pais, quanto o velédromo de inverno no qual as autoridades de Vichy recolheram os judeus antes de entregi-los aos alemies; tanto o campo de refugiados na fronteira com a Espanha, no qual morreu, em 1939, Antonio Machado, quanto as zones d’attente nos aero~ portos internacionais franceses, nas quais foram mantidos os estrangeiros que pedem o reconhecimento do estatuto de refugiado, Em todos esses casos, um lugar aparentemente anédino (por exemplo, o Hotel Arcades, em Roissy) de- limita, na realidade, um espago no qual o ordenamento normal é, de fato, suspenso e no qual o fato de que sejam cometidas ou nfo atrocidades nao depende do direito, mas somente da civilidade e do sentido ético da policia que age provisoriamente como soberana (por exemplo, nos quatro dias em que os estrangeiros foram detidos nas zone d’attente antes da intervengio da autoridade judicial). Mas também certas periferias das grandes cidades p6s-industriais ¢ as gated communities estadunidenses comegam, hoje, a assemelhar-se, nesse sentido, aos campos, nos quais vida nua e vida politica entram, ao menos em determinados momentos, numa zona de absoluta indetermina¢io. O nascimento do campo no nosso tempo aparece, entio, nessa perspectiva, como um acontecimento que marca de modo decisive 0 proprio espaco politico da GIORGIO AGAMBEN (MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA 45 modernidade. Ele se produz no Ponto em que o sistema Politico do Estado-nacio moderno, o qual se fundava no nexo funcional entre uma determinada localizacao (6 terri- toric) um determinado ordenamento (o Estado), mediado Por regras automiaticas de inscricdo da vida (0 nascimento ou naco), entra numa crise duradoura e o Estado decide assumir diretamente entre suas tarefas o cuidado da vida biolégica da nacio. Se a estrutura do Estado-nacio é de- finida por trés elementos, territério, ordenamento, nascimento, a tuptura do velho noms nao se produz nos dois aspec- tos que os constituiam segundo Schmitt {a localizagio, Ortung, e 0 ordenamento, Orduung), mas no ponto em que assinala a inscrigo da vida nua (0 nascimento que, assim, torna-se nagéo) no seu interior, Alguma coisa nio pode mais funcionar nos mecanismos tradicionais que regula— vam tal inscrigao, e 0 campo Passa a ser 0 novo regulador oculto da inscrigio da vida no ordenamento — ou, ainda mais, o signo da impossibilidade de 9 sistema funcionar seni se transformar numa maquina Ietal. E significative que os campos surjam juntamente com as novas leis sobre a cidadania e sobre a desnacionalizacio dos cidadios (nio 86 as leis de Nuremberg sobre a cidadania do Reich, mas tambéim as leis sobre a desnacionalizagio dos cidadios emanadas de quase todos os Estados europeus, incluida a Franga, entre 1915 ¢ 1933). O estado de excecdo, que era essencialmente uma suspensio temporal do ordenamento, torna-se agora uma nova ¢ estavel ordem espacial, na qual reside aquela vida nua que, em medida crescente, nio pode mais ser inscrita no ordenamento, O descolamento crescente entre o nascimento (a nua vida) e 0 Estado-nagdo é 0 fato novo da politica do nosso tempo e 0 que chamamos de “campo” é esse resto, Aum ordenamento sem localizagao (0 estado de excegao, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma localizagio semi ordenamento (0 campo como espago permanente de 2 FILOAGAMBEN exce¢io). O sistema politico nao ordena mais formas de vida e normas juridicas num espacgo determinado, mas contém no seu interior uma localizagéo deslocadora ee excede, na qual toda forma de vida e toda norma Bude ser virtualmente capturada. O campo igortig Cees deslocadora é a matriz oculta da politica em que anes vivemos, a qual devemos aprender a reconhecer nee de todas as suas metamorfoses. Ele ¢ 0 quarto, i elemento que foi acrescentado, quebrando a velha trindade Estado-na¢io(nascimento)-territério. E nessa perspectiva que precisamos olhar para 0 a parecimento dos campos numa forma, num certo aaa lo, ainda mais extrema, nos territérios da ex-Iugoslavia. O que estava acontecendo 14 nao é, de forma pearaes como observadores interessados apressaram-se em declarar, a redefinicao do velho sistema politico segundo Togas or ea étnicas e territoriais, ou seja, uma siroples repetigao los processos que levaram 4 constituicio alas eons europeus. Hé muito mais uma ruptura Se a ir 10 nomos e um deslocamento das populagées e das aes ae manas segundo linhas de fuga inteiramente payee) E oe importancia decisiva dos campos de Eun ca . © : nazistas nunca pensaram em atuar a Se engra vidando as mulheres judias, é porque 9 principio do nasci- mento, que asseguraya a inscrigéo da vida no ordenamento do Estado-nagio, estava ainda, mesmo ap eae transformado, de algum modo em Coe ees ne principio entra, agora, num processo de deslocamento e de deriva no qual o seu funcionamento torna-se, eam toda evidéncia, impossivel e no qual devemos See nio apenas novos campos, mas também sempre novas See delirantes definigdes normativas da inscrigio da vida na Cidade. O campo, que agora se instalou firmemente no seu interior, é 0 novo somos biopolitico do planeta. GIORGIO AGAMBEN MEVOS SEM Fil: NOTAS SOBRE A POLITICA Notas sobre o gesto 1. No fim do século XIX, a burguesia ocidental ja havia definitivamente perdido seus ges Em 1886, Gilles de la Tourette, ancien interne des Hépitaux de Paris et de la Salpetriére,” publicou pela De- lahaye et Lecrosnier os Etudes diniques et physiologiques sur la marche. Era a primeira vez que um dos gestos humanos mais comuns era analisado com métodos estritamente cientificos. Cinquenta ¢ trés anos antes, quando a boa consciéncia da burguesia ainda estava intacta, o programa de uma patologia geral da vida social anunciado por Bal- zac nao havia produzido senio cinquenta folhetos, todos decepcionantes, da Théorie de la démarche. Nada revela a distancia, nfo apenas temporal, que separa as duas tentativas quanto a descricio que Gilles de la Tourette faz de um passo humano. Ali onde Balzac nao via senao a expressao de um carater moral, aqui esti em obra um olhar que ja é uma profecia do cinematégrafo: © Bm francés, no original. Tradugio: “antigo interno dos Hospitais de Paris ¢ da Salpetriére”. (N’ Enquanto a perna esquerda funciona como ponto de Apolo, © pé direito ergue-se da terra softendo um mo- vimento de rotagio que vai do calcanhar 4 extremidade dos dedos, que deixam 0 chio por diltimo; toda a perna é agora levada adiante, e 0 pé toca o solo com o calcanhar, Nesse mesmo instante, 9 pé esquerdo, que terminou a Sua revolugdo e no se apoia mais sendo com a ponta dos dedos, desprega-se, por sua vez, do solo; a perna esquerda Segue adiante, passa ao lado da perna direita da qual tende Saproximar-se, ultrapassa-a, e pé esquerdo toca o solo como calcanhar enquanto o direito termina sua revolugio. Somente um olho dotado de uma visdo desse género podia colocar em agdo esse método das pegadas, de cujo aperfeigoamento Gilles de la Tourette com razio se sente muito orgulhoso. Um rolo de Papel branco de parede ao longo de sete on oito metros Por cinquenta centimetros de largura pregado no solo e dividido ao meio, no sentido do comprimento, com uma linha tracadaa lapis. As plantas dos pés do sujeito do experimento sio manchadas, neste momento, com didxido de ferro em PO, que as tinge de uma bela cor vermelho-ferrugem, As pegadas que o paciente deixa caminhando pela linha diretriz permitem uma perfeita medi¢io da caminhada segundo varios parimetros (compri- mento do passo, avango lateral, angulo de inclinagio, etc,). Caso se observem as teprodugées das pegadas publi- cadas por Gilles de la Tourette, é impossivel nio Pensar nas séries de imagens instantaneas que precisamente naqueles anos Muybridge”® realiza na Universidade da Pensilvania, servindo-se de uma bateria de 24 objetivas fotogrificas, O “homem que caminha em velocidade ordindria”, 9 “homem que corre carregando um fuzil”, a “mulher que © Eadweard J. Muybridge (1830-1904), fotdgrafo inglés conhecido Por seus experimentos com a utilizagio de miiltiplas camerne para captar movimentos, (N.T,) « FILOAGAMBEN caminha e recolhe um balde”, a “mulher que eumnba c manda um beijo” so os gémeos felizes e visiveis das eria- turas desconhecidas e sofredoras que deixaram esses tetas, Um ano antes dos estudos sobre a andadura, havia sido publicado 0 Etude sur une affection nerveuse ee a de Vincoordination motrice accompagnée d’echolalie et de copro lal its que devia fixar 0 quadro clinico daquela que foi depois chamada sindrome de Gilles de la Tourette. Aqui, a De tomada de distancia do gesto mais cotidiano, que aa permitido 0 método das pegadas, aplica-se & aoe le uma impressionante proliferagdo des oe de ae nd espasmédicos e maneirismos, os Se Soon ea de outra forma sendo como uma a generalizada da esfera da gestualidade. O paciente ndo é capaz de iniciar nem de finalizar os gestos mais simples; se Consegue iniciar um movimento, este é interrompido e desarranjado Pos sobressaltos desprovidos de coordenagio e por frémitos nos quais parece que a musculatura danga (chorea) de ae totalmente independente de um fim motor. ° equivalente dessa desordem na esfera da andadura é descrito ea mente por Charcot” nas célebres Lecons du mardi: Eis aquele que parte, com o corpo inclinado para frente, com os membros inferiores enrijecidos, em extensio unidos, por assim dizer, um no outro, see sobre a ponta dos pés; cles deslizam de algum modo sobre o solo, e a progressio ocorre através de uma es- pécie de trepidagio répida... Quando o sujeito é assim langado para frente, parece que ele esta, a cada instante, ameagado de cair para frente; em todo caso, é-Ihe quase impossivel deter-se por si mesmo. Ele sente, frequente- mente, a necessidade de apoiar-se em um corpo vizinho. i ( édit entista francés, ficou >! Jean-Martin Charcot (1825-1893), médico e cit ieee , muito famoso com seus estudos sobre a afasia e sobre 0 cerebral. (NT) GIORGIO AGAMBEN MEIOS SEM FIM: NOTAS SOBRE A POLITICA

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