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ESTUDOS INTERARTES: INTRODUGAO CRITICA Craus CLOVER Revisio de Helena Carvalhdo Buescu Hi mais de cem anos, S. H. Butcher, professor de literaturas classicas, abria © seu tratado acerca da teoria de Aristételes sobre a poesia e as belas artes, Aristotles Theory of Poetry and Fine Art (1894), com a observacio de que, apesar de seu «amor pelas distingées ldgicas», o fildsofo grego «nao classifica em lugar algum os varios tipos de poesia, e muito menos elabora um agrupamento cien- tifico das belas artes a fim de mostrar as suas diferencas espectficas» (113), O aca- démico ingles valorizava, porém, o facto de que «Aristételes foi o primeiro a elaborar a distingao entre as belas artes ¢ as artes aplicadas» (115). Butcher era um pensador cuidadoso, bem consciente do possfvel perigo de «nos encontrar- mos a atribuir a Aristételes, nao a sua prépria linguagem, mas a de Hegel» (114), tanto ao traduzir a Podtica, como ao interpretd-la. Mas a frustracdo acima referida d4 uma ideia ao leitor actual de como é dificil abandonar pressupostos paradigmiticos cuja validade parece estar acima de qualquer diivida. Nos tempos de Butcher, esses pressupostos inclufam a existéncia de uma diferenga essencial entre «belas artes» e «artes aplicadas», e também entre categorias transculturais e trans-histéricas que permitiriam uma classificagao sistemdtica, «cientffica», das artes de acordo com caracterfsticas intrinsecas. Um século depois, 0 para- digma dominante passa a assumir que tais disting6es sao resultado de praticas culturais e, assim, capazes de se modificarem. Mesmo se Aristételes tivesse feito tal classificacdo dos géneros poéticos, os seus critérios teriam sido de dificil apli- cago 4 produgao poética do tempo de Butcher, pois teriam inevitavelmente ligado consideragées «literdrias» e consideragées «musicais», como as chamaria- mos hoje. Para Aristételes, nao teria sido «légico» desenvolver teorias indepen- 333 FLORESTA ENCANTADA, dentes para a poesia e para a musica — simplesmente porque na prética as duas artes eram entio inseparaveis. O nosso paradigma actual nao nos permite desenvolver uma teoria normativa dos géneros; no entanto, muito da nossa pratica crftica e institucional ainda sanciona a distingdo entre a literatura e a musica como «artes» individuais de um modo que teria parecido «légico» para Butcher. Saber que tal distingao nao estava dispontvel para Aristételes nao nos ajuda a reconstruir exactamente o que este teria em mente quando pensava em uma tragédia ou uma ode coral. E provavel que as entendesse como performances intermedia mais do que como textos lidos, do mesmo modo que hoje ndo con- seguimos pensar no texto de uma dria de 6pera ou a cangao dos Beatles «Lucy in the sky with diamonds» sem a sua mtisica. Na prdtica académica moderna, porém, o estudo das odes e tragédias da Grécia antiga cabe aos departamentos de literatura (principalmente pelo facto de que delas quase nada sobreviveu para l4 dos textos verbais), enquanto que o estudo de cangées € éperas, por outro lado, tem permanecido tradicionalmente nas escolas de mtisica, o que resultou no facto de que frequentemente a atengio prestada as letras de mtisica ¢ aos libretos € insuficiente. A estrutura das disciplinas académicas que herdé- mos do passado-¢ o tipo de instrugao fornecida por elas j4 se tornaram hd muito tempo inadequados para abordar varios fenémenos culturais, tanto do passado remoto como do cenério contemporaneo, onde predominam textos intermédia e multimédia. Mas mesmo sem o apoio institucional (até bem recen- temente), existe jé hd muito tempo um discurso interdisciplinar preocupado com os contactos e inter-relagSes entre as artes; um discurso matcado pelas mesmas mudangas de paradigma, de foco e de método pelos quais passaram as disciplinas académicas individuais. O proprio Butcher deplorou em Aristételes nao sé a auséncia de uma classificagao das artes individuais de acordo com as suas caracteristicas distintivas, mas também o facto de que «ele nao assinalou a relagao organica das artes entre six (113). Butcher obviamente pressupunha que Aristételes deveria ter concebido o assunto da mesma forma. Actualmente, este discurso sobre as inter-relacdes entre as artes encontra a sua manifestagao institucional nos «estudos interartes», que representam a fase mais recente de um desenvolvimento cujas origens reflectem a juncao histérica de dois fenémenos distintos na cultura ocidental: (1) um estdgio espectfico do discurso sobre «a arte» ¢ «as artes», ¢ (2) a reforma (¢ até a propria criagdo) de um sistema universitario e de educagao publica que se tornaria entao no lugar principal para canalizar aquele discurso. Desde que a «literatura» (na concepgao moderna), a musica, as artes plasticas, o teatro e a danga foram introduzidos 334 CLAUS CLOVER 0 curriculum das escolas secundérias e do ensino superior, 0 estudo de cada ama dessas artes tem, em termos gerais, mantido um rigoroso isolamento em telagdo as outras artes. Tais prdticas resultaram de profundas mudancas na maneira pela qual artistas, criticos e tedricos comegaram a conceber «as artes» dois séculos atrés, bem como do facto de que nas escolas e universidades se tém atribuido diferentes fungées sociais, ideolégicas e pedagégicas ao estudo de cada uma dessas artes. Enquanto que a mudanga ocorrida no século xvi, de uma abordagem ret6- tica para uma abordagem estética da arte, criava um novo estatuto para todas as artes, esforgos criticos, tais como o Laokodn de Gotthold Ephraim Lessing (1766), estimulavam novas tendéncias no sentido de salientar em cada arte a sua identidade prépria, tendéncias que continuariam a aprofundat-se durante todo o século xix ¢ que se estenderiam até ao fim do Modernismo. A busca da pureza artistica culminou, entre outras manifestacGes, na rejeigio das qualidades «literdrias» (por exemplo, da representagio ¢ da narratividade) em certos momen- tos herdicos da pintura, escultura, musica e danga no século xx. Ao mesmo tempo, historiadores das varias artes, operando dentro de disciplinas académi- cas institucionalmente separadas umas das outras, comegaram a substituir a orientagao «extrinseca» da historiografia positivista por critérios «intrinsecos» a cada arte na andlise de mudangas de estilos. Assim, passaram a insistic na trajectéria e no ritmo particulares ao desenvolvimento de cada uma das artes, e tedricos debateram sobre a esséncia ou natureza prépria das varias artes, que ram entdo contrastadas mais do que vistas como inextrincavelmente (ou ainda, na metdfora romantica empregada por Butcher, «organicamente») inter- -relacionadas. No entanto, foi uma visto simultaneamente contrastiva e integrativa que levou alguns pesquisadores, no comego deste século, a insisticem em uma «wechselseitige Erhellung der Kiinste» [iluminag&o miitua das artes) (Walzel, 1917), uma posigéo reforcada pela tomada de consciéncia de que conceitos ¢ métodos usados no estudo de wma arte poderiam ser proficuamente aplicados, com os devidos ajustes, ao estudo de uma outra. A metéfora da «iluminagao muitua» implica entidades separadas embora nao necessariamente auto-sufi- cientes. A sua substituigao pela imagem de toda uma rede de inter-relagées entre as artes indicou o surgimento de uma perspectiva verdadeiramente inter- disciplinar que marcou a fase seguinte das pesquisas neste campo, Nos seus objectivos ¢ métodos, ela foi parcialmente modelada pelo recém-aparecido campo da «literatura comparada», do qual derivou também, nos Estados Uni- dos, uma outra férmula, «artes comparativas» [comparative arts], gramatical- 335 FLORESTA ENCANTADA. mente incorrecta e apenas inteligfvel para aqueles que nela reconhecem a expresso «literatura comparada». Um dos pressupostos essenciais que esse estudo partithava com o seu modelo era a existéncia de fronteiras disciplinares definindo tertitérios relativamente auténomos. Ao estudarem-se paralelismos ¢ analogias entre as diferentes artes, bem como as relagées ¢ ligacdes entre elas, a autonomia disciplinar raramente era questionada. A tarefa central era conce- bida como comparatistica, e a discussdo concentrava-se na propria possibilidade ¢ nos limites de comparagées através das fronteiras que separavam as artes. Sempre que questdes tedricas vinham & tona, elas centravam-se sobre os concei- tos, termos e métodos a serem legitimamente empregues neste tipo de pesquisa. Houve um outro ideal do século XIX que provou ser no minimo tio influen- te como o da pureza das artes: o ideal da fusao delas num Gesamrkunstwerk [obra de arte total]. Incentivado por novas tecnologias, pela explosio dos média consequente acelerag4o dos processos da informagao ¢ comunicagio, o seu legado levou a criagao ¢ & ampla distribuigdo de novos tipos de «textos» e de formas artisticas que n4o poderiam continuar a ser acomodados dentro dos dominios das disciplinas tradicionais. Mesmo quando ficaram por um tempo fora dos cdnones curriculares, a sua prépria existéncia suscitava um novo inte- resse em estudar as inter-relag6es entre as artes. Muitas vezes, esse interesse centrava-se sobre os trabalhos j4 canénicos nos seus aspectos intermédia ou multimédia que antes tinham ficado obscurecidos ou desvalorizados pelo iso- Jamento disciplinar; mas no curso desse tipo de investigacao, classes inteiras de «textos» intermédia ¢ multimédia (inclusive performances) foram (re-)desco- bertas ¢ re-avaliadas, algumas delas com tradigdes remontando a Antiguidade Classica. Desenvolveu-se também uma consciéncia sobre as tradigdes e prdti- cas culturais nio-ocidentais, prdticas nao conformes 4 abordagem dentro do sistema ocidental dominante de organizagio das artes e do seu estudo, sem que houvesse distorgao ¢ falsificagdo. Mas acima de tudo foi a formacao de novos discursos transdisciplinares envolvendo a antropologia, a linguistica, a psicologia, as ciéncias cognitivas, a semiética, a informatica, os estudos textuais, os estudos de comunicagio, a critica ideolégica (especialmente nas variantes marxistas e feministas), ¢ os novos estudos culturais (cultural studies) que inspiraram e forneceram modelos para a transformagao do tradicional estudo comparatistico das artes, ainda interdisciplinar, nos «estudos interartes» do nosso tempo, cujos interesses se interligam frequentemente com os de outros discursos transdisci- plinares. Ainda que actualmente os escudos interartes estejam a ser desenvol- vidos em grande parte dentro das estruturas institucionais existentes, eles ja levaram a criagdo de novos curricula ¢ novos programas académicos. Associagées 336 CLAUS CLUVER nacionais e internacionais, algumas delas dedicadas exclusivamente aos estudos interartes, promovem regularmente congressos sobre assuntos relativos a esta rea, e as pesquisas a este respeito alcancam j4 quase mil trabalhos publicados por ano somente em Iinguas europeias ocidentais, alguns deles em periddicos especializados. Entretanto, séo escassas as reflexdes sobre os objectivos ¢ ultima- mente sobre a organizac4o institucional dos estudos interartes tais como sao praticados correntemente. Como a maior parte do trabalho est4 ainda a ser feita por académicos trei- nados ¢ inseridos em alguma das disciplinas tradicionais, ¢ si0 poucos os indi- viduos formados dentro de um paradigma que nao tenha privilegiado uma das artes, é de se esperar que todos os interessados concebam os estudos interartes em termos de estruturas tedricas e metodolégicas das suas prdprias disciplinas de origem. Se por um lado essa situag3o pode dificultar ainda mais o discurso, porque a base de pressupostos ¢ expectativas comuns ¢ limitada, ela aumenta no entanto os desafios e as potenciais recompensas. As consideragées abaixo devem muito as praticas dos estudos da literatura comparada ¢ 4s maneiras pelas quais ela tem tentado definir-se como uma disciplina. Essa perspectiva justifi- ca-se pelo meu préprio background literdrio, como também pelo facto de que os comparatistas literdrios estao ji h4 muito tempo na vanguarda desta investi- gasdo, facto que deve por sua vez explicar por que raz4o, no passado, quase nunca s¢ questionou a identidade dos objectos a serem estudados ¢ quase nunca se mencionou os objectivos de tais estudos: aparentemente eram entendidos como sendo iguais aos objectivos dos estudos correspondentes dentro do escopo da literatura. A crise de paradigma encontrada nos estudos literrios nas trés tiltimas dé- cadas, que afectou profundamente a definic¢ao dos seus objectos ¢ objectivos, trouxe as mesmas consequéncias para os estudos interartes. Um dos reajustes mais incisivos resultou da tomada de consciéncia de que definimos os objectos de investigacio pelas perguntas que fazemos a seu respeito. Se a minha andlise se limitasse rigorosamente a determinar o estado actual do discurso interartes, teria logicamente que comegar por identificar os seus objectivos principais e depois determinar os objectos de estudo constitufdos por cada um deles. A minha decisio de abordar esses objectos ¢ objectivos a partir de um quadro histérico tem-me obrigado a lidar em primeiro lugar com os objectos, pela simples razdo de que eles receberam tradicionalmente maior atengio. Mas a minha discussio demonstrar4 também a impossibilidade de se tratar separada- mente os objectos ¢ os objectives. 337 FLORESTA ENCANTADA. Os Objectos dos Estudos Interastes Muitos estudiosos ainda ficariam satisfeitos com a afirmacdo de que os dis- Cursos interartes se preocupam com as inter-relagGes entre «as artes» ¢ entre as «obras de arte». Porém, os termos colocados entre aspas tém-se mostrado de cada vez mais dificil, se nao impossivel definicao dentro de um padréo norma- tivo ¢ transculturalmente valido. No uso mais comum, 0 termo «as artes» designa categorias dentro das quais «obras de arte» séo tradicionalmente classificadas, € cada «arte € concebida como tendo o seu préprio dominio ¢ consequente- mente as suas préprias delimitagdes. No entanto, enquanto a categoria rotulada «escultura» pode representar indubitavelmente uma «arte» para a maior parte do publico ocidenral, hd numerosas outras actividades culturais em cujas pro- dugées 0 estatuto de «arte» tem sido afirmado por uns ¢ negado por outros. Além do mais, as esculturas nem sempre foram «obras de arte» no sentido de uma estética pés-kantiana. E a isto acresce ainda que os museus de arte ociden- tais exibem como esculturas objectos nao-ocidentais cujas fungées originais eram bem diferentes de qualquer fungao jamais abrangida por conceitos ocidentais de arte. E se hd realmente outras culturas em que 0 escopo ideoldgico inclui con- ceitos préximos da estética ocidental, ainda assim os dominios que definem as suas artes individuais néo coincidem necessariamente com os nossos. A manei- ra mais adequada de se entender os conceitos «arte» e «as artes» serd pensar neles como construtos culturais ¢, portanto, sujeitos a modificagées. Tal visio implica que, num tempo futuro, o conceito de «arte», como muitos de nds ainda o conhecemos, poderd ter um significado meramente histérico. Jé ha quem fale, retroactivamente, sobre a «idade da arte» (por exemplo, Belting 1990). Enquanto se considerar que a distingdo entre «arte» e «ndo-arte» ainda tem alguma fungao, o melhor serd definir uma «obra de arte» como um texto, com- posto de acordo com um determinado sistema signico, que a comunidade inter- pretativa autoriza ou nos obriga a ler como uma «obra de arte». Esta concepgio € uma aplicacao mais ampla da consciéncia de que o estatuto de «literdrio» nao €inerente a certos textos ou classes de textos verbais, mas lhes é conferido pelos seus leitores. Uma das peas de arte mais discutidas no nosso século ¢ 0 urinol, datado, «assinado» (com o nome do fabricante) e exibido por Marcel Duchamp em 1917 como Fountain. Depois da fase inicial de ridicularizagao ¢ rejeigao, a discusséo em torno do objecto tem sido dominada pela questo do que real- mente faz dela uma obra de arte: 0 préprio objecto exibido, se visto de acordo com o convite de Duchamp, o gesto de seleccionar, assinar e exibir 0 objecto 338 ‘CLAUS CLOVER: numa mostra de arte, ou a proposta a accitag4o do préprio conceito de ready- -made. Um discurso sobre (as) arte(s) s6 pode ser vidvel ¢ vital se for capaz de acomodar, também, fenémenos contemporineos. A existéncia de «textos acha- dos», oferecidos e aceites como «arte» demonstra como se tornou dificil definir 0 objecto de tal discurso. Com a ascensfo da semidtica, os estudiosos tém-se acostumado cada vez mais a tratar obras de arte como estruturas (usualmente complexas) de signos ea referir-se a esses objectos como «textos», qualquer que seja o sistema signico envolvido. Dessa forma, uma danga, um soneto, uma gravura, uma catedral, um filme e uma 6pera sao todos «textos» a serem «lidos». Assim também uma cédula, um selo postal, um programa de TV e uma procissao religiosa. A semié- tica néo dispée de meios para determinar quais destes textos constituem «arter. A visio dominante ainda recorre ao conceito do estético, um conceito que esta constantemente a ser redefinido, num esforgo de nfo perder o contacto com 0 desenvolvimento das «artes». De acordo com essa viséo, uma obra de arte € definida por uma abordagem que privilegia a fungao estética. No entanto, em tais definicdes observamos uma diminuiggo continua de um critério que cos- rumava ser predominante: a presenga de uma forma esteticamente satisfatéria. Se um «texto achado» ¢ lido como uma obra de arte, ele pode ser também objecto dos estudos interartes. Um trabalho que trata um logétipo publicitério como um poema concreto ¢ o discute em conjungae com outros poemas con- cretos em fungdo das suas propriedades visuais e verbais parece nao necessitar de nenhuma sangao para Id da sua forga de persuaséo. Mas o discurso interartes nem sequer faz. questo de que todos os textos que ele toma como objecto sejam lidos como obras de arte. Neste caso, sua situagao coincide com a dos estudos literdrios actualmente, quando nao é mais estranho incluir textos indubitavel- mente ndo-literdrios em certos tipos de investigagao: a natureza dos assuntos em foco determinaré quais os textos a seleccionar como objectos mais apropria- dos, Em certos casos, pode haver uma justaposigao deliberada de arte ¢ nao-arte, e em outros a distingao pode ser quase irrelevante. Os assuntos em si mesmos poderdo envolver tépicos tradicionalmente associados com o estudo das artes, como questées de representagiio ou de organizagao formal, mas eles poderio igualmente favorecer abordagens tradicionalmente banidas por serem extrinse- cas a este tipo de estudo, como a critica ideolégica ou a investigacao da cultura popular. De facto, como veremos mais tarde, numerosas investigag6es tendem a dar menos importancia a textos individuais ¢ a valorizar, em seu lugar, insti- tuigdes como sendo os seus objectos mais adequados. 339 PLORESTA ENCANTADA Nos estudos interartes tradicionais, 0 objecto ¢ frequentemente um conjun- to de relagées percebidas entre pelo menos dois textos. Alguns tipos de relagdes intertextuais que se diz existirem dentro das fronteitas convencionais de cada arte também podem estender-se para 14 daquelas fronteiras. Mas um esquema como a tipologia das relagdes muisico-literdrias elaborada por Steven Paul Scher (1982) aponta para um fenédmeno nao encontrado, por exemplo, nas inter-re- lagées entre textos estritamente verbais. Musica programdtica, por oposigao a muisica absoluta, atesta a presenga da «literatura na muisica» quando o programa se baseia num texto literdrio. A evocacao descritiva de uma composigo musical {«muisica verbal»), a produgdo de efeitos sonoros «musicais» («muisica de pala- vras») e a imitagao de estruturas e técnicas musicais em textos literdrios assina- lam a presenga da «musica na literatura». E a combinagio de textos verbais ¢ musicais na miisica cantada representa a categoria da «musica e literatura» (mesmo dentro de uma visao convencional do campo, hd outras dreas nos estudos musico-literdrios que este esquema nao abrange, como alids 0 préprio Scher assinala). A situac4o é muito semelhante, mas nao idéntica, no campo das relacées entre a literatura ¢ as artes plasticas e, numa escala bem menor, entre a literatura e a danga. Um esquema tal como o de Scher nao representaria ade- quadamente as relagdes da miisica com a danga, e menos ainda com as artes plisticas. O esquema também nio consegue integrar conexdes mais complexas do que essas relag6es bindrias. Mesmo a épera, um dos objectos mais comuns para os estudos de «miisica ¢ literatura», ndo pode, para a maioria dos propésitos, ser reduzida ao libreto-com-partitura. H4 muitos outros tipos de textos multimédia ¢ mixed-media que se constroem sobre mais de dois sistemas s{gnicos, como a procissdo triunfal renascentista ¢ os desfiles de carnaval, o cabaret, muitos tipos de performances misica-e-danga, a maioria dos filmes, os video-clips musicais, e até mesmo a pintura dos literatos chineses, os livros de artista, e muitos textos de publicidade ¢ propaganda politica. Para varias abordagens dentro dos estu- dos interartes, textos desse tipo tém oferecido um material rico por si mesmo, sem a necessidade de os comparar a outros textos. Uma tipologia de tais textos exigiria uma boa dose de diferenciagao dos modos pelos quais os varios média € sistemas s{gnicos se interligam dentro dos textos. Como veremos, tragar uma tal tipologia parecer4 nao somente fitil mas também potencialmente prejudicial. Porém, alguns termos e as categorias (e portanto as distingées) por eles denotadas sdo indubitavelmente necessdrios para desenvolver um discurso que tenha sentido. Por isso, no contexto dos estu- 340 CLAUS CLUVER dos interartes, parece aconselhavel diferenciar os textos multimedia dos mixed- -media' ¢, mais importante ainda, distinguir esses dois tipos dos textos inter-mé- dia?, menos por razées de classificagao do que para analisar a interacgao dos diferentes sistemas signicos e dos média dentro de tais textos, quando esta andlise for importante para alcangar um determinado objectivo. Mas é preciso sempre recordar que os textos so, até certo ponto, construfdos pelos seus leitores ¢ pelo contexto em que sao recebidos. Um texto verbal lido como um poema € 0 mesmo texto lido como letra de uma cangio, e portanto integrado numa mu- sica, nao sao idénticos; uma dria ou uma abertura executadas separadamente num concerto nao séo os mesmos textos que s40 ouvidos como elementos integrantes de uma épera inteira. Faz parte do programa de estudos interartes explorar estas distingdes. E, por ultimo, ¢ importante considerar que os con- ceitos correntes de intertextualidade incluem textos compostos em varios siste- mas de signos diferentes, entre os muitos textos que deixam surgir tragos na leicura de qualquer outro texto, sem referéncias ou alusées espectficas. Nesta perspectiva, qualquer poema ou narrativa verbal, qualquer pintura ou danga € possivelmente também qualquer composico musical pode, num contexto apro- priado, ser em si mesmo um objecto de estudos interartes. Mas investigacoes ° Por textar mulrimédia encende-se combinagGes de textos separdveis e separadamente cocrentes, compostos ‘em média diferentes, enquanto que um tecto mived-media contém signos complexos em média diferences (que no alcangariam coeréncia ou auto-suficiéncia fora daquele contexto. A maioria dos video-clips musi- cais so um intercruzamento de textos multimédia e mixed-media: produzidos para vender a sua banda sonora (miisica com letra: texto multimédia), cles contém uma gama caleidoscépica de imagens mostrando 0s performers em ambientes que mudam rapidamente, onde se adicionam momentos de narrativa, fragmen- tos de danca, paisagens, interiores ¢ (cada vez mais) imagens inteiramente geradas pot computadores. Muitas ddessas imagens, que podem ser relacionadas com as letras somente por associagio, sto desprovidas aré ‘mesmo daqueles significados sem o som, ¢ até o ritmo da montagem de um video-clip pode perder o impacto quando separado do ritmo da miisica. 2 © texto intersemidtico ou intermédia recorce a dois ou mais sistemas de signos e/ou média de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performatives dos seus signos se tornam insepariveis, Exemplos si0 quadros feicos de palavras pintadas, desenhos grificos derivados de letras, muitos tipos de poesia visual ou sonora, bem como alguns tipos de publicidade, Love de Robert Indiana, seja em pinvura, poster ou esculvura, no é nem um texto estritamente pictdtico ou escultérico, nem um exemplo corriqueiro de uma notagdo visual de um signo verbal. Quem souber ler inglés ird leo como uma palavra, ainda que se trate de una verséo muito particular da palavra que no possa ser pronunciada, pois uma sonorizagéo adequada teria que vocalizar 0 arranjo e 2 forma das letras, bem como 0s espagos entre elas € em particular a inclinaggo ¢ 0 deslocamento do O, a caracteristica mais distintiva do texto que constitui ‘uma parte altamente determinante do seu significado, seja qual for 0 modo pelo qual ele seja concebido. ‘Chamar a textos como Love «textos intermédia» é apropriado apenas num esquema que classifica palavras, escrita, e pinrura ou escultura como média diferentes. Alguns estudiosos, discordando do termo sintersemi6- ticor por negligenciar os aspectos nio-semiéticos de muitos destes textos, sugeriram chamar-lhes tdo-s6 «xextos hibridoss, 341 FLORESTA ENCANTADA intertextuais nao se encaixam dentro do esquema de Scher, porque tem como seu objecto verdadeiro a construcao do texto pelo leitor e as convengdes que govetnam esse proceso. Tais reflexdes sugerem uma das raz6es por que o tipo de classificagao dado por Scher pode ter um efeito negativo: tende a ser exclusivista e canonizante, elegendo textos que se ajustam ao seu esquema como sendo os objectos mais apropriados aos estudos interartes, ¢ fazendo dos seus critérios de classificagao o privilegiado ou até mesmo tinico interesse dos estudos em quest4o. Desvalo- tiza as condigées de recepgao do texto ¢ o papel do leitor na construgao do texto, e no concede lugar a diferentes tipos de conexées entre as artes, que por sinal tém atrafdo crescente atengao nas Ultimas décadas, como veremos de segui- da. Tais esquemas taxonémicos podem ser titeis no sentido de corrigir algumas confusées conceptuais € terminoldgicas mas, como qualquer construto critico, eles inevitavelmente partilham certos pressupostos paradigmdticos que talvez no sobrevivam a uma préxima crise de paradigma. No antigo paradigma dos estudos da literatura comparada, um Jugar central foi ocupado por investigagdes sobre imitagao e influéncia, e em menor escala por estudos de tradu¢ao, e deste modo as relagées directas entre textos individuais sempre foram a ténica neste campo. Tais relagées foram ¢ continuam sendo também objecto dos estudos interartes. Hoje, questdes de influéncia tendem a ser submetidas ao interesse mais generalizado da intertextualidade ¢ reescrita. Tipos de relacdo que podem ser entendidos como formas de tradugao tém con- quistado uma posig&o muito mais visivel, e os avangos na teoria da tradugdo também tém afectado os modos pelos quais tais relacdes sdo percebidas nos estudos interartes. Aqui, mais uma vez, encara-se a influéncia do conceito cor- rente de reescrita. Por exemplo, os contactos entre os textos verbais e nao-verbais que agora sao vistos como tipos de tradugao incluem nao somente a transposi¢ao intersemidtica, como seria de esperar, mas também a descrigdo verbal, aspectos de musicalizagio, a ilustragao visual, a «transcri¢go» de certas caracteristicas na miisica programatica, a mimica, a danga e a adaptagao de textos verbais as exi- géncias de outros media, bem como as convengées que governam 0 seu uso (teatro, Spera, cinema, televisio). Podem ainda incluir a imitagéo, em média diferentes, de caracterfsticas formais ou estratégias composicionais usadas em certos textos. A categoria da «adaptacao» é mais complexa do que as outras. Recontar uma narrativa verbal em mimica ou dana ¢ uma forma de tradugao nao diferente da musica programatica narrativa, em que se substitui um sistema signico por outro com o intuito de denotar, em termos bem gerais, o mesmo objecto (a danga 342 CLAUS CLUVER usualmente envolve, é claro, a mtisica, que pode ser uma pega especialmente composta para a ocasiio ou uma pega jé existente ¢ importada para funcionar num novo contexto, o que vai alterar o seu significado). Mas enquanto um texto traduzido de uma I{ngua verbal para oucra normalmente nao requer 0 conhecimento do original para ser compreendido, aspectos programaticos de danga e musica baseados em narrativas verbais frequentemente pressupdem a familiaridade do ptiblico com 0 enredo, embora nao necessariamente com a sua exacta verbalizagao em qualquer versio particular. Ler esse tipo de danca, ou mais precisamente, [é-la como transcricdo de uma narrativa verbal, requer, portanto, que se processem signos criados por corpos em movimento, na maioria das vezes simultaneamente com signos musicais, relacionando-os com uma versio, relem- brada, daquela narrativa, embora a experiéncia real da danga nao envolva pala- vras, Essa relago deve ser difcrenciada da «adaptacao», um termo melhor usado para textos como filmes, ou como uma épera ou pega teatral no palco, que incorporam partes do texto-fonte (didlogo, por exemplo) e so bascados num script ou libreto com instrugées de encenacSo — textos verbais que em si mesmo poderdo ser comparados com o texto-fonte. A andlise de um libreto de dpera como tal requer estudé-lo em conexdo com a miisica, além de com todo 0 apa- rato do teatro operatico. Se o libreto foi adaptado de uma pega teatral € 0 objecto de estudo é a sua relagao com o texto fonte ou o modo de adaptagio, é importante lembrar que tanto a pega como o libreto sao textos verbais que dependem de cddigos convengées ndo somente de um sistema literdrio, mas também de sistemas diferentes de representagao cénica. ‘Além das relagées entre textos individuais, os estudos interartes tém tradi- cionalmente incidido sobre as relagdes entre séries ou classes de textos em duas ou varias artes; mais recentemente, tém-se incluido séries de textos em sistemas s(gnicos nao-artisticos, por motivos e com finalidades que discutiremos em seguida, Nos estudos mais convencionais, a relagao pode envolver séries de tex- tos representativos de um género ou de um movimento, como acontece nas propostas de construir analogias literdrias ¢ musicais com o Impressionismo pictérico, e assim apresentar o Impressionismo como um movimento mais abrangente. Outros critérios para agrupar textos incluem conexdes tematicas ou da mesma matéria (¢. g., Fausto nas artes), esquemas estruturais ou técnicas composicionais (¢. g., as formas abertas ¢ fechadas de Wélfflin), fungées espe- cificas dos textos (¢ g., propaganda, divertimento popular, instrugao, servico religioso), origens culturais ou sociais (¢. g., as artes mais pré-colombianas; can- ges ¢ poesia de trabalhadores alemaes do século XIX), a produc4o pelo mesmo autor (0 opus literdrio de um poeta comparado com a produgio musical de um 343 FLORESTA ENCANTADA compositor — ou, no caso de Doppelbegabung [talento miltiplo], com a sua prépria), o publico visado (criangas, a corte real, uma seita religiosa, uma mi- noria étnica), valores ¢ preconceitos partilhados (como objectos da critica ideo- légica), ou uma combinagao de quaisquer desses critérios ou ainda outros. Esses agrupamentos sao, é claro, resultado de modos ¢ motivos particulares de se pensar os textos. Sdo constituidos como objectos de estudos interartes pelos objectivos a serem atingidos. Na pratica, todos estes exemplos podem envolver varios tipos de relagdes. Consequentemente, as questées colocadas podem provir de preocupagées bas- tante diferentes entre si. Por exemplo, pode ter interesse demonstrar que certos tracos estilfsticos ou estruturais, que s4o considerados caracter{sticos de um movimento ou de certas convengées vigentes em uma arte, serviram de mo- delo para um texto ou uma série de textos em outta arte. Técnicas de colagem e montagem tém-se difundido, neste século, a partir das artes pldsticas e do cinema, atingindo todas as formas de construir textos. H4 exemplos de textos literdrios que foram estruturados seguindo o exemplo da fuga, ou da forma so- nata, ou por uma adaptacao da técnica musical de tema-e-variagao, Convengoes genéricas tém sido imitadas em «poemasy sinfénicos, sketches e «arabescos» literdrios, «retratos» musicais, ¢ em tragos «géticos» de varias formas de arte. Em muitos casos, 0 processo de imitacao ele mesmo pode ser de pouco interes- se, € muitas vezes € dificil (ec nao importante) decidir se o que parece uma analogia é resultado de um contacto intertextual, ou de factores que modela- ram o desenvolvimento de todas as artes envolvidas, ou se se trata de um «para- Ielismo espontaneo», E normalmente a situacdo € complexa, Vejam-se as versoes de uma mesma matéria, por exemplo, representagdes de Salomé: embora te- nham invariavelmente a sua fonce original na narrativa verbal, as vers6es picté- ticas ou operdticas respondem também tanto aos tratamentos dessa matéria nas artes plasticas ou no teatro lirico como as suas concretizagées literdrias, o que complica a questao dos contactos intertextuais. Alguns géneros tém os seus para- Jelos em outras artes, frequentemente baseando-se em convencées semelhantes ou andlogas que, no decurso dos perfodos, podem ter sofrido transformagSes comparaveis sem que se possa demonstrar um débito de uma arte para com a outra. Porém, é claro que tanto a construgao de géneros como a determinacio de paralelismos e analogias sfo actividades do leitor sujeitas as restrigdes das comunidades interpretativas. Na medida em que afirmagées sobre o Impressionismo musical séo baseadas em analogias construfdas com o Impressionismo pictérico, elas derivam de um conjunto de pressupostos que acompanham o paradigma no qual o pesquisador 344 CLAUS CLUVER opera: pressupostos sobre a viabilidade de tracar analogias entre signos de siste- mas diferentes, e sobre a justificagao de tal proceso; sobre o estatuto ontoldgico de um movimento (facto ou construgio?) ¢ a validade de sua definigao; sobre a ascensdo e a decadéncia de movimentos artisticos ¢ suas causas; ¢ sobre as motivagées ¢ objectivos desse tipo de estudo. Quando as analogias tipolégicas se tornam 0 objecto dos estudos interartes, temos um caso caracteristico de uma deslocago de foco, do estudo das «rela- ges 20 nivel do objecto» para um trabalho com «meta-relagGes». A. Kibédi Varga observou recentemente que o discurso das relagdes palavra-imagem tem inci- dido mais sobre as relagdes entre comentérios, textos sobre textos, do que sobre as relagGes entre os textos em si mesmo considerados (Kibedi Varga 1989). Tal ¢ evidentemente verdade no que diz respcito a todo o discurso sobre (as) arte(s) que, como muitos discursos contemporaneos, ¢ marcado por um alto grau de autoconsciéncia. No entanto, enquanto afirmag6es sobre analogias inter-artis- ticas ou sobre movimentos artisticos. ou qualquer tipo de relagdes textuais forem vistas como derivados de pressupostos paradigmdticos, serd imposs{vel pensar em «relagées ao nivel do objector como sendo acessfveis a uma obser- vagio directa, nao mediada. O que fazemos na realidade é construir relagdes entre as nossas interpretagies de objectos primdrios. Isso explica o interesse do discurso contemporaneo em relagdes entre comentarios sobre textos, a partir do qual se prossegue frequente ¢ necessariamente no sentido de rever os pres- supostos, critérios e métodos de tais comentarios, bem como os contextos nos quais eles foram produzidos. Tais contextos incluem as instituig6es, entre as quais esto as proprias «artes». Como instituicées, as artes fornecem uma teoria critica que autoriza um «dis- curso sobre (as) arte(s)». No seu sentido mais genérico, o termo «as artes» designa as instituigdes que possibilitam e facilitam a concepcao, produgao, distribuigdo, valorizaco, intercambio e consumo das «obras de arte». As nossas universidades e academias, ¢ até certo ponto também o ensino secundario, tém estabelecido esquemas (na maioria das vezes auto-enclausura- dores) para os estudos histéricos e tedricos das principais artes no sentido tra- dicional, para a sua interpretagao critica, e em muitos casos também para a sua producdo e/ou desempenho. Em contraste com as outras artes institucional- mente consagradas, o estudo da literatura tem sido curiosamente compartimen- tado de acorde com um conceito historicamente poderoso chamado «literatura nacional», Consequentemente, foi-lhe atribuida uma funcao diferente quando introduzida no curriculum escolar: foi utilizada para incutir e nutrit a cons- ciéncia de identidade nacional. O estudo das outras artes tem-se ligado mais 345 FLORESTA ENCANTADA Proximamente 4 actividade prética, a criagao (composic4o musical, artes plas- ticas, incluindo fotografia ¢ desenho, e também cinematografia e mais recen- temente video) ¢ & performance (musica instrumental e vocal, danga, teatro); a «escrita criativay como disciplina académica é oferecida em grande escala so- mente na América do Norte. O desenvolvimento da literatura comparada como uma nova disciplina dentro dos estudos literdrios surgiu da institucionalizagao do conceito da literatura nacional. No entanto, em meados deste século, a lite- ratura comparada comegou a apresentar-se, pelo menos nos Estados Unidos, também como o focus dos estudos interdisciplinares, incluindo o estudo das telagées entre a literatura e outras artes, O local, a estrutura, a historia e as fungoes do estudo das artes nas escolas e universidades deverao tornar-se objec- tos eminentes do discurso interartes, especialmente nesta época de crise de paradigmas. Devido & sua orientagao intermédia e multimédia, um ndmero de novas formas de arte criadas no século xx, ou versées de formas mais antigas elabo- radas neste século, ainda nao encontraram um lugar assegurado dentro do sis- tema académico e nfo podem nela facilmente ser integradas por ele. Entre elas esto a banda desenhada, videoarte (inclusive o video-clip), arte hologrdfica, arte ambiental, instalagées, «arte-evento» ¢ arte performadtica, ¢ arte conceptual. Algumas delas poderiam ser reivindicadas simultaneamente por varias das dis- ciplinas tradicionais mas sao frequentemente ignoradas por todas. Isso deve-se, em parte, ao facto de que, numa perspectiva conservadora, alguns dos seus produtos sao considerados sub-arte: como os romances cor-de-rosa populares € certos «enlatados» de Hollywood, eles so tratados como objectos mais apro- priados para questées que se levantam em outros campos de pesquisa, por exem- plo nos estudos da cultura popular. Mas vistas de um Angulo diferente, todas as formas ¢ géneros de arte intermédia ¢ multimédia esto entre os objectos mais apropriados para os estudos interartes ~ a rea de pesquisa que, como ja vimos, actualmente j4 nao exclui as artes populares e mesmo textos nao-artisticos, € que h4 muito tempo partilha um grande ntimero de interesses ¢ objectivos com uma série de outras disciplinas. Tipos e Objectivos dos Estudos Interartes Ao longo desta sinopse achamos confirmada a nossa afirmagio inicial de que € dificil discutir os objectos separados das precocupagées de um discurso interartes, porque as perguntas que se fazem tém sempre determinados, impli- cita ou explicitamente, consciente ou inconscientemente, os objectos a serem 346 CLAUS CLOVER escolhidos para questionagio. Vimos acima que introdugées tais como as de Steven Scher ou Ulrich Weisstein, orientadas no sentido tragar esquemas de conexées entre literatura ¢ musica ou artes visuais, ndo dao quase nenhuma indicagio sobre o porqué da importancia de se estudar tais relagdes através das fronteiras entre as artes. Julgo que elas partiam da premissa de que o mero facto de apontar estes fenémenos jé tornaria ébvia a necessidade de os estudar, © que por sua vez subentendia um apelo aos pressupostos entio dominantes sobre os objectivos de um estudo das artes e de obras de arte, ¢ especificamente aos fins, supostamente auto-evidentes, dos estudos literdrios. Estas introdugées operaram dentro de um paradigma que nao reconhecia a ligagao entre os objectos ¢ os objectivos ¢ ndo antecipou mudangas na orientacao € nas preo- cupagées académicas. Do nosso ponto de vista actual fica bem claro que os in- teresses, énfases ¢ objectivos do discurso interartes mudaram, ¢ v4o continuar a mudar, de acordo com as mudangas de paradigmas sentidas nas disciplinas envolvidas no discurso, ¢ que isto trar4 consigo mudangas na construgao dos préprios objectos do discurso. Visto que no passado as discussdes do nosso tema lidaram quase exclusiva- mente com os objectos, decidi tratar primeiro deste territério familiar, embora ele jd tenha comecado a parecer menos familiar 3 luz dos desenvolvimentos mais recentes da teoria critica. Esta decisio forgou-me a negligenciar, na maioria das vezes, a interligacdo entre objectos objectivos, ¢ posso ter deixado a impressao de que nao hd quase nenhuma diferenga entre os objectos da fase «compara- tistica» e da fase contemporanea dos estudos interartes, especialmente por ter omitido deste panorama alguns dos objectos constituidos pelas fases mais re- centes e assim completamente ausentes das abordagens anteriores. Ao mudar 0 foco para os varios objectivos dos estudos intetartes ¢ para as orientagbes crfti- cas envolvidas, objectos j4 discutidos irio necessariamente reaparecer no campo de observagio, ¢ alguns outros vio apresentar-se pela primeira vez. ‘Tudo 0 que podemos fazer aqui é destacar brevemente algumas das mudan- Gas nos pressupostos paradigmdticos e consequentemente nas pteocupagées crf- ticas. Mais uma vez, a perspectiva privilegiada ser4 a dos estudos literdrios (e dentro desta foram totalmente ignoradas diferencas nacionais nas praticas disciplinares). Ainda que profundas, estas mudangas ndo se deram de forma abrupta, ¢ a maioria das grandes preocupagées da fase inicial no estudo das ainter-relagdes entre as artes» no século Xx continuam a ocupar um lugar no actual «discurso interartes» transdisciplinar, embora com considerdveis ajustes. Este século comecou com uma orientacio histérica que se centrava nos artistas € na sua «obra». De grande importancia eram questées de «fontes» ¢ 347 FLORESTA ENCANTADA, «influéncias» — inftuéncias recebidas e influéncias exercidas. Assim, também eram importantes questées relativas 4 recepcao 4 sobrevivéncia de uma obra. Quais foram os seus modelos, onde foi encontrar o artista a sua inspiragao? Tal histéria critica das fontes, avida em documentar os factos, sempre tendem a estender o olhar para as outras artes, na medida em que tal era importante ao lidar-se com o impacto causado por um artista, para registar quem musicara o seu poema, ilustrara o seu romance, escrevera um poema sobre a sua escultura ou usara a sua mtisica para a coreografia de um ballet. A questao da influéncia enfrentou a necessidade de mostrar o «génio criativo» de um artista — e mais tarde, quando os textos se emanciparam dos scus criadores, a «originalidade» do texto. Entao a questo era como um artista tinha transformado o achado e derivado em «coisa sua» ou como o material da fonte tinha sido assimilado ¢ recriado num todo novo ¢ organico. A consideragao do texto como um todo auto-suficiente cedeu nas décadas recentes a processos de re-contextualizagio, que acabaram por reintroduzir o autor, mas dentro de uma concep¢4o muito mais complexa da protlugio do texto como actividade sécio-cultural nao restrita a interacgdes dentro da arte ou dos média individuais. Mesmo que a «influéncia» seja hoje vista como uma faceta da intertextualidade, conceito mais amplo ¢ intricado que, como vimos, se estende para além dos sistemas s{gnicos individuais, a maneira como um artista recebeu ¢ relacionou textos criados em média e sistemas de signos dife- rentes continua a provocar um interesse persistente, da mesma forma que questes sobre apropriagdes e transformagées intersemiéticas, embora a énfase seja colocada menos na «originalidade» de uma obra do que na forma e na fungao da «reescrita». Titulos de teses como «Proust ¢ as artes» podem abarcar diversas preocupagbes ¢ abordagens, e o nuimero de tais trabalhos est4 aparen- temente a aumentar. Aumentou também o estudo de escritores como criticos de arte ou de miisica, da mesma forma que cresceu a atengio critica prestada a individuos produzindo obras em varios médias e sistemas signicos, Tais exem- Plos de «talento miltiplo» (Doppelbegabung) alimentam o intetesse actual em abordagens psicanaliticas ¢ em processos criativos. Outros tipos de abordagens procuram analisar as intet-relages entre os textos produzidos por esses indivi- duos, mas frequentemente com o intuito de descobrir descontinuidades ¢ con- flitos mais do que com o de uma complementagao harmoniosa. Esta expectativa domina especialmente o estudo de projectos mais recentes, onde o resultado € uma complexa obra multimédia mas nao necessariamente com a aspiraco estética de criar um Gesamtkunstwerk integrado ¢ totalizante. 348 CLAUS CLOVER Uma mudanga incisiva dentro da abordagem historiogréfica na viragem do século foi o deslocamento do enfoque nos artistas ¢ na sua obra para uma ten- tativa de se definir 0 perfodo através do estilo das obras produzidas — uma ten- déncia iniciada pelos historiadores da arte, mas adaptada pelos historiadores da literatura e musica para as suas disciplinas. Estas adaptag6es envolveram esfor- gos no sentido de se demonstrar em analogias ou equivalentes nos tragos esti- listicos — em grande parte para mostrar que conceitos de perfodo, como por exemplo o «Barroco», e até mesmo a distingao entre 0 «Barroco» ¢ 0 «Rocécd», poderiam ser aplicados a todas as artes, 0 que permitiria construir um conceito de perfodos mais geral e menos especificado para cada uma das artes. ‘Tragar aqui o percurso subsequente dos estudos de periodos requereria um espaco excessivo. Deveria incluir consideragoes sobre a ascensio ¢ a queda da Geistesgeschichte, bem como uma consideragao mais ampla da mudanga de uma visio essencialista, segundo a qual o tinico obstéculo para se atingir uma defini- do final do «Romantismo» era a falta de instrumentos apropriados e refinados, para uma compreensio de que conceitos de perfodo, embora possivelmente iteis, s40 construtos precdrios. Ao organizar o fluxo dos desenvolvimentos em perfodos e «movimentos», os historiadores das artes, a menos que recorram a conceitos tais como o Zeitgeist [espitito do tempo], iréo explicar o que eles constroem como fenémenos analégicos nas varias artes, como sendo resultados de mudangas socioeconémicas, intelectuais ou ideoldgicas, que teriam afecta- do de forma semelhante a produgo e recep¢do em todas ou varias das artes. Diferengas entre elas nas mudangas de estilo ou no ritmo dessas mudangas, nas preferéncias por certas matérias (Stoffé) ou géneros, ou no conjunto de valores ¢ viséo do mundo nio séo necessariamente explicdveis pelas diferengas entre média ou sistemas signicos, mas reflectem muitas vezes condicées diferentes na produgio e recepgo. Por outro lado, semelhangas em tema, Steff; género ou estilo podem ser resultado da base homogénea de certas «sub-culturas», de pu- plicos de um mesmo background cultural, social, étnico, regional ou 1 piiblicos da mesma faixa etdria ou do mesmo sexo; podem por isso apresentar contrastes significativos relativamente as preferéncias da cultura dominante. O reconhecimento da coexisténcia de culturas e puiblicos variados, bem como as mudangas na maneira de explicar a formacio ¢ fungao de cénone, leva- ram a um amplo consenso de que a concepgo anterior de um perfodo como um bloco de tempo relativamente unificado por um conjunto de normas, con- vencées ¢ valores dominantes era uma concep¢ao dificil de sustentar mesmo dentro da histéria de uma arte individual. Hoje, tende a considerar-se que essas 349 FLORESTA ENCANTADA concepg6es mais antigas se basearam na pratica de privilegiar determinados corpos de textos e sua recepgao no sentido da construgao de um c4none repre- sentativo, por raz6es que os varios ramos da critica ideolégica vao definir de maneiras diferentes. A tendéncia corrente ¢ tratar a histéria cultural em termos de séculos, substituindo 0 conceito de perfodo por um trecho de tempo obvia- mente arbitrdrio, para poder integrar a variedade de piiblicos e praticas de pro- dugao e a heterogeneidade de convengées, expectativas, gostos e valores que coexistem em qualquer momento, ao mesmo tempo assinalando que quase todos estes elementos eram substancialmente diferentes cem anos antes como também o seriam cem anos depois. Mas, como mostram as intermindveis dis- cusses sobre o «Modernismo» ¢ o «Pés-modernismo», o hébito de pensar em. termos de perfodos esté ainda bem em evidéncia e tomou-se parte integrante do discurso interartes, pelo menos no que se refere ao século xx. Enquanto geralmente se entende «a condigdo pds-moderna» como caracte- rizadora de um perfodo, o «Modernismo», embora sirva de termo colectivo para um nuimero de outros «ismos» entendidos como movimentos, € ele préprio frequentemente visto ¢ tratado como um movimento, sendo portanto mais coeso ¢ unificado do que um periodo - a nao ser que se trate de um perfodo unificado pela sua diversidade, como é o caso do «Pés-modernismo». Os mo- vimentos também nao tendem a exibir os atrasos temporais no aparecimento de fenémenos compardveis nas artes individuais, atrasos que problematizam a construgao de uma periodizacao compreensiva e tém fomentado a insisténcia em tratar as histérias de cada arte sepatadamente. O que caracteriza os movi- mentos modernos sao actividades, programas ¢ manifestos partilhados por artistas de varios campos. Isso pode resultar num estilo caracter{stico, embora as percepgées sobre o que constitui os tracos estilisticos andlogos apresentem vis{- veis divergéncias, como podemos ver na lista de candidatos propostos para 0 estatuto de escritor (ou compositor) cubista. ‘As questdes de periodizagio complicam-se ainda mais se considerarmos 0 mapeamento do territério cultural, e em particular as ideologias nacionalistas que se desenvolveram durante os dois tiltimos séculos. O conceito de Volksgeist [espirito do povo] gozava outrora da mesma popularidade que o Zeitgeist, os seus divulgadores insistiam em descobrir a sua manifestacdo em tracos estilisti- cos andlogos através de toda uma produgio e actividade culturais de uma nagao. Quando hé necessidade de se construir (ou, em situagdes pés-coloniais, «recupe- ram) a identidade nacional, frequentemente tém-se procurado isolar, em todas as artes, caracteristicas que expressem o «cardcter nacional», cujo desenvolvimento estd relacionado com a histéria particular da nagao. 350 CLAUS CLOVER Ao pensar em termos de culturas dominantes ou de subculturas, de identi- dades nacionais ou de esferas culturais transnacionais, os historiadores tém-se apoiado, hd muito, em mudangas de estilo, e por isso em analogias estilisticas entre as artes, como indicadoras da mudanga de atitudes, de valores ¢ Weltan- schauung [mundividéncia}, o que levou a desenvolver métodos de interpretar aspectos formais como manifestagdes de uma visio do mundo e da ordem das coisas. Consequentemente, as distingées tradicionais entre forma e contetido, Gehalt ¢ Gestalt, nas attes teptesentacionais foram subvertidas, e a construcao de uma seméntica das formas permitiu a incluséo da musica absoluta ¢ outros tipos de arte nio-objectiva em processos andlogos de interpretacéo, aumen- tando assim as possibilidades uma «iluminag4o muitua das artes». O surgimento da Stilforschung [pesquisa de estilos] foi um avanco teérico que concentrou a atengiio no texto mais do que no seu criador ¢ que trouxe uma mudanga de orientagio, da histéria para a critica: nos estudos literdrios, co conceito do texto como um objecto estético auténomo ¢ auto-suficiente aca- bou por reduzir a consideragao de contextos, ¢ a interpretagao, a tarefa de deter- minar o sentido do texto individual, tornou-se entao a preocupago central. A teoria, a histéria ¢ a critica erarn todas vistas como instrumentos para ilumi- nar «0 poema em si mesmo», que ficava sujeito aos processos da close reading e da explication de texte. Todas as categorias das relagdes muisico-literdrias no esquema de Scher, bem como o0s seus equivalentes nas inter-relagées entre as outras artes, s4o perfeita- mente acess{veis a empreendimentos interpretativos. Ilustracdes e musicalizagdes de textos verbais e verbalizagGes de pinturas, dangas ou composigdes musicais, enquanto abordadas como objectos de interpretagao, podem ser por sua vez lidas como interpretagdes, e portanto consideradas portas de entrada para se interpretar os textos a que elas se referem. As qualidades «literdrias», «musicais» ou «pictéricas» de textos criados em média diferentes, a imitagao de mecanismos estruturais e a interaccio entre sistemas s{gnicos em textos intermédia e multi- média podem ser exploradas com a finalidade de interpretar os textos onde ocorrem esses fenémenos, e da mesma forma podem usar-se os programas de poemas sinfénicos, os aspectos narrativos ou alegsricos de obras de arte visuais, os modelos literdrios de pecas de ballet e qualquer fonte real de «influéncia» ou adaptacao. Tais preocupagées, muitas delas explicitamente comparativisticas, ainda caracterizam um bom numero dos trabalhos que se fazem actualmente neste campo. No entanto, os empreendimentos interpretativos praticam-se hoje também dentro de um outro paradigma, que mais uma vez chegou a mudar alguns pres- 351 FLORESTA ENCANTADA supostos fundamentais, A mudanga comegou com a ampliagao da perspectiva critica para englobar a andlise de estruturas que subjazem a todos os tipos de textos, de praticas culturais e modos de produgao de conhecimento. Da maior importancia para o estudo comparativo das artes foi a ascensao da semidtica, porque prometia fornecer a metalinguagem, os conceitos, os termos e talvez também a metodologia por que os pesquisadores tém clamado desde que come- garam a trabalhar com analogias entre as artes ¢ entre textos especificos. Um dos resultados da abordagem semiética ¢ a prdtica de se considerar os produtos de todas as actividades artisticas (bem como produtos de «modos de fazer» fazeres signicos nao considerados artisticos) como «textos» a serem «lidos», ainda que pudéssemos correctamente argumentar — dependendo do que se entenda por «signo» — que nem todas as qualidades de uma cang’o, uma danga ou uma escultura sao semidticas, e que esta pratica poderd fortalecer a j4 dominante orientagao Linguistica de muitas teorias semidticas. De facto, ainda nao hé uma semidtica das artes amplamente aceite, nem existe um consenso quanto ao que tal semidtica deveria servir. Mas existe, isto sim, um largo consenso no sentido de considerar que um texto ¢ uma realizagao particular das possibilidades ine- rentes a um ou mais sistemas signicos especificos e que a construgao de seu(s) significado(s) se efectua sobre uma ampla gama de cédigos diferentes — ainda que a minha formulacao deste fendmeno possa ser considerada deficitdria ou destorcida, ¢ ainda que no exista um consenso sobre a distincdo entre «cédigo» c «sistema de signos». A compreensio do papel dos cédigos e dos seus usos tem tido um forte impacto sobre o desenvolvimento da teoria critica ¢ consequentemente também da teoria e pritica dos estudos interartes. Na medida em que a semidtica estd interessada na producio de significados, ela dé continuidade a abordagem cen- trada na interpretagdo, que caracterizou o paradigma precedente. Mas o pressu- posto anterior de que o significado est encerrado dentro do texto pela interacgao das suas estruturas internas foi minado pela reconsiderag3o do papel do leitor relativamente ao dominio das regras do sistema (competéncia) e A activacio dos cédigos na construgao de significados (performance). Hoje pensa-se que as regras inerentes aos sistemas de signos, e os préprios sistemas, nao sao estaveis, € que o poder dos textos de ditar os cédigos a serem accionados na interpreta- do é, na melhor das hipéteses, limitado. Os constrangimentos que se colocam ao leitor (existem sempre constrangimentos) residem menos no texto do que nas «comunidades interpretativas» as quais ele pertence, e que tanto autorizam como delimitam as possibilidades de construir significados. Além disso, os tex- tos j4 nao so vistos como entidades auténomas e auto-suficientes, mas como 352 CLAUS CLUVER envolvidos por priticas sociais, e os seus significados sio portanto entendidos como dependentes, pelo menos parcialmente, das fungdes que servem ou dos usos que sc fazem deles. Um dos resultados desta reorientagao critica foi a mudanga no tratamento dispensado ao conjunto de ilustragées ou musicalizagées do mesmo texto verbal, ou de verbalizagées de um texto criado num sistema signico diferente, produ- zidas através do decorrer do tempo. Em vez de serem consideradas como uma série de interpretacies, cada uma delas necessariamente parcial e deficitdria mas no entanto contribuindo para um entendimento mais complcto do texto, os estudiosos cujo trabalho ¢ integrdvel no novo paradigma analisaram as condi- es diferentes que levaram & producio dessas interpretagdes, numa verséo de Rezeptionsasthetik (Estética da Recepcao] tornada Rezeptionsgeschichte (Histdria da Recepgao} que coloca no lugar de um texto estdvel, embora nunca total- mente «realizado», a concepgao de um texto constantemente «reescritor de acordo com as praticas interpretativas que se modificam de geragao em geracao. E ébvio que tracar a histéria da recepgo de um poema através da musicaliza- Gao que dele € feita é uma tarefa mais complexa do que tragé-la através das reacc6es puramente verbais (descricées, resenhas, interpretagécs, tradugses), porque temos de levar em consideragao, ao lado das mudangas no modo de ler © poema, as mudangas nas convencées da composi¢Zo musical € nas atitudes padrao frente & relacao texto-misica, bem como as razGes responsdveis por tais mudangas. A complexidade deste empreendimento torna-se ainda mais evi- dente quando consideramos ilustragées visuais de textos verbais, que podem variar da mera explicagdo 4 idealizacao ou parédia, ou da representagao de mo- mentos narrativos & simbolizagao do essencial. Mas todos esses modos de se referir a0 texto verbal s4o também poss{veis ao musicar-se um poema, ¢ a prefe- réncia por qualquer desses modos nao € necessariamente uma simples escolha Qualquer atengio critica dada as condigées extrinsecas que determinaram uma interpretacao implica uma rejeiggo do paradigma anterior, que insistia numa aproximacio estritamente intrinseca ao fenémeno artistico, inclusiva- mente ao escrever a sua histéria. Situar um texto nos seus varios contextos modifica inevitavelmente o seu estatuto, de um objecto estético auto-suficiente para um objecto plurifuncional (fungdes que podem, ¢ claro, incluir 0 estético, mesmo como dominante). Nao € de se estranhar que essa reorientagao frequen- temente favorecesse aproximagies retéricas mais do que estéticas, ainda dentro dos estudos interartes. 353 FLORESTA ENCANTADA Um outro modo de considerar a relacdo de certos tipos de textos, inclusive ilustragbes e Bildgedichte [Poemas sobre obras de artes visuais], com textos pré- -existentes criados em diferentes sistemas s{gnicos é entendé-los como uma espécie de tradugao, e a traducdo por sua vez como uma espécie de reescrita. Como sugere a nossa discussio acima sobre os objectos dos estudos interartes, a lista de tais textos ¢ bastante extensa. Os estudos que seguem esta linha, em estreita conexao com as teorias actuais da tradugdo e com a tendéncia bem difundida na pratica pés-moderna de citar, reescrever, fazer colagens, enfim, de reciclar textos pré-existentes, tendem a ver a relacdo entre o texto-fonte e 0 texto-alvo sob a perspectiva deste tiltimo, numa reversio das prdticas anteriores. Ea fungio do texto-alvo que agora recebe a maior atengao critica, especialmente quando se analisam as diferengas entre este texto e 0 texto-fonte. Mas quando 0 assunto em foco ¢ a prépria possibilidade da traducao inter- semiotica no seu sentido estreito e tradicional, ainda enfrentamos as velhas quest6es: exactamente o que seria compardvel entre textos compostos em di- ferentes sistemas de signos, como determinar analogias ou correspondéncias sustentdveis, como evitar o uso de um termo de forma literal para um texto € figurativa para um outro — 0 que mostra da melhor maneira porque ainda vale a pena reflectirmos sobre a abordagem tradicional, pelo menos de passagem. Ha ainda outra raz4o por que o Bildgedicht tem atraido atencao crescente: trata-se de um exemplo da antiga rivalidade, no discurso critico ocidental, entre a descricdo e a figuracdo, o poder da palavra e o poder da imagem, do paragone frequentemente disfarcado por expressdes amigaveis como «as Artes Irmas» «ut pictura poesis». A discussdo ainda é muito viva e envolve reconsideragées sobre a distingao entre média ¢ sistemas de signos, incluindo af a validade de distinguir entre artes temporais e artes espaciais e de outras oposigées bindrias, como signos naturais e signos convencionais. Problemas de representaco leva- ram-nos a duvidar do valor pratico e da viabilidade do préprio conceito de ico- nicidade, ¢ eles estao ultimamente ligados a questdes de conhecimento e de construgao do mundo. A ekphrasis voltou a assumir um lugar central no dis- curso sobre palavra e imagem, ¢ os assuntos levantados no seu debate podem ser estendidos a todas as outras artes. Algumas das palavras-chave acima utilizadas indicam 0 caminho tomado pelos estudos interartes, de uma abordagem comparativa, ainda implicada em tratar um Bildgedicht estreitamente em sua relacao com o texto fonte, através dos estudos interdisciplinares que respeitavam as fronteiras disciplinares mas lidavam com tépicos e abordagens comuns, até um discurso transdisciplinar 354 CLAUS CLOVER que reconhece pouca utilidade para tais fronteiras nos assuntos sobre que se debruca. O termo «transdisciplinam indica uma aporia: leva em conta, por um lado, as realidades institucionais, enquanto que, por outro, declara a inadequagao das estruturas disciplinares existentes para lidar com os assuntos € objectos apon- tados pelo discurso. Questées de representagio, por exemplo, tém ocupado ha muito uma posigao central na filosofia ocidental, bem como nos seus varios ramos que mais cedo ou mais tarde se tornariam disciplinas independentes, da Algebra as ciéncias politicas e 4 psicologia (ao passo que 0 termo, com os seus diversos significados no ocidente, parece nao possuir equivalente adequado no pensamento e nas I{nguas do extremo oriente). J4 tratamos brevemente do papel que questdes de representagao tem desempenhado no discurso ocidental sobre as artes, nao sé em relagdo 4 mimese comparada com outras formas de representacio da «realidade», mas também nas tentativas de distinguir as artes uma das outras e de hes atribuir os seus préprios objectos ¢ métodos. O discurso contemporanco sobre a representagao foi um dos varios discur- sos que se tornaram verdadeiramente transdisciplinares, percorrendo livre, embora (na maioria dos casos) cuidadosamente, campos ainda retalhados por fronteiras institucionais, e descobrindo as suas proprias limitag6es muito mais em tradigées culturais divergentes (vide supra) do que em distingGes, por exem- plo, entre arte e a ndo-arte. Outros discursos deste tipo preocupam-se com a construcio da identidade — étnica, racial, sexual (e gender-based), cultural, na- cional, pessoal — e com a alteridade. Ha varias orientagGes criticas actualmente dominantes cujas preocupagées incluem as artes mas que se estendem muito mais além, como ¢ 0 caso das criticas psicanalitica, ideolégica, sexualmente espe- cifica [gender-based] ¢ sexualmente orientada, que podem recorrer a exemplos de toda e qualquer arte. De forma semelhante, h4 estudos sobre fenémenos como inter-relagdes ou oposigées € conflitos culturais, os efeitos das viagens exploragées, colonialismo e pés-colonialismo ¢ 0 «neo-imperialismo» econd- mico ¢ cultural, referindo-se todos eles, entre.outros objectos, as artes € a sua producio — tanto como sendo afectada por encontros € conflitos culturais como enquanto documentério critico destes conflitos. Uma pequena amostra bastard. para dar uma ideia da gama de investigagées transdisciplinares actuais envol- vendo as artes: doengas ¢ medicamentos; prisGes ¢ penas; as instituigdes as suas histérias; a natureza das revolugées; a reorientacdo do produto para 0 processo, que tem ocorrido na epistemologia, na investigacao cientifica, na produgao artistica e na propaganda e marketing; e a interac¢ao da ciéncia, tecnologia ¢ arte em fenémenos recentes como o «hipertexto» e a «escrita interactiva». Por si 355 FLORESTA ENCANTADA 86, qualquer lista deste tipo oferece pouquissima informacio: so, novamente, as perguntas que se fazem nessas investigacdes que acabam por mostrar a sua televancia potencial para o discurso das artes. Mas aqui ser4 suficiente observar que nestes estudos «as artes», «obras de arte» e a «produgio artistica» tendem a ser tratadas sem muitas consideragoes a respeito de seu estatuto de «arte», 0 que pode resultar em interpretagGes erréneas (um argumento critico feito nao sem raz4o, menos persuasivo para aqueles que acreditam que «leituras erré- neas» sao, de qualquer forma, tudo 0 que produzimos relativamente as obras de arte). No nosso contexto, porém, é muito mais importante apontar que muitas dessas preocupagées e aproximagées criticas se tem tornado dominantes tam- bém dentro dos estudos interartes contemporaneos, embora ligadas, usualmente, as suas respectivas orientagoes e discursos transdisciplinares. De facto, entre as quest6es e preocupagées que dominam o discurso das artes hoje, somente algumas s4o vistas, se que o sdo, como estando confinadas es- tritamente as artes. Mas um bom ntimero delas est4 mais ou menos restringido ao estudo de «textos» de todos os tipos, inclusivamente de textos visuais, mu- sicais ¢ cinematogréficos. A terminologia que se usa para designar os assuntos trai a sua origem, na maioria dos casos, nos estudos literdrios: o reexame do papel do «autor e da «fungao do autor»; a existéncia ou construgao do «autor impl{cito» e consequentemente do «leitor implicito» (em contraste com os «leitores reais» ou «empiricos», «super-leitores» e outros tipos propostos pelos estudos da recep¢ao); a distingdo entre textos «legiveis» e «escreviveis» e os pro- cessos de «releitura» e «reescrita»; 0 conceito da intertextualidade ¢ as suas im- plicagées; a narratividade; a constituicao e o papel dos géneros; a canonicidade ea formacio dos c4nones; a fungao dos «paratextos»; e 0 estatuto e a fungao dos «objectos estéticos». Visto que os textos nao existem nem funcionam num vacuo, assuntos como estes tendem agora a ser tratados como dependentes de praticas culturais. J4 vimos que se tem tornado dificil separar os estudos de textos das questes de produgio, distribuicao, valorizagao ¢ consumo. Cada disciplina artistica também trata de assuntos que considera seus pré- prios e dos quais faz derivar os seus direitos 4 autonomia institucional. Ha va- riagdes considerdveis entre as praticas disciplinares, e, quando lidam com os mesmos objectos, pesquisadores representando os diferentes campos levantam quest6es mostrando tais e tantas divergéncias de preocupagées e abordagens que por vezes se torna dificil encontrar uma base comum. A maioria dos histo- riadores da arte, musicdlogos, estudiosos liter4rios e estudantes de danga e teatro ainda ndo participa de forma activa do discurso interartes actual. Até certo ponto, esse é também o caso dos pesquisadores de cinema, que tiveram 356 CLAUS CLOVER outrora que fazer grandes esforgos para emancipar 0 seu campo dos estudos literdrios. Mas hd prosseguimento de investigac6es, muitas vezes altamente so- fisticadas, sobre a relagao entre o cinema ¢ a literatura; ¢ quando o estudo se volta para a cultura popular ou quando se envolve no escopo mais abrangente dos estudos culturais, alguns pesquisadores de cinema tém, ultimamente, am- pliado o seu foco para incluir as outras artes. Pesquisas sobre o cinema tém, de facto, ajudado a desenvolver modelos para algumas das actividades transdiscipli- nares em que o discurso interartes se tem empenhado. O presente levantamento indicou, entretanto, que este discurso se mostra actualmente dominado por modelos fornecidos pela teoria literdria moderna, uma visio que nao me parece indevidamente destorcida pelo meu préprio background. Até certo ponto, a hegemonia do verbal € inevitvel, j4 que 0 discurso requer a verbalizagao de textos nao-verbais para que se preste & andlise, interpretagio, critica ou compa- tacdo. Mas jé assinaldmos anteriormente que a predominancia da perspectiva linguistica é um dos pontos de resisténcia para uma semiética das artes ampla- mente aceitavel; é igualmente possfvel que a preponderAncia das abordagens liverdrias ¢ 0 facto inegdvel de que a maioria dos participantes deste discurso vem de um background literdrio acabem por funcionar como um obstdculo para os representantes de outras disciplinas. O ideal nao me parece consistir em algum tipo de s{ntese entre as abordagens ¢ as praticas disciplinares j existentes, embora devamos apoiar a tendéncia crescente entre os jovens académicos no sentido de procurar conhecimentos avangados em duas ou mais das disciplinas envolvidas nos estudos interartes. Na opiniao de alguns historiadores da arte e tedricos da musica, a teoria critica desenvolvida para os estudos liter4rios tem feito avangos que podem tornd-la em modelo para eles. Se essa afirmac4o for correcta, as teorias e os métodos futuros dos estudos interartes dependerao de como tal modelo seja adoptado ¢ transformado por outras disciplinas. A expectativa talvez seja infundada: Mieke Bal, por exemplo, tedrica literétia proeminente que tem dedicado muitas das suas pesquisas recentes a assuntos de texto e imagem, mostrou-se impressio- nada pela «espantosa vitalidade, talvez uma predominancia quase esmagadora, da histéria da arte entre as ciéncias humanas hoje», ¢ especulou em 1991 que isso «indicaria uma mudanga, da lingu(stica nos anos sessenta € no inicio dos anos setenta, através da antropologia nos anos oitenta, para a histéria da arte nos anos noventa como a disciplina central na qual outros campos se baseiam massivamente para a sua propria revitalizacao» (Bal 1991, 25). Mas é verdade também que todos esses modelos contém um {mpeto insacidvel em direcco & 357

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