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cre Saas oa Ke -. or eo ve Copytight © Suan Chak 1997 ‘Tis trmsaion of Tubing with Demons: The Idea nf Witchcra in Early Mader Europe, oogiolly published in Eeglsh ia 1097, is Daished by arrangement with Oxtord University Press. Bua ado de Thinking sith Demons: The Ides of Witheraft Early Modern Buco, ciginalmeate publica ei ngs ern 1997, 6 putlicads em seorso com a Oxteed University Press. ‘Dados Intemacicess de Catshogayo au Publsogo (CIF) (Camara Bras do Livo, SP. Brasil) Clank, Star Fensando cow Demis: A TdFiade Brava ay Prine de Be ‘ap Modema Stuart Crk taigio de Celso Mauro Pace — $86 Pavl Eshtora da Universidade de So Pa, 2006 ‘Til ein: Thinking with Demons: The dew of Wr East ‘Modern Europe. Biliografn. |ISBN85.314.0679-x |. Bauwadas Europa Hea 1 Mle ovate cops Ince pars entlogo sistetio: |. evar: Huroper Histona 153-4500 2 Bupa: Brute: Histéna 13345008 Direios em lingua portuguesa reservados & “Edusp ~ Editora da Universidade de Sao Paulo ‘Av. Prof. Luciano Gualbere, Travers 1,374 6° andar ~ Fa. da Antiga Retina ~ Cidade Universitria 5508-900 - Sio Peulo ~S?>~ Brasil ‘Divisio Comercial: Te. (x11) 3001-4008 / 2091-4150 SAC (Gxe1 1) 9001-2911 ~ Fax (Oxx1 1) 3001-4151 woewuspbe/edusp — e mail: edusp@edu.uop.br Printed in Brazil 2006 Fot feo 0 deposto legal BO. Bruxaria é Historia Taadis 2s covsas cém sev tempo, e para cada ocupagso chewa a sua hoew debaixo do céu (Eelesigieo 3, 1) Toda idéia hisedrica (.) 6 sempre atequada pora ¢ momento em que surge sempre inadeguds pars o momento seguinte (enederto Croce, Teoria & storia della Stortosrafa) No principio deste livro argumenteu-se que mesmo simples descrigles do de- ‘moniaco poderiam nao funcionar isoladamente. “Bruxaria” nao era, por assim dizer, tum termo positivo— uma simples questo de nomeacao ~ mas o produto de diferen- lagiies muitas vezes complexas, Os que esereveram a seu respeito foram especialmen- te confundidos por seu cardter inversivo € este ato mesmo de reconhecimento os comprometia com as convengées de pensamento ¢ expresso. No final das contas, seus relatos revelam pressupostos amplamente accitos sobre ordem e desordem nos sBguntos humanos Mas a descrigao nao poderta, ¢ claro, ser sua unica meta. Inclina-_ ‘\Vamese tambéma considerar questdes de causago e penguntar se os agentes demonta- cos poderiam efetivamente realisar as proszas a eles atribuidas, e par que meios. Em particular, era importante distinguir suas agoes de Fenomenos que eram tfo exotéricos ou to intrigantes (isto 6, “ocultos") mas diferentemente causados. Na Parte Il suge- rimos que questdes desse género eram de cardter essencialmente cientifico e que aqui a demonologia ficou completamente entedada com algumas preocupagbes urgentes da filosofia natural renascentista tardia. Agdes em que o primeiro contexto tinha um significado grandemente rimalfstieo agora se tornavam temas adequados para’ epis- remologia. As explicagdes e classificagdes emengentes assumiram seu lugar como for- mas de conhecimento paralelamente as oferecidas pela fisica, pela medicina e pela magia natural contemporiineas. Mais cedo ou mais tarde, porém, os tedricos da bruxaria se defrontaram com um terceito conjunto de problemas ~ rranspor suas investigagdes para uma outra chave ainda, Isto porque dificilmente poderiam se esqu Pawre Il: Histéeta 408 vos para o diabo e seus agentes serem muito, répria epoca do que em qualquer outra, “Qual € a racao”, dizia um titulo de capitulo em Grindtlicher Bericht de Franciscus Agricola, “porque tantos Magicos, Feiticelras ¢ Bruxas a0 descobertos em nossos tempos™ “Por que”, escreveu Hermann Samson, de Riga, Texistem tantos Magicos na presente época?™” James VI da Escdcia encetrou sua Daemonologie cismando porque “praticas demonfacas [...] nunca foram to abun- dantes nestas partes quanto agora”. Pienre de Lancre nijo se perguntava simplesmence sobre o nimero de mégicos ¢ bruxas contemporaneos, mas quando eles haviam ini- cialmente se infiltrado na Franga, Para muitos outros, a discuss desse novo aspecto do tema — chamemo-lo de dimensio da hruxaria como sucesso ~ foi um ingrediente vital, indispensdvel mesmo, do exito da demonologia, As agdes estudadas agora se tornaram uma espécie de res gestae — mais apropriadamente gesta Nei - capar de suportar a especulagio sobre a transformagao ¢ o desenvolvimento na sociedade hu- mana como um fodo. Isto nao significa que a especulagio sempre teniha sido muito profunda. Qual- quer quantidade de deficiéncias morais fontes de maldade poderia ser superficialmente culpada pela incidencia da bruxaria na €poca. Muitos diziam brandamente que Deus estava simplesmente punindo uma época pecadora sem precedente. Mas tsto provavel- inente exigiria mais perguntas sobre os motivos para os pecados contemporfineos supe- rarem os anteriores, para eles merecerem uma tao terrivel rettibuigao e sobre qual seria © propésito geral de Deus quanto a isto. Na verdade, os autores sobre bruxaria eram levados a considerar a significagaio mais profunda da magia e da bruxaria como aspec- tos definidores de sua época e, portanto, decisives para seu significado. Eles ficaram mergulhados na dinamica temporal do demonismo, nos padres que poderiam ser tra- cados em suas manifestagoes passadas, presentes e futuras. Em suma, a literatura sobre bruxaria tornou-se uma reflexio sobre a histéria. "i prtiation trimer ncer aaoTerna Tectoammenie (eremeeamnca quanntedy ee ais SEES Iousahs sug entie onto eS RU RVI alo GUNESES & hruxaria surgitam entre os seoulos NVC RVITE TAG em alguma outra época. A maneira como os contemporaneos explicavam o que também viam Tomo um quebra-cabecas histérico pode, portanto, ter algum interesse intrfnseco. Mas o objetivo principal sera mostrar que aqui, como em outras partes, sua visio da bruxaria estava ligada aos interesses intelectuais mais amplos dos europeus. Por um lado, descobriremos que a jovem demonologia moderna dependia, para suas catego- rias de especulasao histérica, dos modelos historiogrificos dominantes do periodo. Seus autores compartilhavam suas nogoes de agéncia ¢ causacao, mudanga ¢ periodi- * Agricola, Granticher Bericht, 61 (=80). * Samson, Neun ... Hexen predigt, as. Ei * James Vi e 1, Daemonologie, 81 * De Lanere, Du Sortilege, 280. BRUXARIA E HisTORIA 9 zagio, ea forma ¢ moralidade gerais do proceso histérico com os praticantes em geral da escritura histérica crista ou, como poderia ser chamada, “agostiniana”. Em parti- cular, estavam preocupados com um de seus temas rais ~a leitura escatolégica assuntos correntes. Por outro, a propria demonologia oferecia oportunidades para Sais hoes sa historiografia. A simples evidéncia de sucessos de bruxaria reforgava a divisio binaria da histéria do mundo agostiniane come uma luta drama- tica encre forgas morais antitéticas, com (o que Claude-Gilbert Dubois chamava) seu “desfgnio dicormico [...] fundado na opasi¢ao, da qual o resultado é garantido pela vitéria de um grupo sobre 0 outro”’. A evidéncia de sua aceleragio deu precisiio & idéia de que o desenlace estava préximo, transtormou em assunto mais exato a situa cao da época corrente no fim da histéria, ¢ ajudou grandemente na identificagio do Anticristo. Nesse sentido, o fenémeno da bruxaria ajudou substancialmente a enfo- car todo um paradigma historiogréfico. O transito intelectual era de duas vias; escritores sobre bruxaria dependiam de. uma teologia da historia (onde o diabo tinha, de vel constitu- tivo e primordial) ¢ ao mesmo tempo contribufam para sua elaboragio. © resultado foi_uma int ‘tacio da bruxaria radicalmente diferente de tudo que poderia ter Tegiam as visdes das historiadores depois do fim do perfodo de julgamentos de bruxas, Isto parece colocar um problema de acesso exatamente andlogo ao encontrado na Parte II. Ali, a inteligibilidade histérica da ciéneia fora de moda estava sob a dupla ameaga de uma abordagem racionalista do conhecimento cientifico em geral e de uma indiferenga com tudo que nao fosse uma leitura triunfalista de seu passado. Aqui, a convicgao da jovem escatologia moderna poderia perfeitamente ser omitida por historiadores intelectuais comprometides teoricamente com © empirismo como base da pesquisa histérica modema e relurances em cruzar novamente o limiar do século XVIIL, exceto para levantar os antecedentes daquele empirismo 20 gosto nao muito apocaliptico de (digamos) filélogos, juristas ¢ antiquérios. Felizmente, 0 problema nao era téo grave. O debate sobre a relatividade no saber histérico nao adquiriu a estatura do mesmo debate na ciéneia, principalmente porque a maioria dos historiadores em geral, e dos historiadores das idéias da cultura em particular, admitiram a questo. © positivismo ingénuo daqueles para quem o passado wie es eigentlich poderia ser fielmente retratado em narrativa, como que pego de surpresa, ja havia sido abandonado como mistificador. E a tentativa de garan- tit o direito de dizer a verdade histérica dando uma explicagao direta dos “fatos” havia se mostrado nao passar de uma afirmagio de autoridade. O significado € agora © Claade-Gilbert Dubois, La Concepeion de Thistoite en France au XVF sitle, 1560-1610 (Paris, 1977), 19-20, vejese tambéin 37, 408 tall PARTE Mlle HisoRtA getalmente reconheeido como pressuposto, bem como produto, do que os historiado- res diem, seu paradeiro sendo o arcabougo de suposiges em que eles operam no presente®. Quanto ao bem mais sofisticado "positivismo logico” dos que tentavam (em principio) redusir toda investigasao empirica aos mesmos cAnones metodolbzi- cos, este também foi desacreditado. Muito longe de sua nao confiabilidade como explicagio do conhecimento na srea (ciencia naturale fisica) em que se pensava que fesse inexpugnivel, ele € agora amplamente considerado incapaz de captar a coisa mesma que faz as ages humanas serem 0 que so ~ 0 fato de que significam algo sos que as realizam. Os argumentos alternatives em favor da abordagem “hermenéutica’ das cigncias humanas so, essencialmente, desdobramentos das visoes dos antigos campeses da autonomia da Geisteswissenschalien, escritores que, 2 exemplo de Fil they, Croce e Collingwood (tados eles historiadores praticantes), fizeram da interpre- Lago 0 pré-tequisita da compreensia. Mas os historiadates foram impelidos também nessa dirego pelo desenvelvimento da filosofia da Linguagem comum, pela arengao neo-estruturalista a significaco e pelis realizagoes relativamente a mao de antropé- Jogos sociais e culturais. Essas influéneias sio complexas demais para serem resumi- das, mas sto suficientemente familiares para dispenser uma énfase maior. Sew impor- tance efeito cumulative tem sido o de desenganchar a hisiéria de suas amarras madicionalmente reslistas, removendo gradualmente o sentido de que o pensamento histérieo ¢ responsavel por qualquer outra coisa que no ele proprio’ ‘Quaisquer que sejam seus ourmos efeitos, isto rem consequiéncias porencialmen- te libertadoras para 0 modo como veinos o préprio passado da disciplina. Um modo de pensamento que flutua liberto de tudo exceto de suas préprias posibilidades dis- cursivas teria de (se for adequadamente autoconsciente) ser hostil a uma explicagio triunfulista de seu proprio surgimento. Agora, mais do que ounea, es historiadores deveriam ser capazes de ashitir que a hist6ria ¢ simplesmente uma forma de intros- pecgio para os que constrozm o passado de certas maneiras. Eles deveriam, conse~ qiientemente, ser compreensivos com formas de entendimento histérico radicalmen- te diveigentes do seu. No caso da jovem historiografia moderna, isto esté efetivamente acontecendo agora. é foi comum esmiugar o Renascimento atras de indicios iniciais das atitudes © experiéncias que mais tarde vieram a dominar 0 traballio histérico. Autores safam em busca “Cas origens de certos problemas medernos da investigagio histsrica”, “das origens de nossa mentalidade histérica”, ¢ “dos fundamentos do © Porn uma defesa dests idéta, voja-se Roland Barthes, “Le Diseours de Whistles’, s Information, 6 (1967), 65°75: 7 Para. desapareciments geral Jo positivism Iiico em teors social, vejte Quentin Skinner, “ine troduction: The Retam of Grane! Thcon”, in. (ed. |, The Reeurn of Grand Theory in the Huma: ‘Setences (Cambridge, 1985), 6-12. Pata defensores do Gessteswisenschatten, vejase B.A. Haddock, ‘Aan Incodocticnr to Heconical Though (Lonidon, 1980), 151-60, vcial Science BRUXARIA E HISTORIA au conhecimento hist6rico moderno"?. Com intengdes idénticas as de historiadores da ciéncia pré-kubnianos, eles visavam “uma cronologia de realizacao positiva acumu- lativa numa especialidade técnica definida por compreensio tardia do que devia ter sido feito”. Em termos gerais, era a escritura historica humanista dos eruditos, com seu interesse pela politica, sua visio crescentemente secular da motivagdo humana € seu compromise com a baa pritica hiterdria que monopolizavam a atencao. ‘Um tratamento mais imparcial revelou a persisténcia € popularidade de ideais historiograficos muito diferentes. Podemos agora perceber que a Biblia e a teodicéia universal agostiniana continuaram oferecendo um arcabougo inteiramente satisfat6- rio para a interpretagao do processo histérico. A importincia de tempo teolégico, “tempo da igreia”, refleriu a atencao dada a salvagao, seus canals € seus processos!*. A providéncia permaneceu sendo fundamental a concepgies de causagao € propésito de sucessos ¢ a idéia do Anticristo a sua moralidade. Subdisciplinas hist6ricas como estudo de profecias e a leitura de prodigios floresceram como nunca. Destacaram-se, também, as condenagiies, por homens da igreja e outras partes interessadas, de estilos de interpretacao do tempo que desafiavam os oficialmente sancionados — em particu- lar, 2 astrologia judicial e 9 adivinhago'!. Mais do que tudo, a Europa da perseguigio as braxas testemunhou © ressurgimento ¢ a consolidagao da escatologia como questéio merecedora de interesse. Esta nao era assunto apenas para intelectuais, embora seja verdade que, entre eles, os biblicistas fizeram desta a diltima grande era de exegese do Apocalipse ¢ de seu equivalente no Velho Testamento, Daniel”, Sugerin-se, por exem- plo, que na Italia, e na Floranga de Savonarola em particular, do final do século XV € infcio do XVI, os sentimentos escatolégicos penetravamn todos os nfveis da socieda- de; Isto representa um belo contraponto & tradigdo litersria e mais fechada do pensa- mento histérico ciceroniano através da Itélia, sobre o qual os historiadores da histé- ria geralmente se concentravam em sua busca da modemnidade. Na vercade, por toda a jovem Europa moderna, a escatologia tinha implicagées para a experiencia religio- * F Smith Fassnet, The Historical Revolurion: English Historical Wriring and Thought 1580-1640 (Londoa, 1962); George Huppert, The idea of Pesoce History: Hisavical Enaition and Historical Phi- losophy in Renaissance France (London, 1970); D. R. Kelley, The Foundations of Modeen Historical Scholuship: Langusge, Law, and Hiscory in the French Renaisance (New York, 1970) Thomas S. Kun, The Even cal Tersion: Selected Studies in Screaciie Tradition aoxd Change (Lane don, 1977), 107 "© Jaques Le Goff, Time, Work, and Cirture in the Midile Ages trad, Arthur Goldhammer (London, 1980), 30. "Veja, por exemplo, RJ. W. Evans, The Making of the Habsburg Monarchy 1550-1700: An Inter pretation (Oxford, 1979), 394-9. "© Hi uma bibliografia de eseritos apocalipticos des séculos XVI e XVII, abarcando pouco mais de 1.000 itens, muitos dox quais comentircs sobre Apocalipse, em Patides e Witteich (eds), The Apocalyrse in English Rersissance Thought ard Literatare, 373-412 Pate Ul: Histoaia sa de pessoas comuns e comunidades comuns, bem como para seus Lideres religiosos ‘Sua tniversalidade social ¢ seu papel central na conformagao da violéncia religiosa foram demons:rador, sobretudo, no magistral estudo de Denis Crouzet sobre as rafzes do conflito religioso na Franga do século XVI". Estudar seu lugar na cultura curopéia 4, pois, teracesso a uma concepeao de tempo genuinamente mais popular, mais ime- diata-¢ (defensavelmente) mais tipica. Ajustes de visio j& haviam tomado isto uma possibilidade. Tentei apenas a tarefa mais limitada de retratar a escatologia como 0 contexto intelectual para a mentalidade histérica dos escritores sobre demonismo, ¢ como a fonte de uma expectativa geral sobre coisas como bruxaria. © modo como uma sociedade entende seu passado raramente € uma questo indiferente e frequentemente é um elemento imporzante de sua auto-imagem; é sem- pre “um dos modos em que uma sociedade se revela, ¢ revela as suposic&es e crengas sobre seu prdprio carster e destino". O prdprio tempo tem uma histéria social na forma de concepges concorrentes sobre sua forma ¢ instrumentalidade”., Isto certa~ mente é verdade, independentemente de o passado percebido ser real ou mitico. Na verdade, esta é uma distingAe que a localizagao da histéria num mundo de pensamen- to presente coloca em dtivida. Pois o que é real ou mitico numa visio do passado é fungao apenas das regras adotadas pelcs historiadores responsiveis por ela; © passado, neste sentido, é apenas uma modificagao do presente. Houve doas declaragtes parti- cularmente tteis dessa idéia na filosofia da tilkima metade do século XX. Uma foi a elegante proposta de Michael Oakeshott de que a experiéncia histérica ere simples- mente um “modo” da experiéncia presente ~ isto é, “o todo da realidade incluido na categoria do passado". A outra esté contida nos arinc{pios de transformagio pelos quais Lévi-Strauss relacionou signes lingiifsticos, estruturas sociais ¢ os padrdes de miros como arzefatos humanos homilogos"”. E verdade que cada uma dessas formull- ses omice a obstinagdo com que as pessoas (e mesmo s historiadores) persistera em atribuir objetividade aos passados que constroem. Para Oakeshott, isto era uma das Denis Crouset, Les Cucrriees de Dicu: La Violence au temps des troubles de religion (2 vols: Pars, 1990). Veja-se também Willem Frjhoff, “The Meaning of the Marvelous: On Religious Experience in the Early Sevenceenth-Century Netherlands’, in L. Laeyendecker, L. G, Jansma e C. H. A. Vethaar (cds), Experiences and Explanations: Miscorial and Sociological Esays on Religion in Everyday Life (Ljouners, 1990), 79-101, Sobre profecia em porticubar, veja-se Ottavia Niccoli, Prophecy and People in Renaisunce lay, wad. Lyi G. Cochrane (Princeton, 1390), esp. 329. 4 JW. Burrow, A Liberal Descente Vicwoilan Hisorians ara ce Eraglish Pase (Cambridge, 1981), 1-25 cf Marshall Sablins, “Other Times, Ocher Customs: The Anthropology of History", American An- chropologis, 65 (1983), 517-44. Le Gof, Time, Work, and Qukure, p. xi Michael Qakeshort, Experience and its Modes (Cambridge. 1933}, 118, vejacse eambémn 86-168. © Para umm resumo conveniente, vejo-se Lawrence Rosen, “Language, Hisiory, and the Lagic of Inquiry in LévicStrauss and Sartre”, Hist, Theary, 10 (1971), 269-94, BRUXARIA & HISTORIA 4b muitas contradigdes que acabaram tornando a hist6ria insatisfat6ria como apreensio cognitiva. Para Lévi-Strauss, foi uma questao da maior superficialidade. No entanto, cada uma dessas formulagses & também sugestiva das condigdes de inteligibilidade que precisam obter para 0 passado ter algum sentido. No que se segue, procurei con- siderar exsas duas feighes do pensamenco histérico. Tentei retratar uma vistio de pas- sado particularmente inicial da era moderna sem duvidar de sua objetividade para os que a tinham; mas considerei também nela uma modificagao de valores que eram correntes na propria sociedade modema primitive. No agostinismo, 0 conflito na histdria era, em todo caso, conscientemente exploraca como o equivalente temporal da oposigio em linguagem e antitese moral entre comunidades de homens e mulhe- res, Segue-se que a bruxaria aqui descrita seré a mesma que a bruxaria deserita na Parte 1 — sub specie praeteritorum. Postremus Furor ” es atanae Mas ai de Ws, 6 terra mar, porgive 0 diabe catu sobre vs com grande fro, sabesndo que the resta pouce tempes (Apocalipse 12, 12) esses So os Gleuinos tempos, ¢ Sard sate que Ihe rests pouco tempo, portanto se apressa, (William Perkins, A fruitful dialogue concerning the end of the world) ‘Quando autores questionavam porque eta tio grande a incidéncia da bruxaria nos séculos XVI ¢ XVII, as respostas que dayam eram invariavelmente expressas na linguagem da escatologia — isto ¢, refletiam idéias sobre o fim da histéria ¢ os sucessos. que esperadamente © anunciariam ¢ acompanhaniam, Bruxaria e demonismo eram referidos como aspectos daquele perfodo de tempo final em que homens e mulheres estavam correntemente vivendo. Embora inicialmente intrigantes, tornaram-se per- feitamente inteligiveis como feigdes de um mundo decadente. Num sentido que se tomou bastante preciso pela enegese da profecia biblica, exam sinais-dos tempos; © invesrigé-los poderia, por sua vet, produzir uma melhor eompreensio da histéria apo- celfptica ¢, assim, a um maior preparo para sua culminagao. Como em outros aspectos, o padrao j& estii claro no Malleus maleficarum. As artes maléficas, explicavam seus autores, nfo haviam surgido inesperadamente numa Xinica época, mas desenvolveram:se © cresceram com o passar das eras. Seguia.se dat que, com plenitude do tempo, veio o auge da perversidade: “E assim, neste crepis- culo e anoitecer do mundo, quando 9 pecado floresce por todos ladas ¢ todos os ‘lugares, quando a caridade arrefece, a maldade das bruxas e suas iniqiiidades supera~ buindam". E uma observagio importante, mas nao simplesmente por ser a obra am + [Kier e Sprenger}, Malleus maleticarum, 16; ef. Trithemivs, Liber acto qusestionum, in Hansen, Quellen, 293. A ligagio entre bruxaria © escatologio no Malteus maleticarum foi cbservada por Will- Erich Peuckert, Die Grose Wende: Das apokalmpeische Saeculum und Lucher (Hamburg, 1948), 119-30, Paare Il: Histoxia 416 plamente consultads e citada posteriormente. Foi Emile Male que opontou o debili tamento da caridade juntamente com a disseminagio de interesse proprio e a inver- sio da ordem social, como principais formas da decadéncia moral que, ao ver do final do século XV (eapoiando-se em Mareus 24), precederiam o fim do mundo. Associar a bruxaria a esses pecados é, pois, em si, uina indicagao de sua capacidade de conter uma significago historiea precisa’ Este ponto de vista foi subsegiientemente repetide por toda a Europa. O autor catélico francés Pierre Crespet achava que 0 florescimento de bruxas € miigicos era um prességio da iminente devastagao e supressio da fé). Seu colega dominicano Se- bastian Michaélis concordava que isto era uma advert8ncia dos ultimos dias que sé podetia ser ignorada por homens e mulheres que repetissem as loucuras dlos que vive- ram antes do Dilivio — uma alusio, fregiiente em escritos escatoldgicos, a0 ensina- mento de Cristo (Mateus 24, 37) de que “como aconteceu nos dias de Nog, assim sucederd na vinda do Filho do homem”™, Se a demonologia de Michaélis era domina- da pela expectativa apocaliptiea de que cle estava testemunhando a libertacao de Sata, 0 mesmo ocorria com a de Pierre Nodé. Frade da ordem dos Minimos ¢ autor de uma ampla € virulenta polémica contra a bruxaria na Franca, ele argumentava que feiticeiros, magicos e bruxas abundavam num mundo “decaindo com seu envelheci- mento”. Fram uma realisacao da profecia e, portanto, uma indicago vital de que a histéria do mundo estava proxima de seu desfecho’. No mesmo ano, o padre e tedlogo beneditino René Benoist sugeria que o florescimenco sem precedente da magia e da bruxaria, que havia cessado na igreja primitiva, poderiam remontar & negligéncia de Deus e & preeariedade da té na medida em que a luta apocaltptica entre Cristo ¢ Sati se eproximava de seu auge. Era o diabo, escrevia ele, que tormeva a condicao final das coisas muito pior do que a inicial®. Jean Le Normant, Sieur de Chiremont e lieute- nant assesseur criminel no baillage do Palais Royal, disse a Lu’s XIII que era um sinal da monte do mundo o fato de a magia e a feitigaria serem praticadas mais amplamen- © € explerada em Houdand, Sciences du Diable, 28-32. Em seu preficio 8 edicao francesa moderna do Malless, Le Marteeu des sociéres (Pars, 1973}, 58-9, Amar Danet associa 2 obra ao fnimo escatolégi- ‘oo prevalecente no fal do século XV. Emile Mile, L'Are teligieux de Ja fin. du moyen ge en France (Paris, 1949), 440, * Gresper, Dewx Livres, fo. 200% ef Jean Benedicti, La Triomphante Victoire de Ia vierze Marie, sur 7 malins esprts, finslement chassés du coms dime femme, dins I'éelise des Cordeleters de Lyon (Lyon, 1611), 70-1 + Michaelis, Admirable histone, a, BA's para uma diseusian mais completa de Michaelis, veja-se 0 capitulo 28. * Node, Dectaination, 2546 © Benoist, Pett fragment éarechistc, 12-13, 18, 34-6; ef Traeté ersetarane en bef les causes des maleices, 217-18, Sobre a “mentaité d'Apocalypse” de Benoist, veja-se Pierre Mesnard, L'Essor «de la philosophie politique ou XVF site, 3, ed. (Paris, 1969), 377.8, PosTREUUS FUROR SATANAE 417 te, mais ousadamente e com mais impunidade do que nunca; Deus puniria as execra- ‘ges de tantos sabas de bruxas levando, brevemente, a historia a seu fim’. Em 1653, 0 pastor hiuguenate de Thoiry, no Pays de Vaud, Frangois Perrault, ainda sugeria que {4 que (como se diz) o diabo & normalmente muito mais violento no fim que no principio, podemes dizer, com boa razdo, que estamos no fim do mundo". Outros autores franceses que associaram temporariamente a bruxaria eo demo- nismo com os iiltimos dias, inclufam os polemistas catdlicos Artus Désiré e Flori- mond de Raemond, o médico Claude Caron, o monge agostiniano Sanson Birette, 0 cénego dauphinois Jude Serelier, os coletores de prodigios Jean de Marconville ¢ Frangois de Belleforest, ¢ o pastor calvinista Pierre Viret”. Lambert Daneau acredita- va estar vivendo na velhice do mundo ~ a seu ver, este acabaria efetivamente depois de 1666", Até mesmo os deménios ¢ bruxas eram, ao que parece, obrigados a admitir © fato. Em 1610, um deménio em posse da freira aixoise Louise Capean advertia que ¢ Juizo Final era iminente; em 1613, Simone Dourlet confessou a Jean Le Normant que tanta tagia jamais seria conhecida nao fosse pela certeta “de que o fim do mundo se aproxinia”! Também na Alemanha esta era a visto de historia na qual os escritores sobre demonologia viriam a se apoiar. Um bom exemplo de um luterano argumentando nesse sentido é Andreas Musculus, superintendente-geral da igreja de Brandenburgo, que publicou diversos tratadas abordando o Jufto Final ¢ os sinais da proximidade do firm do mundo, bem como Von des Teuféls Tyranney (1561). Musculus pretendia mostrar 0 quae poderosa era a influéncia do diabo sobre as coisas no momento em que elas avangavam rapidamente para seu desfecho. A época em que seus Teirores viviam era “o derradeiro bocado e ponto final do mundo (das aller letzte driimlein von der welt, und das letzte zipflein), que em breve escorregard de nossas miios, ponde fim a este mundo temporal e transitério, ¢ trazendo o impereeivel e eremo”®, Em seu De sagarum natura de 1588, 0 médico e professor de filosofia natural na universidade Jean Le Norttant, De fa fin fy monde au roy tres-Chrestien Louts le juste (si, 1625), 10-113 para uma dscussio mais completa, veja-se capitulo 28 absixo, © Pertauk, Demanologte, 183. ° Crouier, Guerrers de Dieu, ii. 957-9 nn, 245 © 252, tece observagdes sobre esas cénexdes entré demopologia © escatoiogia, ¢ na 341, vé em Bodin também “une conscience prephétique”: cf. sobre & excatologia de Bodin, Howlard, Sciences du Diab, 67-76. * Danemi, Trearbe touching Antichrist, ass. Bi, pp. €9-90. "Michaelis, Admirable histori, fos. 260.9; Le Normant, Histoire veritable pt. 1, fo. 281 (para ¢ titulo completo desta obra, veja-e 0 eapitulo 28 abaixo, nots 7). ‘Andreas Musculus, Von des Teufels Tyranney, Macht und Gewait, Sonderlich in dieser letzten sagen, unrerrichrung (1561), in Stambaugh (ei), Teuielfiicher in Auswahl, iv, 198. Para a escarologia de Museulus, vejaae exp Vom Jimesten Tag (Erfurt, <. [1559)); —_. Vern Mesech und! Kedar vom Gog und Magog, von dem grasen critsal fir der Wele Ende (Frankfur/Xes, 157. PARTE IL: HustORiA 418 luterana de Corbach, Wilhem Adolf Scribonius, afirmava que, na medida em que o mundo decaia e creseia a firia de Satd'na era final, aumentava naturalmente o néme- ro de feiticeiros'’, Andreas Celichius ¢ Jacob Coler ofereceram posteriormente a mes- ima explicagao para a onda de casos de possessio demontaca em Mecklenburg, Priede- burg e ourros lugares na década de 1590. Bruxaria ¢ escarologia eram interesses adjacentes para os pastares luteranos David Meder e Daniel Schaller para o juris: consulto de Marburg, Abraham Saur. Nos sermdes ruidosamente apocalipticos de Johann Lauch, proferidos em Velburg, em 1595-1596, a bruxaria era um dos pecados dos diltimos tempos que havia trazido a ameaga de Gog e Magog, na forma dos turcos, sobre a Buropa't, Para o supetintendente de Schialkaklen, Christoph Vischer, era a superstigao, e especialmente o uso generalizado de béngiios (Segen) que anunciava 0 demonismo desmedido dos tempos finais!* No inicio do século XVII, Joachim Zehner, pastor de Schleusingen e superin- tendente geral de Henneherg, ¢ Johannes Ridinger, que pregava em Ober-Oppurg ¢ Weyra, na Saxénia, invocava a profecia apocaliptica para explicar 0 crescimento da ruxaria. Zehner aplicava o Apocalipse aos esforgos cortentes do diabo, redobritkos com a aproximagéo do Juto Final, pare transformar os filhos de Deus em seus servido- res, enquanto Rudinger fazia paralelos entre as adverténcias paulinas sobre o: males finais e flagelos contempordneos como o papado, os turcos e as bruxas. Ainda em meados do século, o Apocalipse continuava inspirande autores sobre bruxaria como © arcediago da igreja paroquial de Cistrin, Martin Muthreich, e o pregador de Rinteln, Hinrich Rimphofi. Em sea Drachen-Konig (1647), baseado na instigag2o 4 bruxaria de uma menina de nove anos pelo diabo, Rimphoff dev um relaro invulgarmente vivido ¢ alarmante da ameaca do demonismo, mas também consolou seus leitores; “o Senhor Jesus esta vindo em breve com seu amado Juizo Final e ele libertard sua noiva, sua sagrada Igreja, desse monstro infernal”. Mens numerosos, os catélicos alemies seguiram praticamente os mesmos padres que seus colegas franceses, bem como 6 exemplo pré-Reforma de Abbot Trithemius. Sua tecrizagac da hruxaria com- binava-se com uma escatologia que via o presente coma pentiltima era em que 2s © Sentonius, De sagorum natura, 40 ‘Johann Lauch, Ein und Dressy Tircken Prefiten «. Von Fang und Magog: nn welchen gehan- dete winde von dese Tirckerherkommen und urprung (Lauingen, 1599), fos. 52-56 ' Vikcher, Binfllger.. Bericht wider den .. Sogn, ass. Ali-AW, Ni. Para ues exemple vea- 4 Hocker, Der reuel sels, fs. xeetaret, que eta extensivamente de our hers concemporde © Rimphoft, Drichen-Kénig, 93; Martin Muthreich, Theolagicher Bericht von dem sehr schreekli chen Zomstarm des Teutels, welchen er au diesen letwen Zeiterr auch durch seine Cote die Zauberer Hexen und dergleichen Unholden spuen lesset (Fronkiur/OMer, 1649), preficio. Cf. Joann Adam Scherer, pracses (Christian Teautmann, responds), Deemonologia sive dase liputatonestheakxg ‘eae de mals angel, pub. por Troutmann (Leipsg, 1672), ass. ADA. EMUS FUROR SATANAE 419 artes mégicas ¢ a feitigaria reinariam incontestes'?, Um século mais tarde, quando 0 Bispo Fomer, de Bamberg, imprimiu seus proprios sermoes sobre bruxaria, ele falava de um diabo “que, libertado do inferno, busea e trama.a ruina da humanidade antes que © mundo acabe”. © autor catdlico de um imporcante guia de procedimentos em julgamentos de bruxaria, Theodor (isto €, Dietrich) Graminaeus, achava que a hete- sia da Reforma havia anunciado os dltimos tempos, uma vee mais, que quanto mais eles se aproximavam, maior era a firia de Sata Em outros lugares, prevalece de tal forma os mesmos pressupostos gerais sobre a histéria na demonologia européia que eles se algam & condigao de uma ortodoxia. No dueado de Cleves, na Rhineland, Johann Weyer falava de uma velhice do mun- do durante a qual o diabo poderia exercer seus derradeiros poderes sobre as almas”, Seu adversirio em assuntos de bruxaria, 0 suigo Thomas Erastus, sentia-se amengado Por uma “maré de supersti¢éo ¢ magia que parccia anunciar a vinda do Anticris- to”, Em seu De natura daemonum (1581), 0 italiano Giovanni D’Anania dizia que 6 crime abominavel de bruxaria, conguanto nunes ausente em époea alguma, havia se tornado predominante “nesta velhice derradeira do mundo”, Petrus Mar- tyr (Vermigli), professor ewingliano (no exilio) em Estrasburgo e Oxford, aplicou a adverténeia apocaliptica de Cristo (Mateus 24, 24) de que “hao de surgir falsos cris- tos ¢ falsos profetas e fardo sinais € prodigios” aos magicos, adivinhos ¢ feiticeiros de ‘seu priprio tempo”. Um tedlogo espanhol, Francesco de Osuna, atribufa a maior vio- lencia e persisténcia das tentativas do diabo de subyerser a sociedade, a sua conseiéncia de que o mundo se aproximava de seu fim: outro, Juan Maldonado, dizia que era por- que 0 diaba, como se anunciava no Apocalipse, deve ser likertado quando o dltimo dia se aproximar®. Ne Suécia, em 1669-1670, o préptio diabo alegadamente teria dito a criangas no sabi de Blakulla “que o dia do Jutzo chegaré prontamente™. © Peuckert, Die Grosse Wende, 119; Thomdike, History of Magic, vi 441. © Fomer, Panoplia ermanurae Dei “Episrola Desicatonia", 3: pars a escatalogia de Graminaeus vejase seu In Essitn’ ct prophetians sex dierum Genescos orstio, qua eenmiam prophetaruan et legis angumenta summatim comprehenduntur, et ratio Antichrist eiusque praccursoris Lueheri evidenrssime declaratur (Koln, 1571), of Inductio sive cirectornum, 92-3, "Weyer, De przestisiis daemanum, 23, Cesare Vasoli, “Alchemy in the Seventeenth Century: The European and Italian Seene”, in Righi- ‘ni Bonmill ¢ Shea (ede), Reoson, Experiment, and Mysticism, 51 8 D'Anania, De nature duemonuin, 147-8. Martyr, Semaine des trois questions, 279 Li Osuna somente numa cradueio contemporines; veja-se Osuna, Flagellum diaboli, trad. Egidis Albertus, fos. 2 (Alhertinus fot secretrio do Conselho Peivado do Duque Maximiliano da Bavari Maldonsdo, Trricré des anges et demons, fol. 155% 2 Hommeck, “An account”, in Glanvill, Saducismus exinmpharu, 588. Pawre ly Hitomi Na Inglaterra, Velha e Nova, o padrio repetiu-se entre os calvinistas que crata- vam de assuntos de bruxaria. Disia William Perkins, de modo algum um escatologista fandtico, que “nesta dltima eta do mundo e entre nés também, este pecado da Bru- xaria deveria ser tao firmemente punido quanto nos tempos antigos”. Seu contem- potineo Henry Holland escolheu um texto do Apocalipse como epigrate ¢ uma des- crigdio apocaliptica do diabo, que “vé que reino no vai durar muito e, portanto, de agora até o final do mundo” promove a bruaria’®, Entre os elérigos jacobitas, Ri- chard Bernard considerava a bruxaria o produto da “sangrenta maldade de Sata nesses diltimos tempos”, Alexander Roherts declarava-a um dos males pavorasos pro- fetitados para “esses iltimos dias € tempos perigoscs”, e Thomas Cooper a associava ao “avango da restauragio do Reino do Anticristo [..] nesses dias deeadentes”. ‘Uma das exposigdes mais completas do tema foi posteriormente oferecida por Natha- niel Homes, um pastor londrine que liderow diversas congregagées independentes nos anos de 1640 ¢ 1650, tomou-se um convicto milenarista e aguardava um iminen- te e muito literal reino de Cristo. Seu tratado Daemonologie and Theolagie (1630) era uma deniincia daquelas artes diabslicas — bruxaria, encantamento, adivinhagio, necromancia, astrologia— que haviam sido "vaticinadas como os idiomas € marcas apropriadas dos Ulrimos Dias (antes do surgimento de Cristo)”. No final do século XVII, Richard Baxter publicou seu The certainty of the world of spirits (1691) de- pois de um perfodo de intensos escudos durante os quais reavaliou os temas da hists- tia milenarista”’. Nao se deveria também esquecer o argumento de Cotton Mather de que a in- cursiio do diabo enfurecido sobre a Nova Inglaterra era um sinal infalivel de que os Mil Anos de prosperidade da Igreja de Deus no estavam muito longe de seu fim’. Em 1692, por ocasiao do problema das bruxas de Salem, ele escreveu a um colega que assim como 0 diabo estivera ativo antes do primeiro advento “assim sera pouco. anwes de nosso Senor volar novamente em sua Natureza Humana, quando ele vam bém privara os Demdnios de sua Regido Aérea para eriar uin novo Céu para os ali ® Petkins, Discourse, 246. Holland, Treatise agains witcheraf ass. Ad’ Bernard, Guide co granchjury men, 246; Rebers, Treathe of wiccheraft ass. AZ: ef, 3, 67: Coopers Mystery of witch-crafiy 6 Para 6 apocaliptismo de Bernard, veja-se também seu A key of knowledge for the opening of the secret mteries of St, Jolins msticall Revelxtion (London, 1617) % Nathaniel Homes, Dremonologie and cheologie (Lerddon, 1650), foncispicio; ef. A sermon (preached afore Thomas Andrews Lord Maior, and the aldermen, sherifs, etc. of the honorable compara tion of the eit of London (London, 1650), 10 © W.M. Lamont, Richerd Baxter and the Millenniume Procestane Impertlism and che Frglish Rewo- ‘erice (London, 1979), 70, ¢ veja-se também 30-2, 42-4, spentando para comparagdes com Henry More. © Cotton Mather, A discourse on the wonders of che invisible word, in Samuel G. Drake (ed), The Wirchcrafe Dehision in New England (3 vole; New York, 1866, red, 1970), i, 88. OSTREMUS FUROR SATANAE a ctiados”!. Outro pastor, John Hale, de Beverly, a exemplo de-suas contrapartes euro- péias de um século antes, interpretou a bruxaria em termos apocalipticos, ¢ seu colega de Salem, John Higginson, posteriormente recamendau A modesc enquiry into the nature of witchcraft de Hale como um guia para o propésito de Deus ao “soltar Anjos Maus, para fazer o mator estrago que pudesse entre nds como fizeram, para a punig2o de um Povo decadente”™ A sustentagiio dessas leituras dos sucessos da bruxaria repousa nos livros profé- ticos da escritura. A passagem que Mather escolheu para o sérmato em que The won- ders of the invisible world parcialmente baseou-se foi Apocalipse 12, 12 (citada em epigrafe no presente capitulo). Um motivo importante para esca condigo posterior quase candnica dese texto foi seu uso nia “Apologia Auctor's” que prafaciou 0 Mal- leus maleficarum e estabeleceu o modo eseatolégico na obra toda: corto que; entre os desastres de uma era decadent, a qual no eras mui come experién- cia em toda parte, o velho Leste, desmorcnando sob a sentenga de su ineparivel rua, nfo parou Je infectar, dee 0 inicio, com vires prazas de heresis, a igreia que © nove Lest, Jesus Cristo 6 homer, fen futicar com o darramamento de eu sangue, No entanto, ele procursfai-o especskmente numa paca em que; com o mundo er seu snoitece, daclinand: pers o fim, © com a cressnte malta dos homens ele sabe, em sua rande ita (como declara Join no Apoclinse), que the sobrou nouce tempo" Autores subseqientes também leram Apocalipse 12, 12 nde como mera confir- magia de que @ inimizade do diabo era uma forga no interior dos asstintos humanos e no fora deles, mas como explicagio histirica completa de porque ela havia agora assumido proporgties to ameagadoras. Na verdade,o editor de Frankfurt, Lazar Zerz- ner, que reeditou © Malleus maleficarum em 1588, acrescentou seu proprio *Pracfa- seo Mather John Richards, Boston, 31 de mao de 1692, nox Mather Papers, Manachuserts His, Soe. Colleton, 4 8 (2868), 393. 2 Job Hale, A modest engurty into the nature of witheraft (1702), in G. L Bure (6), Namaeives of the Wiccheratt cases 1648-1706 (New York, 1914), prelicto, 47, « “An epistle wo the reader” de Higgingon. Par o contextoapocalipccn das crengas em truxarie da Nove Inglatera, veinse Dovid D. Hal, Worlds of Weaker, Days of Pament: Popular Relzicas Belt in Early New England, 2.3. (Cambridge, Miss, 1990), 93-4, 101-2, ¢ (ede Increase Mathes) 104-10, > [Hleincich Kramer (Inttoris)e Jacok Sprenger], Mallews maleicarum (31. [Par], sd. (15101), “Apologia Avcwn, as, af esta apareceu em diversas ek. posterior, inclusive nas de 1529, 1580 & 1582, mas ao ade 1669. Nap est nella na ed. de Summers Pare Ill; HistoRia tio” igualmente escatoldgico ascociando todas as formas de demonismo e bruxaria com a proximidade do Jutzo Final, Como explicava Nodé, a hostilidade de Sata era tao mais aguda no final do século XVI porque Ihe sobrava cada vez menos tempo para infligir novos sofrimentos aos homens", Era exatamente 0 texto do Apocalipse que James VI e I tinha em mente quando coneluiu sua Daemonologie (1597) dizendo que uma das causas manifestas do grande crescimento da bruxaria era que “a proximidade do fim do mundo ¢ de nossa libertagao faz Satd agravar o uso de seus instrumentos, sabendo que seu reino est tdo perto do fim’, Tanto Franciscus Agricola, um padre catélico de Sittard, no ducado de Jlich, como Anton Praetorius, o pregador em Li- ppstadt, na Vestfilia, admiriam que hoave: magos € bruxaria em todas as épocas que a tatica do diabo nao havia madado no que cada um deles via come o Endzeie, Era © fato de o proprio tempo estar passando rapidamente que provocava 0 reduplicagio de seu furor e, portanto, da escula do problema contemporineo" Quando o eélebre tedlogo luterano Jacob Heilbronner ceniou realizar uma breve hist6ria da magia de- moniaca (como prelidio de seu ataque as teorias médicas de Johann Pistorius), ele também argumentou que, assim como Sata havia usado feiticeires para se opor & pala- vvra de Deus nos tempos biblicos, ndo era de espantar que © mesmo fosse verdade no século XVI, quando, “Sahendo que © momento do julgamento se aproximava, ele exercesse uma grande fiiria © se empenhasse com rexlas as forgas para derrubar a versa- de e a Igreja de Cristo’”", Tipieo, em todos os aspectas, foi este comentirio de Marcus Scultecus, o ministo de Seehausen, na Saxdnia, inspirado em Apocalipse 12, 12: Mos nesses dkios tempos a malic fink eg wits do Diabo € maico mals rue eteniveL, clo que em qualguerSpoea anterior pois bolangano’com Jukzamenro vittucso do Dia de Juto que est rove the vir, quand ca sfrimenta que tverprewoeao cata sobre su cabeca © quclmarépeereniae ‘mente ein seu peseogo, no earto tempo que atl The eta le se precipita como umn eaxame &,enfite «ido e tempestwoso como um co enlouguceivo, monde e a9gs roo ao redor,tentando corromper nos so compos elas apenas pars ter mats para reunit em sus fabidades diablicase seu impétio asassino™ % Nodé, Declamacion, 36. % James Vie l, Dasmonokige, $1; seu comentitio sabre o Apocalipse foi A fuictull meditacion, con taining 2 plaine and easie exposition .. of the 7, 8.9 and 10. verses of the 20. chap, of the Revelation (Edinburgh, 1588), % Agricola, Grindtlicher Bericht, 63-82, esp. S1(*80]-84 (#81); Anton Praetorius, Von Zauberey und Zaubereen,grindlichor Beriche, 3. ed. (Hedelberg, 1613), 40-5 (prim, pub. 1598, seb o pseu. de Johann Scultetus). % Gacob Heilheonnerl, Daemonomania Pstcrina (Brunswick, 1601) 6 © Sculets, Praesidium angelicum, 584-5: ef. David Meder, Zehen Christiche Busspredigten. uber die Weissagung Christ dess grosien Propheten, vom Ende der Wele und Jungsten Tage (Frankiuct/Main, 1581), 285 Cit-Ci; Hocker, Der eat sells, fo. Ss TREMUS FUROR SATANAE No ange da rufna causada pelas eampanhas militares na Alemanha, o pregador saxo Arnold Mengering tentava acrescentar & galeria tradicional de ocupagSes e vicios demonizndos — 0 theatrum diabolorum — a categoria de “soldado-diabo”. O diabo, garantia ele ao Eleitor, ainda estava tramando freneticamente novas formas de demonismo para aumencar o nimero de seus seguidores e encher seu reino de almas antes do iminente fim do mundo”. Nenhum leitor contempordneo teria considerade © versieulo biblico que dew origem a essas observagies sem refletir em seu contexto, Na iikima segao deste livro, ‘vimos que os escritores sobre demonologia estavam acostumados a lidar com 0 poder demoniaco como um problema de ciéneia ¢ tecnologia, orde ele era interpretade de formas variadas segundo 03 requisites da causago natural, preternatural e sobsenatu- tal. Mas esse poder tinha, também uma dimensio histérica; era sempre contralado pela tolerincia divina, que mudava com o tempo. Conguanto seu propdsito moral fosse conscante, suas realiaagdes eram relatives acs est’gios de uma explicagiio demo- nolégica da histria. A demonologia de Alphonsus de Spina, por exemplo, deslocou- se da guerca no céu para a guerra no Apocalipse, terminando com o retorno final do dliabo ao inferno. Outros autores sobre bruxaria voltaram-se para as segoes finais do Apocalipse ¢, especificamente, para o capitulo 20, com sua referencia a pristo € soltu- 1a de Satd. Exatamente © qué isto o deixara livre para fazer tinha, afinal, uma impor tancia decisiva para as proprias premissas da teoria da bruxaria, Pasa alguém tao eéti- co sobre as alegagdes contra as bruxas quanto o jurista italiano Gianfrancesco Ponsinibio. a morte de Cristo havia exeluido completamente do mundo o poder de- monfaco; ele simplesmente nfo estava dispontvel para, digamos, transporté-las para sabis. Resgatar a credibilidade de acusagies significava adotar o tipo de distingso com que 6 tediogs dominicano Bartolommeo Spina, © seu scguidor, Pierre Binsfeld, se opuseram as dividas de Ponzinibio, Q dinbo fora agulhoado pela Paixao no sentido de que ele nao poderia mais impingir a escravizag3o espiritual & humanidade sofrida por seus primeiros antepassados; mas certamente ainse poderia assaltar os homens € atormenté-los com tribulagées, caso contrério a dédiva de Cristo do poder de exorei- zat seria inGtil. A prisio de Sata refetia nao 3 aniquilaydo do demonisino mas a seus limites. © monge beneditino e posteriormente bispo, Leonardo Vairo, argumentava iqualmente que Cristo havie eliminado a capacidade demonfaca de provocar a dana- 20 até mesmo dos escolhidos de Deus, mas somente enfraguevera a tentagao demo- rnfaca para 0 pecado, para o abandono do saber de Deus e para a ruina moral % Amold Mengering, Perversa uleimi scculi militia, oder Kriegs-Belial, der Soldaten-Teatiel, nach Cons Wort uns! gemeiinem Leal der letsren Zeit beschrieben, 2. ed (Alvenivurg in Meissen, 1638), a8 ALi Allis, pp. 823, ® Ponsinibio, De kumtis in Grillando, Tracterus dao, 274-5; Barcolommeo Spina, Apologive in Ponai- ibid de luni, in Malleus malelicaruta (ed. de 1669), i (vol. 2, pt 1), 168: Binseld, Tractonus, 8-16; ll ° PARTE IIT: KisToRta Por importante que fosse, este ponto deixava completamente em aberto a ex- tensio do demonismo quando suas cadeias de mil anos fossem ahertas. Apesar de suas diferengas com respeito a0 Satanus ligarus, os autores sobre bruxaria dificilmente poderiam discordar sobre o Saranus sofurus. Spina escreveu que a diaho reromarka seu “poder pleno” para realizar uma defecgao quase total da Igreja. Binsfeld encaminhou seus Ieitores as passagens de A Cidade de Deus onde Santo Agestinho declarava que “no ltimo ¢ menor tempo remanescente, ele seré libertado: pois lemos que cle devastard com sua maior perversidade durante trés anos ¢ seis meses apenas™'. Este eta 0 arcabougo apocaliptico maior em que 0s niveis de diabrura contemporfinea po- deriam ser compreendidos. A bruxaria tomava-se, numa escala sem precedente, um acompanhamento perfeitamente adequado a uma época em que 0 equilibrio histérico se inclinava o maximo possfvel para o diabo sem eferivamente quebrar a continuida- de da f€, Era impossivel negar, pensava Nodé, que Sata estava “solto nesta tltima estazio, nesta era to final e to infeliz em que, quanto mais © mundo avang, ais cada um se atira de cabega no abismo da total impiedade”. René Benoist concordava em que Sata “solto depois de mil anos, tendo nos amarracio como Sanséo havia sido pelos filisteus, zomba de nés [...] com prazeres licenciosos, carnais, heresias, magia negra, luxtria, blasfémias, falsas opinides”. Num tratado sobre o tema afim de apari- {soese fantasinas, outro escritor cavslico francés, Noél Taillepied, explicava que, embora cespfritos malignos rivessem sido despachados para o pago sem fundo, ainda restayam alguns capazes de trazer o inferno para a Terra; mais ainda, “depois do rérmino dos anil anos, Sata deve ser solto por algum tempo, € com a permissio de Deus, sair e tentar as nagdes”!. Recorrer ao tema do Satanus solutus cra, portanto, mais uma mancira de expres- ars extensio total das operagdes demoniacas na Europa dos sGculos XVI e XVII. Im- plicitamente ou no, ele comprometia os autores sobre bruxaria com uma visio do todo narrativo da histéria. Alguns adotaram a cronologia inferida por Node em que a scltu- ‘mera um aconrecimento novo e iminente e sua duraglio, um aspecto do futuro provi- sivel. Para Crespet, parecia que sua prdpria época era aquela em que a fiiria do diabo seria libertada de suas cadeias sobre o mundo num dilivio de préticas meigicas. A mes- ma opinifo era sustentada por Vincent Pons, tedlogo e professor em Aix-en-Proven- ce, que dedicou, em 1612, um tratado sobre o poder ¢ © conhecimento possuido por Vite, De tascina, 178.9. Ch bre Apocalipse 20 ecivina permissio ce bnixaria¢ demonismo, Del Rio, Disqusiticnurs magicarom, 221; Jun Fiesse, De idelaeria magica, dissertatio (Pars, 1609), fos. 3-8 Remi Pichard, Adeirable vere des suincts exorcismes sur les princes denier possédanesréellement wermueuse demoislle Eliabeth de Ranfaing (Nancy, 1622), 50. * Binsfeld, Traccaus 15-16: Ayontinho, Qe of God, 801. # Nodé, Declamation, 32, veja-se também 43; Renoist, Pete fragment, 18; Taillepied, Treatise of Ghiowcs, 118. PosTREMUS FUROR SATANAE 425 dem@nios ao presidente do parlement provincial, Guillaume Du Vair. Segundo Pons, ‘oreino do diab vieia “no final da era que esta comegando a se esgorar”. O rérmino da priséo de mil anos seria, com efeito, a consumagao do préprio tempo. O jesuita alemao Adam Tanner no sugeria que o fim das coisas era iminente, mas compartilhava a visio (citando Apocalipse 20) de que nem todas as épocas historicas estava igualmen- te sujeitas @ incursies demonfacas. Assim como 0 primeiro sdvento de Cristo havia acabado com a idclatria de inspiragio demoniaca, seu segundo advento e o Jutsa Final seriam precedidos por uma siltima era de tirania luciferian®. (Os protestantes, com um otho na histéria da Igreja Romana, tendiam a adctar uma perspectiva mais ampla. Cristo havia vencido a adoragao do diabo que prolifera v2 entre os gentios mas, segundo George Gifford, a prisio de Sata havia durado ape- nas um milénio literal, depois do que, “tendo side novamente libertado, ele seduziu ‘o mundo; sim, ele era o meio, e foi pela eficdcia de seu poder que o Anticristo, o Papa, sua falsa religiSo, haviam se estabelecido”. O editor de William Perkins, Thomas Pickering, acrescentou que o restahelecimento do reino de Sata poderia ser remonta- do "a expiragao daqueles {mill anos, quando a corrup¢ao comecou a se insinuar no Papado; quando os Bispos contaminaram aqueke Sé, ¢ almejaram conquisté-la por artes Diabélicas”. Para tais escritores, a historia da bruxaria cstava inseparaveimente ligada 3 sorte da f protestante, e os padrdes hist6ricos que encontravam na demono- logia cram necessariamente aqueles derivados de uma polémica mais ample, Para o hugenote Perraule, esses padres eram ainda mais flextveis. Durance mil anos Sata havia sido impedido de envolver as nagSes em guerras ¢ massacres. Dali em diante, © protestantiswmo de Perrault the disia, como havia dito a suas eontrapartes inglesas, que o demonismo recentemente desimpedido era responsivel pelas magui nagties de Roma ~ daf os violentos conflitos armados pela soberania do mundo entre as forcas contrarias do islamismo (Gog) ¢ do catolicismo sob Bonifiicio VIII (Magog) que haviam comecaco na virada do século XII. Quanto a sua propria época, os inte- resses escatolégicos de Perrault divergem. As necessidades da palémica levaram-no a alegar que, com 0 advento da Reforma, Sata havia sido preso uma segunda vee em 1517, quando a verdadeita religiio comegara a florescer na Europa. Por outro lado, 0 medo da bruxaria sugeria-lhe a persisténcia do poder intocado de Sata; “como foi previsto que com a aproximagio do advento final do Filho de Deus, Sat seri solto, podemos dizer, com boa razao, que se algum dia isto ocorrerd, seré agora”. © Crespet, Deus livres for 11415; Pons, De potentia et scientia daemonuim, 12-14; Tarnee, De potenti loco meiva angela, 94 * George Gifford, A discourse of che subi practises of devilles by witches ani sorcerers Condon, 1581), as. Dr Perkins, Discourse, “Epistle Dedcatari, ase. 7° * Perrale, Demonologe, 60-2. e PARTE Ill: HISTORIA 426 Assim, uma visio da historia transformou-se em parte integrante da demonolo- gia ortodoxa, As atividades de bruxas nao tam produtos aleatérios de maldade indie vidual. Etam inteligfveis em termos de uma progresstio de sucessos que abarcaya, niio meramente os séculos XVI ¢ XVII, mas (em principio) o proprio tempo universal. Nao havia consol mais fundo para clérigos que o canhecimenta de que a bruxaria era uma manifestagao de pré-arranjos diviros. wee Quando, no final do século XVII, o pregador de Mecklenburg, Michael Freu- dius, veio a excrever seu enciclopédico guia dos aspectos juridicos © penais da bruxa- tia, ele eonsiderou apropriado incluir comentarios sobre © Apocalipse em sua extensa bibliografia. Ele poderis, com igual factlidade, ter recomendado « literatura secunda- ria sobre as Epistolas, pois também dessa parte do Novo Testamento os autores sobre bruxaria tiraram ampla sustencag8o para sua escatologia. No infcio do capitulo 4 da primeira epistola de Paulo a Timéteo, eles notaram a declaragao “que nos cltimos rempos alguns apostatardo da é, para aderirem a espiritos enganadores e a doutrinas diakslicas; seduzidos pela hipcerisia de impostores”. Na segunda epistola eles encon- traram a iniqitidade dos tiltimos dias, com suas inversies desordenadoras ¢ licencicsas dos oédigos morais e sociais, comparada especificamente com a resisténcia oferecida a Moisés pelos magices do Faraé. Em um dos textos mais amplamente estudados, 2 Tessalonicenses 2, Paulo advertia que a segunda vinda de Cristo seria anunciada por uma apostasia geral. pecado atingiria sua personificagao final nas exigéncias blasfe- mas de um ser quintessencialmente mau “cuja vinda se dard por obra da influéncia de satanas”, Os iniquos pagariam por sua transgressia sendo enganados por seus “pro- digios mentirosos” ¢ outras ilusdes. Nessas passagens, poder-se-ia perecter todos os mods de alusdes confirmativas nos elementos de falsa adoragio presentes aos ritos da bruxaria. Veremos como eles foram usades em particular para eniquecer os temas centrais da ambigiiidade prodigiosidade radicais em relatos de efeitos demonfacos. (O importante, neste momento, € mais esta evidéncia do caniter inerentemence de- monolégico da histéria em sua fase final. Ele foi usado rotineiramente, por exemplo, por Adrianus Rheyamannus a0 colocar 2 questio usval sobre a tolerdncia de Deus para incursoes demonfacas ao lon- go dos tempos, Sua resposta é a de Tessalonicenses e Timsteo ~ que a desatengio ea ingraticio seriam recompensadas com iluses ¢ danagio, c, especifieamente, que a dleserclem moral proferizaca para os tlrimas tempos havia tomade a forma da escravi- ago papal da espiritualidade popular, Como poster luterane de Meyden, Rheyn- ‘mannus espera qu 0 diabo ndo seduza os devotos com tais aparéncias de verdadeira adoragio, William Perkins, cujo Fruicful dialogue concerning the end of che world (1587) revelou seu cauteloso compromisso com uma escatologia despojada de qual-

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