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Contextos Clínicos, 8(2):173-185, julho-dezembro 2015

Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2015.82.06

O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de


apoio social e afetiva de crianças vítimas de abuso sexual

The use of Five Field Maps in the study of Social and affective
support network to children victims of sexual abuse

Danielly Bart do Nascimento, Edinete Maria Rosa


Universidade Federal do Espírito Santo. Av. Fernando Ferrari, 514, 29075-910, Goiabeiras,
Vitória, ES, Brasil. danybartnasc@yahoo.com.br, edineter@gmail.com

Resumo. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi
verificar quais mudanças ocorreram na rede de apoio social e afetiva de um
menino e uma menina vítimas de abuso sexual extrafamiliar após inserção
em um Serviço de Enfrentamento à Violência e se, na percepção das crian-
ças, o Serviço passou a compor sua rede de apoio social e afetiva após o pe-
ríodo de investigação. Participaram da pesquisa, as crianças, seus pais, a As-
sistente Social e a Psicóloga do Serviço. Os dados foram coletados por meio
de entrevistas semiestruturadas e da aplicação do Mapa dos Cinco Campos.
A análise dos dados foi qualitativa e, como principal aporte teórico, utiliza-
mos a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Dentre os prin-
cipais resultados, estão a ampliação da rede de apoio social e afetiva e a
melhora na qualidade das relações interpessoais das duas crianças. Após a
participação no Serviço, o menino passou a apresentar interações mais fre-
quentes e significativas com objetos presentes no ambiente do Serviço, e a
menina passou a ter uma melhor qualidade na interação com as Técnicas,
demonstrando efetividade na superação dos sinais do abuso.

Palavras-chave: rede de apoio social e afetiva, Mapa dos Cinco Campos,


abuso sexual.

Abstract. This article presents some results of a study that aimed at verifying
what changes had occurred in the social and affective support network that
was given to a boy and a girl victims of extra-familiar sexual abuse after their
insertion into a Violence Combat Service and whether in the perception of
children the Service is now part of his/her network of social and emotional
support after the investigation period. The participants of this research were
the children, their parents, the Social Worker and a Psychologist that works
for this Service. All the data used in this research were collected through
semi-structured interviews and through an application of the Five Fields
Map. For the qualitative data analysis, the Bioecological Human Develop-
ment Theory was used as the main theoretical contribution. Among the
main results, we can infer that they are the expansion of the social and affec-
tive support network and the improvement of the quality of interpersonal
relations of the two children. The Violence Combat Service monitoring influ-
enced in a different way the developmental potential of the two children; for
the boy, the interactions established with objects in the Service had a special
symbolic value, while for the girl the relationship with the professional was
more effective when analyzed the overcoming abuse signs.

Keywords: social and affective network support, Five Field Maps, sexual abuse.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição
desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

Introdução quantidade e à multiplicidade das relações es-


tabelecidas pela pessoa em desenvolvimento e
O abuso sexual contra crianças ocorre dos aspectos funcionais voltados à qualidade
quando estas são submetidas à gratificação se- dessas relações. Nesse sentido, a qualidade dos
xual de um adulto, ou de outra pessoa mais vínculos é mais importante que a quantidade
velha, maior, ou que, de alguma forma, exerça de vínculos estabelecidos. A rede de apoio so-
um poder sobre ela. Tipifica-se o abuso sexual cial e afetiva está relacionada principalmente
como: aliciamento sexual, linguagem ou ges- aos recursos que oferece à pessoa em situações
tos sexualmente sugestivos, uso de pornogra- de risco (Brito e Koller, 1999), sendo que esses
fia, voyeurismo, exibicionismo, carícias, mas- recursos podem ser de natureza emocional, ma-
turbação e penetração com objetos (Johnson, terial e afetiva (Sherbourne e Stewart, 1991).
2004; Sanderson, 2005). O abuso sexual pode Habigzang et al. (2011) destacam a impor-
ser do tipo intrafamiliar, envolvendo pessoas tância do atendimento psicológico para auxiliar
com ou sem laços de parentesco que convivem na superação de sinais como: alterações cogni-
no mesmo domicílio (Araújo, 2002; Monteiro tivas, afetivas, comportamentais e outros. Além
et al., 2008), ou extrafamiliar, sendo praticado disso, apontam como constituintes da rede de
por pessoas que não pertencem à família. Em apoio de crianças e adolescentes que passaram
muitos casos, na violência extrafamiliar, os pela experiência de abuso sexual: a família, a
perpetradores possuem vínculo com a criança, escola, a comunidade, o Conselho Tutelar, a
e o abuso pode ocorrer dentro da própria casa Delegacia, o Conselho de Direitos da Criança,
da vítima (Pietro e Yunes, 2008). o Ministério Público e o Juizado da Infância e
Conforme Brito e Koller (1999), a rede de Adolescência, as instituições de acolhimento, os
apoio social é o conjunto de sistemas e de pes- serviços de saúde (postos de saúde e hospitais)
soas que compõem os vínculos de relaciona- e assistência social (Centro de Referência da As-
mentos recebidos e percebidos pela pessoa e sistência Social e Centro de Referência Especia-
está diretamente relacionada ao desenvolvi- lizado da Assistência Social). Lordello e Costa
mento humano, pois deve fazer parte do con- (2014) acrescentam que essas instituições são
texto ambiental no qual a pessoa se desenvol- microssistemas que, ao participarem da rede de
ve. O elemento afetivo está agregado a esse apoio, atuam como transformadores potenciais
construto, pela importância na construção e do desenvolvimento.
manutenção do apoio. Quanto mais recursos pessoais e ambien-
Para Cobb (1976), o apoio social pode en- tais a pessoa possuir, mais ela estará protegi-
volver três tipos de categorias, que são consi- da de apresentar sintomas e de desenvolver
deradas de forma independente ou concomi- doenças psicopatológicas (Bronfenbrenner e
tante. A primeira envolve um apoio emocional, Ceci, 1994). Nesse caso, a rede de apoio social e
quando a pessoa acredita que é cuidada e afetiva dificilmente deixará de ser um recurso
amada, o segundo relaciona-se ao apoio de es- do qual ela lançará mão para estabelecer rela-
tima, quando a pessoa acredita que é estimada ções fortes e recíprocas. Os vínculos sociais e
e valorizada, e o terceiro é o apoio publicizado, afetivos construídos na rede podem auxiliá-la
exposto pelas pessoas que compõem a rede e no curso de um desenvolvimento saudável,
que faz a pessoa elevar o sentimento de auto- facilitando a construção da resiliência, propor-
estima, que ocorre quando a pessoa acredita cionando maior mobilidade para utilizar-se
que pertence a uma rede de comunicação e de estratégias eficazes para superar situações
obrigação mútua. de adversidades vivenciadas durante a vida
A rede de apoio social pode passar por (Brito e Koller, 1999).
diversas transformações ao longo da vida da Devido à influência da rede de apoio no
pessoa, dependendo de suas necessidades e desenvolvimento das pessoas, recorremos à
das interações que ela é capaz de desenvolver Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Hu-
a partir do acionamento de um serviço ou de mano, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner
uma ajuda pessoal. Por isso, a estrutura e a como aporte teórico para a discussão dos da-
função da rede de apoio dependem dessas ne- dos. Essa teoria define o desenvolvimento hu-
cessidades e também das habilidades sociais mano como um fenômeno de continuidades
que a pessoa possui para mantê-la ou ampliá- e mudanças duradouras nas características
-la (Samuelsson et al., 1996). biopsicossociais do ser humano (Bronfenbren-
Couto (2007) destaca que a rede de apoio ner e Morris, 1998). Reúne quatro elementos,
possui aspectos estruturais que se referem à Pessoa, Processo, Contexto e Tempo, que for-

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mam seu modelo teórico (Modelo PPCT) e atu- cativas atuem como inibidores de disfunções,
am de forma inter-relacionada no processo de tais como: exposição às novas recorrências de
desenvolvimento (Tudge, 2008). abuso, dificuldades no relacionamento inter-
O contexto é composto por um sistema de pessoal, apatia e timidez.
quatro ambientes, sendo o primeiro deles de- Bronfenbrenner e Ceci (1994) destacam que
nominado microssistema. O microssistema “é potenciais de desenvolvimento inatos que se
um padrão de atividades, papéis e relações apresentam como características latentes po-
experienciadas face a face pela pessoa em de- dem tornar-se manifestos, aumentando sua
senvolvimento em um ambiente com caracte- exposição a processos proximais no ambiente
rísticas físicas, sociais e simbólicas particula- por meio de políticas e programas sociais que
res” (Bronfenbrenner, 1993, p. 15). Portanto, é podem proporcionar recursos para que os pro-
o espaço onde se desenvolvem as atividades cessos sejam mais eficazes. Os autores ainda
cotidianas e onde as pessoas se constituem afirmam que o desenvolvimento é conduzido
como sujeitos psicológicos pertencentes a uma pela forma, pela força, pelo conteúdo e pela di-
cultura. Bronfenbrenner deu especial ênfase à reção dos processos proximais, que variam sis-
percepção da pessoa sobre o seu espaço, afir- tematicamente como uma função conjunta das
mando que este é formado tanto por elementos características da pessoa em desenvolvimento e
objetivos quanto subjetivos (Bronfenbrenner e do ambiente tanto imediato como mais remoto.
Morris, 1998). A reunião dos diversos micros- Bronfenbrenner e Evans (2000) comple-
sistemas nos quais a pessoa em desenvolvi- mentam dizendo que o desenvolvimento tam-
mento participa e as inter-relações entre eles bém é produzido pelas contínuas mudanças
é nomeada de mesossistema (Bronfenbrenner, sociais que ocorrem ao longo do tempo, atra-
1993). O exossistema é formado pelos ambien- vés do curso de vida e do período histórico
tes em que a pessoa não participa diretamente, que a pessoa tenha vivido. Problemas fami-
mas que influenciam ou são influenciados pe- liares, como doença ou morte de um familiar
los eventos ocorridos no micro e no mesossis- ou amigo, perda do emprego, problemas com
tema. O macrossistema compõe o complexo de a justiça, separação na família, relações vio-
sistemas (micro, meso e exossistema) que en- lentas, entre outros, são exemplos que podem
volvem as ideologias e as organizações sociais causar estresse psicológico e interferir nas re-
presentes nas culturas de uma forma em geral lações interpessoais.
ou nos grupos que pertencem a uma mesma As características pessoais são produtoras
cultura (Bronfenbrenner, 1993). e produto do desenvolvimento humano; são o
Na teoria Bioecológica, Bronfenbrenner en- resultado dos traços biopsicológicos da pessoa
fatiza os processos proximais como o principal em desenvolvimento em interação com o am-
mecanismo responsável pelo desenvolvimen- biente (Bronfenbrenner, 1999). Dessa forma, as
to humano, com crescente complexidade de características pessoais são qualificadas em três
ações e atividades desenvolvidas com pessoas, tipos: características de disposição, de recurso e
objetos e símbolos presentes no ambiente por de demanda (Bronfenbrenner e Morris, 1998).
períodos de tempo duradouros (Bronfenbren- As características de disposição são aquelas
ner e Ceci, 1994). manifestadas nos comportamentos da pessoa
Os processos proximais podem produzir em desenvolvimento capazes de motivar e
competências, quando ocorrem em ambien- sustentar ou de interferir e inibir o surgimento
tes ricos e estáveis, ou diminuir as disfunções, dos processos proximais. Assim, as caracterís-
quando os ambientes são pobres e instáveis. As ticas de disposição são subdividas em caracte-
competências direcionam o desenvolvimento rísticas generativas ou inibidoras. As caracte-
a uma evolução de habilidades e capacidades rísticas inibidoras são as que estabelecem uma
para conduzir e direcionar o comportamento dificuldade para a pessoa se envolver em pro-
(intelectual, físico, socioemocional, motivacio- cessos proximais, tais como: impulsividade,
nal e artístico), enquanto as disfunções decor- explosividade, distração, agressividade, difi-
rem de dificuldades em manter o controle dos culdade em manter o controle sobre as emo-
comportamentos (Bronfenbrenner e Morris, ções e o comportamento, apatia, irresponsa-
1998). Assim, podemos prever que a presença bilidade, falta de interesse pelo seu ambiente,
de violência sexual na vida de uma criança, sentimentos de insegurança. As características
caracterizando a fragilidade e a instabilidade generativas, por outro lado, estão relacionadas
do seu ambiente, implica em que os processos à capacidade que a pessoa possui de se rela-
proximais desenvolvidos com pessoas signifi- cionar, de participar de atividades com outras

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O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

pessoas ou mesmo sozinha. Envolve um com- responsáveis pelo atendimento das crianças
portamento ativo e curioso no ambiente (Bron- e das famílias, totalizando oito participantes.
fenbrenner e Morris, 1998). Trata-se de um estudo de casos múltiplos,
As características de recurso não envolvem com lógica de replicação literal com resultados
disposições seletivas para a ação, e sim compo- contrastantes por motivos previsíveis, o que
nentes biopsicológicos passivos ou ativos ca- caracteriza um estudo de replicação teórica
pazes de influenciar o organismo a se engajar (Yin, 2015).
em processos proximais. Já as características
de demanda são aquelas que atraem ou desen- Instrumentos e procedimentos
corajam os relacionamentos sociais, podendo
atrapalhar ou promover o desenvolvimento Os instrumentos utilizados foram um rotei-
psicológico. Como exemplos de características ro de entrevista semiestruturada e o Mapa dos
de demanda, temos a aparência física atrativa Cinco Campos. As entrevistas foram realiza-
ou não atrativa; hiperatividade ou passividade das com os participantes adultos no momento
nos relacionamentos (Bronfenbrenner e Mor- em que as crianças iniciaram o atendimento
ris, 1998). no Serviço e após seis meses de participação.
O elemento tempo possui influência direta O Mapa foi aplicado somente com as crianças
no desenvolvimento humano. Com o conceito também em dois momentos: no início e após
de tempo, é possível perceber as continuida- seis meses de participação no Serviço.
des e as descontinuidades de acontecimentos O roteiro da entrevista com os pais, no
ao longo da vida. O tempo é dividido em mi- momento inicial, abordava questões sobre a
crotempo, mesotempo e macrotempo. O mi- expectativa da família ao procurar a ajuda do
crotempo está relacionado às continuidades e Serviço, o estado emocional e as característi-
às descontinuidades nos processos proximais cas pessoais apresentadas pelas crianças antes
ocorridos nas atividades diárias. O mesotem- e após a ocorrência da violência. Após os seis
po refere-se a eventos ou atividades que ocor- meses de participação, abordava a percepção
rem em intervalos de tempo maiores, como dos pais quanto às características pessoais das
dias, semanas ou meses; e o macrotempo foca- crianças, quanto aos relacionamentos estabele-
liza fatos e acontecimentos que dependem de cidos pelas crianças com outras pessoas e com
um ciclo de vida ou de gerações para ocorrer as Técnicas do Serviço e sobre o acompanha-
(Bronfenbrenner e Morris, 1998). mento da criança naquele microssistema.
Considerando a importância da rede de A primeira entrevista com as Técnicas
apoio social e afetiva para a superação de buscou dados acerca das histórias de violên-
situações estressoras, o objetivo do presen- cia sexual sofridas pelas crianças, do primei-
te estudo foi o de verificar quais mudanças ro contato com as crianças e das característi-
ocorreram na rede de apoio social e afetiva cas pessoais percebidas nas crianças. Após os
dos participantes, um menino e uma menina seis meses de acompanhamento, a entrevista
vítimas de abuso sexual extrafamiliar após investigou a percepção das Técnicas quanto
inserção em um Serviço de Enfrentamento à às características pessoais e o relacionamento
Violência. Além disso, o estudo investigou se com as crianças e sobre as interações das crian-
havia, na percepção das crianças, a participa- ças com o ambiente do Serviço. O roteiro de
ção do Serviço de Enfrentamento à Violência entrevista utilizado com as crianças foi aplica-
em sua rede de apoio social e afetiva após o do somente após os seis meses de participação
período de investigação. e investigava a percepção que elas tinham do
ambiente do Serviço e de sua utilidade e sobre
Metodologia qual a sua relação com as pessoas (Técnicas)
que conheceram e a importância do tempo que
Participantes passaram naquele Serviço.
A entrevista semiestruturada é uma técnica
Participaram do estudo duas crianças, um previamente planejada que funciona como um
menino com 10 anos e uma menina com 11 estímulo à fala do participante. Perguntas com-
anos que passaram pela experiência de abuso plementares podem ser adicionadas, à medida
sexual extrafamiliar e que estavam recebendo que a entrevista vai evoluindo e, por serem
atendimento em um Serviço de Enfrentamen- abertas, favorecem respostas espontâneas que
to à Violência, o pai e a mãe das duas crianças possibilitam a obtenção de informações não
e a Psicóloga e a Assistente Social que estavam previstas inicialmente no roteiro (Olsen, 2015).

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Danielly Bart do Nascimento, Edinete Maria Rosa

O Mapa dos Cinco Campos consiste em Procedimentos


um tabuleiro ou uma folha na qual estão
desenhados seis círculos concêntricos que O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
representam os níveis de proximidade com em Pesquisa da Universidade Federal do Espí-
o participante que se localiza no centro: o rito Santo (processo nº 23068.720732/2010-11) e
primeiro e o segundo círculos mais próxi- pela Secretaria Municipal de Assistência Social
mos representam as relações mais próximas, à qual o Serviço de Enfrentamento à Violência
o terceiro e o quarto círculos correspondem era vinculado. A coleta de dados ocorreu em
às relações mais distantes, e o último círcu- uma sala de atendimento do próprio Serviço
lo, mais afastado do centro, representa as de Enfrentamento à Violência. As entrevistas
relações mais insatisfatórias ou negativas. foram gravadas em áudio com autorização pré-
O Mapa foi subdividido em cinco campos, via dos pais das crianças, mediante assinatura
Família, Amigos, Parentes, Escola e Outras do termo de consentimento livre e esclarecido
relações (Siqueira, 2006). das Técnicas do Serviço. As crianças assinaram
Na utilização desse instrumento, o partici- um termo de assentimento livre e esclarecido,
pante era solicitado a colocar as pessoas que com os mesmos esclarecimentos do termo assi-
faziam parte da sua vida em cada um dos cam- nado pelos adultos. Os nomes dos participantes
pos, obedecendo à satisfação no relacionamen- foram substituídos por nomes fictícios para o
to, de forma que as pessoas que despertavam resguardo de suas identidades.
afeto positivo eram colocadas mais próximas
ao centro e as que despertavam afeto negativo
eram localizadas mais afastadas do centro. Foi
Resultados
investigada a presença de conflitos e rompi-
mentos em cada um dos relacionamentos com História de Miguel
as pessoas representadas em cada campo. Os
vínculos foram representados pela primeira Miguel era o filho mais novo e possuía
letra em maiúsculo: (S) Satisfatório, (I) Insatis- duas irmãs, uma com 12 e outra com 13
fatório, (C) Conflito, (R) Rompimento (Siquei- anos. De acordo com informações da família,
ra, 2006). desde bebê sofria de constipação intestinal,
O Mapa dos Cinco Campos é um instru- motivo pelo qual sempre era levado ao Hos-
mento que permite avaliar a estrutura e a pital das Clínicas para receber tratamento
função da rede de apoio de crianças, adoles- e acompanhamento médico com o pediatra
centes e adultos observando a quantidade e a e gastroenterologista.
qualidade dos vínculos estabelecidos na rede De acordo com o pai, Miguel passou por
(Samuelsson et al., 1996). Foi acrescentada na uma situação de abuso sexual por parte dos
aplicação do Mapa uma questão que investi- colegas da escola em que estudou, quando
gava se as crianças recebiam ajuda das pessoas ainda tinha nove anos. O abuso foi identifica-
representadas quando precisavam ou se costu- do durante um atendimento no Hospital, e a
mavam ajudá-las quando elas precisavam. equipe encaminhou o menino ao Serviço de
Enfrentamento à Violência que fica localizado
Análise dos dados anexo ao Hospital. De lá, foi encaminhado à
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adoles-
Os dados das entrevistas foram utilizados cente (DPCA), onde foi realizado o boletim de
para uma melhor compreensão da abrangên- ocorrência, e ao Departamento Médico Legal
cia da rede de apoio social e afetiva das crian- (DML). O Serviço de Enfrentamento à Violên-
ças. É uma técnica que “se caracteriza por cia do hospital também encaminhou Miguel
uma comunicação verbal que reforça a impor- para o Serviço de Enfrentamento à Violência
tância da linguagem e do significado da fala” Municipal onde mora, para receber atendi-
(Neto, 2002, p. 57). O Mapa foi avaliado de mento psicossocial.
forma qualitativa, por meio da disposição das Após ser incluído no Serviço de Enfren-
pessoas nos círculos adjacentes ao centro, em tamento à Violência Municipal, aos 10 anos,
relação à qualidade da relação com as figuras Miguel tinha seus atendimentos agendados
parentais, quanto à diferença no número de mensalmente, passando a ser semanalmente,
pessoas representadas nas duas aplicações e conforme decisão da equipe técnica. Dessa for-
em relação à qualidade nas relações com as ma, o menino participou de 17 atendimentos dos
demais pessoas representadas. 22 agendados durante os seis meses de pesquisa.

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O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

Após a descoberta da violência, o pai ado- aplicações do mapa: na primeira, ele repre-
tou como providência imediata a transferência sentou o pai no último nível, dizendo que não
do filho de escola, entretanto, somente levou a gostava dele, mas não deu explicações ou mo-
criança ao Serviço de Enfrentamento à Violên- tivos para tal. Indicou uma relação de conflito
cia após seis meses de encaminhamento. Ao com as irmãs, mas também não quis explicar o
procurar o Serviço, expressou para as Técnicas porquê, e revelou que havia conflitos entre os
que acreditava que uma das funções do Servi- seus pais e que a reação que tinha quando eles
ço era responsabilizar os agressores do meni- brigavam era chorar.
no pela violência cometida. Ao saber que esta Na segunda aplicação, o pai passou para o
não era competência do Serviço, demonstrou segundo nível, e a mãe e as irmãs, para o ter-
desmotivação em manter o filho no acompa- ceiro nível. Perguntado o porquê de as pessoas
nhamento. Após várias faltas ao atendimento, terem mudado de lugar na segunda aplicação,
a equipe técnica realizou uma intervenção com principalmente o pai, o menino apenas balan-
a família para explicar a importância do acom- çou os ombros, sem apresentar uma justifica-
panhamento psicossocial, e, a partir de então, tiva para as mudanças. Relatou que a relação
a mãe passou a acompanhar o filho ao Serviço. conflituosa com a irmã mais velha e com os
Os pais de Miguel revelaram que a educa- pais devia-se a situações cotidianas sem gran-
ção dada aos filhos era bastante rígida e que de importância. Quanto às pessoas do Servi-
os proibiam de frequentar outros espaços além ço, o menino informou que eram suas amigas,
do ambiente familiar, da igreja e da casa de entretanto, não conseguiu informar o nome de
alguns parentes. Eles não permitiam que os nenhuma delas, referiu-se à Psicóloga como
filhos recebessem amigos em casa, ou que sa- “a de óculos”, e à Assistente Social como “a
íssem para brincar com colegas da rua ou da grandona”. Sua opinião sobre o ambiente do
igreja. Eles afirmaram, ainda, que os recursos Serviço é que se tratava de um ambiente bom
financeiros da família eram limitados e que os e bonito. O que mais lhe chamava a atenção no
filhos não possuíam brinquedos. local eram os brinquedos e não conseguiu ver-
As Técnicas, em entrevista, descreveram balizar mudanças ocorridas em sua vida após
Miguel como uma criança retraída, acanhada, a inserção no Serviço.
quieta e abatida e que evitava comunicar-se Ao ser questionado a respeito de quem das
com desconhecidos. Conforme a Psicóloga, pessoas representadas em seu mapa ele ajuda-
após seis meses de atendimento, o menino con- va e quem o ajudava, a resposta de Miguel foi
tinuava sempre de cabeça baixa, no entanto, já a seguinte: na primeira aplicação, respondeu
permitia o contato físico, como pegar na mão que não era ajudado por nenhuma daquelas
e, apresentava um pouco mais de energia para pessoas representadas, mas que ajudava duas
se engajar nas brincadeiras e jogos durante o primas e um primo quando eles precisavam
atendimento psicológico. Embora ainda não se (campo parentes). Já na segunda aplicação,
comunicasse muito verbalmente, outras habi- disse que era ajudado pela irmã mais velha nas
lidades foram demonstradas com o passar do tarefas escolares (campo família) e pela profes-
tempo, como facilidade para desenhar e ler. A sora e por duas meninas (campo escola) e que
mudança positiva em relação à interação com ajudava a um menino na escola.
as Técnicas do Serviço também foi percebida e
mencionada pela mãe. História de Mariana
Com as aplicações do Mapa dos Cinco
Campos, foi possível visualizar a rede de Mariana vivia no interior, era filha de lavra-
apoio social e afetiva de Miguel. Observa-se, dores e possuía um irmão com 17 anos e uma
na Tabela 1, resultado da primeira aplicação irmã com cinco anos. A violência sofrida ocor-
do Mapa, que o menino representou pessoas reu por parte de um vizinho funcionário do sí-
nos campos “família”, “parentes” e “escola”, tio próximo ao de seu pai. Conforme a descri-
e na Tabela 2, resultado da segunda aplicação, ção feita por sua mãe, Mariana e dois primos
o campo “amigos” também foi contemplado. passavam em frente ao sítio, quando o vizinho
O campo “outras relações” não foi contempla- chamou-os para ajudá-lo a levar galões de leite
do em nenhum dos dois momentos. para dentro da casa. As crianças, mesmo não
Na primeira aplicação, Miguel represen- conhecendo bem o vizinho, resolveram ajudá-
tou em seu mapa 29 pessoas, e na segunda 31. -lo. Ao entrarem na casa, o vizinho prendeu
Nota-se uma diferença significativa na repre- cada menino em um quarto e abusou da meni-
sentação dos membros de sua família nas duas na; entretanto, o estupro não ocorreu, porque

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Danielly Bart do Nascimento, Edinete Maria Rosa

Tabela 1. Pessoas representadas no Mapa de Miguel, seus respectivos níveis e tipos de relação
logo após inserção no Serviço.
Table 1. People represented on a Map of Miguel, their levels and types of relationship soon after
insertion in the Service.

Campo Pessoas indicadas Nível Tipo de relação


Mãe 4º S
Família Irmãs 4º C
Pai 5º S
Dois tios e um primo 1º S
Parentes Um tio, três tias, um primo e duas primas 2º S
Uma prima 2º C
Quatro colegas meninas 2º S/C
Escola
Seis colegas meninas e quatro colegas meninos 5º I/R

Tabela 2. Pessoas representadas no Mapa de Miguel, seus respectivos níveis e tipos de relação
após seis meses de inserção no Serviço.
Table 2. People represented on a Map of Miguel, their levels and types of relationship after six
months of insertion in the Service.

Campo Pessoas indicadas Nível Tipo de relação


Pai 2º C
Família Mãe e irmã mais velha 3º C
Irmã mais nova 3º C
Avô e três tios 2º S
Parentes Três primas 3º S
Três tias 4º S
Coordenadora, diretora e uma professora 1º S
Sete colegas meninas 2º S
Escola
Quatro colegas meninos 3º S
Dois colegas meninos 5º I/C
Amigos Um menino 2º S

um dos primos conseguiu sair e com isso impe- Mariana tinha 11 anos de idade quando foi
diu que o agressor continuasse a violência. As incluída no Serviço. Ela participou somente de
crianças fugiram correndo do sítio em busca de cinco atendimentos, pois, conforme sua mãe, a
ajuda. Após o ocorrido, o agressor fugiu do sítio menina dependia do Conselho Tutelar de seu
e não tiveram mais notícias sobre ele. município para chegar ao Serviço, com o qual
No dia em que ocorreu a violência, a mãe nem sempre podia contar. Os pais informaram
de Mariana caminhou duas horas até che- que acharam necessário levar Mariana ao Ser-
gar ao centro de sua cidade para declarar a viço para que ela pudesse ter um acompanha-
ocorrência do fato na delegacia, que lavrou mento psicológico, pois avaliavam que um pro-
o boletim de ocorrência, mas não efetivou a fissional poderia ajudá-la melhor que a família.
investigação. No Conselho Tutelar, a mãe de Após o período de seis meses de atendimen-
Mariana foi encaminhada com a menina para to, a mãe relatou que Mariana obteve melhoras
o Serviço de Enfrentamento à Violência do de relacionamento com pessoas em diversos
Municipal mais próximo, onde passou a levar ambientes. Estava mais calma para conversar e
a filha para atendimentos. voltou a aceitar o carinho das pessoas, princi-

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O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

palmente do pai e dos tios paternos, dos quais da primeira aplicação do Mapa, que a meni-
havia se afastado. Por sugestão da mãe, a me- na representou pessoas nos campos “família”,
nina havia escrito um diário, no qual relatava “parentes”, “amigos” e “escola”. Na Tabela 4,
seus sentimentos. Em relação ao Serviço, a mãe resultado da segunda aplicação, o campo “ou-
revelou que a menina sempre comentou que tras relações” também foi contemplado.
gostava de conversar com a Psicóloga e falava Ao observar o campo família nas duas apli-
das demais pessoas do Serviço com carinho. cações do Mapa, realizado por Mariana, foi
Para as Técnicas, a menina era agradável possível notar a mudança que ocorreu princi-
e comunicativa. Em atendimento, falou sobre palmente na representação do pai e do irmão,
a violência e do medo de que situação seme- passando dos níveis três e quatro para o nível
lhante voltasse a se repetir. Elas disseram que, um. Os conflitos com os irmãos, segundo a
nos primeiros atendimentos, Mariana parecia menina, eram rotineiros e sem grande impor-
agitada e nervosa ao narrar o que havia acon- tância, eram apenas desentendimentos que
tecido com ela e com os primos. Mas, após os logo se dissolviam.
seis meses de atendimento, a menina apresen- Em relação à questão de ajudar e ser aju-
tou-se decidida ao pedir para interromper o dada, informou, tanto na primeira aplicação
acompanhamento, por sentir-se bem e dispos- quanto na segunda, que a pessoa da família
ta a estar mais próxima das pessoas, inclusive que costumava ajudar e ser ajudada era sua
das que poderiam lhe proteger. mãe. No campo parentes, também nas duas
Na segunda aplicação do Mapa, Maria- aplicações, informou que costumava ajudar e
na explicou que as pessoas do Serviço eram ser ajudada pela madrinha. No campo escola,
como amigas que a ajudaram a superar as di- na primeira aplicação informou que costuma-
ficuldades decorrentes da experiência de vio- va ajudar e ser ajudada pela colega Elaine; já
lência sofrida. Revelou que o diário sugerido na segunda aplicação, representou apenas um
por sua mãe foi uma estratégia que também a professor e uma professora, sobre os quais re-
ajudou a enfrentar as dificuldades e que, por latou gostar muito, ajudar e ser ajudada. No
isso, achava que poderia seguir sem os atendi- campo amigos, relatou ajudar e ser ajudada
mentos psicológicos. A menina reconheceu o pelas amigas e amigos na primeira e segunda
Serviço como um lugar importante para todas aplicações. Em relação aos conflitos relatados
as pessoas que passam pelo que ela passou e na segunda aplicação, explicou que eram de-
que o tempo que esteve vinculada ao Serviço sentendimentos passageiros que não abala-
de Enfrentamento à Violência foi importante, vam suas relações com essas pessoas.
por saber que lá havia pessoas que a ajudaram
a superar as dificuldades. Discussão
O Mapa dos Cinco Campos possibilitou
visualizar a rede de apoio social e afetiva de As Tabelas 1 e 2 apresentam uma mudan-
Mariana. Observa-se, na Tabela 3, resultado ça expressiva na quantidade na qualidade das

Tabela 3. Pessoas representadas no Mapa de Mariana, seus respectivos níveis e tipos de relação
logo após inserção no Serviço.
Table 3. People represented on a Map of Mariana, their levels and types of relationship soon after
insertion in the Service.

Campo Pessoas indicadas Nível Tipo de relação


Mãe 1º S
Irmã 2º C
Família
Irmão 3º C
Pai 4º S
Duas primas e madrinha 1º S
Parentes
Uma prima 1º C
Escola Quatro colegas meninas e um colega menino 2º S
Amigos Quatro amigas 2º S

Contextos Clínicos, vol. 8, n. 2, julho-dezembro 2015 180


Danielly Bart do Nascimento, Edinete Maria Rosa

Tabela 4. Pessoas representadas no Mapa de Mariana, seus respectivos níveis e tipos de relação
após seis meses de inserção no Serviço.
Table 4. People represented on a Map of Mariana, their levels and types of relationship after six
months of insertion in the Service.

Campo Pessoas indicadas Nível Tipo de relação


Família Mãe, pai, irmã e irmão 1º S
Madrinha, uma tia, uma prima, um primo e uma avó 1º S
Parentes
Uma prima 1º C
Escola Um professor e uma professora 1º S
Amigos Um amigo e duas amigas 1º S
Duas amigas 2º C
Outras
Três amigas 1º S
relações

relações no Mapa de Miguel após os seis me- inferir que Miguel apresentava uma percepção
ses de atendimento, demonstrando a transfor- controversa em relação a seu pai, que hora está
mação e a dinâmica pela qual a rede de apoio no nível mais afastado, com relação satisfató-
social e afetiva é capaz de passar (Samuelsson ria, e hora está no nível mais próximo, com
et al., 1996). De modo geral, o Mapa de Miguel relação conflituosa. Tais acontecimentos no
sofreu alterações que demonstra, conforme âmbito familiar podem ser considerados fonte
Couto (2007), um aumento tanto no aspecto de estresse psicológico, que, segundo Bronfen-
estrutural quanto funcional da rede de apoio. brenner e Evans (2000), possuem o poder de
Embora Miguel tenha representado apenas interferir nas relações interpessoais da pessoa
duas pessoas a mais no segundo Mapa, sua em desenvolvimento e fragilizar os efeitos po-
rede de apoio social e afetiva apresentou uma sitivos dos processos proximais.
mudança qualitativa significante após seis me- No campo escola, houve uma melhora sig-
ses de sua participação no Serviço. Isso por- nificativa nas relações de Miguel: apenas dois
que, no primeiro Mapa, das 11 pessoas que colegas permaneceram no último nível; figuras
estavam representadas no último nível, indi- adultas apareceram no primeiro nível, e cole-
cando pouca proximidade, relação insatisfa- gas do sexo masculino, em um nível mais pró-
tória e de rompimento, apenas duas perma- ximo na segunda aplicação. Bronfenbrenner
neceram no último nível na última aplicação. (1996) destaca a importância da interação com
Além disso, na primeira aplicação, 19 pessoas pessoas mais maduras e experientes para que
foram apontadas nos quatro primeiros níveis a pessoa em desenvolvimento tenha maior be-
do Mapa, indicando sua participação na rede nefício no processo de seu desenvolvimento.
de apoio, enquanto, no segundo, 29 pessoas Outro aspecto qualitativo da rede de apoio
foram indicadas nos primeiros quatro níveis. de Miguel, advindo após os seis meses de in-
Outros aspectos qualitativos na melhora clusão no Serviço, diz respeito à percepção
da rede de apoio de Miguel podem ser obser- da ajuda que recebe das pessoas. Na primei-
vados principalmente no campo família. No ra aplicação do mapa, Miguel não indicou
primeiro Mapa, o pai está no último nível, e ser ajudado por ninguém, e ajudava apenas
o restante da família, no penúltimo nível; já alguns primos. Já na segunda aplicação, disse
no segundo mapa, a família passou a ser re- ser ajudado pela irmã, pela professora e por
presentada em níveis mais próximos, e há um duas colegas de sala, enquanto ele ajudava
deslocamento da figura paterna do último outro colega. Percebe-se, assim, que ele reco-
para o segundo nível. O menino não nos deu nhece a continuidade da ajuda que recebe de
explicações quanto ao motivo da mudança de um membro da família e passa a reconhecer o
nível do pai, talvez limitado por sua dificul- apoio de pessoas na escola, ambiente que po-
dade de comunicação verbal. Alguns aconte- demos pressupor ser fonte de estresse, devido
cimentos no âmbito familiar, como o conflito à violência sofrida nesse tipo de espaço. Essa
entre os pais e a educação rígida, nos permite nova rede que Miguel declara possuir indica,

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O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

na visão de Cobb (1976), a categoria de comu- mencionadas. Somente ao perguntarmos mais


nicação e obrigação mútua, a qual coopera diretamente sobre as pessoas é que ele demons-
com a elevação do sentimento de autoestima trou que elas poderiam ter algum sentido em
da pessoa em desenvolvimento. sua vida. Quanto à percepção do espaço como
Dentre as ações dos participantes da rede de um campo fenomenológico, Bronfenbrenner e
apoio social de Miguel que funcionaram como Morris (1998) esclarecem que, no ambiente mi-
fator de proteção para o menino, estão os en- crossistêmico, a experiência tem um valor espe-
caminhamentos realizados para a Delegacia, cial no desenvolvimento psicológico, uma vez
para o DML e para o Serviço de Enfrentamento que é importante considerar como os elemen-
à Violência. Como ações da família, podemos tos objetivos que o compõe são percebidos pela
destacar o fato de terem procurado o Serviço pessoa e como ela atribui significados a eles.
de Enfrentamento à Violência e de terem feito Ficou evidente, no caso de Miguel, o poder do
a denúncia do abuso à Delegacia de Proteção à processo proximal desenvolvido entre pessoa-
Criança e ao Adolescente (DPCA). A denúncia -objetos na condução de seu desenvolvimento.
da violência pela família é apontada por Habi- A configuração dos espaços microssistê-
gzang et al. (2006) como um importante fator micos de Mariana eram bem diversificados,
que contribui com a diminuição dos fatores de indicando um mesossitema rico. Mariana de-
risco, pois acreditar na palavra da criança faz monstrou perceber a importância da participa-
com que a família busque protegê-la. ção das pessoas em sua rede de apoio social
Um fator de risco para Miguel foi o fato e afetiva no processo de superação do abuso,
de ele não ter revelado o abuso à sua família, com destaque para a figura da mãe, que a re-
tendo este sido descoberto somente quando comendou o uso de um diário. O diário per-
foi ao Hospital. Hohendorff et al. (2012), em mitiu a ocorrência de um processo proximal
um ensaio teórico, lembram que meninos e pessoa-objeto e tornou-se uma das estratégias
homens possuem maior dificuldade de contar de enfrentamento para a superação dos sinais
suas experiências de violência sexual, devido causados pela violência e contribuiu para re-
ao medo das reações e da vergonha das pesso- sultados positivos em seu desenvolvimento.
as, ao tomarem conhecimento do fato. Aliado Conforme as Tabelas 3 e 4, o caráter dinâ-
a esse fator, estava a dificuldade de comunica- mico da rede de apoio social e afetiva também
ção que Miguel possuía e que pode tê-lo impe- ficou evidenciado na vida da menina. No pri-
dido de contar sobre a violência sofrida. meiro Mapa, Mariana representou 17 pessoas
O componente tempo é observado como em quatro campos e, no segundo Mapa, repre-
algo essencial na formação de vínculos e no au- sentou 20 pessoas nos cinco campos. Destaca-
mento de engajamento em processos proximais -se, nos Mapas da menina, a importância da
por parte do menino, pois a dinâmica da rede qualidade dos vínculos (Brito e Koller, 1999),
tem estreita relação com as habilidades sociais visto que as pessoas estão mais concentradas
que a pessoa possui para mantê-la ou ampliá- até o 2º nível, revelando o caráter funcional
-la (Samuelsson et al., 1996). Como Miguel de- qualitativo da rede (Couto, 2007).
monstrou ser uma criança pouco comunicati- Na segunda aplicação, há um aumento no
va e retraída, essas características pessoais de número de pessoas do sexo masculino repre-
disposição inibidoras funcionaram como um sentadas, bem como o deslocamento das já
limitador para que ele se envolvesse em novas existentes para níveis mais próximos, com des-
relações, demandando tempo para que isso taque para o pai, que passou do 4º nível para o
acontecesse tanto no ambiente escolar quanto 1º nível, demonstrando a superação do medo
no Serviço. Esse fator pode ter sido reforçado de figuras masculinas. Também foi possível
ao longo da vida de Miguel pela limitação de observar um aumento no número de pessoas
contatos e de ambientes que frequentava e pela adultas na rede percebida por Mariana, outro
educação familiar rígida que recebia. fator que potencializa o desenvolvimento.
A respeito das relações estabelecidas por A configuração da família no segundo
Miguel no Serviço de Enfretamento à Violência Mapa e os dados obtidos na entrevista de-
que pudessem caracterizar processos proximais, monstraram o quanto Mariana possuía rela-
observou-se que elas ocorriam mais frequente- ções e vínculos positivos nesse microssistema
mente com os objetos disponíveis naquele am- central, principalmente demonstrado na figu-
biente, como livros, brinquedos, papel e lápis ra materna. A mãe tinha especial valor afeti-
de cor. Ao descrever o espaço e o que nele fa- vo no discurso da menina, que dizia sentir-se
zia mais sentido para ele, as pessoas não foram compreendida e apoiada por ela.

Contextos Clínicos, vol. 8, n. 2, julho-dezembro 2015 182


Danielly Bart do Nascimento, Edinete Maria Rosa

Um dos fatores que contribuíram para a Considerações finais


percepção da aproximação das pessoas de sua
rede foram as características pessoais de dis- O uso da Teoria Bioecológica nesse estu-
posição generativas de Mariana. Por ser uma do ajudou na compreensão das relações esta-
menina comunicativa, recuperou a habilidade belecidas pelas crianças com pessoas, objetos
social para manter suas relações interpessoais, e ambientes, na forma como essas relações
bem como para construir novas relações. contribuíram para aumentar os resultados
Um fator de risco para Mariana foi o tra- positivos dos participantes e na indicação de
tamento recebido pela delegacia de polícia de quais elementos do ambiente tiveram signi-
seu município, pois, segundo a mãe da meni- ficado para superarem a situação de estresse
na, embora o boletim tenha sido lavrado, em vivida. O período de seis meses de acom-
sua opinião, o crime não recebeu a importância panhamento dos participantes mostrou-se
devida. Outro fator de risco foi a infraestrutu- suficiente para produzir resultados positi-
ra do conselho tutelar de seu município, que, vos de desenvolvimento em ambos os par-
mesmo tendo participado da rede de apoio de ticipantes, indicando que a intervenção com
Mariana, não pôde proporcionar uma maior crianças pode dar seus primeiros resultados
frequência ao Serviço de Enfrentamento à Vio- em um curto período de tempo, desde que
lência, por encontrar-se com a oferta de trans- aliado a uma atuação competente dos técni-
porte prejudicada. Uma frequência maior ao cos e da participação da família no processo
Serviço poderia ter intensificado a assistência de apoio às vítimas.
recebida pela menina, fortalecido a ela e à sua Quando a criança passa pela experiência
família e potencializado o processo de supera- da violência sexual, os membros da família
ção do problema. também precisam de suporte emocional para
Como fator de proteção presente na vida a superação do evento estressor. Esclarecer à
de Mariana, podemos citar o tratamento rece- família o papel dos serviços de enfrentamento
bido no Serviço de Enfrentamento à Violência à violência, acolher e acompanhar os familia-
res, juntamente com a criança, são estratégias
e percebido por ela e pela mãe como algo que
importantes no enfrentamento à violência e
as faziam sentirem-se bem e acolhidas. O inte-
seus sinais.
resse da família em buscar ajuda psicológica
A atuação do psicólogo na recuperação ou
para a filha já pode ser considerado como um
desenvolvimento de habilidades sociais das
importante auxílio na superação das consequ-
vítimas é um importante fator protetivo. Ha-
ências da violência (Habigzang et al., 2011).
bilidades sociais como ser comunicativo, ter
Nas duas aplicações do Mapa, Mariana
capacidade de demonstrar afeto positivo, ser
relatou ajudar e ser ajudada mutuamente pe-
recíproco nas relações e engajar-se em ativi-
las pessoas, demonstrando uma percepção de
dades com outras pessoas são características
rede do tipo comunicação e obrigação mútua, pessoais que podem facilitar a manutenção e
conforme descrita por Cobb (1976). Mariana ampliação dos vínculos estabelecidos na rede
também demonstrou reconhecer o apoio emo- de apoio social e afetiva das crianças.
cional recebido das pessoas e grupos, uma O Mapa dos Cinco Campos utilizado como
vez que ela expressava ter conhecimento de ferramenta de pesquisa no estudo pode ser
ter sido encaminhada ao Serviço para receber usado também no contexto clínico para a in-
apoio psicológico e social. vestigação da rede de apoio social e afetiva.
Embora as Técnicas do Serviço não tenham O conhecimento que o Mapa proporciona au-
sido representadas na segunda aplicação do xilia na escolha de estratégias para intervenção
Mapa, Mariana explicitou na entrevista a im- e ampliação dos agentes protetivos da rede de
portância de ter sido acolhida pelas Técnicas crianças que tenham passado pela experiência
do Serviço e a importância daquele espaço de violência sexual ou qualquer outro tipo de
para a superação de suas dificuldades. Mes- violência.
mo tendo sido atendida por cinco vezes pelas A importância em estudar a rede de apoio
Técnicas do Serviço, reconheceu a importân- social e afetiva de crianças que passaram pela
cia daquele microssistema como participante experiência de abuso sexual está em descobrir
de sua rede de apoio social e afetiva, pois os quais pessoas e quais instituições estão atu-
processos proximais ocorridos tiveram um ando na superação dos sinais surgidos após
efeito amplo, atuando durante os intervalos a violência e quais podem ser acionadas para
dos atendimentos. fazer parte da rede de proteção da criança.

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O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva

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