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Contextos Clínicos, 9(1):98-108, janeiro-junho 2016

2016 Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2016.91.08

Intervenção psicossocial com o adulto autor de violência


sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes

Psychosocial intervention with the adult responsible for intra-familiar sexual


violence against children and adolescents 

Fernanda Figueiredo Falcomer Meneses, Lucy Mary Cavalcanti Stroher,


Cássio Bravin Setubal, Lana dos Santos Wolff
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Programa de Pesquisa, Atenção e Vigilância
à Violência – PAV Alecrim. Setor Bancário Norte (SBN), Quadra 02, bloco “P” lote 04,
loja 01, 70040-020, Brasília, DF, Brasil. fernanda.falcomer@gmail.com,
cassiosetubal@yahoo.com.br, lustroher@gmail.com, lanawolff@gmail.com

Liana Fortunato Costa


Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura.
Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Sul, Instituto de Psicologia, Universidade
de Brasília, 70910900, Brasília, DF, Brasil. lianaf@terra.com.br

Resumo. O texto tem como objetivo apresentar um relato de experiência


de intervenção psicossocial grupal para adultos autores de violência sexual
intrafamiliar contra crianças e adolescentes. O atendimento à pessoa que
comete violência está previsto no Plano Nacional de Enfrentamento da Vio-
lência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, e requer das instituições e da
sociedade uma mudança de paradigma, em relação a punir versus tratar. A
intervenção se passa em uma unidade pública de saúde, a equipe é formada
por um psicólogo, duas psicólogas, uma assistente social e um psiquiatra.
Descreve-se uma experiência grupal ocorrida em 2014, que contou com de-
zessete participantes, e idades entre 27 e 71 anos. O fluxo do atendimento in-
clui: entrevista individual inicial, entrevista familiar, entrevista psiquiátrica,
e as sessões grupais, em número de nove, com duração de duas horas cada.
Os temas presentes nas sessões são: avaliação e incremento da autoestima;
responsabilização pelo sofrimento perpetrado a outrem; enfrentamento da
ação violenta; reflexão sobre a criação de vínculos e intimidade com outras
pessoas; presença de fantasias sexuais envolvendo crianças e /ou adoles-
centes; recuperação do processo de comportamentos que se sucedem antes
da ofensa sexual; construção de estratégias para evitar novas situações de
violência sexual e elaboração de projeto de futuro de vida. O limite do tex-
to está na ausência de outras experiências narradas em contexto brasileiro
que possibilitasse discussão mais ampla. No entanto, busca-se a presença do
escopo da interseção de diferentes saberes, como o Direito, a Psicologia, a
Psiquiatria e o Serviço Social.

Palavras-chave: abuso sexual, vitimização, crime, agressões sexuais.

Abstract. The text has the goal to present a report of the group psychosocial
intervention experience with adults responsible for intra-familiar sexual
violence against children and adolescents. The treatment to the person who
commits sexual violence is provided by the National Plan of Coping with

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 International (CC BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Fernanda F. F. Meneses, Lucy M. C. Stroher, Cássio B. Setubal, Lana dos S. Wolff, Liana F. Costa

the Sexual Violence against Children and Adolescents (Plano Nacional de


Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes), and
requires a change of paradigm from the institutions and society, regarding
punishment versus treatment. The intervention takes place in a public health
unity; a male psychologist, two female psychologists, a social assistant and
a psychiatry form the team. A group experience that took place in 2014 is
described, which included seventeen participants between the ages of 27
and 71. The treatment flow includes: an initial individual interview, a family
interview, a psychiatric interview and nine group sessions, with the dura-
tion of two hours each. The themes presented in the sessions are: evaluation
and increase of self-esteem; accountability for the suffering perpetrated to
others; coping with the violent act; reflection about bonding and intimacy
with others; the presence of sexual fantasies involving children and/or ado-
lescents; recovery of the behavioral processes that happen before the sexual
assault; strategy construction to avoid new sexual violence situations, and
the elaboration of a future life project. The limit of the text is in the absence of
other experiences narrated in a Brazilian context, which would make a wid-
er discussion possible. Nevertheless, the presence of different areas scope,
such as Law, Psychology, Psychiatry and Social Service is eagerly searched.  

Keywords: sexual abuse, vitimization, crime, sex offenses.

Introdução et al., 2013; Marshall, 2001; Mascarenhas et al.,


2010; Pincolini e Hutz, 2014). Espera-se que
Este texto tem como objetivo apresentar um este texto possa trazer avanços nessa trajetó-
relato de experiência de intervenção psicosso- ria de atenção ao autor de violência sexual, na
cial grupal para adultos autores de violência medida em que descreve uma experiência em
sexual intrafamiliar contra crianças e adoles- curso, realizada em contexto de intervenção
centes. Trata-se de uma experiência piloto, ao psicossocial.
mesmo tempo de uma pesquisa-ação (Barbier,
2002), que caracteriza uma parceria entre uma Aspectos teóricos da proposta
universidade pública e uma instituição de saú-
de governamental. É muito recente a preocu- A Organização Mundial de Saúde (OMS)
pação com o atendimento ao ofensor sexual, define a violência sexual como ações que en-
sendo que não se tem conhecimento de outra volvem maus-tratos e, no caso de crianças,
experiência dessa natureza em andamento no
implica que ela seja vitimizada por uma pes-
Brasil dentro do sistema de saúde pública. No
soa mais velha com o objetivo de satisfação
entanto, iniciativas dessa ordem são necessá-
sexual. O ofensor geralmente tenta aproximar-
rias para que se cumpra o circuito de proteção
-se da criança pela sedução, com o objetivo de
às vítimas de abuso sexual. Em São Paulo, o
conquistar-lhe a confiança, envolvendo-a em
trabalho de Baltieri e Andrade (2009) com ava-
liação de ofensores sexuais, caminha no senti- uma relação muito próxima e erotizada, hie-
do da estruturação de uma avaliação do com- rarquizada em relação ao poder, com o intuito
prometimento psíquico de ofensores sexuais, de concretizar o contato genital (Organização
utilizando métodos de entrevistas e de apli- Mundial da Saúde, 2002). O âmbito do texto
cação de instrumentos atuariais (Gonçalves limita-se a propor uma intervenção que se des-
e Vieira, 2005; Gordon e Grubin, 2004). Cabe tina à violência sexual contra crianças e ado-
salientar que o atendimento à pessoa que co- lescentes ocorrida de modo intrafamiliar. Essa
mete violência está previsto no Plano Nacional proposta encontra um sentido em relação ao
de Enfrentamento da Violência Sexual Contra maior número de abusos sexuais ocorridos no
Crianças e Adolescentes (Brasil, 2013). A isso contexto familiar, seja com relação ao abuso
se acresce a constatação de que, na maioria sexual de meninos ou de meninas (Bogaerts
dos casos de violência sexual contra crianças et al., 2010). Por outro lado, o abuso sexual in-
e adolescentes, esses atos violentos são come- trafamiliar é visto como mais grave, danoso e
tidos mais por pessoas do sexo masculino do mais persistente, pois a vítima tem mais difi-
que por pessoas do sexo feminino (Hohendorff culdades em interromper a vitimização pelo

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fato de conhecer/conviver com o ofensor (Mi- relações familiares, a situação ocupacional, as


randa e Corcoran, 2000). relações com grupos sociais, o uso de subs-
O oferecimento de ações voltadas para esse tância, a conjugalidade (Howells e Day, 1999;
público, adultos ofensores sexuais intrafami- Marshall, 2006; Miranda e Corcoran, 2000).
liares, requer das instituições e da sociedade Há um programa de atenção ao ofensor se-
uma mudança de paradigma, em relação a xual melhor e mais indicado? Certamente não,
punir e aprisionar versus identificar e oferecer e os autores concordam com essa assertiva e
atendimento em saúde pública (Day e Ward, adiantam que deve haver um ajustamento en-
2009; Howells e Day, 1999; Marshall et al., 2006; tre os participantes da intervenção, os objeti-
Schafer e Peternelj-Taylor, 2003; Ward et al., vos a serem alcançados e as características do
2007; Ward et al., 2009). Com relação aos con- contexto social e comunitário (Howells e Day,
teúdos presentes nas intervenções, a escolha 1999; Marshall, 2006). Há ainda uma questão
dos temas privilegia, segundo Howells e Day ética, que é a posição assumida por autores
(1999), Holland et al. (2007), Marshall (2006), como Ward et al. (2007) e Ward et al. (2009), de
Worley et al. (2011): avaliação e incremento da que os direitos humanos se impõem como uma
autoestima; responsabilização pelo sofrimento diretriz a ser cumprida, pois se trata de um pro-
perpetrado a outrem; enfrentamento da ação blema de saúde pública, além de ser evidente a
violenta; reflexão sobre a criação de vínculos urgência em se compreender quem é o autor de
e intimidade com outras pessoas; presença ato violento, e sua reinserção familiar e social.
de fantasias sexuais envolvendo crianças e/
ou adolescentes; recuperação do processo de Contexto
comportamentos que se sucedem antes da
ofensa sexual, construção de estratégias para A intervenção se passa em uma unidade
evitar novas situações de violência sexual e pública de saúde que faz parte de uma rede
elaboração de projeto de futuro de vida. To- especializada em atendimento às vítimas de
dos os autores consultados, e apontados neste violência (PAV Alecrim – Secretaria de Saú-
texto, concordam com a necessidade insubsti- de – Governo do Distrito Federal). A unidade
tuível da avaliação do funcionamento psíquico aqui indicada é responsável pelo atendimento
do ofensor sexual, do acompanhamento du- dos homens que cometeram ofensa sexual, e
rante o processo da oferta da intervenção, bem funciona em local distinto das demais unida-
como da avaliação da recidiva do ato violento. des da rede. A equipe é formada por um psicó-
Com relação ao formato da intervenção, esta logo, duas psicólogas, uma assistente social e
pode ser individualmente ou em forma grupal um psiquiatra. O psiquiatra é responsável pela
(Marshall, 2006), porém, uma vez que se esco- avaliação do comprometimento do autor da
lha o formato grupal, os participantes devem violência em alguma expressão de psicopato-
manter uma homogeneidade de problemá- logia, por meio de uma entrevista psiquiátrica
ticas, para que o design seja comum a todos. realizada antes do início da intervenção gru-
Com relação ao período da intervenção, de- pal. Os demais profissionais são responsáveis
pendendo da avaliação, poderá se estender de pelas entrevistas iniciais com o autor da vio-
três a nove meses. Não há um perfil de ofensor lência e com o grupo familiar, e conduzem o
sexual (Bogaerts et al., 2010; Seto, 2008), por atendimento psicossocial.
isso, a intervenção oferecida deve ser adapta-
da à diversidade dos componentes do grupo. Participantes
Além disso, mais recentemente, autores como
Lauritsen e Carbone-Lopez (2011), Rodgers O grupo aqui descrito foi composto por 16
e McGuire (2012) e Worley et al. (2011) vêm participantes, com idades entre 27 e 71 anos,
chamando a atenção sobre a necessidade de sendo que a média de idade é de 47,8 anos.
se considerar outros aspectos interpessoais A maioria deles é casada, ou em união está-
do ofensor sexual – o contexto, a família e a vel. Oito participantes estão trabalhando no
comunidade – como elementos importantes mercado formal, três no mercado informal,
na avaliação de recidiva do ato violento e no dois aposentados, três desempregados, e um
planejamento dos atendimentos, visando ao recebe bolsa da Fundação de Amparo ao Tra-
restabelecimento de relações sociais para os balhador Preso (FUNAP-DF) (Brasil, 1986). A
ofensores, objetivando a não recidiva do ato escolaridade vai de não alfabetizado (i) até o
ofensor. Isso significa incluir os aspectos pre- superior incompleto (ii), sendo que a maioria
sentes no contexto do ofensor sexual, como as se encontra no ensino fundamental incomple-

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to (Tabela 1). A renda pessoal varia de 2/3 do no sistema judiciário, expectativas para a in-
salário mínimo até sete salários mínimos, e a tervenção e encaminhamentos para a rede de
renda familiar vai de um salário mínimo até saúde e/ou assistência social, realizados ao fi-
quinze salários mínimos. Quatorze participan- nal do atendimento. Nesse momento, também
tes foram condenados por violência sexual in- é confeccionada uma linha da vida, buscando
trafamiliar e receberam penas que variaram de conhecer as trajetórias de vida da pessoa aten-
2 anos a 17 anos de prisão, tendo permanecido dida (Nascimento et al., 2005).
recolhidos no sistema prisional uma média de Entrevista semiestrutrada com a família –
2 anos e 1 mês. Dois participantes foram jul- Toda a família é convidada a comparecer, e
gados e condenados, mas cumpriram a pena o objetivo é conhecer a interação familiar, a
em regime aberto, em prisão domiciliar, e um reorganização familiar após a saída do autor
participante não chegou a ser julgado, e seu do sistema penitenciário (Holland et al., 2007;
processo estava suspenso. Visher, 2007). Essa entrevista é a oportunidade
Sobre as vítimas, foram 12 do sexo femi- para a confecção do Genograma (McGoldrick
nino, cinco vítimas do sexo masculino, sendo et al., 2012), que consiste em uma representa-
que um autor de violência ofendeu a ambos ção gráfica dos membros da família de suas
os sexos. A idade média das vítimas do sexo várias gerações, e da qualidade dessas relações
feminino foi de 12 anos e um mês, com ida- entres os diferentes membros. Em relação a
des entre 4 anos e 24 anos. A idade média das esses sujeitos é interessante, em particular, a
vítimas do sexo masculino foi de 9 anos, com repetição dos atos violentos em cada geração.
idades entre 7 anos e 11 anos. Dos 16 partici- Entrevista de avaliação psiquiátrica – Essa
pantes, 11 fazem uso de álcool, entre os modos entrevista é fundamental para acrescentar, à
moderado e abusivo. A maioria dos partici- compreensão do contexto socioeconômico e cul-
pantes já cumpriu suas penas, e são recebidos tural do adulto ofensor, o seu comprometimen-
na instituição por encaminhamento da Vara to com a presença de aspectos psicopatológicos,
de Execuções Penais, ou da Vara de Execuções por exemplo, psicopatias ou depressão (Gordon
de Penais em Meio Aberto, ou da Promotoria e Grubin, 2004; Marshall, 2001; Seto, 2008).
de Violência Doméstica. O encaminhamento Instrumento atuarial – O checklist SVR-2.0
proveniente dessa última Vara explica porque, é um instrumento preenchido pela equipe de
nesse grupo, havia um ofensor de vítima com profissionais responsáveis pelo atendimento,
24 anos com deficiência intelectual. O encami- e visa à detecção de risco de possível cometi-
nhamento é sob obrigação, e a participação no mento de ato violento, incluindo a observação
grupo é sigilosa. de fatores individuais e situacionais. Os fato-
res de observação são: ajustamento psicosso-
Instrumentos cial, histórico das ofensas sexuais, existência
de planos futuros. A partir da observação
Roteiro de entrevista semiestruturado – Da desses pontos, elabora-se uma estimativa de
entrevista individual, constam os seguintes recidiva de violência sexual de maior, médio
itens: identificação, dados da família, condi- ou baixo risco. O preenchimento é fruto da ob-
ções de moradia e de saúde, histórico da vio- servação sobre o sujeito ofensor e deve ter uma
lência sexual encaminhada à justiça, entrada perspectiva processual, ou seja, seu preenchi-

Tabela 1. Informações sobre a escolaridade dos participantes.


Table 1. Participants’ schooling information.

Escolaridade Nº de participantes
Não alfabetizado 01
Ensino Fundamental Incompleto 03
Ensino Fundamental Completo 04
Ensino Médio Incompleto 04
Ensino Médio Completo 02
Ensino Superior Incompleto 02
Total 16

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mento deve permanecer em aberto, incluindo encontros, houve uma divisão de responsabili-
novas observações à medida que o sujeito vai dade, sendo que a instituição ofereceu alguns
percorrendo todas as etapas da intervenção itens e os participantes, outros.
(Boer et al., 2005; Gonçalves e Vieira, 2005;
Walters, 1998). A proposta metodológica

Recursos humanos e materiais O fluxo do atendimento teve início com a


chegada ao serviço do participante concomitan-
Os recursos humanos disponíveis estão temente com cópia de partes do processo envia-
descritos no item “Contexto”. Faz parte, ain- da diretamente das varas penais já citadas. Esse
da, da equipe, uma psicóloga, docente de uma encaminhamento contém informações atuali-
universidade pública que é responsável pela zadas sobre sua condição socioambiental, deta-
pesquisa. Esse grupo, em fase anterior à im- lhes do processo e uma avaliação, se ocorrida
plantação da intervenção propriamente dita, ou não, dentro do sistema prisional. Em segui-
reuniu-se buscando material teórico e técnico da, cada participante foi entrevistado por uma
em autores internacionais que subsidiassem dupla de profissionais, visando ao conhecimen-
a possibilidade da execução da tarefa. O pri- to de informações acerca da realidade psicosso-
meiro semestre de reuniões (1º semestre de cial, da ocupação, das condições de moradia,
2013) contou com a participação de pessoal da renda pessoal e familiar, do uso de substân-
da área da saúde prisional e pessoal da justi- cias, da escolaridade, da situação empregatícia
ça para efetivar conhecimento acerca do siste- e da situação da violência perpetrada e de in-
ma prisional, aplicação de penas e do sistema formações sobre a vítima. Nessa oportunidade,
de justiça. No segundo semestre de reuniões busca-se primordialmente o estabelecimento de
(2º semestre de 2013), teve início um programa vínculo de aceitação e empatia com o partici-
de leituras sobre criminologia, direitos huma- pante (Marshall, 2006) a partir do processo de
nos, avaliação de condutas criminais, diferen- transformação da demanda compulsória para
tes instrumentos de avaliação, experiências uma possível demanda real. Nessa primeira en-
internacionais de intervenção com autores trevista, foi feita ainda a Linha da Vida com o
de violência. O terceiro semestre de prepa- ofensor. Uma segunda entrevista foi realizada a
ração (1º semestre de 2014) foi utilizado para partir do convite para a presença de familiares,
a construção teórica e metodológica da pro- na qual foi realizado o Genograma. A maioria
posta a ser adotada. Foi o momento no qual dos ofensores trouxe a companheira. Um tercei-
se decidiu que se privilegiaria uma entrevista ro contato antecedente ao início da intervenção
semiestruturada logo ao início do atendimen- grupal foi a entrevista psiquiátrica. Em termos
to, que haveria uma entrevista psiquiátrica de fluxo do processo da intervenção, aconte-
definindo e diagnosticando psicopatologias e ce, então, o compartilhamento de todas as in-
que se adotaria um instrumento atuarial para formações a respeito de cada participante, por
avaliação do risco de reincidência aplicado a meio de reunião de estudo de caso envolvendo
todos os participantes. Esse instrumento seria todos os profissionais.
o checklist SVR-2.0 (Boer et al., 2005; Gonçalves A partir desse ponto, foi feito o planeja-
e Vieira, 2005). Essas definições foram basea- mento grupal e a decisão sobre se haveria
das principalmente em: Howells e Day (1999); algum participante considerado inadequado
Holland et al. (2007); Mandeville-Norden e Be- para a intervenção. O critério de definição
ech (2006); Marshall (2006); Nunes et al. (2013); dessa inadequação é a presença de alguma ex-
Vess et al. (2008); Seto (2008). Com relação à pressão psicopatológica, como depressão mais
pesquisa, a intervenção constitui-se em um grave, ou sociopatia, ou, ainda, o diagnóstico
projeto de pesquisa-ação apresentado ao Co- de pedofilia. Essa decisão de não atendimen-
mitê de Ética do Instituto de Ciências Huma- to a ofensores com diagnósticos graves, e com
nas (via Plataforma Brasil) da Universidade de comprometimento sociopático, está calcada
Brasília e recebeu o parecer número 972.246. em Marshall (2006), que orienta a não se mis-
A intervenção se passa em um auditório turar participantes com comprometimentos
disponibilizado pela unidade de saúde. Os muito desiguais, porque vai se sobretratar (ofe-
recursos materiais utilizados são: papel, lápis, recer intervenção mais complexa com conteú-
cola, revistas, barbante, fitas adesivas, e, como do para sujeito com baixo risco) uns e subtratar
material permanente, televisão e computador. (oferecer intervenção menos complexa com
Para o lanche que foi oferecido em todos os conteúdo para sujeito com alto risco) outros.

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Ainda há que se apontar que esses critérios se- continuidade adequada à cena inicial. O sexto
guem orientação de Marshall (2006) no tocante encontro (07/11/2014) teve a presença de 11 par-
à condição de ser uma intervenção em grupo ticipantes, e o tema foi sobre os preconceitos a
sem possibilidades de continuidade do aten- respeito das mulheres, sobre o que se espera
dimento em longo prazo, e ainda se privilegiar dos homens em relação à sua masculinidade,
o atendimento aos sujeitos com possibilidade sobre a dominação de pessoas com menos ida-
de responsividade à proposta da intervenção. de, e como esses preconceitos guiam as vidas
A intervenção grupal foi planejada para e condicionam os comportamentos. O sétimo
ocorrer em nove encontros de duas horas cada encontro (21/11/2014) teve a presença de seis
um. O primeiro encontro (29/08/2014) teve como participantes, e o tema foi construir e estudar
objetivo o acolhimento e a integração grupal: a Árvore da Vida, com sua raiz do que já acon-
O que espero do trabalho? Como posso con- teceu, com seu tronco, que dá firmeza para seu
tribuir para a intervenção? Foi feito o acerto crescimento, e com seus galhos, que são reno-
do contrato com respeito à hora de chegada e váveis e representam as mudanças que podem
saída. Compareceram 13 participantes, e um vir a ocorrer. Na verdade, esse tema foi uma
detalhe interessante foi o pedido deles para introdução aos Planos para o Futuro. O oitavo
que houvesse lanche em cada intervenção. O encontro (05/12/2014) teve a presença de nove
segundo encontro (12/09/2014) teve a presença participantes. O tema foi “Desfazer nós”, e o
de 11 participantes, e o tema tratado foi a ca- objetivo foi poder identificar com quais nós
pacidade de controlar comportamentos inva- (conflitos) os participantes ainda se sentem
sivos em relação a outras pessoas. Após um envolvidos. O principal nó apontado por eles
momento inicial de integração grupal, o tema foi a eclosão de conflitos familiares após sua
foi experienciado a partir de disparadores, reintegração familiar. O nono e último encon-
cartazes contendo fotografias que pudessem tro ocorreu em 12 de dezembro de 2014, teve
mobilizar reações frente a pessoas e situações a presença de oito participantes, e o objetivo
que requerem necessidade de controle interno, foi a preparação para o término do grupo, a
e ainda conseguirem refletir qual a consequên- retomada da vida cotidiana “sem dever nada
cia da falta de controle naquela circunstância. à justiça”. Alguns familiares compareceram e
O terceiro encontro (26/09/2014) ocorreu com foram convidados a percorrer, com os partici-
a presença de 11 participantes, e o tema foi pantes, uma linha traçada no chão, que signi-
“relações violentas”, com enfoque tanto nas ficou o caminho a ser percorrido daqui para
relações com adultos ou crianças, e diferentes frente. As expectativas dos participantes foram
modos de relacionamento violento. Esse tema receber ajuda de Deus, da família e manter ou
ensejou que os participantes pudessem reto- conseguir trabalho e emprego para a continui-
mar suas próprias experiências de sofrimento dade da vida.
com a violência familiar, bem como reconhe-
cer as violências praticadas na atualidade. O Comentários sobre as sessões
quarto encontro (10/10/2014) contou com 10 par-
ticipantes e teve como tema a reestruturação Incialmente, aponta-se a necessidade de
de objetivos para a construção de planos para que a intervenção tenha início, meio e fim já
o futuro. A atividade escolhida como dispa- definidos, para que os participantes possam
rador da reflexão foi uma história de vida, de negociar esse compromisso junto a seus em-
um ex-presidiário, retirada de um jornal. O pregadores. Adotou-se uma abordagem lú-
objetivo da reflexão foi avaliar o que é necessá- dica, com construção de desenho, colagens,
rio ser feito agora para a vida ser retomada, e objetos intermediários para facilitar a expres-
como as ações devem ser repensadas para que são dos sentimentos, angústias e diminuição
ocorram mudanças no modo de se relacionar da tensão frente ao tema da violência. O ob-
com crianças, adolescentes e adultos. O quinto jeto intermediário é um instrumento aplicável
encontro (24/10/2014) contou com 11 partici- quando existem papéis pouco desenvolvidos
pantes. O tema foi o abuso sexual, e a reflexão e sobre os quais se deseja atuar terapeutica-
foi proporcionada por uma encenação de uma mente, ou quando ainda está se lidando com
abordagem sedutora a uma criança. A encena- estados de alarme (Rojas-Bermúdez, 1977), e
ção, dramatizada pelos componentes do gru- pode também ser usado como estímulo para
po, teve início com uma notícia real retirada evidenciar aspectos inconscientes ou condutas
de um jornal de um abuso sexual envolvendo conflitivas evitadas de acordo com os papéis
uma menina, e o desafio foi o grupo dar uma que estão postos em funcionamento. A decisão

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de construção desse ambiente lúdico advém receberem apoio e suporte para permanecerem
da orientação de Marshall (2006) quanto ao fora da prisão. Várias qualidades vão ser ne-
estabelecimento de relações empáticas entre cessárias nessa fase de readaptação: coragem,
todos os componentes do grupo, bem como da determinação e controle para enfrentar o medo
equipe para os participantes, de evitação de que têm naquele momento de não saberem se
uma posição de confronto com o ato violento vão conseguir superar as dificuldades – além
praticado, embora não se esteja negando ou disso, querem esquecer o passado. Assim se re-
evitando se falar sobre isso. Todos os presentes sume o que esperam: permanecer próximo da
sabem que o comparecimento é sob obrigação, família e aprender a discernir entre o certo e o
já que foram instados a procurar o programa errado. Os participantes também deram suges-
logo após sua liberação do sistema prisional, tões dos temas que gostariam que fossem abor-
no entanto, os responsáveis pelo andamento dados: o preconceito; a família/o sofrimento/o
do grupo guardam o sigilo pertinente e não constrangimento; tristeza/felicidade; liberdade.
informam ao sistema de justiça sobre o con- Da parte da equipe, dois temas foram também
teúdo tratado nas conversações. Aqueles que sugeridos: controle dos impulsos e a expressão
não compareceram não receberam sanções, a da sexualidade. A intervenção da equipe se de-
orientação de que procurassem o programa foi veu à necessidade de que o tema do controle
em função de poderem receber ajuda e apoio da impulsividade fosse incluído (Mandeville-
para esse momento de transição. Parece que Norden e Beech, 2006; Marshall, 2006).
esse aspecto acabou prevalecendo, e um cré- Para o segundo encontro, foi proposta uma
dito foi dado a essa abordagem mais descon- discussão sobre o limite necessário para as
traída e lúdica, conforme orientação teórica ações desrespeitosas com crianças e adoles-
do Psicodrama (Moreno, 1993), que enfatiza centes, e o que o Estatuto da Criança e do Ado-
o trabalho de se refletir sobre uma condição lescente (Brasil, 1990) estabelece como direitos
“como se”, ou seja, substituindo um fato por e proteção de crianças e adolescentes. Um par-
outro como se esse outro fato proporcionasse ticipante indicou a diferença que deve pautar
as condições de reflexão. Adotaram-se, ainda, a conduta deles agora: “antes não dava nada e
jogos dramáticos, que são “brincadeiras” que agora dá” (agora o abuso sexual é crime). Ou-
permitem viabilizar o “como se”, e oferecem tro assunto que mobilizou a todos foi a adoção
oportunidade de se “falar sério” por meio de um vagão do metrô separado para as mu-
da ludicidade (Motta, 1995). Salienta-se que, lheres, e os participantes falaram de sua preo-
além das temáticas apontadas pela literatura, cupação com a possibilidade de que pudessem
buscou-se enfocar o estigma de presidiário/es- tocar em alguma mulher, serem denunciados e
tuprador com o fito de desconstrução desses voltarem para o regime fechado. Sem dúvida,
conceitos, além das relações de gênero. A pro- esse assunto teve repercussão, pois se mostra-
posta de reflexão por meio de atividades lú- ram decididos a evitar se colocarem em situa-
dicas contribuiu para intervir na constituição ção que ofereça risco de interpretação de sedu-
do grupo, ou seja, sobre a escolha de um parti- ção em público, diante de mulheres, crianças
cipante preferir conversar repetidamente com e adolescentes. Um fato marcante nesse en-
outro participante, visto que a grande maioria contro foi a primeira menção, advinda de um
já possuía conhecimento mútuo, desde o con- participante, sobre ele mesmo ter sido vítima
texto prisional. A não ser assim, corre-se o ris- de abuso sexual na infância. Embora o fato ti-
co de reproduzir a formação de subgrupos já vesse sido narrado como uma expressão pre-
organizados advindos desse contexto anterior. coce de masculinidade, ele foi ressignificado,
Seguem-se alguns comentários sobre o an- pela equipe de atendimento, como violência
damento e o desenvolvimento do tema de cada sexual e o possível sofrimento decorrente da
encontro. No primeiro encontro, foi fundamen- situação. O não reconhecimento da violação
tal se discutir sobre o “contrato terapêutico”, sexual é um mito masculino, e precisa ser des-
porque é necessário se fazer uma distinção em construído nesse contexto, porque não há o re-
relação ao contexto jurídico e o da intervenção. conhecimento do abuso e da violação (Allagia
Os participantes chegam para o atendimento e Mishna, 2014; Artime et al., 2014). O não reco-
com dificuldade de distinção entre o contexto nhecimento da vitimização por abuso sexual
judicial e o contexto da intervenção e, principal- na infância está vinculado ao cometimento de
mente, de confiar que o atendimento não está atos violentos na adolescência ou na fase adul-
subordinado ao contexto jurídico. As expectati- ta, aumentando as chances de sua ocorrência
vas, delineadas por eles, desde o princípio, é de (Easton et al., 2014; Nunes et al., 2013). O ter-

104 Contextos Clínicos, vol. 9, n. 1, Janeiro-Junho 2016


Fernanda F. F. Meneses, Lucy M. C. Stroher, Cássio B. Setubal, Lana dos S. Wolff, Liana F. Costa

ceiro encontro teve início com uma exposição as condutas dos participantes é fundamental,
de fotos com os seguintes assuntos: uma mu- e não pode estar ausente de um programa que
lher batendo em uma criança; uma criança que se propõe a intervir com essa população. O
parece estar sofrendo; um homem batendo mapa dos pensamentos de risco elaborado, na
no rosto de uma mulher; um homem tirando possibilidade de se aproximar de uma menina,
a roupa e uma criança deitada de bruços em foi: “Vai dar nada não”; “Vai perder a chance
uma cama; um pai batendo em seu filho. As fo- de curtir?”; “Você está velho brocha, vai per-
tos serviram como aquecimento para a discus- der a chance de ser feliz hoje?”. Pensamentos
são sobre a presença da violência no cotidiano diferentes que possam se contrapor ao mapa
da vida de todos, antes e agora, buscando que anterior e restabelecer o limite: “Reza que pas-
pudessem se identificar com alguma situação sa”; “Rapaz, vai procurar outra mulher por aí.
e refletissem sobre a banalização da violência Tem tanta mulher por aí!”; “Cara, cuidado que
sofrida e praticada. A revelação do abuso se- você vai ser preso. Será que vale a pena?!”.
xual por parte da vítima do sexo masculino é O sexto encontro procurou oportunizar a
bastante complexa, pois envolve preconceitos reflexão sobre o poder de crenças intocáveis
e toca no mito da masculinidade. Esse fator nas vidas, como é o caso dos preconceitos,
impede que muitos adultos reconheçam que principalmente aqueles machistas. Para isso, o
passaram por violências e violações. vídeo “Minha vida de João” (Minha Vida de
O quarto encontro teve início com falas de João – Guia de Discussão, s.d.) foi reproduzi-
vários participantes sobre avaliação das con- do. Esse vídeo mostra uma vida fictícia de um
versas ocorridas no grupo. Embora houvesse João qualquer, moldada por atender às cren-
uma prevalência maior de estarem gostando ças do que deve ser atitude de um homem em
da conversa, também foi apontado o cons- sociedade, violência no trato com a família,
trangimento e a dificuldade de conversarem com os amigos, com os filhos e, assim, repro-
sobre violência sexual. Após esse momento, a duzir a forma como ele mesmo foi educado.
discussão foi sobre controle do impulso de se As entrevistas individuais iniciais demonstra-
aproximar de crianças. Isso foi feito por meio ram o que vários autores corroboram: que os
da apresentação de uma foto com um homem ofensores sexuais tiveram uma infância com
e uma criança. Pediu-se que eles elaborassem a presença constante de muita violência (Ho-
uma história com esses dois personagens. Os wells e Day, 1999; Lauritsen e Carbone-Lopez,
pensamentos diante da foto foram: “acreditou 2011; Mathews et al., 1997; Rodgers e McGuire,
que ela não ia contar”, “acreditou que não ia 2012). Daí ser fundamental que possam recu-
dar cadeia”. O sentimento identificado foi: con- perar seu próprio sofrimento com a violência
fiança de que ele “era o cara”, ou seja, a cren- perpetrada contra eles. O sétimo encontro ocor-
ça superestimada sobre si mesmo do ofensor. reu em torno do tema da transgeracionalidade,
Como estratégias de controle, surgiram: fingir ou seja, os aspectos herdados da família de ori-
que não está vendo, mudar o olhar, respeitar o gem caracterizados por violência, ou maltrato,
medo de voltar para a cadeia. A reflexão sobre ou, ainda, aqueles aspectos que ofereceram
esse conteúdo deve fazer parte da preocupa- fortaleza para a possibilidade de se efetuar
ção de qualquer serviço de reinserção social, mudanças na vida. Foi solicitado a cada parti-
contemplando a presença do tema da avalia- cipante que desenhasse uma árvore com raiz,
ção da motivação do ofensor para enfrentar a caule e frutos, sendo que a raiz representaria a
interrupção da prática de ofensas sexuais (Ba- geração dos pais e avós, o que cada um havia
lakrishna, 1998). O quinto encontro enfocou a recebido dessa geração como uma “base para
presença da qualidade dos pensamentos que a vida”, o caule representaria o que cada par-
estão dominando o cotidiano dos participan- ticipante havia feito com essa “herança” rece-
tes. Vários autores que indicam ações de inter- bida e se poderiam modificar algum aspecto, e
venção com esse público (Howells e Day, 1999; os frutos seriam aquilo que eles gostariam de
Holland et al., 2007; Mandeville-Norden e passar adiante para seus descendentes. As he-
Beech, 2006; Marshall, 2006; Seto, 2008) apon- ranças foram indicadas como muito diversas,
tam a inclusão do questionamento sobre esses com elementos bons e maus, porém, no mo-
pensamentos, que envolvem várias questões: mento, as expectativas foram de poder deixar
a negação da violência cometida, a percepção para os filhos, e a família, um sentido de união.
distorcida de sua ação violenta, a culpabiliza- A menção à importância da família na vida de-
ção da vítima. O questionamento e reflexão so- les é inegável. Marshall (2001, 2006), Lambie
bre como esses pensamentos colocam em risco e Johnston (2015), Worley et al. (2011) Hollist

Contextos Clínicos, vol. 9, n. 1, Janeiro-Junho 2016 105


Intervenção psicossocial com o adulto autor de violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes

et al. (2009) são exemplos de autores que in- os obstáculos que estão enfrentando e os que
dicam a relação direta da ofensa sexual, seja poderão vir a aparecer. Foram reconhecidos
cometida por adolescente ou por adulto, como os prejuízos na vida, até então, mas também as
ligada à vivência de relações familiares e/ou conquistas. E as expectativas para o futuro es-
comunitárias repletas de interações violentas. tão entre ter saúde, conseguir adquirir um lote,
Por outro lado, após a experiência de reclusão ou um emprego, ou se aposentar. Diante dessas
em regime fechado, os participantes buscam referências, a equipe introduziu a necessidade
com grande expectativa o apoio da família. E de que os participantes enriquecessem sua rede
os autores já citados, juntamente com Howells de apoio, de relação familiar, de ajuda de pa-
e Day (1999) e Marshall (2006), enfatizam a im- rentes, amigos e conhecidos, do mesmo modo
portância da família no processo de ressociali- que considerassem aquele espaço da instituição
zação e reintegração social do ofensor. como uma referência para outros momentos
O encontro oito teve como objetivo propor- nos quais precisassem de ajuda.
cionar uma reflexão sobre a expressão da sexu-
alidade dos participantes, o que se constitui em Limites da proposta
ponto fundamental de conscientização como
recomendação de Marshall (2006). Note-se que Dois tipos de limites são observados: do
esse encontro se seguiu àquele no qual os pro- texto em si e da própria proposta. Com relação
blemas e expectativas familiares foram enfoca- à metodologia apresentada neste texto, não se
dos. Sendo assim, o tema dos conflitos familia- têm parâmetros para discussão, pois se desco-
res ressurgiu. A equipe manejou a situação de nhece outra intervenção pensada nesses mol-
modo a que se pudesse conversar sobre a famí- des. Trata-se de uma intervenção psicossocial,
lia e a sexualidade, que eles próprios pudessem voltada para a realidade de uma instituição
escolher qual tema traz mais preocupações. Na pública de saúde, que foi apoiada/demandada
subdivisão da preferência dos participantes por para apresentar um programa de acolhimento
discutirem um ou outro tema, ficaram marcan- e atenção a ex-detentos prestes a serem libera-
tes as diferenças dos subgrupos. O subgrupo, dos do sistema prisional. A decisão de limitar
que discutiu a questão da sexualidade, conse- o oferecimento da ação a ofensores sexuais in-
guiu trazer para o meio da discussão questões trafamiliares se deu pela maior prevalência da
como controle e limite na interação de sedução natureza dessa violência, e pela condição de
com meninas ou mulheres, bem como pensar oferecer uma unidade de problemática que se
em estratégias para não serem invasivos em acreditou que facilitaria a iniciação de atendi-
relações pouco respeitosas. O outro subgrupo mento a um público sobre o qual se tem pouco
assumiu uma posição mais queixosa e de viti- conhecimento. Mesmo dentro desse conjunto,
mização com relação à família atual, em função há grande heterogeneidade de constituição,
de a família apontar o uso excessivo de álcool, tendo em vista não haver um perfil único do
ou a frustração porque a família, em sua ausên- ofensor sexual (Seto, 2008). Considera-se que
cia, continuou com seus afazeres e muitas deci- esse projeto é um piloto de uma ação para a
sões foram tomadas sem a participação deles. qual se está buscando parceiros na academia e
Muitas vezes, essas iniciativas, por exemplo, de em diferentes saberes, como o Direito, a Psico-
trabalho, determinam afastamentos afetivos e logia, a Psiquiatria e o Serviço Social, no sen-
uma reorganização familiar que contraria um tido de ampliar as possibilidades de crítica e
hábito presente na interação familiar anterior à discussão das diferentes etapas da ação e da
reclusão. O tema da reintegração familiar é um pesquisa. Reconhece-se que a equipe de aten-
vasto campo de estudo (Marshall, 2006; Miran- dimento ainda se encontra buscando qualifica-
da e Corcoran, 2000; Zankman e Bonomo, 2004), ção, e que o patamar teórico técnico alcançado
e os autores concordam com sua importância ainda necessita de investimento, em função
capital. O nono e último encontro contou com a das limitações de investimento que um serviço
presença de alguns familiares – todas as famí- público é capaz de oferecer.
lias foram convidadas, porém, poucas compa- Por outro lado, reconhece-se que ainda
receram, e notou-se que alguns participantes persiste um limite configurado na dificulda-
não convidaram os familiares, em função do de de se colocar em prática o preenchimento
constrangimento já citado anteriormente. Foi do checklist SVR-2.0. Esse instrumento requer
traçada uma linha no chão, símbolo de uma ca- material importado, há ausência de pessoas no
minhada que está sendo realizada por todos os Brasil que tenham domínio sobre seu conteú-
participantes, que foram desafiados a apontar do e aplicação. Mesmo com esses impasses, a

106 Contextos Clínicos, vol. 9, n. 1, Janeiro-Junho 2016


Fernanda F. F. Meneses, Lucy M. C. Stroher, Cássio B. Setubal, Lana dos S. Wolff, Liana F. Costa

equipe prossegue na experiência de seguir a go de violencia sexual. Barcelona, Ediciones de la


orientação do manual do cheklist (Boer et al., Universitat de Barcelona, 106 p.
2005), que oferece os critérios de avaliação BOGAERTS, S.; BUSCHMAN, J.; KUNST, M.J.J.;
WINKEL, F.W. 2010. Intra- and Extra-Familial
dos itens de observação do comportamento e
Child Molestation and Personality Disorders.
da história de violência sexual cometida pelo International Journal of Offender Therapy and Com-
adulto ofensor. parative Criminology, 54(4):478-493.
Assim, o preenchimento do formulário de http://dx.doi.org/10.1177/0306624X09334519
avalição do checklist é realizado em reunião na BRASIL. 1986. Lei nº 7.533, de 2 de setembro de
qual se congregam todos os participantes da 1986. Autoriza o Governo do Distrito Federal a
equipe, e a discussão do caso se faz a partir das constituir uma Fundação com a finalidade de
amparar o trabalhador preso, e dá outras pro-
informações contidas na entrevista individual,
vidências. Disponível em: http://www2.camara.
na entrevista familiar, no encaminhamento da leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7533-2-setem-
justiça, que contém partes do processo, e em bro-1986-367599-publicacaooriginal-1-pl.html.
documento proveniente do Ministério Públi- Acesso em: 16/12/2015.
co, no qual há o depoimento da vítima sobre BRASIL. 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente
a violência perpetrada. Essas informações são (ECA). Lei nº 8069/90, de 13 de julho de 1990.
fundamentais na composição do quadro de fa- Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
tores de risco e de proteção no qual o adulto ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm. Acesso em:
15/02/2016.
ofensor está inserido. Nesse sentido, a parce- BRASIL 2013. Plano Nacional de Enfrentamento da
ria com uma universidade mostra-se funda- Violência Sexual Contra Crianças e Adolescen-
mental, pois é possível vislumbrar contatos e tes. Brasília, Secretaria de Direitos Humanos.
despertar o interesse em parcerias e projetos Disponível em: http://www.comitenacional.
de pesquisa em comum com o meio acadêmi- org.br/files/anexos/08-2013_PNEVSCA-2013_
co. O texto, então, apresenta uma carência de f19r39h.pdf. Acesso em: 11/06/2016.
apresentação, discussão e avaliação dessas eta- DAY, A.; WARD, T. 2009. Offender Rehabilitation
as a Value-Laden Process. International Journal
pas sobre a aplicação do checklist em questão.
of Offender Therapy and Comparative Criminology,
Finalmente, aponta-se a situação atual do pro- 54(3):289-306.
grama, que já se encontra na terceira edição da http://dx.doi.org/10.1177/0306624X09338284
intervenção. Houve atendimento de um grupo EASTON, S.D.; SALTZMAN, L.Y.; WILLES, D.G.
no primeiro semestre de 2015, outro grupo no 2014. “Would You Tell Under Circumstances
segundo semestre de 2015 (ainda em anda- Like That?” Barriers to Disclosure of Child Sex-
mento) e já se apresentaram as demandas para ual Abuse for Men. Psychology of Men & Mascu-
linity, 15(4):460-469.
o grupo ocorrer no primeiro semestre de 2016.
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