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REMATE DE MALES, Campinas, (12):95-100, 1992 "NAO MATARAS": UM ESBOCO DA FIGURACAO DO CRIME EM CLARICE LISPECTOR BERTA WALDMAN IEL/UNICAMP 1, No conto Diante da lei' Franz Katka apresenta a hist6ria de um camponés que se posta diante da porta da lei querendo ultrapassé-la. HA um porteiro que profbe sua entrada, € hhé 0 camponés que espera dias e anos, até o fim de sua vida, a oportunidade de entrar. A certa altura ocorre ao camponés perguntar 20 porteiro como se explicava - se todos aspiravam a lei - que em tantos anos ninguém além dele tivesse pedido para entrar. © porteiro Ihe responde que aquela porta era destinada 86 a ele, Esclarecida a situacdo, fecha a porta e vai embora. Esta fabula dé forma ao drama do poder e do arbitrio, sendo protagonizada por aquele que os ostenta (o porteiro), o que obedece & lei (o camponés) e aquele que assiste ao ritual de submissio 4 lei (0 leitor). © camponés néo passa pelo limiar da porta, néo entra para o interior da lei. Enquanto leitores, nés nao sabemos sequer se existe um interior; s6 conhecemos a interdico com respeito a passagem. Assim, o camponés, para obedecer a lei, tem de ficar fora, longe, diante dela. Também o leitor, enquanto platéia, assume a posi¢ao diante da cena ¢ do texto com que, num certo sentido, forma parte. Como deve se portar esse leitor/platéia diante da cena que se Ihe antepde? Permanecer diante dela significaré submissao a lei? E possivel ultrapassar o limiar da letra em busca de sua “interioridade"? E a lei? Esta, na fabula, é uma porta para o inatingivel. 2. "Nao matards” é 0 sexto dos dez mandamentos que o Senhor envia ao povo judeu através de Moisés. Inscrito originalmente no tempo futuro como sua tradugdo ao portugués’, este ‘mandamento marca sua vigéncia continua a partir de agora. Como os outros mandamentos, este também visa a regrar as relagdes entre os homens, de modo a garantir os limites necessérios para © convivio civilizacional. No Judaismo, o futuro é um tempo privilegiado, porque é através dele que se aponta para o advento do Messias e para o cumprimento do TIKKOUN, isto é, a redengéo enquanto retomno de todas as coisas a seu contato original com ‘Deus, portanto, 2 um mundo utépico da reforma messianica, da supressio da mécula, do desaparecimento do mal. Se de um ado ha aspiraco a um futuro radicalmente novo, o retorno a um contato original com Deus alude a uma idade de ouro perdida, a uma harmonia edénica quebrada que se pretende repor no futuro. O sexto mandamento pode ser visto como a primeira lei porque protege corpo € vida insubstituiveis. ' Em Um Médico Rural, (tradugio de Modesto Carone), $.P., Ed. Brasiliense, 1990, Este conto retoma o capitulo IX ("Na Catedral") de © Processo de Franz Kafka. (tradugio de Modesto Carone), §.P.. Ed. Brasliense, 1988. 2 eradugao mais precisa seria “no assassinarés” que equivale ao hebraico "Lé Tirzach”. "Nao mataris” € a traducdo de “L6 Taarog®. Este deslze de traducio talvez se deva a uma leitura cristi da Biblia, Agradego a0 Prof. Sati Sosnowsky 2 indicacdo das respectivas traduges. J4 a lei enquanto discurso, fala para uma platéia invisfvel, e tem mAo tinica. Neste sentido, trata-se de um discurso univoco e surdo. Sua figura complementar - a da obediéncia - deve ser ouvinte e muda. Por isso, nao cabia ao camponés do conto de Kafka perquirir a lei, mas manter-se calado diante dela. 3. Se se analisa a ficeo de Clarice Lispector a luz deste mandamento nota-se que sob seu texto corre um rio de 4gua contaminada pelos despojas de incontéveis "assassinatos”. ‘Vejamos alguns deles ¢ as significagdes que eles geram. No conto Mineirinho* o mandamento “nao matarés” € apresentado como a primeira lei, "Ela é a minha maior garantia (diz a narradora); assim ndo me matam porque eu n&o quero ‘morrer, ¢ assim no me deixam matar, porque ter matado ser a escuridao para mim. Esta é a lei. Mas..." (p. 253) a adversativa abre o texto para uma ponderacao onde a ordem da lei difere da ordem da justica. Baseada num acontecimento real, a narrativa trata da morte de Mineirinho, jovem delinquente de 28 anos, assassinado pela policia com 13 tiros. Os dados de que o leitor dispde sio: Mineirinho era criminoso e matou; Mineirinho foi morto pela policia; para a narradora, Mineirinho "se salvou e jd entrou no céu mais do que muita gente que ndo matou", 0 que contraria a posigao de sua cozinheira: "Quem nao sabe que Mineirinho era criminoso?" Assim, na visio da narradora, Mineirinho nao é culpado, apesar de nao ter cumprido a lei. A policia cumpriu a lei mas é culpada Como se vé, uma outra ética serve de suporte & posigdo da narradora que reivindica no jogo das ponderagdes a participacdo de uma "justi¢a prévia’, espécie de sabedoria da espécie, capaz de olhar a si propria e ver que todos os homens "lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue & maldade de outro homem" porque assim este cometerd livre ¢ aprovadamente um crime de fuzilamento. Aqui, a narradora no $6 relaciona legalidade e justiga, como trata de uma justica particular, favordvel aos que exercitam a revolta e o amor, contra aquela que vela 0 sono, organiza a vida dos “sonsos essenciais", ¢ pune um assassino com a sua morte. O justiceiro quando mata, néo protege, ¢ sim comete seu crime particular, longamente aguardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante esté sendo morto um inocente. (p. 257) Entre 0 primeiro e o Ultimo tiro da policia, o crime de Mineirinho esvaece, invertendo a relacZo entre ambos de tal modo que criminoso passa a ser aquele que o mata: ‘Mas hd alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alivio de seguranca, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, 0 quinto e 0 sexto me cobrem de vergonha, 0 sétimo e oitavo eu ougo com 0 coraco batendo de horror, no nono e décimo minha boca esté trémula, no décimo primeiro digo em espanto 0 nome de Deus, no décimo-segundo chamo meu irmao. O décimo-terceiro tiro me assassina-porque eu sou 0 outro. Porque eu quero ser 0 outro. (p.253) © alivio que viria da seguranca proporcionada pela morte de Mineirinho vai pradativamente se transformando em desassossego, vergonha, horror, até atingir a sobreposi¢ao * bem A legido estrangeira, RJ. Ed. do Autor, 1964 96 eu/outro em "eu sou o outro”, onde a culpa no é mais do jovem mas da narradora, nossa, enquanto Mineirinho carrega o élibi do medo ("um homem que mata muito € porque teve muito medo"), da pobreza, da marginalidade que, se ndo o justificam, escoram 0 seu ato. Assim, Mineirinho mata porque € um péria social, porque sente medo, porque precisa se defender. Enquanto a policia, a0 disparar 13 tiros contra ele, ¢ assassina e transgride o 6° mandamento que rescreve literalmente "nao assassinarés". 4. O conto A Legido Estrangeira’ reine Clarice adulta e uma menina, Ofélia, de cito anos. A pequena tem opinio formada sobre tudo: dé conseihos, opina, corrige a adulta. Até © dia em que a vista de um pintinho, a infancia se instala na menina. Mas entrar na esfera do amor onde estaria & mercé do outro é impossivel para ela que acaba por matar 0 pintinho, deixando-o na cozinha. Ele é muito pequeno, portanto precisa é de muito trato, a gente ndo pode {fazer carinho porque tem os perigos mesmo; ndo deixe pegarem nele @ toa, a ssenhora faz 0 que quiser, mas milho é grande demais para o biquinho aberto dele; ‘porque ele é molezinho, téo novo, portanto a senhora ndo pode deixar seus filhos fazerem carinho nele; sé eu sei que carinho ele gosta; ele escorrega @ toa, ortanto chao de cozinha ndo é lugar para pintinho. (p. 76). Ofélia transgride 0 mandamento por amor, ou melhor, ela mata porque nfo consegue estabelecer 0 acordo necessério entre 0 desejo € 0 objeto desejado. Inadvertida, avanca © sinal ¢ sufoca o pintiaho. Entre sua impostagio adulta e a morte do pintinho hé um étimo de fulguraggo amorosa. Mas trata-se de um amor impossivel porque a menina no consegue deslocar a legito de antigos demonios e a suficiéncia empertigada (como seus cachos duros ¢ 0 vestido engomado de babados) e deixar livre o lugar da falta que impulsiona para o outro. Assim, ela mata o pintinho no momento mesmo em que o possui, perpetrando um crime em legitima defesa de sua dura porém serena sobrevivéncia. 5. Também Martim de A Maga no Escuro’ envolve-se num crime. Acreditando ter matado sua mulher, esse personagem afasta-se de sua casa, de sua profissio, de seu universo de relagdes, sai 4 procura de uma nova forma. O ponto de partida dessa construgo € 0 escoamento de toda vida pessoal, seguida pelo abandono das racionalizagdes habituais, etapas necessérias para o protagonista tornar-se “concreto". Essa concretizaggo almejada equivale 4 sua total humanizacSo; para alcancé-la, Martim comeca por se recusar a racionalizar 0 seu crime, ‘ou a desculpé-lo discursivamente ‘A ‘linguagem" dos outros ele a dispensa como “fantasmagorias, simulacros projetados por luz artificial", ele que almeja a pura imanéncia. E no trabalho com a terra que iré buscé-1a ecoando em seu gesto 0 mesmo desejo que fecha o conto Mineirinho O que eu quero é muito mais dspero e mais dificil: quero o terreno. (p. 257) Foi preciso praticar um ato radical para que Martim abandonasse a armadura abstrata que o identificava com todos os homens. ¢ partisse & procura de uma nova forma num recuo as origens. “ Em Felicidade Clandestina 2* ed. RJ. 3. Olympio, 1975 5 A Magli no escuro, 4* ed., RU. Ed. Paz € Terra, 1974. A lei que organiza e regra também escraviza a alma e envelhece na memoria. Por {sso € preciso recuar para 0 ponto zero (quase) do homem, quando se deseja estilhacar a abstraco. E 0 que faz Martim quando se desprega da vida habitual pelo crime, ¢ dé inicio seu processo de humanizacio que tem que se desdobrar fora da lei (ou & margem dela). 6. Quem chega mais perto daquilo que Martim procura é G.H. em A Paixio segundo G.H.* G.H., a narradora, conta 0 que Ihe acontece no dia anterior, quando resolve limpar o seu apartamento de cobertura, comegando pelo quarto de empregada. E quando enxerga ‘uma barata no vao da porta do guarda-roupa, e, com muito esforgo, ela a mata e a come. Em verdade, G.H. (como também Ofélia) no comete um crime, pois matar uma barata nao se constitui como tal. Mas ao se aproximar tanto da barata ela se separa dos homens € de suas leis que permitem que se mate uma barata,’ pondo-se diante de outra lei onde seu impulso de matar 0 inseto pode ser chamado crime, pois matar a barata é reavivar, em G.H., seu impulso assassino mais fundo voltado contra a matéria viva. Assim, neste romance, é distanciando-se do humano e de suas leis que se exercita uma reflexio sobre o crime, porque a primeira lei é anterior & forma humana e 0 crime contra a barata inumana é a revelagdo do crime maior, pois é contra a vida priméria divina da qual o humano forma parte. A escolha desse inseto na conjugagao do ritual praticado, alia 0 infimo - animal de ‘esgoto; 0 ancestral - hé milénios a barata mantém a mesma forma; ¢ o humano em escala superior - mulher, branca, rica, artista; e, de permeio, a empregada Janair - pobre ¢ mulata - no quarto de quem se dé 0 encontro. ‘A ambigua sensagio de repulsa ¢ fascinio pela coisa-barata, massa inerme ¢ aterradora, 6 0 derradeiro movimento de G.H. no sentido de estabelecer um vinculo consigo mesm: .. eu sentia agora o projeto na minha boca, ¢ entdo comecei a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma /.../ eu cuspia a mim mesma, sem ‘chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha dlma toda. (p. 166-8) G.H., como ocorre com Martim, destitui de si o individual inutil, despersonaliza-se, pondo a perder tudo 0 que podia perder e, ainda assim, continuar existindo. Tudo 0 que me caracteriza é apenas 0 modo como sou mais visivel aos ‘outros e coma termino sendo superficialmente reconhecivel por mim. Assim como ‘howve 0 momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a muther de todas as mulheres. (p. 176) Essa mulher alvo, que varre toda e qualquer particularidade, que cospe a alma, néo 6 abstrata, mas residuo, chio, “terreno” que se alcanca pela via da descese. © A paixdo segundo G.H., R.J. Editora do Autor, 1964. 7 Ver, a propésito,o instigante trabalho de Regina Helena de Oliveira Machado "Crime e desisténcia nos textos de Clarice Lispector", na Revista Remate de Males, Campinas, (9): 119-130, 1989. * Depois de chamar a barata de "imunda’, como os animais da Biblia, G.H. se atribui o mesmo adjetivo: "Eu me sentiaimunda como a Biblia fala dos imundos”. Assim, além de transgredir porque mata a barat, G.H. também transgride porque ingere um animal proibido. Ver, a propésito, A Barata e a Crisilida, de Solange Ribeiro de Oliveira (RJ., José Olympio Esitora/Instiuto Nacional do Livro/Fundacao Nacional Pré-Meméria, 1988). 98 Neste sentido, o “crime” de G.H. visa & construgao de si propria segundo parmetros que ultrapassam o seu papel social. Nesse processo, nao se pode dizer que ela contraria a lei, porque a lei que rege seu comportamento nfo esté fora dela, mas nela, embora a protagonista a desconheca. é que 0 inumano é 0 melhor nosso, a coisa, a parte coisa da gente. (p.69) Essa "parte coisa” residual e substantiva pede o gesto violento para ser tocada. Como abrir uma brecha na temporalidade que alimenta as abstrages ¢ se alimenta delas para deixar vibrar 0 "coraco selvagem da vida"? A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer "um rosto bonito", mas quem disser "rosto", morre: por ter esgotado 0 assunto. (O ovo e a galinha, LE, p.57) Martim e G.H., de maneiras diferentes, resolvem "esgotar 0 assunto”, por isso abdicam da linguagem. "Esgotar 0 assunto”, escoar 0 cotidiano, cuspir a alma, sfo formas de esvaziamento que apontam para 0 ponto neurdlgico da constituicgo do sujeito também ele um lugar vazio. Entregue ao siléncio, G.H. defronta-se com a matéria neutra, "a vida crua” de que ela € 0 inseto participa e & nesse neutro (que é 0 Outro) que G.H. se aliena e encontra, parodoxalmente, uma intimidade exteriorizada. 7. Também Clarice Lispector resolve "esgotar o assunto” ao admitir o fracasso da linguagem e o impasse em que se encontra a ficeo quando pretende expressar 0 que ndo tem. nome: "a vida crua”, 0 "nticleo da vida", 0 "neutro”. Comprimida, a beira do nada, inenarrével, a ficgdo de Clarice € dubitativae errética por natureza. Autoreflexiva, a linguagem indaga o tempo todo sobre o que se sente e sobre a forma de dizé-lo. Assim como Ofélia, Martim, G.H., Mineirinho, ultrapassam o limiar da porta da lei de que trata 0 conto de Kafka’, a escritura de Clarice incorpora a transgressio quando pretende se aproximar da nebulosidade do que nfo tem nome. Ela também recua. E, a deriva, ‘experimentando, percorre registros diversos, tateia, tentando se aproximar da “coisa”, da “vida crua”. Como nio ha regras para se alcancar o que pretende, essa linguagem corre sem guia. E é assim que a autora dé 0 tom e a “regra” & sua organizagao linguistica, seu andamento, seu ritmo, sua urdidura, ‘Mas como uma frase, ou uma cadeia de frases, poderia tomar presente aquilo que n&o pode ser determinado? A Paixdo segundo G.H. se abre com esse dilema. Aquilo de que se vive e por nao ter nome s6 a mudez pronuncia - é disso que me aproximo através da grande largueca de deixar de me ser. Nao porque eu entdo encontre 0 nome ¢ torne concreto o impalpdvel - mas porque designo 0 impalpavel como impalpdvel... (p. 73) ° curioso relacionar 0 conto de Kafks Diante da Lei com este fragmento de Clarice, onde ela também utiliza a imagem da port, trata de sua ultrapassagem, porém num sentido diverso: “Sinto que nés chegamos ao limiar de portas {ue estio aberias ¢ por medo ou pelo que ndo sei, nfo atravessamos plenamente essas porta. Que no entanto tém nelas {ik gravadas nosso nome, Cada pessoa tem uma porta com seu nome gravado e € s6 através dela que essa pessoa perdida pode entrar e se achar.” (Olga Borelli, Clarice Lispector esbogo para um possivel retrato, R.J. Nova Fronteira, 1981, p.50) 99 Entao, a escritura de Clarice nfo nomeia o inominavel, "néo designa 0 indetermindvel como se fosse um objeto do mundo, um fato determinado, 20 contrério: através do esforgo e do malogro de sua linguagem, ela faz sentir que algo escapa e resta no determinado, no apresentado, ela inscreve uma auséncia, alude a0 que se evola.*"° Essa escritura que procede de uma estética do fracasso, da faléncia da forma, subverte os limites reconhecidos entre literatura e ndo literatura, entre o que é € 0 que néo é escrever, O que néo sei dizer, afirma Clarice Lispector, é mais importante do que 0 que eu digo. (...) Cada vez escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerd quando eu de todo ndo escrever."' 8. Ao contrario do discurso da lei que se inscreve definitivamente” 0 livro de Clarice nunca é 0 que jé estd escrito, nem mesmo 0 que esté se escrevendo, mas “outra coisa” que nio se chega a dizer: ele é sempre para mais tarde. Esse futuro para o qual aponta, entretanto, ndo € acalentado como um projeto realizvel, estando inevitavelmente fadado ao fracasso: 0 ndo-livro seré seu melhor livro, Objeto labil, se pensado radicalmente, este “livro” nao narra mas se dispde de um ‘modo tal que o que se deseja expressar apareca ao leitor. Qual o lugar que essa escritura figurada num ndo-livro abre para o leitor? © que o jogo entre os dois planos - linha e entrelinha; 0 dito € © nao dito - sinaliza para ele? Certamente, que a multiplicidade simultinea dos sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, deve ser vista como um esparo estendido fora das leis que proscrevem a contradicio, Tirando a trava dos sentidos, pondo a leitura em roda viva, esse leitor percebera que se a escritura de Clarice Lispector tem na mira a "coisa", o “inomindvel", 0 que no pode ser determinado pela palavra. seu lugar ideal enquanto leitor seré, parodoxalmente, 0 de ndo-leitor, aquele que entende que o real (0 "terreno") no pertence @ ordem do simbélico ¢ nio pode ser encontrado pela mediacdo da linguagem, embora s6 através dela se chegue a esse conhecimento, Assim, caimos num beco sem safda. Se a transgressao é a recusa da lei (normas estabelecidas, escritura, linguagem, livro), atravessa-se a porta, mas se cai no vazio. junho/92 '© V. de Plinio W. Prado Jr. °O Impronuncidvel”, em Remate de Males, n° 9, pp. 21 - 30, de onde retomo muito do que esté dito neste trabalho, Olga Borelli: Clarice Lispector: esbogo para um possivel retrato. R.J.. Ed. Nova Frontera, 1981. p. 85 "2 (0 texto [da lei] & imutivel, © as opinides sto muitas vezes apenas uma expressio de desespero por isso.” O Processo, op. cit. p. 235) 100

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