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A Natureza Singular da Serpente na Criação Divina e suas Implicações

Teológicas

Introdução
A distinção na criação da serpente, conforme expressa poeticamente em Jó 26,13,
oferece um ponto de partida crucial para se compreender a sua singularidade e
relevância na teologia bíblica, e a partir desse ponto levantar a hipótese sobre a qual este
estudo será desenvolvido. Enquanto a maioria das criaturas foi trazida à existência pela
palavra de Deus, a serpente foi moldada diretamente por suas mãos, o que a diferencia
das demais. Essa singularidade não apenas ressalta a importância teológica da serpente,
mas também lança luz sobre o papel fundamental que ela desempenharia na história.
A serpente, ao induzir a humanidade ao pecado, desempenhou um papel crucial na
queda, estabelecendo para si uma categoria de responsabilidade e castigo distintos. Essa
condição única implica em consequências e obrigações particulares, como Jesus explica
em Lc 12,48: “E a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que muito se
confiou, muito mais lhe será exigido”. Essa afirmação ganha uma nova perspectiva
quando aplicada à serpente, cujo papel na queda da humanidade a coloca em uma
posição de grande responsabilidade diante de Deus.
Além disso, a promessa de restauração na era messiânica, conforme profetizada
por Isaías, sugere uma mudança (parcial) no papel e na natureza da serpente. Enquanto
outros animais voltarão a um estado de harmonia e paz, a serpente, embora não mais
represente de um perigo físico, ainda será condenada a “comer pó”, simbolizando uma
permanente condição de humilhação e limitação.

O Plano Primário de Deus na Criação dos Animais

Ao criar todos os seres vivos, Deus designou inicialmente a todos, incluindo a


serpente, uma alimentação baseada em ervas. Este plano original, como descrito em: “
‫ּֽוְלָכל־ ַחַּ֣ית ָ֠ה ָאֶר ץ ּוְלָכל־ ֨ע ֹוף ַהָּׁש ַ֜מ ִים ּוְלֹ֣כ ל׀ רֹוֵ֣מ ׂש ַעל־ ָהָ֗א ֶר ץ ֲאֶׁש ר־ ּבֹ֙ו ֶ֣נֶפׁש ַחָּ֔י ה ֶאת־ ָּכל־ ֶ֥יֶר ק ֵ֖ע ֶׂש ב ְלָאְכָ֑לה‬
‫ַֽוְיִהי־ ֵֽכן׃‬/e para todo o animal da terra, e para toda a ave do ar, e para tudo o que se
move sobre a terra, em que há fôlego de vida, toda a erva verde tenho dado para
mantimento;” e assim foi” (Gn 1,30), este versículo revela a intenção divina de
harmonia e paz entre as criaturas, em que a vida era sustentada pela vegetação da Terra.

A Maldição sobre a Serpente após a Queda

No entanto, a entrada do pecado no mundo alterou drasticamente o destino da


serpente. Em Gn 3,14, a criatura é amaldiçoada por Deus, sendo condenada a se
locomover rastejando e a consumir pó. Esta maldição, mais severa do que a imposta a
outros animais, representa uma ruptura irreversível do plano original de Deus para a
serpente. “‫ַוֹּיאֶמ֩ר ְיֹהָ֨ו ה ֱאֹלִ֥הים׀ ֶֽאל־ ַהָּנָחׁ֮ש ִּ֣כי ָעִׂ֣ש יָת ֹּזא֒ת ָא֤ר ּור ַאָּת ֙ה ִמ ָּכל־ ַהְּבֵהָ֔מ ה ּוִמ ֹּ֖כ ל ַחַּ֣ית ַהָּׂש ֶ֑ד ה ַעל־‬
‫ְּגֹחְנָ֣ך ֵת ֵ֔ל ְך ְוָעָ֥פר ֹּתאַ֖כ ל ָּכל־ ְיֵ֥מי ַחֶּֽייָך׃‬/então o SENHOR Deus disse à serpente: “Porquanto
fizeste isto, és maldita mais que todo o gado, e mais que todos os animais do campo;
andarás sobre o teu ventre, e comerás pó todos os dias da tua vida” (Gn 3,14).

A Profecia de Isaías: Uma Restauração Futura

Apesar da maldição, o profeta Isaías vislumbra uma era messiânica em que a


ordem original da criação será restaurada. Leão e urso voltarão a se alimentar de ervas,
mas a serpente, mesmo após a maldição, continuará a consumir pó (Is 65,25). Essa
profecia sugere que a singularidade da serpente persistirá, mesmo na redenção final. “
‫ְזֵ֨א ב ְוָטֶ֜ל ה ִיְר ֣ע ּו ְכֶאָ֗ח ד ְוַאְר ֵי֙ה ַּכָּבָ֣ק ר ֹֽיאַכל־ ֶּ֔ת ֶבן ְו ָנָ֖ח ׁש ָעָ֣פר ַלְח֑מ ֹו ֹֽלא־ ָיֵ֧ר עּו ְוֹֽלא־ ַיְׁש ִ֛ח יתּו ְּבָכל־ ַ֥הר ָקְד ִׁ֖ש י ָאַ֥מר‬
‫ ְיהָֽוה׃‬/o lobo e o cordeiro se apascentarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; e
pó será a comida da serpente. Não farão mal nem danificarão em todo o Meu santo
monte, diz o SENHOR” (Is 65,25), “‫ְוָ֤גר ְזֵא֙ב ִעם־ ֶּ֔כ ֶבׂש ְו ָנֵ֖מ ר ִעם־ ְּגִ֣ד י ִיְר ָּ֑ב ץ ְוֵ֨ע ֶגל ּוְכִ֤פיר ּוְמִר י֙א ַיְחָּ֔ד ו‬
‫ְוַ֥נַער ָק ֹ֖ט ן ֹנֵ֥הג ָּֽבם׃ּוָפָ֤ר ה ָו ֹד֙ב ִּת ְר ֶ֔ע יָנה ַיְחָּ֖ד ו ִיְר ְּב֣צ ּו ַיְלֵד יֶ֑ה ן ְוַאְר ֵ֖יה ַּכָּבָ֥ק ר ֹֽיאַכל־ ֶּֽתֶבן׃ְוִֽׁשֲעַׁ֥ש ע יֹוֵ֖נק ַעל־ ֻ֣ח ר ָּ֑פ ֶת ן‬
‫ְוַע֙ל ְמ אּוַ֣ר ת ִצְפעֹוִ֔נ י ָּג֖מ ּול ָי֥ד ֹו ָהָֽדה׃‬/e morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o
cabrito se deitará, e o bezerro, e o jovem leão e o animal cevado estarão juntos, e um
menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão
juntos, e o leão comerá palha como o boi. E a criança de peito deleitar-se em
brincadeiras sobre a toca da áspide, e a criança desmamada colocará a sua mão na
cova da venenosa cobra basilisco” (Is 11,6-8).

A Natureza Distinta da Criação da Serpente

A peculiaridade na criação da serpente, realizada diretamente pelas mãos de Deus:


‫ְּ֭ב רּוחֹו “ָׁש ַ֣מ ִים ִׁש ְפָ֑ר ה ֹֽחֲלָ֥לה ָ֝י ֗ד ֹו ָנָ֥חׁש ָּבִֽר יַח׃‬/pelo Seu Espírito ornou os céus; a Sua mão formou
a serpente enroscadiça” (Jó 26,13), ressalta sua singularidade e destaca-a como uma
criatura especial no contexto da narrativa da criação. Enquanto os demais animais foram
chamados à existência pela palavra divina, a serpente foi formada de maneira distinta,
revelando uma designação particular em seu propósito.

A Restauração Parcial da Serpente na Era Messiânica: Um Olhar Teológico

A visão profética de Isaías sobre a era messiânica oferece um quadro intrigante de


restauração, incluindo uma reconciliação surpreendente entre a serpente e a
humanidade. Este texto explora o significado teológico dessa restauração parcial da
serpente, à luz das Escrituras e da tradição judaica e da cristã.

A Profecia de Isaías: Uma Era de Paz e Harmonia

Isaías, o profeta, apresenta uma imagem de transformação radical na era


messiânica. Prediz um tempo em que a ordem natural será restaurada, onde predadores e
presas coexistirão pacificamente. O próprio ato de um bebê brincar com uma serpente,
símbolo de temor e perigo, é emblemático dessa reconciliação (Is 11,6-8).

A Singularidade da Serpente na Restauração

O fato de a serpente ser incluída nesta visão profética é notável. Após a maldição
imposta em Gênesis 3, ela é retratada como um ser que rasteja e se alimenta de pó. No
entanto, na era messiânica, ela não é excluída dessa reconciliação universal. Isso sugere
que, apesar da maldição, a serpente mantém um lugar na ordem criativa divina.

A Metáfora Teológica: “Comer Pó”

A persistência da serpente em “comer pó” na era futura é um elemento crucial.


Essa metáfora, associada à maldição inicial, simboliza a humildade e submissão.
Enquanto outras criaturas podem desfrutar de uma nova dieta baseada em ervas, a
serpente permanece nesse sentido, amaldiçoada (cujo cardápio será “comer pó”).
A Teologia da Responsabilidade e Restauração

Essa restauração parcial da serpente nos leva a considerar a teologia da


responsabilidade e redenção. A serpente, mesmo após seu papel na queda, é incluída na
promessa de restauração. Isso demonstra a soberania de Deus em redimir todas as Suas
criaturas, independentemente de sua história.

A Serpente na Teologia da Restauração

A visão de Isaías sobre a era messiânica desafia nossa compreensão convencional


da ordem criativa e da redenção. A inclusão da serpente nessa restauração parcial
destaca a amplitude da misericórdia e do plano divino. Enquanto a serpente continua a
“comer pó”, ela também compartilha da promessa de uma era de paz e harmonia, em
que nenhuma criatura fará mal. Essa visão nos convida a contemplar a profundidade da
graça de Deus e a Sua capacidade de restaurar mesmo aqueles que, de alguma forma,
foram marcados pela queda.

A Responsabilidade e o Pecado da Serpente na Teologia Bíblica

Considerando o contexto teológico, a singularidade da serpente na criação e sua


posterior maldição têm implicações significativas. A serpente, ao induzir a humanidade
ao pecado, desempenhou um papel crucial na queda. Isso a coloca em uma categoria de
responsabilidade e castigo distintos, como destacado nas palavras de Jesus em Lucas 17:
“Εἶπε δὲ πρὸς τοὺς μαθητὰς, Ἀνένδεκτόν ἐστι τοῦ μὴ ἐλθεῖν τὰ σκάνδαλα· οὐαὶ δὲ δι᾽
οὗ ἔρχεται. Λυσιτελεῖ αὐτῷ εἰ μύλος ὀνικὸς περίκειται περὶ τὸν τράχηλον αὐτοῦ, καὶ
ἔῤῥιπται εἰς τὴν θάλασσαν, ἢ ἵνα σκανδαλίσῃ ἕνα τῶν μικρῶν τούτων/ora, disse Ele
aos Seus discípulos: “Impossível é não virem as pedras de tropeço; ai, porém, daquele
através de quem elas vêm! Melhor lhe é se uma pedra- de- moinho que é movida- a-
jumento é posta ao redor do seu pescoço e ele tem sido lançado para dentro do mar, do
que ele pôr pedra de tropeço para um só destes pequeninos” (Lc 17,1-2).
A pssagem de Jesus em Lucas 17 sublinha a grave responsabilidade de influenciar
outros para o mal. A analogia da pedra de moinho ao redor do pescoço é uma imagem
impactante, indicando a severidade do julgamento reservado àqueles que causam
tropeço a outros. Isso ressoa com a responsabilidade única que a serpente carrega por
sua influência na queda da humanidade.
Essa responsabilidade singular também encontra eco nas palavras de Jesus em Mt
18,6: “Mas, qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim,
melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha, e se submergisse
na profundeza do mar”. Aqui, a advertência de Jesus é ainda mais enfática, sublinhando
a séria consequência de levar os “pequeninos” a tropeçar no caminho da fé. Neste
contexto, a serpente, como o agente inicial da queda, carrega uma responsabilidade
única e, consequentemente, uma condenação distinta.
Entretanto, é essencial notar que, mesmo diante dessa responsabilidade, a
narrativa bíblica também aponta para a redenção e restauração da serpente na era
messiânica. Isaías profetiza uma realidade em que a serpente, mesmo mantendo sua
maldição original, coexistirá pacificamente com outras criaturas. Esta visão de
reconciliação e harmonia demonstra a magnanimidade da graça divina.
Além disso, a criação direta da serpente pela mão de Deus, conforme expresso em
Jó 26,13, ressalta sua singularidade na ordem da criação. Enquanto outras criaturas
foram formadas pela palavra de Deus, a serpente recebeu uma atenção especial,
implicando uma missão única, que, infelizmente, levou à queda da humanidade.
Portanto, ao considerarmos a teologia envolvendo a serpente na Escritura, somos
confrontados com a complexidade das questões de responsabilidade, pecado, redenção e
restauração. A história da serpente serve como um lembrete da capacidade de Deus de
redimir até mesmo aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a queda da
humanidade. Essa é uma expressão tangível da magnitude da graça divina e Sua
incansável busca pela restauração completa de Sua criação.
“Ὁ δὲ μὴ γνοὺς, ποιήσας δὲ ἄξια πληγῶν, δαρήσεται ὀλίγας· παντὶ δὲ ᾧ ἐδόθη
πολὺ ζητηθήσεται παρ᾽ αὐτοῦ· καὶ ᾧ παρέθεντο πολύ, περισσότερον αἰτήσουσιν
αὐτόν/mas o que não sabia, e fez [coisas] dignas de pancadas, será pouco espancado.
E a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que muito se confiou, muito
mais lhe será exigido” (Lc 12,48). O versículo de Lucas 12:48 apresenta uma
importante lição sobre responsabilidade e prestação de contas. Jesus está ensinando que
as pessoas serão avaliadas de acordo com o conhecimento que têm e como aplicam esse
conhecimento em suas ações.
No contexto da nossa discussão sobre a serpente na teologia bíblica, podemos
fazer uma aplicação interessante desse princípio. Considerando que a serpente foi o
instrumento que levou a humanidade à queda, podemos refletir sobre o fato de que ela
agiu com pleno conhecimento e intenção. Portanto, segundo o princípio apresentado por
Jesus, a serpente seria mais severamente julgada e castigada do que aqueles que agem
por ignorância.
Isso nos leva a considerar que a serpente, por sua ação consciente e maliciosa,
assumiu uma responsabilidade significativa na entrada do pecado no mundo. Sua
punição foi proporcional à gravidade de suas ações.
Além disso, podemos também refletir sobre o fato de que a serpente foi uma das
criaturas a quem Deus deu muito. Ela foi criada como um ser inteligente, capaz de
comunicar-se com os seres humanos. No entanto, ela usou esse dom para enganar e
desviar a humanidade do caminho de Deus. Portanto, de acordo com o princípio
ensinado por Jesus, muito mais lhe seria exigido.
Essa reflexão nos leva a entender que a serpente, ao agir contra o propósito de
Deus, não apenas assumiu uma grande responsabilidade, mas também enfrentou um
juízo proporcional à sua capacidade e conhecimento. É um lembrete poderoso sobre a
importância de usarmos nossas habilidades e dons de forma responsável e alinhada com
a vontade de Deus.

Conclusão

A peculiaridade na criação da serpente e sua maldição subsequente revelam uma


narrativa teológica rica em significado. A singularidade da serpente na criação de Deus
a coloca em uma posição única na ordem da criação e na teologia bíblica. Sua função na
queda da humanidade a torna sujeita a uma responsabilidade e um castigo distintos.
Portanto, ao considerarmos a serpente na teologia bíblica, somos lembrados não apenas
de sua função como tentadora, mas também de sua singularidade na ordem criativa de
Deus.
O exame detalhado da profecia de Isaías, que antecipa a era messiânica, e da
narrativa da serpente nos primeiros capítulos do Gênesis, revela uma narrativa teológica
fascinante sobre a redenção e restauração de todas as criaturas. Isaías, ao descrever um
mundo em que predadores e presas convivem pacificamente, apresenta uma visão de
harmonia e paz que transcende as limitações da natureza. É nesse contexto que a figura
enigmática da serpente emerge como um ponto focal de reflexão teológica.
A maldição inicial imposta à serpente, que a condenou a rastejar e a “comer pó”, é
mantida na era messiânica como um símbolo de humildade e submissão. Enquanto
outras criaturas desfrutam de uma nova dieta à base de ervas, a serpente permanece fiel
à sua natureza original, recordando-nos a persistência de Deus em manter a integridade
de sua criação.
Essa persistência, no entanto, não é apenas uma reafirmação da ordem divina, mas
também uma demonstração da graça e misericórdia de Deus. A serpente, apesar de seu
papel na queda inicial, é incluída na promessa de restauração. Essa inclusão destaca a
soberania de Deus em redimir todas as suas criaturas, independentemente de sua
história.

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