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' APENDICE 3 TEORIA DO NAO-OBJETO A expressio ndo-objeto nao pretende designar um objeto ne- gativo ou qualquer coisa que seja 0 oposto dos objetos materials com propriedades exatamente contrdrias desses objetos. O ndo- objeto nao € um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a sintese de experiéncias sensoriais € mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenolégico, integralmente perceptivel, que se da a percepcao sem deixar resto, Uma pura aparéncia. Morte da pintura A questao posta obriga-nos a um retrospecto. Quando os pin- tores impressionistas, deixando o ateliér pelo ar livre, procuraram apreender o objeto imerso na luminosidade natural, a pintura figu- rativa comecou a morrer. Nos quadros de Monet os objetos se dis- solvem em manchas de cor e a face usual das coisas se pulveriza entre os reflexos luminosos. A fidelidade ao mundo natural iransferira-se da objetivagio para a impressio. Rompidos os contornos que mantinham os objetos isolados no espago, toda possibilidade de controle da expressao pict6rica se limitava a coeréncia interna do quadro, Pouco depois, Maurice Denis diria que “um quadro—antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou alguma anedota — é essencialmente uma superficie plana coberta de cores dispostas de certa maneira”, A abstracio nao tinha nascido ainda, mas os préprios pintores figurativos, como Denis, ja anunciavam, Cada vez mais 0 objeto representado perdia significagio aos seus olhos, ¢ cm conseqii- éncia disso o quadro, como objeto, ganhava importincia. Com o cubismo, o objeto é brutalmente arrancado de sua condigao natural, transformado em cubos, o que virtualmente Ihe imprimia uma nature- za ideal; esvaziava-o daquela obscuridade essencial, daquela opacida- de invencfvel que caracteriza a coisa. Mas 0 cubo € tridimensional, ainda possui um nticleo, um dentro que era preciso consumir— c isso foi feito pela fase dita sintética do movimento, Jd entio o que sobra do objeto € pouca coisa. E é com Mondrian ¢ Malevitch que a eliminagio do objeto continua. O objeto que se pulveriza no quadro cubista € 0 objeto pinta- do, o objeto representado. Enfim, é a pintura que jaz ali desarticula- da, & procura de uma nova estrutura, de um novo modo de ser, de uma nova significagiio. Mas nesses quadros (fase sintética, fase her- mética) nao ha apenas cubos desarticulados, planos abstratos; hd tam- bém signos, arabescos, papéis-colados, ntimeros, letras, areia, estopa, prego etc. Esses elementos indicam duas forgas contrérias ali pre- sentes: uma, que tenta implacavelmente despojar a pintura de toda qualquer contaminagao com o objeto; outra, que retorna do objeto ao signo ¢ que para isso necessita manter o espago, o ambiente pic- torico nascido da representacao do objeto. A esta tiltima tendéncia pode se filiar a pintura dita abstrata, de signo ¢ de matéria, que s exacerba hoje no tachismo. Mondrian & quem percebe o sentido mais revoluciondrio do cubismo ¢ Ihe dé continuidade. Compreende que a nova pintura, pro- posta naqueles planos puros, requer uma atitude radical, um recomego. Mondrian limpa a tela, retira dela tados os vestigios do objeto, ndo apenas asua figura, mas também a cor, a matéria € 0 espago que constitufam o universo da representagio: sobra-the a tela em branco. Sobre ela o pintor nao representara mais o objeto: ela € o espa ‘o onde o mundo se 290 harmonizaré segundo os dois movimentos basicos da horizontal ¢ da vertical, Com a eliminagio do objeto representado, a tela — como presenga material — torna-se 0 NOVO objetoda pintura. Ao pintor cabe organizd-la mas também dar-Ihe uma transcendéncia que a subtraia & obscuridade do objeto material. A luta contra o objeto continua. O problema que Mondrian se propés nao podia ser resolvido pela teoria, Se ele tentou destruir o plano com 0 USO das grandes linhas pretas que cortam a tela de uma borda a outra — indicando que ela confina com o espaco exterior —, ainda essas tinh: sse opdem aum fundo, ea contradigdo espago-objeto reaparece. Inicia, entio, a destruigdo dessas linhas € 0 resultado disso esta nos seus dois uluimos trabalhos: Broadway Boogie-Woogie e Victory Boogie-Woogie. Mas ‘a contradig&o nao se resolve de fato, e se Mondrian vivesse mais alguns anos talvez voltasse telaem branco donde partira. Ou partisse rugio no espaco, como o fez Malevitch, ao cabo de dela para a cons experiéncia paralela. Obra e objeto A telaem branco, para 0 pintor tradicional, era o mero suporte material sobre o qual ele esbogava a sugestao do espaco natural. Em seguida, esse espago sugerido, essa metafora do mundo, era rodeada por uma moldura cuja fungao fundamental era inseri-lo no mundo. Essa moldura era o meio-termo entre a ficgao ¢ a realidade, ponte & amurada que, protegendo 0 quadro, 0 espago ficticio, ao mesmo tem- po fazia-o comuni se sem choques, com 0 espago exterior, real. Por isso, quando a pinturaabandona radicalmente a representagao — como no caso de Mondrian, Malevitch e seus seguidores —a moldura perde o sentido. Nao se trata mais de erguer um espago metaférico num cantinho bem protegido do mundo, € sim de realizar a obra no espago real mesmo ¢ de emprestar a esse espago, pelaaparigao daobra — objeto especial — uma ficagiioe uma trans endéncia. E fato que as coisas se passaram com alguma morosidade, com equivocos e descaminhos cerlamente inevitaveis c necessarios. O uso do papel-colado, da areia ¢ de outros elementos tomados 30 real e postos dentro do quadro ja indica a necessidade de subst ituira fiegao pela realidade. Quando mais tarde o dada fsta Kurt Schwitters constr6i 291 o scuMerzbau — feito com objetos ou fragmentos de objetos achados na rua —, ainda é a mesma intengdo que se amplia, jd agora livre da moldara, no espago real. Nessa altura, a obra de arte ¢ os objetos pare- cem confundir-se. Sinal desse miituo extravasamento entre a obra de arte €0 objeto éacélebre blague de Marcel Duchamp enviando para a Exposigao dos Independentes, em Nova Iorque (1916), um urinolfonte, desses que se usam no mictério dos bares, Essa técnica do ready-made foi adotada pelos surrealistas. Ela consiste em revelar 0 objeto deslo- cando-o de sua fungao ordindria ¢ assim estabelecendo entre ele ¢ os demais objetos novas relagées. A limitagio desse processo de tran guracao do objeto estdé em que ele se funda menos nas qualidades for- mais do objeto que na sua significagao, nas suas relagdes de uso ¢ habito cotidianos. Em breve aquela obscuridade caracteristica da coi- sa voltaacnvolver a obra, reconquistando-a para o nfvel comum. Nes- se front, os artistas foram batidos pelo objeto. Desse ponto de vi: sta, tornam-se bem claras, e até certo ponto ingénuas, algumas extravagéncias que hoje aparecem como a vanguarda da pintura. Que so as telas cortadas de Fontana, expostas na V Bienal, senao uma retardada tentativa de destruir o carater fictfcio do espago pictérico pela introdugao nele de umcorte real? Que sio os quadros de Buri com estopa, madeira ou ferro, sendo o retomar — sem a mesma violéncia ¢ antes transformando-os em belas-artes — dos proce: us s dos pelos dadaistas? O mal, entretanto, esté em que tais obras s6 conseguem 0 feito do primeiro contato, ¢ nao logram permanecer na condicao transcendente de nao-objeto. Sao objetos curiosos, estranhos, extravagantes — mas objetos. Ocaminho seguido pela vanguarda russa mostrou-se bem mais profundo. Os conira-relevos de Tatlin e Rodchenko, como as arquite- turas suprematistas de Malevitch, indicam uma evolucio coerente do espago representado para 0 espaco real, das formas representadas para as formas criadas. A mesma luta contra 0 objeto verifica-se na escultura moderna a partir do cubismo. Com Vantongerloo (De Stijl) a figura desaparece completamente; com os construtivistas russos (Tatlin, Pevsner, Gabo) a massaé climinada ea escultura despoja-se da sua condi¢ao de coisa.O fendmeno € parecido: se a pintura que nada representa ¢ atraida para a 6rbita dos objetos, com muito mais forga essa atragdo sc exerce so- bre a escultura ndo-figurativa. Tornada objeto, a escultura livra-se da caracteristica mais comum aquele: a massa. Mas isso nao basta. A 292 base — que equivale na escultura a moldura do quadro — fora elimi- nada. Vantongerloo ¢ Moholy-Nagy tentaram realizar esculturas que se mantivessem no espago, sem apoio. Pretendiam eliminar da escul- tura 0 peso, outra caracteristica fundamental do objeto. Eo que se verifica € que, enquanto a pintura, liberada de sua intengao representativa, tende a abandonar asuperficie para se realizar no espaco, aproximando-se da escultura, esta, liberta da figura, da base edamassa, ja bem pouca afinidade mantém com o que tradicionalmente se denominou escultura. Na verdade, hd mais afinidade entre um contra- relevo de Tatlin ¢ uma escultura de Pevsner, do que entre esta e uma obra de Maillol, de Rodin ou de Fidias. O mesmo se pode dizer de um quadro de Lygia Clark e uma escultura de Amilcar de Castro. Donde se conclui que a pintura e aescultura atuais convergem para um ponto fastando-se cada vez. mais de suas origens, Tornam-se objetos especiais — naio-objetos — para os quais as denominagGes de pintura eescultura ja talvez nao tenham muita propriedade. Formulagao primeira O problema da moldura ¢ da base, na pinturae na escultura, respectivamente, nunca tinha sido examinado pelos eriticos em suas implicagées significativas, estéticas. Registrava-se o fendmeno, mas como um detalhe curioso que escapava a verdadeira problematica da obra de arte. O que nio se percebia é que a propria obra colocava problemas novos ¢ que ela procurava escapar, para sobreviver, ao ~ circulo fechado da cstética tradicional. Romper a moldura e eliminar a base nao sao, de fato, questées de natureza meramente técnica Ou fisica: trata-se de um esforgo do artista para libertar-se do quadro convencional da cultura, para reencontrar aquele “deserto”, de que nos fala Malevitch. onde a obra aparece pela primeira vez livre de qualquer: ignificagdo que niio seja ade scu proprio aparecimento Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um nio-objeto € que esse nome sé se aplica, com prec so, 4quelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intengao fundamental de seu aparecimento. race) 5 Colocada a questo nestes termos, as experiéncias tachistas e informais, na pintura ¢ na cscultura, mostram-nos a sua face 293 conservadora e reacionaria. Os artistas dessa tendéncia continuam — embora desesperadamente — a se valer dos apoios convencionais daqueles géneros artfsticos. Neles 0 processo é contrario: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura, 0 quadro, 0 espago convencional, ¢ pdem o mundo (os materiais brutos) 14 dentro, Partem da suposigao de que 0 que esté dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de arte. E certo que, com isso, também denunciam o fim dessa convengao, mas sem anunciar ocaminho futuro, ___ Esse caminho pode estar na criagiio desses objetos especiais (ndo-objetos) que realizam fora de toda convengio artistica c que rea- firmam a arte como formulagao primeira do mundo. Didlogo sobre 0 nao-objeto A— Que € 0 nio-objeto? B— E preciso primciro saber o que entendo aqui por objeto. Entendo aqui por objeto a coisa material tal como se dé ands, natural- mente, ligada ds designagSese usos cotidianos: a borracha, o ipis, a péra, 0 sapato etc. Nessa condigao, o objeto se esgota na referéncia de uso ede sentido, Por contradigao, podemos estabelecer uma primeira definigdo do ndo-objeto: o nao objeto nao se esgota nas referéncias de - code porque nio se insere na condigao do util e da desi gnagao verbal. A — Mas 0s objetos tampouco se esgotam sempre naquelas referéncias. Sob o nome péra, est a péra com a sua densidade materi- al de coisa. B—Sim. Quando nos subtraimos & ordem cultural do mundo, vemos os objetos sem nome — e nos defrontamos com a sua opacidade de coisa. Pode dizer-se que, nessas circunstancias, 0 ob- Jeto torna-se préximo do que chamo de nao-objeto, mas preci. mente neste ponto manifesta-se a diferenga fundamental entre os dois: sem nome, 0 objeto torna-se uma presenga absurda, opaca, em que a percepgado esbarra; sem nome, 0 objeto & impenetravel, 294 inabordavel, clara ¢ insuportavelmente exterior ao sujeto. O nao- objeto nao possui essa opacidade, e daf o seu nome: 0 niio-objeto é transparente 4 percepgao, no sentido de que se franqueia a ela. Ea diferenga entre os dois torna-se mais precisa: s6 pelas conotagdes. que o nome e o uso estabelecem entre 0 objeto e o mundo do sujeito, pode 6 objeto ser apreendido ¢ assimilado pelo sujeito. B, pois, 0 objeto, um ser hfbrido, composto de nome ¢ coisa, como duas cama- das superpostas das quais uma apenas se rende ao homem — o nome O n&o-objeto, pelo contrario, uno, fntegro, franco. A relagéo que mantém com o sujeito dispensa intermediario. Ele possui uma significago também mas essa significagdo é imanente Asua propria forma, que é pura significagao. A — Noutras palavras, vocé diz. que 0 nio-objeto é um objeto total, integral? B — Coloque o problema nos termos da filosofia existencial sartreana, Enquanto 0 sujeito existe parasi, o objeto, a coisa, existe emsi Deixando de lado as implicagées que o filésofo tira dessa con- tradigdo fundamental, fiquemos com o fato de que ela reafirma a opacidade da coisa que repousa em si mesma ¢ a perplexidade do homem que se sente exilado entre elas, Um tecido de significagSes e intengdes constitui o mundo humano, sobo qual persiste a opacidade do mundo inumano, exterior a0 homem. A experiéncia do objeto- sem-nome é a experiéncia do exilio. A luta por vencer a contradigao sujeito-objeto esté no cerne de todo o conhecimento humano, de toda a experiéncia humana e, particularmente, na realizagao da obra de arte. Um pintor que figura uma natureza-morta nao esta fazendo outra coisa senao tentando resolver essa contradi¢ao. Ao representat aqueles objetos cotidianos, 0 artista caminha do nivel conceitual em que eles usualmente se encontram para o nfvel estético, onde uma nova significagdo, nao-conceitual, emerge deles: a significagio imanente a forma. A—Nesse caso, uma natureza-morta é também um ndo-ob- jeto. B—Nao. Um objeto representado € quase-objeto: € como se fosse um objeto: ele se desprende da condigao de objeto, mas nao 295 atinge a de nao-objeto: é, com referéncia ao objeto real, um objeto ficticio. O nfio-objeto nao é uma representagao mas uma presentacdio. Se 0 objeto est4 num extremo da experiéncia, o nao-objeto estd no outro, & o objeto representado esta entre os dois, a meio caminho. A — Se é assim, que diferenca existe entre a significacfo imanente a forma do quase-objeto ¢ a significagdo imanente a forma do nao-objeto? B —A diferenga reside no fato de que 0 quase-objeto é a repre- sentacao de um objeto real, enquanto o nao-objeto nao representa nada, mas apenas se apresenta. Ora, desse modo, a significagao que se revela na forma de um e de outro nao é da mesma natureza. Partindo do objeto real, o artista que o representa na tcla consegue desliga-lo das relagdes conceituais — transfigurando-o na forma, na cor, na situagaio espacial — mas jamais lograra cortar definitivamente esses liames que estdo na fonte mesma de sua experiéncia: a significagio que se d& no quase-objeto estava imanente no objeto. Isso nao se verifica no caso do ndio-objeto que, por no se referit a nenhum objeto real, por ser 0 aparecimento primeiro de uma forma, funda em si mesmo sua significagao. A—Pode um nao-objeto? ia dizer, entio, que toda pintura nao-figurativa é B—Também nao. A diferenga entre a pintura figurativae a pin- tura dita abstrata € de grau masnao de natureza. A pintura ndo-figurati- va, embora realize um grau maior de abstragao, ainda se mantém presa ao problema da representagao do objeto. A — Mas como, se o objeto ja nao aparece nela’? _ ‘Tomemos, por exemplo, a pintura de dois dos mais im- Portantes criadores da arte nao-figurativa: Mondrian e Malevitch. E fato que a figura do objeto jd nao aparece em seus quadros, mez para Malevitch, o quadrado preto sobre fundo branco é a “sensibili- dade da auséneia do objeto” e, para Mondrian, as verticais ¢ hori- zontais exprimem o conflito fundamental da natureza. Noutras palavras, essas formas e linhas geométri ubstituem ali os obje- 296 tos, sfio uma alusaio extrema a cles. Mesmo que Mondrian e Malevitch niio expressassem, em suas teorias, essa relago, nem por isso as deixarfamos de ver. Na verdade, nos quadros de Mondrian e Malevitch permanece a oposi¢ao da figura geométrica sobre um fundo metaf6- rico, de representagao. Digo metaf6rico porque o espago, ali, simbo- liza o espago do mundo, da mesma maneira que as formas simbolizam os objetos. Por ser metafrico, ficticio, esse espago se confina natu- ralmente nos limites da tela, ¢ mesmo se a moldura desses quadros se resume a uma simples régua de madeira, sua fungao é ainda de moldura. Tampouco adiantaria retirar materialmente a moldura desses quadros, uma vez que € da natureza daquele espago pintado ali o continamento, a incomunicabilidade com o espago exterior. O mes- mo pode-se dizer das obras de Kandinsky e seus seguidores. Trata- se de um espago de representagao abstrata. Esse espago nao existe no nao-objeto, que é, por definicgao, nao representalivo mas presentativo. A —Pretende voeé dizer que 0 nio-objeto resolve a contradi- Gio figura-fundo? B — No plano da percepgao essa contradi¢ao ¢ insoltivel, uma vez. que o fundo é condi¢do mesma do perceber: tudo que se percebe estdi sobre um fundo. Dai o impasse a que chegou aarte abstrata, apés ter reduzido sua expressao ao campo da percepgao pura: topou com esse dualismo insuperdvel que repete, noutro plano, a contradigao sujeito-objeto. No ndo-objeto, por nao se por o problema da represen- lacdo, o da figura-fundo também nao se pie. O fundo sobre o qual se percebe 0 n&o-objeto nao € 0 fundo metaférico da expressio absirata, mas o espago real — 0 mundo, A—F, pois, o mesmo fundo sobre o qual se percebem os obje~ tos, nao? B—De certo modo, sim. Liberto da base ¢ da moldura, 0 nao- objeto insere-se diretamente no espago, do mesmo modo que um ob- jeto. Mas aquela transferéncia estrutural do nao-objeto, que 0 distingue do objeto, permite-nos dizer que cle transcende 0 espago, & nao por iludi-lo (como faz o objeto), mas por nele se inserir radicalmente. Nascendo diretamente no e do espago, 0 nio-objeto € ao mesmo tem- 297 _ po um trabalhar e um refundar desse espago: o renascer permanente da forma e do espago. Essa transformagio espacial & a propria condi- go do nascimento do naio-objeto. A— Vocé falou em moldura e base. Basta eliminar esses cle- mentos para fazer um nao-objeto? _B —Nio, da mesma maneira que nao basta eliminar a figura para fazer um bom quadro abstrato. Nao se trata da presenga ou ausén- cia material da moldura ou da base. Trata-se de criar sem 0 apoio desses elementos. A moldura e a base, na pintura e na escultura res- pectivamente, condicionam a expressao do artista e sao, também, os marcos de uma determinada posigdo em face da arte. O que importa, pois, no é fazer um quadro sem moldura ou uma escultura sem base, mas resolver 0s novos problemas que se poem quando a expresséio jé nao conta com aqueles elementos. A— Que significam a moldura ea base? B — Significam que a linguagem da obra é representativa, mesmo se as formas sao abstratas (falo da base e da moldura como. elementos pressupostos na expressao). Quando o problema da re- presentagiio € ultrapassado, a moldura e a base perdem a fungao. Mas nfo basta simplesmente retird-las da obra, No caso da escultura, a base indica uma posigio privilegiada, e se a escultura nao possui base (materialmente falando) mas detém aquele privilégio, o proble- ma da base continua inerente a cla. Nao se trata, portanto, de um nao-objeto. ‘A — Conelui-se daf que a nio-representagdo é um caréiter b co do ndo-objeto. E ele ainda pintura ou escultura’ Mt B — As consideragées a que nos obriga o aparecimento do. no-objeto conduziram-nos a ver a representagao como elemento inerente d pintura ¢ d escultura. Ao contririo do que se vem afirman- do h pelo menos 50 anos, s6 em alguns casos excepcionais a arte contempordnea ultrapassou o problema da representagao. Essas ex- cegdes — os contra-relevos de Tatlin, as arquiteturas suprematistas 298 de Malevitch —estio fora das definigSes do que seja pintura, escul- tura, arquitetura. O mesmo se dé com os trabalhos do grupo neaconcreto — e dai o nome de nao-objeto. Acredito que uma arte realmente nao-representativa repele as nogdes académicas de género co. O proprio conceito de arte vacila, se nfo 0 tomamos na ‘o fundamental de experiéneia primeira. A — Quer dizer que, na sua opiniao, pintura & escultura aca- baram... B—Outalvez nunca tenham, de fato, existido. Pelo menos na época moderna, todo artista trabalha no limite de sua arte, tentando ultrapassé-lo. Trata-se sempre de uma antiarte. O que importava para Brancusi — quer ele o soubesse ou nZio — nao era fazer escultura, mas a escultura. Contraditoriamente, para fazer a escultura, ele se distanciava cada vez mais de tudo 0 que se conhecia como escultura, O mesmo pode-se dizer de Pevsner, de Vantongerloo, de Picasso, de Mondrian, de Kandinsky, de Malevitch, de Pollock etc. O artista bus- ca, na pintura ou naescultura, a experiéncia primeira do mundo, mas a prépria pintura (ou escultura) j4 € um mundo conceituado, que € preciso ultrapassar. E finalmente chegou-se ao momento atual,em que © artista j4 nao se preocupa em fazer pintura ouescultura, para através delas reencontrar a experiéncia primeira do mundo: tenta precipitar diretamente essa experiéncia, E uma redescoberta do mundo: as formas, as cores, 0 espago niio pertencem aesta ou Aquela linguagem ar tistica, mas experincia vivae indeterminada do homem. Lidar diretamente com esses elementos, fora dos quadros institucionais da arte, € formula- lo pela primeira vez. E aqui se observa outra diferenga fundamental entre um quadro e um naio-objeto: aquele nasce de um esforgo do artista para, gradativamente, romper © mundo ja conceitual da linguagem artistica — vem-se de fora para dentro, da significagdo usual para uma nova significagio; 0 ndo-objeto irrompe de dentro para fora, da néo- significagao paraa significagao. A — Dentro da teoria do nao-objeto, como se coloca precisa- mente 0 problema da poesia? B — Também o poeta busca a experiéncia primeira do mundo, também ele trabalha no limite da linguagem poética. 209 Na €poca moderna, vimos a destruigao das formas fixas de estrofe, de verso, para chegar-se ao verso livre. Mas, depois, 0 verso livre também tornou-se um instrumento estereotipado: rebentou-se asintaxe c chegou-se a palavra como elemento primeiro. Da mesma maneira que a cor libertou-se da pintura, a palavra libertou-se da poesia. O poeta tem a palavra, mas jAnio tem um quadro estético preestabelecido onde coloc4-la habilmente, Ele se defronta com ela desarmado, sem nenhuma possibilidade definida mas com todas as possibilidades indefinidas. O que importa nao € fazer um poema — nem mesmo fazer um nao-objeto — mas revelar 0 quanto de mundo se deposita na palavra, A — Vocé jé escreveu que, no que se refere A poesia, 0 ndo- objeto € a procura de um lugar para a palavra. Que quer dizer isto? B—E que a palavra ou esté na frase — onde perde sua indivi- dualidade — ou no dicionério, onde se encontra sozinha ¢ mutilada, pois é dada como mera denotagao. O nao-objeto verbal é 0 antidiciondrio: o lugar onde a palavra isolada irradia toda a sua carga. Os elementos visuais que ali se casam a ela t8m a fungdo de explicitar, intensificar, concretizar a multivocidade que a palavra encerra. A — Ha, entdo, uma fusio de pintura, relevo, cscultura € poesia? B — Creio que nao. Planos, formas, cores sfio elementos da realidade, antes de screm clementos de uma linguagem artistica. No ndo-objeto os elementos plasticos nao sio usados com 0 mesmo sen- tido que na pintura ou na escultura. Jé sio escolhidos segundo um propésito verbal, isto é: da mesma maneira que um poeta tradicional elabora seu poema convocando e repelindo palavras, 0 poeta neoconcreto conyoca, além das palavras, formas, cores, movimentos, num nivel em que a linguagem verbal e a linguagem plastica se interpenetram. Ninguém ignora que nenhuma experiéncia humana se limita a um dos cinco sentidos do homem, uma vez que o homem Teage com uma totalidade ¢ que, na “simbélica geral do. corpo” (M. Ponty), os sentidos se decifram uns aos outros. A— O nio-objeto deve ter movimento? 300 B —Nessa altura, cabe esclarecer que nao digo como deve cr © nao-objeto, mas apenas defino 0 que jdexiste, 0 que estd feito. A maioria dos nao-objetos existentes implica, de uma forma ou de ou- ira, o movimento sobre ele do espectador ou do leitor. 0 espectador solicitado a usar 0 niio-objeto. A mera contemplagao nao basta ara revelar o sentido da obra — e 0 espectador passa da contempla- gdo 2 agfio. Mas 0 que a sua agaio produz é a obra mesma, porque esse uso, previsto na estrutura da obra, € absorvido por ela, revela-a c incorpora-se a sua significagao. O niio-objeto é concebido no tempo: é uma imobilidade aberta a uma mobilidade aberta a uma imobi dade aberta. A contemplagio conduz & ago que conduza uma nova contemplagiio. Diante do espectador, 0 nio-objeto apresenta-se como inconcluso e Ihe oferece os meios de ser conclufdo. Oo espectador age, as 0 fempo de sua agIO Nii flui, no transcende a obra, ndio se perde além dela: incorpora-se a ela, ¢ dura, A ago nfo consome obra, mas a enriquece: depois da ago, a obra é mais que antes —e essa segunda contemplagao ja contém, além da forma vista pela pri- meira vez, um passado em que 0 espectador e a obra se fundiram: ele verteu nelao seu tempo, 0 nao-objeto reclama 0 espoctador (trata-se ainda de espectador?), ndio como testemunha passiva de sua existén- cia, mas como a condigéio mesma de seu fazer-se. Sem cle, a obra existe apenas em poténcia, A espera do gesto humano quea atualize. 301

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