Você está na página 1de 196

EDIÇÃO

BIBLIOTECA

VALE DO CÔA
Território de
memória
GRUTA DO ESCOURAL
Marco do paleolítico
no Alentejo
MISTÉRIO
Stonehenge e outros
santuários megalíticos

PALEOARTE
Onde e quando surgiu
o nosso impulso artístico
PALEOARTE
SPL
Editorial

Espécie de
artistas
A
tribui-se erroneamente a Picasso a frase “Depois de
Altamira, tudo é decadência”; aparentemente foi Miró
quem comentou numa entrevista a um jornal francês que
“a arte tem estado em decadência desde a era das grutas”. Quer
tenha ou não sido da autoria do pintor de Málaga e quer concor-
demos ou não com a frase, o facto é que a caverna cantábrica não
deixa ninguém indiferente. Visitei a caverna original (há uma ré-
plica fiel da mesma) quando era adolescente e causou-me uma
profunda impressão que ainda hoje mantém a sua intensidade
original. Passar do Vestíbulo para o Grande Salão foi como atra-
vessar uma porta temporária que me ligava ao povo paleolítico
que habitava aquela caverna e que executava aquelas pintu-
ras que jogavam magistralmente com as sombras, perspetiva e
cor. Homens primitivos que de modo algum mereciam esse rótu-
lo e a quem, durante séculos, foi negada a capacidade de produzir
tais obras criativas. Nesta Edição de Biblioteca abordamos as cir-
cunstâncias que levaram à emergência das nossas capacidades
artísticas; quem foram os primeiros artistas, responsáveis por
executar habilmente um pensamento simbólico que explodiu du-
rante o Paleolítico e favoreceu a consolidação de estruturas sociais
complexas; o significado e a finalidade das suas obras; as técnicas
que utilizaram; a evolução do Paleolítico para a arte Neolítica...

CARMEN SABALETE
DIRETORA

Nas grutas, os pintores trabalhavam


TOMAS Z SKOCZEN

em áreas de escuridão total ou


parcial. Pensa-se que a iluminação
consistia em pequenas lamparinas
de pedra alimentadas por tutano
ósseo. 5
Sumário

Pinturas rupestres feitas há


mais de 4000 anos numa face
de penhasco em Nakhon
Ratchasima, Tailândia.

-A ARTE PRÉ-HISTÓRICA MODIFICOU


AS NOSSAS MENTES........................................... 8
-NO TRILHO DOS
PRIMEIROS ARTISTAS.................................... 20
-DESCOBERTAS QUE REDESENHAM
A PRÉ-HISTÓRIA.............................................. 34
-OBJETOS
DO PALEOLÍTICO............................................. 46
-Vale do Côa,
território de memória........................ 56
-ALTAMIRA: A CAPELA SISTINA
66
DO PASSADO.....................................................

-Gruta do Escoural................................. 78
-O PATRIMÓNIO MUNDIAL
DA COSTA CANTÁBRICA............................... 88

-ARTE RUPESTRE LEVANTINA:


QUEM E QUANDO?..................................... 104
-o mistério das
vénus................................................................. 120
-CHAMEM-ME
HOMO musicalis....................................... 134
-GRANDE MURAL.
AS TELAS DE PEDRA
DA BAIXA CALIFORNIA............................. 144
-A ENIGMÁTICA
CULTURA MEGALÍTICA.............................. 158
-STONEHENGE:
TEORIAS MAIS RECENTES......................... 174
-ALIENÍGENAS NA
PRÉ-HISTÓRIA................................................ 186
SHUTTERSTOCK

IMAGEM DE CAPA: SHUTTERSTOCK


Durante muito tempo
AGE

pensou-se que as pinturas


rupestres eram muito mais
modernas do que realmente
são, pois considerou-se que
os nossos antepassados não
tinham a sensibilidade e a
capacidade de abstração
necessárias para as fazer.

8
A arte
pré-histórica
modificou as
nossas mentes
A emergência de capacidades artísticas é um momento chave na
história da nossa espécie, que pressupõe o desenvolvimento de
capacidades cognitivas avançadas e uma estrutura social complexa.
POR MANUEL SANTOS-ESTÉVEZ Arqueólogo da Universidade do Minho

A
descoberta da mera existência da com a sobrevivência física e a obtenção de ali-
arte nos tempos pré-históricos mentos começou a dissipar-se. Certamente,
trouxe uma mudança radical na sem a descoberta da arte pré-histórica, a ima-
ideia que tínhamos acerca dos nos- gem que teríamos dos nossos antepassados se-
sos antepassados mais remotos. A ria muito diferente.
capacidade de produzir arte demonstrou um A história da descoberta da arte tem sido afe-
elevado grau de desenvolvimento intelectual tada por obstáculos sob a forma de preconceitos,
nos primeiros seres humanos anatomicamen- que nos impediram de ver a verdadeira capaci-
te modernos. A ideia de um ser pré-histórico, dade intelectual das comunidades pré-históri-
semelhante a um macaco, preocupado apenas cas. Muitos acreditam que a primeira arte parie-

9
A arte rupestre não pode ser concebida como uma
primeira tentativa artística por uma humanidade imatura
tal [aquela que aparece nas paredes das grutas, e Cachão da Rapa como sendo falsas, possivel-
cavernas e abrigos rupestres] foi encontrada na mente porque pareciam estar mais de acordo
gruta de Altamira em 1879, mas não é verdade, com a concepção de sociedades pré-históricas
apesar de já ser conhecida há algum tempo. realizadas na altura da sua publicação.
As pinturas nestes dois sítios pertencem à
TALVEZ A DOCUMENTAÇÃO MAIS ANTIGA arte esquemática ibérica, e a simplificação das
SOBRE PINTURA RUPESTRE SEJA A PUBLI- figuras parecia apoiar a ideia de que a arte pré-
CADA por Carvalho da Costa, quando em 1706 -histórica era simples e primitiva, embora sai-
apresentou um desenho das pinturas rupes- bamos hoje que isso não é verdade. Contudo,
tres no Cachão da Rapa, no nordeste de Por- Altamira evidenciou uma capacidade técnica e
tugal. Também no século XVIII, José López de intelectual que é difícil de admitir. A origem
Cárdenas deu a conhecer as pinturas esque- do problema enfrentado pelo descobridor da
máticas de Peña Escrita (Ciudad Real), 96 anos caverna cantábrica, o naturalista e pré-his-
antes da descoberta de Altamira. tórico Marcelino Sanz de Sautuola, foi o facto
Ao contrário da caverna cantábrica, nin- de os bisontes pintados terem mostrado uma
guém considerou as pinturas de Peña Escrita destreza incompatível com as ideias do sécu-

10
Um estudo de tomografia computorizada de vários crânios fósseis descobertos
em África e na Ásia, liderado pela Universidade de Zurique (Suíça), revelou que a
organização moderna do cérebro, semelhante à do humanos modernos, apareceu
no género Homo muito mais tarde do que se pensava anteriormente, entre 1,5 e
1,7 milhões de anos atrás. À esquerda, um espécime encontrado na Geórgia, com
caraterísticas mais primitivas, semelhantes às de um macaco; à direita, um da
Indonésia, mais avançado.

M. PONCE DE LEÓN ET AL / C. ZOLLIKOFER / UNIVERSITY OF ZURICH

lo XIX, o que pressupôs uma evolução cultu- de Neandertais na Península Ibérica, como na
ral humana das mais primitivas para as mais gruta de Ardales (Málaga), com 64 800 anos,
avançadas. ou em Maltravieso (Cáceres), com 66 700
Mas a arte pré-histórica não pode ser conce- anos. Estas cronologias estão próximas do li-
bida como uma primeira tentativa artística de mite temporal em que o Neandertal (Homo
uma humanidade imatura. O seu grau de de- neanderthalensis)ainda habitava a área.
senvolvimento técnico e intelectual não é me- Portanto, com base na datação mais fiável,
nor que o de qualquer outra época, incluindo podemos afirmar por agora que a emergência
a atual. da arte está associada à presença do Homo sa-
piens, mas sem descartar a possibilidade de os
A ARTE É ALGO INERENTE AO SER HUMANO? Neandertais também terem desenvolvido esta
MUITOS INVESTIGADORES RELACIONARAM o capacidade.
aparecimento do Homo sapiens com o surgi- Em qualquer caso, como veremos, a capa-
mento das primeiras manifestações artísticas. cidade mental para fazer arte não é suficien-
Em princípio, os humanos anatomicamente te para explicar o seu aparecimento. A ques-
modernos são os únicos com a capacidade de tão torna-se mais complicada se tivermos em
simbolizar e criar representações abstratas da conta que o que sabemos hoje é apenas uma
realidade. A verdade é que esta afirmação está parte das manifestações artísticas que pode-
em constante discussão, especialmente quan- riam ter existido: pintura corporal, pintura
do, nos últimos anos, as pinturas rupestres fo- em madeira, desenhos em areia como os dos
ram datadas contemporaneamente à presença atuais aborígenes australianos...

11
É possível, portanto, que outras espécies hu- Considerando a cronologia dos primeiros
manas, ou o próprio Homo sapiens, tenham rea- exemplos de arte, é impressionante que não
lizado expressões artísticas em momentos mais haja provas claras de arte com anterioridade a
remotos e em áreas geográficas que ainda não foi 75 000 anos atrás. Isto é, durante mais de me-
possível documentar, embora aqui já estejamos a tade da existência do Homo sapiens, parece
entrar num domínio demasiado especulativo. não ter havido uma expressão artística clara,
Se é verdade que foi o aparecimento do hu- mas a partir de 73 000 anos atrás, e especial-
mano anatomicamente moderno que tornou mente a partir de 40 000 anos, há muitas pro-
possível a emergência da arte, então devemos vas. O que aconteceu para os seres humanos
perguntar-nos se a arte tem existido desde o começarem a produzir arte em determinado
início da nossa espécie . momento no tempo? Ainda não sabemos, mas
Talvez devêssemos manter a chamada Vénus tudo parece indicar que embora a capacidade
de Tan Tan, encontrada em Marrocos, em qua- de o fazer seja uma faculdade essencialmente
rentena, por via das dúvidas. Esta estatueta de humana, o ato de a materializar não o é tan-
5,8 cm tem uma forma ligeiramente antropo- to assim.
mórfica. É de origem natural, mas foi provavel-
mente retocada pelas mãos humanas. Tem pelo TALVEZ AS MUDANÇAS SOCIAIS E CULTURAIS
menos 200 000 anos de idade. QUE OCORRERAM DURANTE O PERÍODO PA-
O exemplo mais antigo de um artefacto que LEOLÍTICO tenham levado as comunidades
poderia ser considerado arte, e que oferece humanas a captar essa faculdade natural que
poucas dúvidas, é um fragmento de pedra de até então permanecera subdesenvolvida. Se
silcreto sobre o qual nove linhas cruzadas fo- as mudanças no contexto social e cultural de
ram pintadas com ocre há cerca de 73 000 anos cada período se encontram ligadas a transfor-
na Caverna Blombos na África do Sul. Após es- mações nos estilos ao longo da história, é bem
ta data, os exemplos de arte pré-histórica tor- possível que estas mudanças tenham sido as-
nam-se mais frequentes. sociadas ao aparecimento da própria arte.

Recriação de um encontro amigável entre


os humanos modernos e os Neandertais.
Alguns peritos atribuem aos Neandertais a
mais antiga arte parietal conhecida,
datada de há mais de 64 000 anos,
encontrada na Península Ibérica.
AGE

12
Estas conchas perfuradas, com 75 000 anos
de idade, encontradas na caverna Blombos,
na África do Sul, foram provavelmente
usadas como ornamentos.

AGE
No Paleolítico Superior, há cerca de 40 000 plo mais antigo de arte figurativa, com exceção
anos, surge uma certa preocupação com os das impressões manuais, é o registado na ca-
aspectos estéticos. Enquanto em tempos an- verna Lubang Jeriji Saléh, com 40 000 anos, na
teriores parecia que apenas a funcionalidade ilha de Bornéu (Indonésia). Podemos também
das ferramentas era importante, a partir desse mencionar outros exemplos muito precoces,
momento, foi dada especial atenção à confi- tais como uma criatura antropomórfica da ca-
guração de algumas ferramentas, que come- verna Tito Bustillo nas Astúrias, que tem entre
çaram a ser executadas com muito cuidado. 29 000 e 35 000 anos de idade.
Paralelamente a esta circunstância, as formas As provas disponíveis sugerem que a arte
dos instrumentos multiplicaram-se e o grau não foi uma atividade, pelo menos quotidia-
de elaboração aumentou, o que permitiu a sua na, durante a primeira metade da existência
utilização como elemento de diferenciação do Homo sapiens. Com a arte rupestre, os se-
social entre grupos dentro de uma mesma co- res humanos começaram a conceber um no-
munidade ou entre as próprias comunidades, vo ambiente, onde as figuras, especialmente
como sinal de definição cultural em relação animais, ocupavam o espaço da caverna. Desta
aos outros. Por outras palavras, os objetos já forma, não só modificou o seu ambiente, como
estão a ser utilizados como símbolos, como re- também criou novas condições estéticas que
presentações. mudaram a percepção do mundo e, portanto,
do pensamento. Tenhamos em mente que a
DURANTE O PALEOLÍTICO SUPERIOR PARECE nossa visão das coisas depende não só da nossa
TER HAVIDO UM GRANDE SALTO cognitivo, capacidade visual, mas também da forma co-
que pode ser visto no aparecimento de ritos mo representamos mentalmente a realidade.
funerários complexos e na profusão de orna- Mas o que acontece quando entramos numa
mentos pessoais. Foi durante este período que caverna? Refiro-me a espaços não iluminados
surgiu a arte figurativa, com grandes quadrú- e inadequados para os visitantes; aqueles lu-
pedes como principais protagonistas. O exem- gares escuros, húmidos e tremendamente si-

A partir do Paleolítico Superior, as ferramentas são cuidado-


samente executadas, para além da sua mera funcionalidade

13
lenciosos. Podemos usar a lanterna do nosso
telemóvel ou mesmo uma pequena lamparina
Paleolítica alimentada por gordura animal.
Não se sabe o que se vai encontrar alguns me-
tros à frente. A perda de referências torna-nos
inseguros, e a escuridão, uma mistura de in-
quietação e curiosidade. Sabemos que esta-
mos num espaço diferente, um lugar fora do
tempo. Não há mudança de luz entre o dia e a
noite; tanto no inverno como no verão, per-
manece inalterada. A caverna é um lugar on-
de perdemos as nossas referências temporais,
onde nada nos é familiar: não há árvores, nem
animais, nem sons, exceto talvez os da água
subterrânea ou da nossa própria respiração.
Não é o mesmo por dentro e por fora.
A conceção de ambientes destinados a con-
dicionar o nosso comportamento é uma cons-
tante na história humana: muitos dólmenes e
templos foram construídos com o objetivo de
modificar o nosso comportamento através da
interação com o nosso corpo e mente. É como
se os caçadores-coletores de há mais de 70 000
anos soubessem, ou pelo menos sentissem, a
capacidade de certos locais para mudar a men-
Em algumas sepulturas do Paleolítico Superior
te humana e, talvez por esta razão, decidissem foram encontrados sinais de rituais funerários
colocar alguns dos seus santuários dentro de complexos. A imagem mostra os restos mor-
cavernas, tirando assim partido das condições tais de uma mulher enterrada há mais de
da sua arquitetura natural. 24 000 anos numa caverna na Ligúria, Itália,
com um toucado decorado com conchas.
A HISTÓRIA DA HUMANIDADE, PARA ALÉM
AGE

DE UM PROCESSO DE ADAPTAÇÃO ao am-


biente natural, foi também um processo de
adaptação a um mundo criado pelas próprias tradicionais e pré-históricas, embora certas
sociedades, um ambiente de artefactos, espa- caraterísticas não estejam ausentes nas socie-
ços e ideias que não só domesticaram a paisa- dades mais complexas, tais como os ritos dio-
gem, mas também o próprio ser humano. nisíacos da Grécia clássica.
Talvez uma das primeiras abordagens à rela- O xamã é considerado como tendo o poder
ção entre a arte rupestre e a mente humana te- de servir de elo de ligação entre diferentes
nha vindo daqueles que ligaram o xamanismo realidades. Por esta razão, é-lhe atribuído o
à arte primitiva. Uma das hipóteses que tem poder de conhecer a vontade de entidades so-
tido maior impacto na interpretação da arte brenaturais e de curar. As cerimónias de ini-
rupestre é a proposta pelos arqueólogos David ciação xamã variam de cultura para cultura,
Lewis-Williams, do Instituto de Investigação mas os casos mais frequentes incluem o rito
da Arte Rupestre da Universidade de Witwa- conhecido como a busca de visões.
tersrand (Joanesburgo), e Jean Clottes . Nessas cerimónias, um jovem vai para um
Em 1988, Lewis-Williams publicou com Do- lugar isolado, na beira de um penhasco ou nu-
wson The Signs of All Times. Entoptic Phe- ma caverna, de preferência um lugar com arte
nomena in Upper Palaeolithic Art e, mais rupestre e longe da presença de outras pes-
tarde, mais dois trabalhos de ampla difusão e soas. Deve jejuar e meditar, pode ingerir subs-
muita controvérsia, o primeiro com Clottes: tâncias psicoativas, até mesmo ir ao ponto de
Les chamanes de la préhistoire, em 1996, e o se flagelar e morrer à fome. Juntamente com
segundo intitulado The Mind in the Cave, em uma intensa concentração e isolamento, estas
2002. Os autores argumentam que o xamanis- condições acabarão por conduzir a um transe
mo é uma prática generalizada nas sociedades ou a um estado de consciência alternativo, no

14
Os caçadores-coletores de há 70 000 anos, quiçá, perceberam
que certos enclaves poderiam modificar a mente
qual um espírito-animal lhe aparecerá e lhe de vários animais e os restos de sementes de
transmitirá o seu poder. Papaver setigerum, uma planta da família das
De facto, a busca destes estados está fre- papoilas com efeitos semelhantes aos do ópio.
quentemente associada a certos rituais re- Para encontrar mais casos, teríamos de
ligiosos em muitas sociedades tradicionais. avançar até ao período Neolítico. Assim, pode-
Talvez a ligação mais direta entre o uso de mos citar alguns exemplos, como a caverna de
substâncias psicoativas e a arte rupestre tenha Murciélagos em Granada, onde foram docu-
sido documentada na Califórnia. Em Pinwheel mentadas pinturas rupestres e cápsulas e se-
Cave, foram encontrados restos da planta Da- mentes de papaver somniferum, depositadas
tura wrightii, bem como a representação pin- como oferendas num local de sepultamento .
tada da mesma planta nas paredes da caverna. Outro caso que levanta a possibilidade de
A datação por carbono-14 diz-nos que esta ligar a arte pré-histórica a estados de cons-
espécie teria sido utilizada pelas populações ciência alterados é o Abrigo Selva Pascuala
indígenas durante os séculos XVI e XVII. em Cuenca. Aí é possível observar pinturas
Para descobrir os dados mais antigos que rupestres que parecem representar vários co-
poderiam ligar a arte pré-histórica a subs- gumelos da espécie Psilocybe hispanica, co-
tâncias psicoativas, devemos ir à Cantábria, nhecidos pelas suas propriedades psicoativas.
ao Paleolítico Superior e à caverna Juyo, onde Como salienta a arqueóloga Elisa Guerra
foram identificadas gravuras pré-históricas Doce, da Universidade de Valladolid, a desco-
AGE

Certas peças atri-


buídas à cultura
solutrense, que se
desenvolveu entre
22 000 e 15 000
anos atrás em Fran-
ça e na Península
Ibérica, parecem
não ter qualquer
utilidade prática,
mas sim testemu-
nhar a habilidade
do artesão.

15
Para alguns autores, a arte parietal
pré-histórica mantém uma forte
ligação com os ritos xamânicos, nos
quais se procura uma ligação entre o
mundo material e o espiritual.
AGE

16
Existe uma relação entre certos exemplos de arte rupestre
e a procura de estados de consciência alternativos
berta de plantas psicoativas em sítios pré-his- Nesse ensaio, Clark e Chalmers argumentam
tóricos da Península Ibérica está a tornar-se que alguns processos cognitivos não devem
cada vez mais frequente, assim como no resto ser entendidos como tendo sido gestacionados
do mundo. Existem, portanto, amplas provas e desenvolvidos dentro dos limites físicos do
da existência de uma ligação entre algumas cérebro. Pelo contrário, estes processos emer-
manifestações artísticas pré-históricas e a in- gem, desenvolvem-se e propagam-se através
tenção de alcançar certos estados de transe e de redes interativas que integram e sincroni-
de alterar a perceção da realidade. zam o cérebro, o corpo e o mundo físico e so-
cial. Por exemplo, quando usamos uma caneta
DESDE OS TEMPOS PALEOLÍTICOS, A HUMA- e papel para realizar um cálculo matemático,
NIDADE TEM TENTADO MANIPULAR A SUA estamos a transformar algo externo ao nosso
PRÓPRIA MENTE modificando a sua perceção corpo numa extensão da nossa mente. Por-
da realidade à sua volta, quer através da inges- tanto, a tecnologia, por mais simples que seja,
tão de substâncias psicoativas, quer através da pode vir a funcionar como um modelador da
produção de representações artísticas, que, por mesma. Desse modo, a forma como entende-
um lado, poderiam ser o resultado desta per- mos o mundo à nossa volta depende não só
ceção alternativa do mundo e, por outro, atuar daquele órgão dentro do nosso crânio, mas
como desencadeadores destes estados de tran- também dos objetos que utilizamos e dos es-
se. Mas, neste ponto, coloca-se a questão: como paços que ocupamos.
é possível que as representações artísticas pos- Desde 2020, uma equipa formada pelos in-
sam modificar as nossas mentes? vestigadores Luis M. Martínez, do Institu-
Hoje, graças ao trabalho dos filósofos Andy to de Neurociências do CSIC; Andy Clark, da
Clark e David Chalmers, estamos familiariza- Universidade de Sussex; e Johannes Mueller,
dos com a chamada teoria da mente alargada, da Universidade de Kiel, e coordenada pe-
que foi publicada em 1998 na revista Analysis, lo arqueólogo Felipe Criado, do Instituto de
num artigo intitulado The Extended Mind. Ciências do Património (Incipit), do CSIC, têm

Foram encontradas provas de que os nossos antepassados utilizavam substâncias psicoativas em várias grutas..Em Pinwheel
(Califórnia), há uma possível representação de uma Datura wrightii – abaixo–, uma planta com propriedades alucinógenas.
DEVLIN GANDY

SHUTTERSTOCK

17
A arte mostra que, no período Neolítico, sociedades mais
igualitárias deram lugar a sociedades mais verticais
vindo a desenvolver um projeto inovador de- Através de movimentos oculares constantes,
nominado XSCAPE. Em essência, o seu obje- a nossa inteligência visual desempenha duas
tivo é tentar descobrir como a mente humana funções importantes: seleciona os pontos em
e os objetos feitos durante os tempos pré-his- que nos devemos focar, e constrói um modelo
tóricos se relacionam uns com os outros. Para estatístico do mundo na nossa mente. É preci-
tal, propuseram-se analisar o comportamento samente por isso que os movimentos pupila-
visual, ou seja, estudar o olhar humano como res são tão informativos: dão-nos acesso a um
uma ligação entre o pensamento e os artefac- comportamento visual que não é intencional,
tos. Outro dos aspectos mais importantes des- mas é muito revelador do que a parte visual do
te desafio é adotar uma abordagem histórica nosso cérebro está a fazer, e portanto da rela-
ou, por outras palavras, analisar se o compor- ção do nosso cérebro com o mundo percebido
tamento visual humano mudou ao longo da pela visão.
pré-história e se estas mudanças correspon-
dem a transformações sociais e culturais. EMBORA O PROJETO XSCAPE ESTEJA NA
Temos tendência a pensar que olhamos para SUA FASE INICIAL, os resultados das primei-
o que queremos, quando na realidade fazemos ras experiências são muito promissores. Pa-
múltiplos movimentos com os nossos olhos ra realizar a investigação, foram estudados
que são em grande parte não intencionais. Fi- quinze recipientes de cerâmica decorados,
xamos a nossa atenção num alvo, mas, os nos- pertencentes a cinco estilos de cinco perío-
sos olhos estão a fazer outras coisas. dos pré-históricos distintos no noroeste da

Uma investigação coordenada


por Shelby S. Putt, especialista
em antropologia biológica da
Universidade de Indiana,
mostrou que o fabrico de
ferramentas achelenses, tal
como foram feitas há 1,8
SHELBY S PUTT / IU

milhões de anos, ativa as


mesmas regiões cerebrais
quando se toca piano.

18
Segundo especialistas
do projeto XSCAPE, a
análise da cerâmica do
Mesolítico à Idade do
Ferro – abaixo à es-
querda, amostras de
há 5000 anos atrás
encontradas em Dispi-
lió, na Grécia – mostra
que as sociedades se
tornaram mais hierár-
quicas durante estes
milénios.

SHUTTERSTOCK

Península Ibérica, que cobrem um intervalo


cronológico de cerca de 4000 anos. O estudo
envolveu 131 indivíduos de idade e paridade
de género, cujos movimentos oculares foram
registados utilizando tecnologia de rastreio
ocular. Os dados mostram que não existem
diferenças apreciáveis entre mulheres e ho-
mens ou entre grupos etários, e que o compor-
tamento dos diferentes grupos de amostra é o
mesmo, independentemente da sua formação
INCIPIT / CSIC

académica ou profissional.

AS ANÁLISES SUGEREM QUE A ESTRUTURA


DE CADA CERÂMICA IMPÕE uma forma de um que se movia verticalmente. E o que signi-
olhar. Assim, após registar cada movimento fica isto? Significa que as formas de olhar, de
dos olhos, foi possível observar como os ob- produzir formas de arte e mesmo a estrutura
jectos marcaram os pontos que o nosso olhar da sociedade estão inextricavelmente relacio-
visita com mais frequência; e não só isso, mas nadas entre si, e que os objetos e a arte, em vez
também predetermina como o fazemos, ou se- de serem coisas inanimadas, agem e provocam
ja, como olhamos para a peça, em que ordem e reações, influenciam o comportamento, pre-
com que sequência de gestos visuais. A forma determinam-no e guiam o processo cognitivo
e decoração da cerâmica captou o olhar para de uma forma ou de outra.
além da intenção do observador. Assim, sociedades mais igualitárias pro-
Contudo, talvez o aspecto mais interessante duziram objetos cujo estilo orientou o olhar
do teste não fosse este aspecto, mas aquele que horizontalmente, enquanto sociedades mais
nos permitiu ver que havia uma relação entre hierárquicas conceberam decorações que
o período de pré-história em que a peça foi orientaram o olhar verticalmente.
concebida e a forma de olhar. Poder-se-ia di- O projeto XSCAPE parece estar a quebrar a
zer que as sociedades pré-históricas têm mo- fronteira que aparentemente existia entre a
dificado a mente e o pensamento através da matéria e o pensamento. Que resultados se-
transformação do estilo dos artefactos. riam obtidos se, por exemplo, estendêssemos
A partir da idade de cada peça, foi possível esta iniciativa à arte rupestre? Que nos diriam
determinar que ao longo dos 4000 anos que os resultados do rastreio ocular dentro de
separaram as peças mais antigas, do Neolítico, uma gruta ou de uma caverna decorada com
e as mais recentes, da Idade do Ferro, houve pinturas? Em qualquer caso, o futuro da inves-
uma transição gradual da predominância de tigação sobre a história do pensamento huma-
um olhar que se movia horizontalmente para no parece promissor. e

19
SHUTTERSTOCK

20
No trilho
dos primeiros
artistas
Desde as primeiras marcas de pés e mãos, os
humanos – e não apenas o Homo sapiens –
registaram a sua passagem pelo mundo sob
a forma de objectos, gravuras ou pinturas
aparente sem utilidade prática.

POR ROBERTO SÁEZ Autor do blogue Nutcracker


e do livro Evolución humana. Prehistoria y origen de la
compasión (Ed. Almuzara, 2019)

21
MATTHEW ROBERT BENNETT / BOURNEMOUTH UNIVERSITY

A
o contrário dos fósseis, que tes- malmente, eram pintados em negativo, usando
temunham a morte, as pegadas e a técnica de sopro, em que a mão repousa na pa-
marcas de mãos encontradas em rede e o pigmento é soprado sobre ela, quer di-
alguns locais pré-históricos são um retamente da boca ou usando cânulas de osso ou
testemunho deixado em vida pelos madeira. Há também pinturas em positivo, que
nossos antepassados. As primeiras foram feitas é quando o indivíduo aplica o pigmento na mão
por humanos enquanto se moviam durante a sua e depois a coloca na parede, e há mesmo aquelas
atividade normal. Conhecemos as deixadas por com uma execução mista das duas técnicas.
australopitecos em Laetoli (Tanzânia) há quase
3,7 milhões de anos, e por alguns dos primeiros AS MÃOS PINTADAS SÃO FORMAS DE ARTE
humanos, representados pelo Homo erectus, há QUE TÊM SIDO ASSOCIADAS exclusivamente
1,5 milhões de anos em Ileret (Quénia). aos humanos modernos, uma vez que durante
As marcas de mãos, por sua vez, têm uma pe- um século as identificámos como parte de ou-
culiaridade: são manifestações culturais escul- tros painéis pictóricos executados extensiva-
pidas nas paredes de grutas e cavernas em to- mente pela nossa espécie. Mas em outubro de
dos os continentes há cerca de 65 000 anos. São 2021 deparámos com algumas obras muito sin-
possivelmente as expressões artísticas que mais gulares, preservadas no travertino de uma fonte
nos aproximam dos nossos antepassados. Uma termal em Quesang (Tibete). Duas crianças, com
mão pré-histórica estabelece uma ligação espe- idades compreendidas entre os sete e os doze
cial entre o observador atual e a vontade de uma anos, colocaram cuidadosamente cinco marcas
mulher ou de um homem – adulto ou criança de mãos e cinco marcas de pés entre 169 000 e
– de deixar uma parte de si representada, há 226 000 anos atrás. A intencionalidade da ação
milénios, para transmi- parece clara, embora se
tir uma característica debata se se trata de uma
da sua personalidade de Os nossos antepassados obra artística, e também
uma forma intemporal. a sua autoria: a sua anti-
Porque, de facto, a sua mais antigos já tinham guidade levanta dúvidas
análise morfométrica e sobre as espécies a que
estatística dá-nos infor- deixado testemunhos as crianças pertenciam,
mações sobre a idade e dado que os humanos
sexo do autor, a posição sob a forma de pegadas modernos ainda não ha-
da mão e os dedos que bitavam a região. Seriam
decidiram utilizar. Nor- e marcas de mãos neandertais, ou mesmo

22
Detalhe de uma das
marcas de crianças
encontradas no
sítio Quesang
(Tibete), datada
entre 169 000 e
226 000 anos atrás.
À esquerda, uma
representação 3D
do achado, com
todas as marcas de
mãos e pés. As
cores indicam a
profundidade dos
vestígios.

MATTHEW ROBERT BENNETT / BOURNEMOUTH UNIVERSITY

denisovanos? Será arte? Devemos ficar sur- artísticos? Tentar restringir o conceito de arte,
preendidos ao procurar em vestígios tão ances- e em particular a arte Paleolítica, leva-nos fre-
trais as primeiras evidências possíveis de arte? quentemente a um oceano de definições e dis-
Há 500 000 anos atrás, na ilha de Java na Indo- cussões. Em geral, sem querer entrar em ques-
nésia, algo motivou um Homo erectus a agarrar tões teóricas que não caberiam nestas páginas,
um dente de tubarão e fazer uma figura geomé- vamos assumir que uma evidência cultural pré-
trica em ziguezague, gravada num único golpe -histórica tem uma qualidade artística quando
com grande controlo neuromotor, numa con- foi pensada e feita para transmitir ou comunicar
cha de amêijoa de água doce que segurava firme- algo visualmente, que pode apresentar um fun-
mente na sua outra mão. Este objeto pode pare- do simbólico, com um significado para o grupo
cer isolado, mas o gosto do Homo erectus pela em que foi criada, e que não demonstra um des-
simetria, já se verificava nos bifaces e machados tino eminentemente utilitário.
achelenses. Embora esta ferramenta tivesse sido
inventada muito antes, desde há meio milhão de ALGUNS AUTORES PREFEREM REFERIR-SE
anos, os bifaces eram esculpidos extensivamen- AOS VESTÍGIOS ARTÍSTICOS MAIS ANTIGOS
te em forma de lágrima com prodigiosa simetria como palaeoarte ou pré-arte . Em qualquer caso,
bilateral. Talvez fossem inicialmente produ- há fortes indícios de que a espécie humana para
tos acidentais, mas é evidente que tais formas além do Homo sapiens já fazia representações
eram cada vez mais valorizadas e reproduzidas em vários suportes que continham algum tipo
por grupos humanos posteriores. Temos de nos de mensagem simbólica. A ligação da arte com
questionar se é uma coincidência que o limiar de processos cognitivos e mecanismos físico-quí-
meio milhão de anos acima mencionado coinci- micos complexos reforça o estímulo à procura
da com o da gravação da concha em Java. de provas de palaeoarte nos seres humanos que
Desde então, os grupos humanos que se es- nos precederam.
palharam por toda a África e Eurásia deixaram Existem cerca de cinquenta sítios do Paleolíti-
vestígios ocasionais de amostras de cultura ma- co Inferior e Médio onde foram encontrados ob-
terial. Mas será que merecem ser chamados de jetos ósseos ou de pedra com incisões. Em alguns

23
deles, a origem antrópica desta produção é du-
Uma obra de mestre vidosa, e poderia ser bastante natural. Além dis-
so, em objetos onde parece haver ação humana,

A lguns bifaces achelenses feitos pelo Homo não é claro que a sua intencionalidade não esteja
erectus foram construídos a uma dimensão associada a atividades utilitárias. Duas figuras
gigantesca, sem utilidade aparente. Um deles antropomórficas são possíveis proto-esculturas
que despertam o nosso interesse: uma de Tan-
tem 1,7 milhões de anos, mede 30 cm, pesa 3,6
-Tan (Marrocos), com 6 cm e entre 300 000 e
kg e vem do sítio FLK West em Olduvai, Tanzânia.
500 000 anos; e outra de Berekhat Ram (Israel),
Foi feito sobre uma grande lasca ou bloco plano com 3,5 cm e 230 000-280 000 anos. A sua inter-
de basalto, proveniente de um local distante. É pretação é difícil porque, embora tenham algu-
muito diferente de outras ferramentas encon- mas marcas de modificação, a forma das pedras
tradas no local, e tem sido interpretado como deve-se principalmente a processos naturais.
um prodígio técnico de magnífica execução, um A figura Tan-Tan foi encontrada num contex-
marco na emergência de conceitos totalmente to achelense, com numerosas ferramentas, pelo
humanos, tais como a simetria bilateral. que pode ter sido simplesmente mais uma des-
Embora só possamos especular sobre a sua sas ferramentas, o que explicaria as suas marcas.
possível utilização estética, talvez um sinal da Quanto à de Berekhat Ram, é um pedaço de tufo
vulcânico com entalhes naturais que simula um
perícia do escultor, dá-nos outra pista sobre uma
tronco feminino. Embora pareça ter sido artifi-
possível relação entre o gosto estético e o de-
cialmente alterado mais tarde para pronunciar a
senvolvimento do packing humano, ou seja, os sua definição, podemos estar a pregar uma par-
primeiros comportamentos que indicam capa- tida na nossa apreciação devido à paridolia, um
cidades cognitivas complexas há quase dois fenómeno psicológico pelo qual interpretamos
milhões de anos, associados à evolução mor- mal as formas reconhecíveis em imagens aleató-
fológica dos primeiros representantes do Homo rias, como quando olhamos para as nuvens.
erectus.
HÁ OUTRO PUNHADO DE OBJETOS SEME-
EFE

Fernando Díez — direita LHANTES DE ANTIGUIDADE SIMILAR, de ori-


— e Policarpo Sánchez, gem controversa, e temos de remontar a entre
ambos da Universidade 100 000 e 200 000 anos atrás, quando os Nean-
de Valladolid, posam dertais começaram a fazer objetos para nenhum
com o biface encontrado outro fim que não fosse a ornamentação. Colares
em Olduvai (Tanzânia).
ou pulseiras feitas de garras e ossos de pássaros
são os mais antigos ornamentos documentados
na Europa. Pelo menos 23 falanges de diferentes
espécies de aves de rapina com marcas de corte
são conhecidas de dez sítios, com idades com-
preendidas entre 130 000 anos atrás (Krapina,
Croácia) e 39 000 anos atrás (Cova Foradada,
Espanha). Esta prática cultural de tratamento
de ossos de aves parece ter sido adotada pelos
Neandertais durante 80 000 anos desde o início
do Paleolítico Médio, generalizada, e talvez até
transmitida aos primeiros humanos modernos
com quem interagiram.
Os ornamentos pessoais são provas diretas
do comportamento simbólico e sentido estético
dos Neandertais, e sobrepõem-se no tempo às
primeiras conchas perfuradas pelos humanos
modernos em África de há 142 000 anos (Gruta
de Bizmoune, Marrocos) e no Corredor Levan-
tino de há 135 000 - 100 000 anos (Skhul, Is-
rael). De facto, os Neandertais também fizeram
este tipo de objetos, como evidenciado pelas

24
O Homo erectus fez ferramentas bastante sofisticadas, embora não
se saiba se o fizeram por razões estéticas.

CREDITO

conchas perfuradas encontradas na caverna de foi magistralmente gravada num único golpe
Los Aviones (115 000 - 120 000 anos atrás) e na por um Neandertal há cerca de 36 000 anos,
caverna de Anton (50 000 anos atrás), ambas com treze linhas centradas e paralelas criando
em Múrcia, e na caverna italiana de Fumane um padrão regular. Uma delas foi possivelmente
(45 000 - 47 000 anos atrás). Algumas destas adicionada para preencher o espaço deixado en-
conchas têm vestígios de pigmentos vermelhos tre outras duas. O autor também parecia estar à
e amarelos. O ocre mineral e outros objetos, tais procura de um contraste visual entre a área gra-
como penas de pássaros, também faziam parte vada no centro e a área branca da extremidade.
do seu adorno pessoal. Estas são expressões ar- Um pouco mais modesta é uma pedra de
tísticas destinadas a comunicar informações re- quartzito de 5,7 cm encontrada em El Castillo
lativas à identificação do indivíduo. (Espanha), que foi trabalhada há 69 000 anos
com quatro pontos alinhados e equidistantes e
OS NEANDERTAIS TAMBÉM NOS DEIXARAM um quinto ponto abaixo, mesmo no meio da fila
DIFERENTES AMOSTRAS DE OBJETOS grava- superior. Estes sinais são muito diferentes das
dos com sinais. O mais antigo tem 51 000 anos e marcas deixadas durante a talha ou por golpes
foi anunciado em julho de 2021. É uma falange do naturais e a sua falta de utilidade sugere um pos-
grande veado Megaloceros giganteus, com tra- sível significado simbólico e estético.
ços cuidadosamente executados sob a forma de A mais antiga talha de parede associada aos
cunhas ou tiras e entalhes Neandertais é da Gruta
ligados. Foi descoberta de Gorham, em Gibraltar.
em Einhornhöhle (Gru- Na caverna de Tem pelo menos 39 000
ta Unicórnio), no norte anos e consiste num pa-
da Alemanha. A escassez El Castillo, foi encon- drão abstrato de treze li-
deste animal na altura e a nhas no total sobre uma
dificuldade dos traços in- trado um seixo de secção de rocha com cerca
dicam a importância que de 20 cm de comprimen-
atribuíam a este objeto. quartzito com cinco to. Oito dessas linhas são
Em Kiik-Koba (Cri- muito profundas e foram
meia), uma lasca de ape- pontos esculpido por executadas com um pon-
nas 3,6 cm de compri- to lítico robusto repetida-
mento e 2 cm de largura Neandertais mente na mesma direção.

25
No verão de 2021, foi descoberta uma falange do
extinto veado Megalocerus giganteus com sinais

WIKIPEDIA
esculpidos por Neandertais há 51 000 anos, na
caverna de Einhornhöle na Alemanha.
V. MINKUS / NLD

A estes painéis junta-se a série pictórica de


círculos vermelhos da caverna El Castillo (Can-
tabria), datada de pelo menos 40 800 anos atrás.
Todas as datas mencionadas referem-se a uma
idade mínima, pois corresponde ao mineral de
calcite encontrado imediatamente acima das fi-
guras, e que por isso as cobriu após terem sido
pintadas. Quando estas crostas são formadas por
precipitação, acumulam-se vestígios de urânio,
As outras cinco são mais finas e foram feitas num um elemento que sofre uma desintegração ra-
só traço. No total, estima-se que a gravura exigiu dioativa e se decompõe ao tório a uma velocidade
entre 188 e 317 incisões, e que a linha mais pro- conhecida. A relação entre estes dois elementos
funda pode ter exigido cerca de 54 traços. Esta permite datar a amostra. Ora, naquela época, e
laboriosidade, sem qualquer utilidade associada, por mais de 40 000 anos, os humanos modernos
fala novamente a favor do pensamento abstrato e não tinham chegado à Península Ibérica; exis-
do possível sentido decorativo dos autores. tiam apenas os Neandertais. Além disso, se em
Ardales pintaram em duas épocas diferentes com
MAS PARA ALÉM DE FAZER GRAVURAS, SERÁ quase 20 000 anos de intervalo, isto sugere uma
QUE OS NEANDERTAIS PINTAVAM? Ao procurar possível tradição simbólica ao longo de milénios.
a resposta a esta pergunta, deparámo-nos mais Entretanto, curiosamente, no extremo opos-
uma vez com representações de mãos. Em 2018 to do planeta, e também há 65 000 anos atrás,
soubemos da espantosa antiguidade de vários um grupo de humanos misturou ocre com pó de
painéis pictóricos em três grutas espanholas: mica moída reflectora em Madjedbebe, no norte
uma mão negativa em Maltravieso (Cáceres), da Austrália. Apenas foram encontrados os ma-
cerca de 66 700 anos, que seria a mais antiga pin- teriais, mas podemos estar perto de encontrar
tura rupestre conhecida; um sinal escalariforme pinturas brilhantes – literalmente – naquela re-
em La Pasiega (Cantabria), cerca de 64 800 anos; gião. É um grande ponto de interrogação quanto
e uma coluna com manchas em ocre vermelho às espécies que tiveram essa intenção, dado que
aplicadas intencionalmente em Ardales (Mála- os humanos modernos só chegaram a esse con-
ga), que foram pintadas pelo menos em dois mo- tinente 20 000 anos mais tarde.
mentos, há 65 500 e 47 000 anos atrás. Alguns Na maior parte das vezes, esta discussão tem
investigadores argumentaram que possíveis um fundo mais amplo e mais controverso: será
problemas de contaminação, infiltração e outros que outras espécies humanas tinham as mesmas
processos poderiam ter alterado a amostra data- capacidades cognitivas e simbólicas que as nossas,
da, embora a antiguidade dos sinais de Ardales e poderiam, por isso, executar a arte rupestre?
de 47 000 anos não tenha sido questionada. Naturalmente, a questão centra-se geralmente

26
nos Neandertais. Até há O debate centra-se em dade que a produção ar-
pouco tempo, a comu- tística Neandertal é mui-
nidade científica negou saber se outras espécies to menos extensa do que
geralmente esta possibi- a do H. sapiens, estamos
lidade, e a inferioridade partilharam capacidades a encontrar cada vez mais
cultural dos Neandertais pistas sobre a capacidade
em relação ao Homo sa- cognitivas e simbólicas dos nossos extintos pa-
piens foi mesmo levan- rentes para expressar o
tada como uma possível com o Homo sapiens seu pensamento sim-
causa da sua extinção. No bólico com um sentido
entanto, esta posição está a perder força à medi- puramente estético; uma capacidade artística
da que o registo arqueológico cresce com novos que, ou surgiu independentemente em ambas as
objetos e painéis gravados e pintados, bem como espécies ou foi herdada do seu antepassado co-
outros tipos de provas das suas capacidades cog- mum, cerca de 500 000 anos atrás.
nitivas, tais como enterros e estruturas. Precisamente em paralelo com a evolução
cognitiva, simbólica e artística dos Neandertais
AO DEBATE SOBRE A INTELIGÊNCIA NEAN- na Eurásia, em África também encontramos
DERTAL TEMOS DE ACRESCENTAR MAIS UM antigas amostras de arte associadas à nossa es-
INGREDIENTE , que é a evolução das suas ativi- pécie. Há 105 000 anos, os humanos que viviam
dades diárias ao longo do tempo. Diferentes lo- em Ga-Mohana Hill (África do Sul) armazena-
cais permitem-nos identificar progressos na se- vam pelo menos vinte e dois pequenos cristais
leção de matérias-primas, no desenvolvimento de calcite, lisos, brancos e retangulares. Não foi
da tecnologia óssea e na sofisticação da sua tec- encontrada nenhuma causa natural para o de-
nologia lítica. Inclusivamente, os Neandertais pósito deste conjunto, nem a utilidade dos obje-
produziram ferramentas microlaminares com- tos. Estética, curiosidade ou algum outro motivo
plexas, semelhantes às do Homo sapiens, em- simbólico levou um indivíduo ou grupo a decidir
bora com diferentes cadeias operacionais e me- recolhê-los. Entre 72 000 e 100 000 anos atrás,
todologias de talha. Em julho de 2021, uma pe- outros humanos deixaram 8000 peças em ocre
quena ponta de lança de 7,6 cm cuidadosamente em Blombos na África do Sul, muitas com mar-
trabalhada por Neandertais há 65 000 anos, cas de terem sido utilizadas, e algumas com gra-
encontrada na caverna Hohle Fels (Alemanha), vuras de combinações de linhas cruzadas. A úl-
foi também admirada pela sua grande simetria e tima destas peças foi apresentada em 2018 e era
perícia em escultura. Portanto, embora seja ver- uma pedra gravada com três linhas vermelhas

UNIVERSIDAD DE MURCIA

Coleção de arte Neandertal: estas conchas pintadas e perfuradas foram


encontradas na caverna Los Aviones (Murcia). Um estudo publicado em
2018 estima que foram feitas entre 115 000 e 120 000 anos atrás.

27
SHUTTERSTOCK
Há quatro anos, a revista Science relatou a datação de pinturas supostamente
Neandertais em três grutas espanholas; entre elas, as marcas de mão de Maltravieso
(Cáceres), cerca de 66 700 anos de idade.

cruzadas e seis linhas separadas. Também na cam uma capacidade


África do Sul, há 60 000 anos, numerosas cascas simbólica, uma mente
de ovos de avestruz foram gravadas com padrões preparada, um conhe-

ARCHIVO TK
de linhas cruzadas em ângulos rectos e oblíquos cimento do ambiente
no local de Diepkloof Rock Shelter. e das suas matérias-
-primas, e uma gran-
E PARA ALÉM DOS SINAIS? PARA PROCURAR de capacidade técnica
AS REPRESENTAÇÕES FIGURATIVAS mais an- para a sua produção. O estudo da arte paleolítica
tigas, temos de voltar ao Sudeste Asiático. Em produziu uma grande quantidade de literatura,
várias grutas da ilha de Sulawesi (Indonésia), os mas podemos resumir algumas ideias.
seus painéis pictóricos têm sido notícia nos úl- Dependendo do meio utilizado, fazemos a dis-
timos anos: a figura de um javali nativo da ilha, tinção entre arte móvel e arte parietal. A primei-
pintado em Leang Tedongnge há 45 500 anos; ra é feita sobre suportes transportáveis, que po-
uma possível cena de caça em Leang Bulu Sipong dem ter um número infinito de tipologias, tanto
há 43 900 anos, com javalis, cordas e teriantro- inorgânicas – pedras, plaquetas, blocos, ocre –
pos – figuras com uma parte humana e uma par- como orgânicas – madeira, ossos, dentes, con-
te animal; e uma mão com quase 40 000 anos em chas, chifres, marfim. Por sua vez, estes objetos
Leang Timpuseng. E mais uma vez, falando das podem ter tido uma utilização diária – veios, va-
mãos pintadas de que tanto gostamos, na caver- ras, agulhas, arpões, hélices, paus perfurados...
na Lena Hara em Timor Leste, foi documentado – ou uma utilização ornamental – pulseiras,
um conjunto de pelo menos dezasseis marcas missangas, colares, medalhas, contornos recor-
com pelo menos 40 000 anos ao longo das pare- tados, bramadeiras (instrumentos sonoros)... –.
des mais exteriores. Existe também um possível objetivo ritual ou re-
Compreenderemos certamente que a arte pa- ligioso, embora a verdade seja que normalmente
leolítica não tem um começo específico, mas que encontramos aqui todos os objetos que não sa-
encontramos origens diferentes através de uma bemos classificar num dos dois tipos anteriores,
multiplicidade de expressões culturais, muitas tais como figuras de animais, humanas e outras
delas difíceis de interpretar, mas todas elas indi- formas desconhecidas.

28
Como vimos acima, a Devido à utilização de ferro e manganês, car-
arte móvel foi das pri- vão, calcita e argila, entre
meiras representações pigmentos naturais, a outros — de modo que a
artísticas da humani- gama de cores é normal-
dade. A arte parietal, paleta de cores é limi- mente limitada ao ver-
por outro lado, é aquela melho, preto, amarelo e
executada em paredes tada a vermelho, preto, branco, com uma multi-
de pedra ao ar livre, pin- plicidade de tonalidades
tada à luz natural, ou nas amarelo e branco e gradientes. O pigmento
paredes de formações é aplicado seco, mistura-
subterrâneas, com a complexidade adicional de do com aglomerantes — água, gordura animal,
requerer luz artificial. resinas, etc. — e por vezes queimado.
Um dos fatores que explica a extraordinária
OS MODOS DE EXECUÇÃO SÃO MUITO DIVER- preservação das pinturas dentro das cavernas,
SOS, MAS TODOS ELES PODEM ser classifi- para além das suas condições de temperatura e
cados como gravuras ou pinturas. As gravuras humidade, é precisamente a utilização da água
são feitas com buril, lâminas ou pedras, princi- da própria caverna como aglutinante, uma vez
palmente de sílex, com um único golpe ou com que, estando saturada com carbonato de cálcio,
golpes múltiplos, sobrepostos ou paralelos. As concretiza o pigmento à medida que seca e fixa
pinturas podem ser feitas diretamente, usando a tinta. Todos estes modos de execução, que in-
carvão, giz, dedo ou mão, ou indiretamente, cluem os diferentes gestos e ângulos de traçado,
usando pincéis, canetas, espátulas e aerógrafos. bem como o aspecto estilístico e formal da peça
A gama cromática é limitada pela utilização de final, são importantes para determinar alguns
pigmentos exclusivamente naturais — óxidos de aspectos-chave para a compreensão da arte

SHUTTERSTOCK
Como esta recriação
mostra, os humanos
paleolíticos sopra-
vam tinta nas suas
mãos para deixar a
silhueta marcada
nas paredes das ca-
vernas. Por vezes,
utilizavam cânulas
feitas de osso ou
madeira.

29
Os símbolos e sinais, em vez de figuras de
animais ou pessoas, podem ser a representação
mais relevante ao nível cognitivo

30
Na caverna

GETTY
sul-africana de
Blombos, foram
encontrados
alguns dos
primeiros
objetos feitos
pelo Homo
sapiens que
denotam
pensamento
simbólico, como
este bloco ocre
decorado,
datado de cerca
de 75 000 anos
atrás.

31
Artefactos
de calcita
encontrados
em Ga-Mohana
Hill e noutros
locais na
África do Sul.
Têm mais de
100 000 anos
de idade.
WILKINS ET AL

paleolítica, tais como a existência de diferentes podem ser a manifestação cognitivamente mais
tradições culturais e territórios de influência. relevante. Por esta razão, embora sejam mui-
Os temas artísticos podem ser agrupados em to complexos de estudar devido às suas formas,
antropomorfos masculinos e femininos; zoo- técnicas e contextos heterogéneos, os investi-
morfos — principalmente equídeos, bovinos, gadores estão a prestar-lhes mais atenção, pois
cervídeos e caprinos, prosbocídeos como ma- reconhecem a sua importância na identificação
mutes e elefantes, rinocerontes e, em menor da sincronia dos grupos de arte rupestre, a seme-
grau, carnívoros, peixes, aves e faunas fantásti- lhança entre mundos simbólicos e a territoriali-
cas —; e ideomorfos ou signos — motivos lineares dade dos grupos humanos pré-históricos.
e figuras geométricas ou abstratas, quer associa- De facto, em muitas grutas são a única arte
das a animais ou isoladas. representada. Por exemplo, Cudón é uma ca-
verna cantábrica pintada no período gravetiano
OS SÍMBOLOS E SINAIS DAS CAVERNAS PA- — cerca de 26 000 anos atrás — contemporânea
LEOLÍTICAS TÊM SIDO FREQUENTEMENTE das mais espetaculares Covalanas, El Castillo,
relegados para segundo plano, deixando o pro- El Pendo e La Pasiega. Mas aqui existem ape-
tagonismo para figuras nas símbolos, sobretudo
zoomórficas e antropo- pinturas vermelhas, al-
mórficas, que são mais Qual o significado gumas pretas e até roxas.
atrativas para os espec- Há também macaroni,
tadores atuais. Mas estes dessas obras? Talvez que são gravuras execu-
símbolos e sinais são mais tadas com os dedos numa
abundantes e diversifi- reflitam apenas um parede de barro, e duas
cados do que o resto dos ou três mãos — de novo!
temas e, portanto, mais gosto pela beleza — em negativo. No total
representativos da arte há mais de 900 unidades
paleolítica. Na realidade, e estética gráficas, nenhuma delas

32
Os especialistas acreditam
que os artistas paleolíticos
utilizavam lamparinas e
andaimes de madeira para
pintar cavernas como
Lascaux (França).
GETTY

referindo-se a animais ou à natureza. Vimos an- antepassados; a hipótese de magia ou ritual para
teriormente que muitas das representações ar- promover a caça ou a fertilidade; e o xamanis-
tísticas primitivas do Paleolítico Inferior e Médio mo, que procuraria promover uma relação com o
são apenas marcas ou sinais, mas no Paleolítico mundo espiritual com algum objetivo prático pa-
Superior também encontramos painéis cheios ra o grupo. A hipótese estruturalista propõe que
de pontos ou linhas. Pensemos na sensação que existem agrupamentos e arranjos identificáveis
invadiria os nossos antepassados quando faziam de animais e sinais, onde o espaço também é inte-
e viam estas representações, talvez atraídos por grado no conjunto artístico, e varia consoante se
outros fenómenos que não o estético. utilizem salas grandes ou espaços pequenos. Cada
animal e cada signo ocupariam certos lugares, e
PERANTE A ADMIRAÇÃO QUE SENTIMOS PE- as figuras complementar-se-iam de forma siste-
LAS REPRESENTAÇÕES zoomórficas do perío- mática, talvez exprimindo a oposição dos sexos.
do Paleolítico e pelos sinais e combinações de Devemos também considerar a coexistên-
ambos, há um século e meio que nos questiona- cia de tendências artísticas com diferentes sig-
mos sobre o seu significado. Uma das primeiras nificados. Alguns dos sítios com simbologias
propostas interpretativas, que tem hoje muitos poderiam representar uma tradição cultural
apoiantes, é a da arte pela arte, que defende a por direito próprio, que coexistiria com outros
tendência humana para se expressar livremente, naturalistas. Embora não conheçamos as moti-
e para mostrar o gosto pelo belo e pelo estético. vações por detrás destas diferentes tendências,
Mas um dos problemas com esta hipótese é a lo- devemos elevar-nos e compreender que, ao lon-
calização de grande parte desta arte em lugares go de dezenas de milénios, a arte paleolítica se
remotos e inóspitos, e a repetição de temas e si- reinventou em várias ocasiões. A sua evolução
nais. As influências etnográficas levaram a outras não seguiu certamente os padrões ordenados,
propostas, como o totemismo, segundo o qual lineares e didáticos que lemos em alguns textos
os grupos humanos teriam um emblema animal sobre a pré-história. Já sabemos que as explica-
que poderia representar uma ligação com os seus ções simples em arqueologia funcionam mal. e

33
Descobertas
que redesenham
a pré-história
O Homo sapiens não foi o primeiro a
deixar-se levar pelo impulso artístico,
tal como foi evidenciado pela recente
descoberta de pinturas de Neandertal
na Península Ibérica. A Europa também
não foi o berço da arte rupestre, como
se pensava anteriormente: a descoberta
de uma caverna na Indonésia abriu as
comportas, provando que o sudeste
asiático já era o lar de um talento
criativo florescente há 45 000 anos.

POR ALISON GEORGE / ©NEW SCIENTIST

34
Uma equipa de

AA OKTAVIANA
arqueólogos da
Universidade de
Griffith revelou que as
cavernas na ilha de
Sulawesi, Indonésia,
escondiam antigos
exemplos da arte
Paleolítica.

35
As descobertas da
caverna de Blombos, na
África do Sul, mostram
os primeiros símbolos,
que foram pintados há
100 000 anos
ladas em ocre vermelho, pintadas numa grande
estalagmite há pelo menos 64 800 anos reve-
lam que os artistas tinham de ser Neandertais,
milénios antes da chegada do Homo sapiens à
Península Ibérica.
Além disso, as pinturas encontradas na In-
donésia refutaram a ideia de que a Europa era
o epicentro da criatividade. Parece claro que
os nossos antepassados estavam a aperfeiçoar
as suas capacidades artísticas muito antes de
Vinte e seis marcas de mãos, gravadas alguns grupos terem migrado para o resto do
em ocre vermelho, rodeiam um javali mundo.
indígena na gruta Leang Petta Kere, na O verdadeiro quebra-cabeças é: porque é que
ilha de Sulawesi. Foram pintadas há a arte rupestre da Idade da Pedra parece estar
pelo menos 39 900 anos. concentrada em poucos lugares. E poderá estar
GETTY

econdida em qualquer outro lugar? Estão agora

E
a ser feitos esforços para traçar os seus vestí-
m 1879, uma menina de oito anos fez gios, com sucesso crescente. Estudos recentes
uma descoberta que abalaria a nos- estão a revelar temas comuns e códigos ocultos
sa compreensão da história humana. partilhados por povos pré-históricos de todo o
Nas paredes da gruta de Altamira em mundo. Decifrando o seu significado, podemos
Santillana del Mar (Cantabria), depa- compreender melhor qual foi a visão da mente
rou-se com alguns desenhos impressionantes pré-histórica.
de bisontes pintados a vermelho e preto. Ain-
da mais surpreendente do que as imagens era a NENHUM OUTRO SER VIVO REPRESENTA PEN-
sua antiguidade: tinham sido feitas há milhares SAMENTOS E IDEIAS SOB A FORMA DE DESE-
de anos pelos nossos antepassados primitivos. NHOS ou símbolos. Não é apenas um impulso
Atualmente, foram já encontradas quase qua- estético, mas também serve como uma forma de
trocentas cavernas por toda a Europa decora- partilhar informação entre gerações. Uma indi-
das com marcas de mãos, símbolos misteriosos cação deste comportamento simbólico muito
e belas imagens de animais, criadas por estes antes da evolução da nossa espécie é uma con-
consumados artistas. cha de 500 000 anos esculpida em ziguezague
As descobertas levaram à crença de que o ta- por um Homo erectus. As primeiras provas do
lento artístico surgiu após a chegada do Homo pensamento artístico no Homo sapiens encon-
sapiens à região há cerca de 40 000 anos, como tram-se na Caverna de Blombos (África do Sul),
parte de uma explosão cultural que refletia o onde foram descobertos padrões geométricos
florescimento da mente humana. Mas as desco- em ocre riscados em blocos, que mostram que
bertas mais recentes desfizeram esta ideia. Para já se estava a experimentar símbolos há 100 000
começar, os seres humanos modernos podem anos atrás. Em 2018, foi também aí descoberto
não ter sido os primeiros artistas na Europa, o desenho mais antigo do mundo, feito com um
conforme revelam as pinturas descobertas na lápis ocre vermelho sobre uma rocha há 73 000
caverna de Ardales (Málaga) em 2018. As pince- anos. E há exemplos de arte pré-histórica nou-
(continua na pág 40)

36
Ehem iam publiuraria Simis, consuam tesunt publici
errituam Pali, uterrae, con nit, qua viti vini vidi vinci

Também em Sulawesi, na caverna de Leang


Tedongnge, foi encontrada a mais antiga
representação artística figurativa da
humanidade: este desenho de um javali
datado de cerca de 45 500 anos atrás.
UNIVERSIDADE DE GRIFFITH

A PRIMEIRA SELFIE
U ma das coisas mais surpreendentes sobre
a arte rupestre mais antiga é o que os pin-
tores deixaram de fora. Nas grutas europeias,
43 900 anos, são as mais antigas figuras co-
nhecidas de pessoas, na arte. “São quase co-
mo um pau, com um corpo semelhante ao hu-
as pessoas representam menos de 3,3 por cen- mano, mas com o que parecem ser cabeças de
to das imagens animais. São também raras no animais”, diz Adam Brumm da Universidade de
Sudeste Asiático. Além disso, enquanto os ani- Griffith na Austrália . “Uma pessoa tem uma ca-
mais são retratados com grande virtuosismo, os beça que parece a cabeça de um pássaro”. Tais
humanos são frequentemente figuras de pau. híbridos são encontrados na arte rupestre pos-
“No Paleolítico, havia muito poucos humanos”, terior, mas a sua presença aqui é significativa.
explica Jean Clottes, pré-historiador. “Viviam “É a mais antiga prova conhecida da capacida-
em pequenos grupos de vinte a vinte e cinco de humana de conceber o sobrenatural, e esse
pessoas, com o grupo seguinte a cerca de 80 é um dos pré-requisitos fundamentais para o
quilómetros de distância . O seu mundo estava pensamento e a crença religiosa”, diz Brumm.
cheio de animais, e eles eram muito mais im-
UNIVERSIDADE DE GRIFFITH

portantes do que os humanos.


Um dos desenhos rupestres mais notáveis
da forma humana encontra-se numa caverna
de pedra calcária chamada Leang Bulu’ Sipong
4 na ilha de Sulawesi, Indonésia. Descreve
pelo menos oito pequenas figuras humanas
com lanças ou cordas caçando dois porcos e
quatro búfalos anões. Pintadas há pelo menos
A maior parte do território africano ainda não
foi explorada arqueologicamente, pelo que
ainda se podem esperar muitas surpresas

38
As pinturas rupestres em Laas Geel na
GETTY

Somalilandia, um território autoproclamado


independente no norte da Somália, foram
descobertas em 2002. Preservam 350
representações humanas e de animais.

39
(continuação da pág 36)
tros locais de África, tais como contas de con- bre secções de imagens de outro modo visí-
chas marinhas com 100 000 anos encontradas veis, e a chamada datação por séries de urânio
na Argélia. mede os níveis de urânio e tório nelas contidos
Os primeiros indivíduos que deixaram o ber- para dar uma data mínima da sua criação. Uti-
ço da humanidade, isto é, África, e migraram lizando esta técnica em sete grutas, os inves-
por todo o mundo devem ter exportado os seus tigadores encontraram 14 imagens, incluindo
talentos criativos com eles. No entanto, du- uma pintura de uma babirusa – um porco na-
rante mais de um século após a descoberta de tivo daquelas ilhas – datada de há pelo menos
Altamira, quase toda a arte rupestre conhecida 35 400 anos, comparável às imagens animais
foi encontrada na Europa. Isso mudou em 2014, mais antigas encontradas na Europa. Outra si-
com uma descoberta incrível no lado oposto do lhueta de uma mão – criada por sobreposição
mundo. na parede e sopro de tinta sobre a mesma – te-
ria pelo menos 39 900 anos, o que a classifica
OS HABITANTES LOCAIS HÁ MUITO QUE SA- como a mão pintada mais antiga conhecida da-
BEM QUE AS CAVERNAS DE CALCÁRIO na ilha quela época.
indonésia de Sulawesi contêm muitas imagens Estes dados abriram a porta a novas desco-
pintadas. Pensa-se que os humanos modernos bertas na Indonésia. Entre estas, uma cena de
tenham chegado à região há cerca de 65 000 caça pintada há pelo menos 43 900 anos atrás,
anos, mas ninguém imaginava que esses dese- que é a representação mais antiga dos humanos
nhos pudessem ser tão antigos, porque parece e de longe a mais antiga peça de arte narrati-
improvável que os quadros sobrevivessem tan- va conhecida – ver caixa, A PRIMEIRA SELFIE,
to tempo num ambiente tropical. Uma equipa página 37. “Quando encontrámos essa ima-
de investigadores liderada por Maxime Aubert, gem, ficámos absolutamente encantados, mas
atualmente ligado à Universidade de Griffith quando percebemos que era tão antiga, quase
(Austrália), desafiou esta ideia usando uma téc- desmaiámos de alegria”, diz Adam Brumm,
nica que está a revolucionar a nossa compreen- também da Universidade de Griffith. Recente-
são da arte rupestre. Com o tempo, as camadas mente, a sua equipa anunciou que uma imagem
de calcita podem lentamente acumular-se so- de um porco que se encontra noutra gruta em

GTRES

40
Uma técnica de melhoramento digital da NASA está
também a ser utilizada para trazer à vista desenhos ou
elementos escondidos a olho nu
Sulawesi data de há pelo menos 45 500 anos, A tecnologia também está a desafiar a nossa
estabelecendo um novo recorde para a arte fi- compreensão da arte rupestre europeia. Um
gurativa pré-histórica. estudo realizado em 2018 por Alistair Pike da
Estas descobertas são o remate para a ideia Universidade de Southampton (Reino Unido)
de que os talentos artísticos nasceram numa em três grutas espanholas – Ardales em Málaga,
eventual explosão criativa na Europa. E a pro- Maltravieso em Cáceres e La Pasiega em Can-
cura de arte antiga no Sudeste Asiático só agora tábria – revelou que uma marca de mão e um
começou. “Encontrámos mais de 300 sítios em símbolo retangular lá encontrados têm cerca
Sulawesi com arte rupestre que é estilistica- de 65 000 anos. Os humanos modernos só che-
mente semelhante e consistente”, diz Brumm. garam à região 20 000 anos mais tarde, levando
E acrescenta: “Na ilha adjacente de Bornéu, há os investigadores a concluir que os Neandertais
ainda mais. Além disso, as pinturas em milha- são possivelmente os autores destas imagens.
res de outras ilhas indonésias ainda não foram Esta alegação foi muito contestada, embora um
datadas. Podemos esperar que em breve surjam estudo recente em Ardales, publicado na revis-
datas mais antigas, porque Aubert é pioneiro ta PNAS, confirme a hipótese. Independente-
numa variação de datação da série de urânio mente de quem foram os primeiros artistas eu-
que utiliza lasers para localizar as primeiras ca- ropeus, sabemos agora que há cerca de 40 000
madas de calcita depositadas numa pintura. As anos existiam dois sítios de arte rupestre em
novas técnicas começam também a apontar a lados opostos da Eurásia.
idade dos achados na Austrália, algo que ante- Apesar de estarem distantes 13 000 quilóme-
riormente era quase impossível. tros, estas manifestações artísticas mostram

GTRES

A caverna de Ardales em
Málaga prova que o
Homo sapiens não foi o
primeiro a empenhar-se
na expressão artística,
mas sim os Neandertais.
As suas pinturas ocres
vermelhas sobre
estalagmites têm mais
de 65 000 anos, de
acordo com um estudo
publicado recentemente.

41
algumas semelhanças notáveis. As imagens são do pequenas e móveis para sentir a necessidade
dominadas por grandes herbívoros desenhados de deixar manifestações pictóricas.
em perfil. As marcas ou silhuetas de mãos são Outra possibilidade é que tenham produzi-
também muito comuns. Além disso, a arte mais do arte, mas que não tenha sobrevivido. Se as
antiga em ambas as regiões já era sofisticada e pessoas desenhavam em peles ou madeira, es-
bem desenvolvida, por isso é provável que este tas imagens já teriam perecido há muito tempo.
estilo tenha sido estabelecido em populações Mesmo nas rochas, a conservação é um proble-
anteriores. “Deve ter uma origem muito mais ma. As cavernas pintadas de França e Espanha
antiga, provavelmente em África”, diz Aubert. são anómalas em comparação com outros luga-
Se assim for, ele acredita que um vestígio de ar- res do mundo, onde a humidade desmorona as
te rupestre anterior à Idade Média poderia ter paredes e a água lava a tinta ou provoca a forma-
ligado o Sudeste Asiático à Europa ao longo das ção de uma camada espessa de calcita, obscure-
rotas migratórias da população. cendo o pigmento. “É provável que o material
mais antigo seja menos visível a olho nu”, diz
ENTÃO PORQUE NÃO FOI ENCONTRADA ESTA Genevieve von Petzinger da Universidade de
ARTE EM FALTA? Uma possibilidade é que nun- Victoria, Canadá. E acrescenta: “No entanto,
ca tenha existido. Pensa-se que o tamanho da existem agora muitas ferramentas de alta tec-
população é um fator chave, uma vez que um nologia que podemos utilizar para o revelar”.
grupo maior é mais susceptível de conceber Uma técnica de realce digital, denominada
e difundir novas ideias. “Se a arte serve para descorrelação, por exemplo, traz à luz elemen-
manter uma sociedade complexa unida, seria tos de desenhos que são quase invisíveis a olho
de esperar que à medida que os grupos crescem nu. Desenvolvida para detetar sinais do espa-
em tamanho ou talvez adquiram mais conceitos ço, tem sido utilizada pela NASA para melhorar
de propriedade de terra e território, são mais as imagens captadas pelo Perseverance, o seu
propensos a representar essa paisagem com veículo de exploração em Marte. Há também
significado”, diz Paul Pettitt da Universidade imagens multiespectrais, que utilizam diferen-
de Durham no Reino Unido. É portanto possí- tes gamas do espectro da luz, do infravermelho
vel que as bandas migratórias fossem demasia- ao ultravioleta, para capturar traços ténues de

Pioneiros da arte australiana


O s seres humanos po-
dem ter chegado à
Austrália há 65 000 anos.
em oito abrigos rupestres em
Kimberley, Austrália Ociden-
tal. Utilizando medições de
Os cangurus têm
sido a marca
Existem milhares de sítios radiocarbono de ninhos de registada da
de arte rupestre, mas datar vespas fossilizadas por baixo Austrália desde
os tempos do
estas obras é extremamen- e por cima das obras de arte, Paleolítico. Esta
te difícil porque a geografia descobriram a imagem mais imagem retrata
faz com que que os minerais antiga conhecida da Austrá- um cenário de
e a matéria orgânica nor- lia: um grande canguru pin- caça encontrado
malmente utilizados para tado entre 17 500 e 17 100 numa caverna no
Parque Nacional
estabelecer a idade sejam anos atrás. de Kakadu.
inexistentes. Em 2021, foi al- É pouco provável que es-
cançado um avanço graças te recorde se mantenha por
AGE

a Damien Finch da Universi- muito tempo, uma vez que


dade de Melbourne e aos co- já existem provas de ima-
legas que trabalham com a gens mais antigas. Por exem- rochoso em Arnhem Land. E
Balanggarra Aboriginal Cor- plo,uma laje decorada com no Kimberley, foi encontrada
poration, representando os carvão que foi desenterrada uma pequena laje de rocha
proprietários tradicionais da em sedimentos com 28 000 pintada de ocre em sedimen-
terra. Eles dataram imagens anos de idade num refúgio tos com 40 000 anos.

42
GETTY

Os cavalos figuram em quase todos os artefactos pré-


históricos encontrados na Europa, e a caverna francesa de
vermelho ocre escondidos atrás de camadas de Chauvet (acima) não é excepção. Abaixo, detalhe de quatro
calcita. A análise espectral dos pigmentos pode equídeos em diferentes posturas, juntamente com bisontes e
obter a receita da tinta utilizada, fornecendo rinocerontes, datando de 31 000 anos atrás.
pistas sobre se foram criadas obras diferentes
GETTY

ao mesmo tempo. Estes métodos sofisticados já


revelaram muitas imagens escondidas da Idade
da Pedra. Por exemplo, um estudo na caverna
Bernoux na região de Dordogne, em França,
que tem sido investigado por arqueólogos des-
de 1932, revelou novas imagens e detalhes, in-
cluindo dois desenhos de mamutes, criaturas
que são muito raras em representações.

COM ESTE CONHECIMENTO, PORQUE NÃO


VOLTAR A PROCURAR EM LUGARES onde
outrora se pensava que não havia nada? O ar-
queólogo Aitor Ruiz-Redondo da Universidade
de Southampton (Reino Unido), na vanguarda
desta busca, foca-se em cavernas onde se sabe
que os primeiros seres humanos viveram. Em
2019, ele e a sua equipa encontraram a pri-
meira arte figurativa das cavernas nos Balcãs,
na caverna croata do Romual. Encontram-se
representados um bisonte e um ibex, bem co-
mo duas figuras semelhantes a seres humanos.
Posteriormente, o arqueólogo, conduziu um
estudo da caverna Kapova nos Urais russos, que

43
Uma multiplicidade de sinais e símbolos
geométricos acompanha as figuras dos
caçadores na Gruta dos Veados em
Salento (Itália). Estima-se que estas
pinturas tenham sido feitas entre 7000
e 8000 anos atrás.
GETTY

revelou uma rara representação de um came- anos, embora até isso seja contestado. Trata-se
lo, um mamute que parece estar a proteger a de quatro pequenas placas de pedra encontradas
sua cria e símbolos gráficos únicos, tais como na caverna Apollo 11 na Namíbia, decoradas com
trapézios invertidos. O trabalho de campo foi imagens de animais desenhadas com carvão e
interrompido pela pandemia de covid-19, mas ocre. Mas a maior parte de África não tem sido
Ruiz-Redondo espera regressar em breve e diz explorada arqueologicamente, pelo que poderia
que há muitas mais imagens por descobrir. Por haver muitas descobertas, diz Eleanor Scerri do
sua vez, foram encontradas pinturas na Romé- Instituto Max Planck para a Ciência da História
nia, incluindo um rinoceronte lanoso de cerca Humana em Jena, Alemanha.
de 30 000 anos atrás — um animal que vivia na Agora que sabemos que a arte rupestre está
região nessa altura. E há pistas tentadoras de mais difundida do que se supunha anterior-
que as imagens da Mongólia poderão ser igual- mente e que apresenta características consis-
mente antigas. tentes em grandes extensões de espaço e tempo,
a questão mais importante é o que significam
“A ARTE RUPESTRE DA INDONÉSIA E DA EU- estas marcas, desenhos e símbolos feitos à mão.
ROPA CENTRAL, ORIENTAL E OCIDENTAL tem Ao longo dos anos, os investigadores têm vindo
características semelhantes”, diz Ruiz-Redon- a desenvolver todo o tipo de ideias: que as ima-
do. Segundo Ruiz-Redondo, poderiam ter uma gens estavam relacionadas com rituais de caça,
origem comum no Médio Oriente, onde os hu- símbolos sexuais ou uma ligação ao mundo es-
manos se estabeleceram pela primeira vez após piritual, que continua a fazer parte integrante
deixarem a África. Por esta razão, ele tem os da vida de muitos caçadores-coletores hoje em
olhos postos ali para futuras explorações. Outros dia. Alguns duvidam que alguma vez descubra-
acreditam que poderíamos investigar um pouco mos. “É frustrante”, reconhece Ruiz-Redondo.
mais profundamente as origens da arte rupestre “Tenho a certeza que significa algo, mas não
em África. Até à data, a mais antiga arte figura- podemos resolver esta questão”. Mas à medida
tiva conhecida no continente tem apenas 27 000 que surgem mais exemplos, alguns são otimis-

44
tas quanto à possibilidade de se decifrar alguma que criou uma base de dados de símbolos grá-
da informação. ficos nas paredes das cavernas na Europa. Ele
Com esse objetivo, Georges Sauvet da Univer- identificou 32 símbolos que são utilizados re-
sidade de Toulouse-Jean Jaurès (França) criou petidamente. Alguns, tais como linhas e pon-
uma base de dados que contém detalhes de mais tos, são comuns e encontram-se na arte mais
de 4700 desenhos, pinturas e gravuras de ani- antiga. Outros, tais como um em forma de
mais encontrados em cavernas em França e Es- pena, têm origem numa região e depois pro-
panha. Ao estudá-los, notou uma tendência sur- pagam-se a outras áreas. O estudo de símbolos
preendente: as pessoas da Idade da Pedra eram colocados uns ao lado dos outros, ou ao lado de
obcecadas por cavalos. Os cavalos são o animal animais aponta para “uma forma de escrita”,
mais representado na arte paleolítica, aparecen- diz Pettitt. “Visualmente, encontro pouca di-
do em 29,5% das imagens, em comparação com ferença entre estas e as primeiras impressões
23,3% para os bisontes e 11,1% para os veados. sumerianas sobre o barro, que são sempre in-
Três quartos dos sítios contêm pelo menos um terpretadas como sistemas de escrita precoce.
cavalo. As outras criaturas são normalmente re- Presumivelmente, estes sinais dizem algo so-
tratadas viradas para a esquerda. “O cavalo pa- bre os animais que são retratados ao lado.
rece ser a exceção”, diz Sauvet. Não só a maioria
deles está virada para a direita, como são fre- CONTUDO, TAL COMO ACONTECE COM OS
quentemente retratados maiores do que outros SÍMBOLOS QUE AS PESSOAS utilizam hoje
animais e em posições em dia para comunicar,
mais proeminentes nas poderiam ter significa-
cavernas. As escava-
ções mostram que estes
Os sinais abstratos nas dos diferentes para os
diferentes grupos que
quadrúpedes não eram
uma fonte importante
paredes de algumas os utilizavam. Podem
também variar de acor-
de alimento para estas
pessoas, pelo que o seu
grutas poderiam ser do com o seu contexto,
diz von Petzinger. Por
fascínio por eles deve ter
tido outras razões.
interpretados como exemplo, o humilde
ponto, que se encontra

ENTRETANTO, DO OU-
uma forma primitiva na maior parte da arte
rupestre europeia. “Em
TRO LADO DO MUN-
DO, UM ESTUDO CON-
de escrita algumas grutas, eles se-
riam marcadores de ca-
DUZIDO POR YOSUA minhos. Noutros casos,
PASARIBU da Universi- poderiam ser algum
dade da Indonésia em 23 cavernas no Sulawesi tipo de sistema de contagem”, acrescenta ele.
do Sul revelou que cerca de 80% dos animais Podem ser agrupados para formar o que parece
representados eram porcos, especificamente ser uma representação de uma constelação ou,
uma espécie endémica da ilha: o javali de Sula- sobre um animal, podem representar uma fe-
wesi (Sus celebensis). rida. “É um caractere muito simples com uma
Igualmente fascinante é a ausência de ani- enorme quantidade de informação nele embu-
mais com que estes povos se encontravam tida”. O mesmo é válido para os sinais comple-
frequentemente, tais como lobos e raposas na xos quadriláteros encontrados em cavernas no
Europa, e os pequenos coelhos que formavam norte de Espanha.
uma grande parte da sua dieta. “A arte paleo- Seremos alguma vez capazes de saber ao cer-
lítica não é uma imagem do ambiente, mas do to quais as mensagens que estes artistas da Ida-
mundo da vida destes antigos caçadores-cole- de da Pedra estavam a tentar transmitir? “Tal-
tores”, diz Sauvet. “É uma seleção cultural dos vez não”, diz von Petzinger. “Mas podemos ser
animais que os rodeavam”. capazes de extrair alguma informação nova”,
Traduzir as marcações gráficas é ainda mais acrescenta. E quantos mais exemplos do seu
complicado porque são abstratas. As análises trabalho descobrirmos, mais pistas teremos
estatísticas podem também lançar alguma luz sobre a forma como as suas mentes funciona-
sobre estes códigos da Idade da Pedra. “Pode- vam. “Cada imagem que podemos encontrar é
mos encontrar uma forma cientificamente só- uma peça crucial do puzzle”, diz Von Petzinge.
lida de abordar a questão”, diz von Petzinger, “É uma época emocionante.” e

45
Cavalo esculpido em
AGE

marfim de mamute. Este


fantástico artefacto da
Idade da Pedra, que me-
de apenas 5 cm, foi
encontrado, em 1931,
na caverna Vogelherd na
Alemanha.Tem cerca de
35 000 anos de idade.

46
Objetos do
paleolítico
As famosas pinturas murais em grutas não eram as únicas
manifestações artísticas da pré-história. O homem paleolítico
foi também um precursor da escultura e um hábil escultor de
figuras com todo o tipo de materiais e intenções, bem como de
objetos estéticos para a vida quotidiana. Passamos agora em
revista os marcos da arte móvel daquela época.
POR MARTÍ MAS CORNELLÁ
Professor do Departamento de Pré-História
e Arqueologia da UNED

47
A
rte móvel é a designação atribuída ropa e no norte da Ásia. A sua descoberta deve-
a todos os objetos pré-históricos -se ao investigador francês Edouard Lartet, que
de natureza artística que podem em 1864 encontrou na caverna de La Madelaine
ser transportados de um lugar pa- (Dordogne, França) um fragmento de um dente
ra outro. Em contraste com a arte de mamute sobre o qual foi representada uma
parietal ou rupestre, que se desenvolve nas pa- imagem do mesmo animal.
redes dentro de cavernas ou ao ar livre e, por-
tanto, fixa em lugares permanentes, os objetos CLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA
móveis podem ser movidos por seres humanos e Os elementos integrados em artefactos paleolí-
mantidos em movimento. Esta definição abran- ticos podem ser classificados em duas categorias
ge uma multiplicidade de diferentes objetos de básicas: objetos funcionais e não funcionais:
diversos tamanhos, materiais, usos e complexi- - Objetos funcionais
dades, desde ferramentas e utensílios decorados Objetos que foram utilizados na vida quotidia-
com motivos figurativos e abstratos ou adornos na, na sua maioria relacionados com atividades
pessoais, até figuras e vultos representativos de caça, mas também com atividades domésti-
de zoomorfos e antropomorfos masculinos e cas, recreativas ou artísticas.
femininos. A maioria dos objetos foram encon- -Azagaias: pontas que eram colocadas nas
trados em contextos arqueológicos e regista- extremidades dos projéteis. As suas decorações
dos ao longo da pré-história, mas queremos localizam-se nas lanças e são geralmente bas-
concentrar-nos naqueles feitos por caçadores- tante simples. Podem ter sido usadas como mar-
-coletores-pescadores no Paleolítico Superior. cas para identificar as peças retiradas por cada
A arte móvel paleolítica desenvolveu-se entre caçador, como ranhuras para introduzir veneno
aproximadamente 35 000 e 10 000 AP (antes do ou simplesmente como ranhuras para facilitar o
presente) e encontra-se na maior parte da Eu- seu manuseamento.
AGE

Pontas de arpão feitas a partir


de chifres. Encontram-se
preservadas no Museu
Britânico, Londres.

48
-Arpões: estes teriam a mesma função que
as azagaias, mas diferem destas na medida em
que têm ganchos laterais. Colocados na ponta
de um pau, manter-se-iam unidos a este por
meio de um cordão que permitiria recuperar
a peça caçada ou pescada. As suas decorações,
também simples, têm sido interpretadas como
as das azagaias.
-Propulsores: é geralmente aceite que foram
utilizados para alcançar uma maior distância e Deusa de Coldovigo.
força ao atirar projéteis. Muitos são decorados Proveniente da re-
no extremo, onde a lança se apoia, e são decora- gião de Veneto no
dos com motivos figurativos esculpidos. norte de Itália.
-Bastões perfurados: são peças feitas de chi-
fre de veado com uma ou mais perfurações. A
sua função é incerta; podem ter sido cajados de
comando, lançadores de azagaias ou hastes de
madeira, ferramentas para fazer cordas, etc. As
suas decorações podem representar cenas reais
envolvendo homens e animais.
-Varas/ canas: são peças alongadas com um
lado convexo e o outro plano. Podem ter sido
usadas como armas de arremesso, embora a sua
AGE

função não seja totalmente clara. As suas deco-


rações são geométricas.
-Agulhas: estas parecem não ter tido outra -Utensílios artísticos: feitos a partir de seixos,
utilização que não fosse confecionar vestuário. poderiam ser trituradores, espátulas e conchas
Têm decorações muito esparsas. relacionadas com a produção de pigmentos para
-Lamparinas: invariavelmente feitas de pe- pintura. As suas decorações são muito escassas.
dra, podem ser em circuito aberto ou fechado. -Lápis de hematites: são fragmentos de óxido
A gordura animal tem sido sugerida como com- de ferro cuja forma foi modificada para pintura.
bustível. As suas decorações são normalmente Podem estar decorados com figuras e sinais zoo-
geométricas. mórficos.
-Espátulas: a sua função é controversa; foram - Objetos não funcionais
provavelmente utilizadas como utensílios de Estes são ornamentos pessoais ou objetos de
cozinha ou como alisadores para peles de cur- natureza ritual e ideológica.
timento. Muitas foram produzidas em forma de -Braceletes, contas e missangas: feitas de to-
peixe e as suas decorações são geralmente com- do o tipo de materiais e decoradas com motivos
postas por motivos geométricos. diversos, por vezes muito elaborados.
-Flautas: são tubos com furos alinhados. A -Pendentes: objetos com perfurações para
sua utilização como instrumentos musicais pa- pendurar num fio. A sua decoração pode ser
rece ser indiscutível. As suas decorações são geométrica ou figurativa e há mesmo alguns
normalmente linhas entre as perfurações. caninos esculpidos na forma de um animal. Po-
-Tubos: parecem ter sido utilizados como pa- dem ter tido um valor puramente ornamental,
lhinhas para absorver ou expelir líquidos, por ou podem ter sido utilizados para ostentação ou
exemplo, na pintura em negativo de mãos que hierarquização.
se encontram nas paredes das cavernas. Foram -Rodetes: são formas circulares de alguns
também interpretados como estojos ou simples centímetros, com uma perfuração no centro e
ornamentos corporais. A sua decoração é geo- feitas a partir de escápulas. São decorados em
métrica com diferentes graus de complexidade. um ou ambos os lados com motivos geométricos

A maioria das peças deste estilo artístico são


provenientes da Europa e do norte da Ásia

49
Contas
funerárias
encontradas
nas grutas de
zam-se pelos seus abundantes atributos sexuais
Balzi Rossi na e pelo pouco interesse dos autores em retratar os
Ligúria, seus rostos. Muitas dessas figuras foram desco-
noroeste de bertas em locais distantes daqueles onde foram
Itália. produzidas, o que indica que havia um elevado
grau de comunicação entre os grupos humanos
paleolíticos. Encontram-se numa área geográfi-
ca muito vasta, desde a França até à Sibéria.
-Plaquetas: são pequenas pedras planas de-
coradas por gravura ou pintura com motivos
zoomórficos, antropomórficos e geométricos,
por vezes em combinação, que podem atingir
um elevado grau de variedade. A sua semelhan-
ça técnica e formal com as figuras representadas
nas paredes das cavernas tem levado os pré-his-
toriadores a acreditar que podem ter sido esbo-
ços preliminares ou esboços de aprendizagem,
embora possam ter tido uma grande variedade
de funções.
-Ossos gravados: são fragmentos de ossos
simples que foram decorados com todo o tipo
de motivos, utilizando tanto gravura como pin-
AGE

tura, técnicas que podem até ter sido utilizadas


simultaneamente no mesmo objeto. A sua inter-
ou zoomórficos. Foram-lhes atribuídos vários pretação é semelhante à das plaquetas.
usos, tais como botões, distintivos, instrumen-
tos sonoros e mesmo transferidores de ângulo. MATERIAIS DOS SUPORTES
-Bramadeiras: são ossos planos, alongados, A arte móvel era realizada principalmente em
em forma de fuso, com uma perfuração numa suportes de osso, chifre, marfim, dentes, pedra,
das extremidades. São normalmente decorados concha, âmbar, barro e hematite, embora tam-
com motivos geométricos simples e complexos. bém possam ter existido objetos feitos de mate-
São assim chamados porque, quando são atados riais perecíveis tais como madeira ou couro. Ma-
com um cordel através da perfuração, ao ro- teriais orgânicos tais como osso, chifre, marfim
dá-los, produzem um som muito caraterístico ou dentes têm a particularidade de poderem ser
semelhante ao mugido de um animal, embora datados. Foram encontrados materiais prove-
também possam ser simples amuletos. nientes de centenas de quilómetros de distância
-Contornos recortados: são obtidos a partir do local onde foram encontrados, o que cons-
de recortes de ossos. Representam geralmente titui também prova de contactos para o inter-
cabeças de animais. Têm uma ou duas perfura- câmbio destas matérias-primas. Os materiais
ções, nas orelhas e narinas, pelo que se pensa selecionam-se de acordo com os tipos de objetos
que poderiam ser cosidos no vestuário, funcio- mais adequados para a sua confeção:
nando como distintivos. -Ossos de herbívoros para azagaias, arpões,
-Figuras de vulto redondo: representam ani- lanças, varas, agulhas, espátulas, pingentes, ro-
mais e figuras antropomórficas, masculinas e detes, bramadeiras, contornos recortados, es-
especialmente femininas, como híbridos ho- culturas de vulto redondo e ossos gravados.
mem-animal. Todas são de pequena dimensão. -Ossos ocos de lebre ou de pássaro para flautas
As esculturas zoomórficas são cavalos, veados, e tubos.
cabras, bisontes, auroques, mamutes e leões. - Chifres de veado, para azagaias, arpões, pro-
Os antropomorfos masculinos são raros. São pulsores, bengalas, paus, varas, agulhas, espá-
identificados por características como o falo ou tulas, bramadeiras e estatuetas redondas.
a barba e são por vezes apresentados sob forma -Marfim para azagaias, agulhas, pulseiras,
zoomórfica, ou seja, como uma mistura de ho- contas, missangas, pingentes, bramadeiras e es-
mem e animal. As figuras femininas, por outro tatuetas redondas.
lado, são muito mais abundantes. São conven- -Dentes para pingentes.
cionalmente apelidadas de venus e caracteri- -Pedras para candeeiros, ferramentas artísti-

50
Na região de Cantábria não existem representações de
animais de clima frio, tais como mamutes e renas
cas, braceletes, missangas, contas, pingentes, renas e bisontes. O estilo é mais naturalista do
figuras redondas e plaquetas. que na costa cantábrica e a escultura é muito
-Conchas para pingentes. mais abundante, especialmente as figuras hu-
-Ambar para pingentes e estatuetas redondas. manas, uma vez que muito poucos exemplos são
- Argila para estatuetas de vultos redondos. conhecidos do norte de Espanha. Os sítios fran-
-Hematite para lápis. ceses emblemáticos incluem La Madelaine, Mas
d’Azil, Lascaux, Les Roches e La Roque. Na zona
TÉCNICAS DE EXECUÇÃO cantábrica, os veados, cavalos e cabras consti-
As técnicas de execução de arte móvel são os tuem a maioria, e há uma ausência de fauna fria,
procedimentos utilizados para pintar e gravar os como mamutes, rinocerontes ou renas. O estilo
motivos artísticos nos vários tipos de objetos ou é mais esquemático. Os locais interessantes são
para esculpir as estatuetas. Em raras ocasiões, a as grutas de Tito Bustillo e El Buxu, nas Astúrias;
pintura e a gravura são combinadas na mesma Altamira, El Pendo e El Castillo, na Cantábria; e
peça. Os métodos utilizados para conseguir es- Ekain, no País Basco.
tas decorações são bastante simples e dependem
em grande medida dos materiais dos suportes.
AGE

A pintura, que é muito rara em comparação


Homem-leão
com a gravura, é utilizada em superfícies de pe-
de Stadel
dra e osso. Os seus autores utilizavam pigmentos (Alemanha),
vermelhos que eram aplicados com pincéis pri- uma escultura
mitivos. A gravura era geralmente realizada com em marfim de
buril ou lascas de sílex e, dependendo da dureza mamute de
do suporte (osso, chifre, pedra, etc.), eram ob- 29 cm de
tidos resultados diferentes. Podem ser distin- altura datada
guidos traços simples, duplos ou múltiplos, por do Paleolítico
vezes mal permitindo um vislumbre do suporte Superior.
(estriado). Uma técnica de gravação caracterís-
tica é conhecida como arame farpado, que con-
siste em fixar pequenos traços perpendiculares
ao longo de uma única linha. Outras técnicas
estariam ligadas à preparação do suporte para
moldar a peça, ou seja, para cortar, perfurar,
polir ou modelar em barro.
Quanto à produção dos objetos redondos,
a técnica utilizada seria a percussão direta ou
indireta. Para dar volume às peças, seriam uti-
lizados cortes, abrasão e raspagem, deixando a
técnica de gravura a cargo do buril, para os de-
talhes finais.

DISPERSÃO GEOGRÁFICA
A arte móvel pode ser encontrada numa área
geográfica muito vasta, desde a Península Ibé-
rica até ao Oceano Pacífico. Foram identificadas
cinco zonas:
- Zona franco-cantábrica
Corresponde ao norte de Espanha e ao sul de
França. Esta é a área que tem proporcionado a
maior quantidade de artefactos. Do lado fran-
cês, predominam as representações de cavalos,

51
Arpão do período
magdaleniano da
caverna de Rascano em
Mirones (Cantábria). É
feito de osso.

AGE

- Zona mediterrânica ursos, lobos, leões e aves, que são muito nume-
Cobre a bacia norte do Mediterrâneo, desde o rosos na povoação ucraniana de Mezhirich.
Levante espanhol até aos Balcãs. Caracteriza-se - Zona Siberiana
pela simplificação das representações zoomórfi- É menos conhecida e estende-se desde os
cas, cujas tipologias são reduzidas e estão limitadas Urais até ao Oceano Pacífico. O local mais signi-
à fauna temperada. O local mais significativo é a ficativo é em Irkutsk, na Sibéria, com estatuetas
Gruta de Parpalló (Gandía, Valência), onde foram estilizadas de pássaros de marfim e numerosas
encontradas mais de 5.000 placas gravadas e pin- estatuetas femininas chamadas vénus de Malta.
tadas com sinais geométricos e figuras zoomórfi-
cas estilisticamente comparáveis às encontradas ORIGENS E EVOLUÇÃO: CRONOLOGIAS
na área cantábrica. Este é um dos sítios paleolíticos Para além das possibilidades de datação ineren-
mais importantes da Europa, com uma sequência tes aos objetos orgânicos, o facto de grande parte
que vai desde o Gravetiano até ao Magdaleniano. da arte móvel estar localizada em contextos ar-
- Zona da Europa Central queológicos e estratigrafias cronologicamente
Localiza-se nas bacias dos rios Reno e Danúbio definidas também permite que esta possa ser
e é o exemplo mais antigo de arte móvel. A sua bem datada. Além disso, graças às suas deco-
principal característica é a predominância da es- rações, podem ser estabelecidos paralelismos
cultura em materiais como o marfim, osso, chifre técnicos e formais com a arte parietal, o que os
e barro cozido. Destacam-se os sítios de Voge- dota de um inestimável valor de referência fós-
lherd e Hohle Fels na Alemanha e Dolni Vestonice sil. Tomemos, por exemplo, a técnica dos traços
na República Checa, bem como o importantíssi- emparelhados associados com o Solutrense ou
mo sítio alemão Magdaleniano de Gönnersdorf. as posteriores com traços múltiplos sombreados
Uma imensidão de placas gravadas com figuras de que são indubitavelmente atribuídos ao Magda-
mamutes, cavalos, renas, rinocerontes, bisontes, leniano do Cantábrico Inferior. Por conseguinte,
auroques, aves, sinais geométricos e mais de 400 pode-se dizer que as cronologias estabelecidas
figuras humanas femininas foram aí encontradas. para a arte móvel são muito mais fiáveis do que
- Zona da Europa de Leste as aplicadas à arte rupestre.
Abrange toda a planície russo-ucraniana. Ca- As peças mais antigas, cerca de 35 000 AP, foram
racteriza-se pela preponderância de esculturas encontradas em sítios da Europa Central e cor-
redondas em marfim ou calcário, representando respondem ao período Aurignaciano. Destaca-se

52
Este objeto magdaleniano feito de
chifre de rena retrata um bisonte que
vira a cabeça. É da gruta Tursac em
Dordogne (França).

AGE

a caverna Vogelherd (Alemanha), com estatuetas No Solutrense (cerca de 20 000 - 17 000 AP),
feitas principalmente em marfim com represen- a produção de arte móvel diminuiu considera-
tações zoomórficas (cavalos mamutes, leões...). A velmente e foi reduzida a alguns objetos como
descoberta de uma pequena venus na caverna de pingentes, plaquetas, como os encontrados no
Hohle Fels (Alemanha) juntamente com alguns local de Parpalló (Valência) e dentes perfurados,
paus perfurados e uma flauta, assim como o famo- como a ave esculpida numa presa de urso das
so leão de Hohlenstein-Stadel (Alemanha), datado grutas da caverna de Buxu (Astúrias).
de 32 000 AP e feito em marfim de mamute, é tam- Por outro lado, na fase seguinte, a Magdalenia-
bém um feito notável. Mencionaremos também na (17 000 - 10 000 AP), assistimos a uma grande
outras flautas, entre as quais as de Les Roches e La explosão de elementos de tipologias muito va-
Roque (França) de apreciável conceção. riadas. Grandes quantidades de objetos pessoais,
Ao período seguinte, o Gravetiano (25 000 - contas de conchas, colares de marfim ou pedra,
20 000 AP), corresponde o sítio checo de Dolni ferramentas profusamente decoradas, tais como
Vestonice, onde foram encontradas estatuetas propulsores com esculturas arredondadas na
de renas, mamutes, leões e rinocerontes, prin- extremidade para envolver a haste, paus perfu-
cipalmente em marfim, algumas com pequenas rados, azagaias, arpões, omoplatas de veado com
perfurações, indicando que podem ter sido usa- decoração zoomórfica, tais como cervos e cervas
das como pingentes, assim como várias flautas com linhas estriadas representando a pelagem,
e uma extraordinária estatueta de Vénus. Este é característica, como já foi mencionado, da região
o período em que as figuras humanas femininas cantábrica, esculturas arredondadas em marfim,
estavam no seu auge, um facto que é descrito chifre, âmbar ou pedra. Há também decorações
noutro artigo desta edição. As mais conhecidas de zoomorfos invulgares na arte parietal, tais co-
são as vénus de Willendorf (Áustria), Lespugue, mo tartarugas, insetos e anfíbios. Algumas das
Brassempouy e Laussel (França) e Grimaldi (Itá- peças mais destacadas deste período são as aza-
lia), entre outros. gaias e arpões de Altamira (Cantábria), a azagaia,

O período magdaleniano registou uma explosão de todo o tipo


de objetos pessoais, tais como colares, bengalas e azagaias

53
Uma rapariga em
frente a uma grande
réplica da Vénus de
Brassempouy, uma
estatueta francesa
cuja original –
esquerda, em baixo
– mede 3,65 cm.

AGE
molir edifícios teóricos anteriores a fim de cons-
truir novos edifícios mais de acordo com as cor-
rentes de pensamento predominantes na altura
em que foram articulados. As primeiras propos-
tas do século XIX, baseadas em pressupostos eu-
rocêntricos e evolucionistas que defendiam uma
motivação puramente estética, foram seguidas
por outras baseadas na etnologia, totemismo e
magia simpática. Por outro lado, a necessidade
da ideia de Deus ser intrínseca ao ser humano
desde o início levou a Igreja Católica a contra-
riar postulados profanos, e as suas mentes mais
ARCHIVO TK

privilegiadas puseram-se à procura de provas


irrefutáveis para demonstrar a origem divina da
espiritualidade. Assim, a motivação para a arte
tornou-se religiosa e os espaços artísticos come-
o propulsor, o rodete e o cavalo de Mas d’Azil çaram a ser definidos como santuários, embora
(França), o pau perfurado da caverna de El Pendo outros aspetos interessantes como a importân-
(Cantábria), as agulhas e contas de Parpalló (Va- cia da documentação ou a equivalência entre a
lência), a lamparina de Lascaux (França) e a bra- arte parietal e o registo arqueológico, tenham
madeira de La Roche de Boril (França). sido também considerados. Na década de 1960,
Finalmente, iremos abordar a fase final do a libertação sexual deu origem a propostas que
Paleolítico, o Epipalaeolítico, na qual encon- deram conotações eróticas à arte, e a ortodo-
tramos pingentes gravados, plaquetas, azagaias xia estruturalista e métodos estatísticos foram
e arpões, figuras zoomórficas e, sobretudo, as também aplicados à arte rupestre. Finalmente,
pedras pintadas com motivos geométricos co- o impacto social dos narcóticos nos anos setenta
nhecidos genericamente como “azilienses”, aos e oitenta estimulou propostas em torno de esta-
quais a gruta Mas d’Azil também dá o seu nome. dos de consciência alterados, práticas xamâni-
cas e efeitos cénicos.
PROPOSTAS INTERPRETATIVAS Apesar da controvérsia, qualquer uma des-
Acerca da arte paleolítica têm corrido “rios de tas propostas interpretativas poderia ser par-
tinta”! Algumas teorias apenas procuraram de- cialmente aceite através de uma abordagem

54
desapaixonada. Valo-
res estéticos, aspectos
Teriam uma intenção que parece certo é que
estes objetos, uma vez
de natureza totémica e
aspectos relacionados
estética, ritual, seriam decorados, adquiriram
uma singularidade em
com a caça e a sua pro-
piciação, fundos ritua-
símbolo de estatuto? relação aos restantes,
uma vez que se torna-
lísticos e sexuais, ordem
na disposição das figu-
Provavelmente, tudo ram únicos e perfeita-
mente identificáveis,
ras, traços estilísticos de
cada período, realidade
isto em simultâneo tanto para os seus pos-
suidores como para os
emulada e transforma- demais. É possível que
da, arranjos cenográficos... Tudo isto pode ser a sua proliferação no período magdaleniano seja
percebido quando se analisa a arte paleolíti- um reflexo de sociedades que se tinham tornado
ca. E tendo em conta outras abordagens que a muito mais complexas, hierárquicas e competi-
consideram como uma evocação do ambiente tivas, nas quais os objetos de prestígio e a acu-
e das crenças, como expressão de modos de vi- mulação de bens eram símbolos de ostentação,
da, como argumento de legitimação e prestígio, de estatuto individual dentro do grupo, e po-
como referência de coesão social ou como meio diam ser utilizados como elementos de troca.
de transmissão intergeracional de informação, Em qualquer caso, quer tenha tido um carácter
poder-se-ia perguntar se as diferentes teorias prático ou transcendente, quer tenhamos ou não
sobre o seu significado não serão simplesmente razão nas nossas avaliações interpretativas, a arte
visões parciais de uma realidade multifacetada. primitiva, mais do que quaisquer outros vestígios
A arte pré-histórica em geral e a paleolítica arqueológicos e apesar dos milénios passados, li-
em particular são pois versáteis, uma vez que o ga-se direta e imediatamente ao nosso patrimó-
mesmo repertório iconográfico pode ser utiliza- nio coletivo, ao nosso passado ancestral. Imagens
do para expressar uma grande variedade de con- eternas que, através do tempo, nos identificam
ceitos, mas são também versáteis porque permi- com os mesmos anseios, necessidades, medos,
tem diferentes interpretações dependendo do convicções, expetativas, inseguranças, aspira-
meio (no caso dos da arte móvel de que estamos ções, paixões, sonhos, desejos, interesses, ambi-
a tratar), das técnicas e dos temas. Pode portan- ções, preocupações e incertezas. Arte, o territó-
to aceitar-se que a arte pré-histórica tenha tido rio exclusivo da sensibilidade humana. e
um carácter essencialmente multifuncional e
que tenha servido para expressar não uma, mas
AGE

muitas facetas da vida.


A arte móvel é talvez o produto mais elabo-
rado da sociedade que a concebeu, uma vez que
combina o repertório gráfico com as diferentes
indústrias. É o melhor exemplo da adaptabilida-
de da iconografia, do seu entrelaçamento com
as ocupações de subsistência e o comportamen-
to social. No entanto, o longo período de tempo
durante o qual estes objetos foram fabricados e
a sua diversidade tecnológica e morfológica tor-
nam impossível a sua interpretação como um
todo, dado que obedecem a diferentes fazeres,
motivações e significados. Como vimos, foram
propostas diferentes funções para cada peça,
mas também devemos ter em conta que nem
todas foram decoradas com motivos artísticos.
Então porque é que algumas foram decoradas? O
que é que tinham de tão especial? Qual era o ob-
jetivo de as decorar? Havia uma relação intrín-
seca entre as decorações e os próprios objetos?
Estas são perguntas para as quais provavel- Pendente em marfim de mamute encontrado na caverna de
mente nunca encontraremos uma resposta. O Stajnia (Polónia). É a peça de joalharia mais antiga da Eurásia.

55
Vale do Côa,
território de
memória
As descobertas recentes de vestígios e de novas rochas
gravadas, confirmam a importância da região artística
do Côa: janela aberta sobre o passado e preservação
de dados essenciais para o nosso conhecimento das
primeiras produções gráficas enquanto suportes
de memória das sociedades dos últimos caçadores
recolectores da era glacial na Península ibérica.

POR THIERRY AUBRY Responsável técnico-científico da Côa Parque, Fundação para a Salvaguarda e
Valorização do Vale do Côa. Rua do Museu. 5150-610 Vila Nova de Foz Côa, Portugal

56
As gravuras

THIERRY AUBRY
picotadas e
sobrepostas que
representam
cavalo e cabra-
montês da rocha
nº6 da Penascosa
constituem um
exemplo da fase
mais antiga do
ciclo artístico do
Vale do Côa.
A
descoberta de traços profundamen- lógos tomaram consciência que foram produzi-
te gravados que representam um das e podiam conservar-se produções gráficas
cavalo, num afloramento rochoso paleolíticas realizadas fora das grutas. Na década
exposto à luz natural, perto do Rio de 90 do século passado, mais rochas gravadas,
Douro e da aldeia de Mazouco (Frei- realizadas na superfície de afloramentos rocho-
xo de Espada à Cinta) e a sua atribuição ao Pa- sos expostos diretamente à luz solar, são des-
leolítico (mais de 12 000 anos), representa um cobertas e divulgadas, em Espanha e num sítio
ponto de viragem na arqueologia, e não só na arqueológico do sudeste da França. Os animais
portuguesa. Desde a segunda metade do século figurados apresentavam as mesmas convenções
dezanove, os primeiros arqueólogos começaram de representação e temáticas que as pinturas e
a descobrir alguns objetos em França que osten- gravuras encontradas nas grutas e nos abrigos
tavam gravuras de animais de climas mais frios rochosos em França e Espanha e não tinham pa-
do que o atual, entretanto extintos (Mamute, ralelo com as pinturas esquemáticas atribuídas à
renas, …). Porém, estes objetos não eram con- Pré-história recente ou as gravuras proto-histó-
siderados como uma produção artística. Foi no ricas já conhecidas nestas regiões.
norte de Espanha, em 1879, que a descoberta do
teto pintado da gruta de Altamira, revelou que ARTE PALEOLÍTICA AO AR LIVRE VERSUS BAR-
os caçadores recolectores paleolíticos tinham RAGEM. Em 1991, durante a construção de uma
capacidades cognitivas e estímulo social para barragem, são descobertas outras representa-
produzir também formas pintadas e gravadas, ções de animais com o mesmo estilo na super-
desta vez nas paredes das grutas. Todavia, novas fície de rochas ao ar livre nas margens do baixo
descobertas realizadas em grutas em França, Es- Côa. Em novembro de 1994 é divulgada na im-
panha e Portugal, pareciam demostrar que a arte prensa nacional esta descoberta, constituindo
paleolítica estava diretamente associada à au- outro momento fulcral no nosso conhecimento e
sência de luz natural, às paredes das cavernas e possível compreensão da arte paleolítica.
ao simbolismo destes ambientes. Depois da pu- A divulgação da descoberta ao grande pú-
blicação do cavalo do Mazouco, alguns arqueo- blico provocou uma intensa discussão sobre o

Trabalho de remonta-
gem, no Museu do
Côa, dos fragmentos
da rocha gravada nº9
encontrados durante
a escavação em fren-
te da rocha nº9 do
Fariseu.
THIERRY AUBRY
Entre várias gravuras
sobrepostas destaca-se
a representação de uma
cabra-montês na rocha
nº5 da Penascosa.
THIERRY AUBRY

Os artistas do Côa utilizaram várias técnicas de gravura


(picotagem, abrasão, incisão,…) para representar os animais
que viviam na região durante o Paleolítico Superior

impacto económico imediato da eventualida- rupestre paleolítica pré-histórica, distribuída


de de parar uma obra já iniciada e a necessária numa área de 200 km2.
mudança de estratégia para o desenvolvimento
regional e nacional que implicava a decisão de O PARQUE ARQUEOLÓGICO DO VALE DO
parar a construção da barragem e de preservar CÔA. Assim, o Vale do Côa constitui um lugar
as gravuras in situ. Foi questionada a validade único por apresentar um ciclo artístico que se
do método que consiste na comparação das con- estende desde o Paleolítico Superior até à épo-
venções de representação utilizadas para a rea- ca moderna. Atualmente, foram inventariadas
lização das gravuras ao ar livre com pinturas a cerca de 1300 rochas, dais quais metade destas
carvão datadas pelo método do radiocarbono ou apresentam motivos que podem ser datados de
com objetos decorados, encontrados em níveis mais de 12 000 anos. Os sítios dispersam-se ao
de ocupação datados, para poder definir a ida- longo de cerca de 20 km do Rio Côa e de 10 km
de das gravuras do Côa e das outras descobertas do Rio Douro, a jusante e montante da foz do
realizadas depois do cavalo de Mazouco. Ultra- Côa. Os trabalhos de prospeção, sondagens e
passado o triste episódio de tentativa de datação escavação desenvolvidos antes e depois da cria-
direta das gravuras do Vale do Côa por métodos ção do Parque revelaram também a existência
inadequados com o objetivo anunciado de mi- de dezenas de acampamentos atribuíveis ao Pa-
nimizar a sua antiguidade, no início de 1996 o leolítico Superior, mas também, mais recente-
governo português, atendendo aos argumen- mente, ao Homem de Neandertal. A existência
tos dos arqueólogos e à opinião pública, decide destes sítios arqueológicos que constituem um
abandonar a construção da barragem. Como contexto para a arte paleolítica do Côa forneceu
consequência desta decisão é criado o Parque respostas claras ao argumento avançado contra
Arqueológico do Vale do Côa com o objetivo de a cronologia da arte, no momento da descober-
estudar, preservar e mostrar ao público a arte ta, enquanto alguns questionavam a ausência

59
Visita guiada às
JOSÉ PAULO RUAS

gravuras do sítio da
Penascosa.

de sítios de habitat contemporâneos da arte, tituem os panéis gravadas, muitas vezes sobre-
nesta região. postas ou realizadas por traços finos dificilmente
Desde 1996, cumprindo com a sua missão de percetíveis numa primeira abordagem, e tiram
divulgação, o Parque Arqueológico do Vale do partido do trajeto até aos sítios para apresentar
Côa organiza visitas, unicamente acompanhadas outros elementos de interesse patrimonial, na-
por guia, em viaturas todo-o-terreno, na Cana- tural e cultural. A partir de 2020 o sítio do Fari-
da do Inferno e na Ribeira de Piscos, aos quais se seu pode ser visitado de caiaque, desde a Canada
acede a partir do Museu do Côa e à Penascosa, a do Inferno. Como consequência da posição na
partir do centro de receção de Castelo Melhor. vertente, da orientação dos painéis e da perda do
Os guias utilizam fichas explicativas que têm co- contraste dos traços frescos com a rocha ao lon-
mo função ajudar a leitura das figuras que cons- go de milhares de anos de exposição, os horários

Visita guiadas às
JOSÉ PAULO RUAS

gravuras do sítio de
Ribeira de Piscos.

60
das visitas são escolhidos em função da melhor
luminosidade natural, rasante, para potenciar o
contraste cromático entre o traço e a rocha, fa-
cilitando a visualização e leitura das diferentes
figuras que compõem os painéis gravados.

UM VALOR PATRIMONIAL EXCECIONAL. A arte


do Vale do Côa, o mais importante conjunto de
arte rupestre paleolítica ao ar livre conhecido no
Mundo, é integrada em 1998 na lista do Patrimó-
nio Mundial pela UNESCO, como sítios de arte

JOSÉ PAULO RUAS


pré-históricos que, em 2010, se estendem ao sí-
tio de Siega Verde, em Espanha, sítio distante de
cerca de 60 km. No mesmo ano, um pouco mais Uma das 85 placas de xisto gravada por incisão fina, descober-
de uma década depois da criação do Parque, é ta na camada arqueológica datada de 12.000 anos no sítio do
inaugurado o Museu do Côa, da autoria dos ar- Fariseu. Apesar da falta da cabeça deve provavelmente repre-
quitetos Tiago Rebelo e Camilo Pimentel, no topo sentar uma cabra-montês.
de uma colina situada entre a confluência do Rio
Côa e do Douro, usufruindo de uma vista sin-
gular. No Museu, a exposição permanente tem deixando, no entanto, de se debruçar nos outros
como objetivo fornecer a quem visitou ou vai vi- momentos do ciclo artístico presente no Vale e,
sitar os sítios onde foi realizada a arte rupestre, finalizando o percurso com uma evocação da luta
um complemento à sua experiência ou possibili- pela sua preservação, momento único na História
tar um acesso indireto a esse património a quem, dos movimentos de preservação do Património.
por diversas razões não pode aceder diretamente Os elementos expositivos constituídos por peças
à arte rupestre. O Museu do Côa foca-se na arte arqueológicas recolhidas durante a escavação de
paleolítica que foi classificada como património sítios paleolíticos encontrados na região (utensí-
mundial pela UNESCO, e no seu contexto, não lios líticos, arte móvel), réplicas de rochas gra-

THIERRY AUBRY
Escavações realizadas
em frente do painel
nº9 do Fariseu em
2022.

61
THIERRY AUBRY
vadas, recriações de cenários e objetos, desenhos
resultando da documentação da arte em caixas
de luz, coexistem com conteúdos digitais que fo-
ram alvo de uma renovação em 2019. Integrada
numa sala autónoma do percurso expositivo, os
dados resultantes da descoberta e do estudo dos
materiais arqueológicos do sítio do Fariseu for-
necem informações fundamentais para a datação
e a nossa compreensão da arte paleolítica.

A DEMOSTRAÇÃO ARQUEOLÓGICA DA ANTI-


GUIDADE. Em 1999, um ano depois da classifica-
ção pela UNESCO, frente ao painel 1 do sítio do
Fariseu, acontece uma descoberta crucial para
demostração da validade da comparação estilís-
tica e a demostração definitiva da idade paleo-
lítica das gravuras e do facto que os homens do
Paleolítico utilizaram também rochas ao ar livre Rocha nº 9 do
como suporte das suas mensagens gráficas. Fariseu durante
Paradoxalmente, esta descoberta e a possibili- as sondagens da
dade de escavar nesta área acontece devido ao descoberta em
2020, ainda ocul-
abaixamento temporário do nível da barragem
tada por camadas
do Pocinho, construída 10 anos antes no Rio
arqueológicas
Douro, mas com influença na cota dos últimos 7 que datam do Pa-
km do seu afluente, o Rio Côa. As sondagens na leolítico Superior.
porção jusante da margem convexa deste amplo
meandro localizada na margem esquerda do Rio
Côa, permitem evidenciar um painel vertical,
profusamente gravado, que estava ocultado pela a atribuição estilística e confirmam que o ci-
barragem do Pocinho e sedimentos acumulados clo artístico da arte do Côa alonga-se há deze-
ao longo do tempo que contêm vestígios de ocu- nas de milhares de anos, tal como proposto no
pações de grupos paleolíticos. As datas obtidas, momento da descoberta. Outra particularidade
entre 12 000 e 20 000 anos para as camadas que deste sítio é, junto à rocha gravada, ter-se reve-
tapam a rocha gravada e que, assim, só pode ter lado a existência de 85 placas de xisto gravadas,
sido feita anteriormente aos depósitos, validam conservadas numa camada datada de cerca de
FERNANDO BARBOSA

Remontagem de um
fragmento da rocha
gravada nº9 do Fari-
seu encontrado numa
camada datada de
cerca de 16 000 anos.

62
Escavações realizadas
em 2007 em frente da
rocha nº1 do Fariseu.

THIERRY AUBRY

63
O Vale do Côa é um lugar privilegiado para perceber
o povoamento da Península ibérica pelo Homem de
Neandertal e pelos primeiros Homens modernos

Decalque das gravuras


de uma das áreas do
painel gravado nº9 do
Fariseu. Uma parte das
gravuras ainda esta
ocultada por sedimen-
THIERRY AUBRY

tos datados de mais de


16 000 anos.

64
12 000 anos. As representações sobre as placas sição, no limite ocidental do planalto central ibé-
de xistos, encontradas junto a ossos de animais, rico, pode explicar a densidade e a continuidade
numa das áreas escavadas, permitem caraterizar da ocupação humana e da produção de imagens
as temáticas e o estilo da arte do fim da era gla- distribuídas pelos seus territórios. Os estudos re-
cial. A comparação entre as espécies dos animais velaram também que estes grupos humanos, nó-
caçados ou pescados encontrados no mesmo ní- madas, não estavam isolados, mas participavam
vel de ocupação e as espécies que foram repre- e estavam integrados numa extensa rede social.
sentados no mesmo momento, confirma mais A amplitude dos territórios é indiciada pela uti-
uma vez que só uma parte dos animais contem- lização das mesmas convenções estilísticas em
porâneos dos artistas foram representados. outras regiões da Península ibérica e do Sul da
França e demostrada pelas variedades de sílex,
NOVAS DESCOBERTAS. Em 2020, uma centena rocha ausente naturalmente, mas sistematica-
de metros a montante da rocha 1, descoberta na mente presentes nos sítios do Paleolítico Supe-
sua integralidade em 1999, foi possível encon- rior do Vale do Côa.
trar outra vez uma situação excecional na arte Os dados acumulados e as recentes descober-
paleolítica, onde se juntam a arte e os vestígios tas de vestígios que revelam acampamentos e
do cotidiano, frente à rocha 9 do Fariseu. As es- novas rochas gravadas, em prospeção ou escava-
cavações iniciadas a partir de um traço de cerca ção, confirmam o papel privilegiado do Vale do
de 5 cm, revelam uma figura de auroque macho Côa, como um conjunto de sítios, testemunho
de 3,6 metros, que integra parte de um painel de único da história do povoamento e das socieda-
10 metros de extensão e as datações obtidas em des dos últimos caçadores-recoletores da Penín-
2021 confirmam os resultados obtidos para as sula ibérica.
camadas que ocultam a rocha 1. As gravuras re- Para saber mais sobre o Vale do Côa consultar o
presentam, na maioria, figuras de auroques fê- site: https://arte-coa.pt/  e
meas, cavalos, um veado e uma cerva. Esta des-
coberta confirma o potencial que subsiste nes-

ANDRÉ SANTOS
ta porção do Vale do Côa, no limite da planície Corte estratigráfico de
aluvial, onde ainda é possível encontrar rochas cerca de 5 metros
gravadas cobertas por depósitos que ampliam de espessura no sítio
as possibilidades de datação e compreensão do da Cardina-Salto do
contexto desta arte. Boi, preserva os vestí-
As prospeções desenvolvidas a partir de 2020, gios de ocupações que
entre o fundo do Vale do Côa, onde está concen- atestam que o Homem
trada a arte mais antiga da região e Siega Verde, de Neandertal e os pri-
meiros Homens
do outro lado da fronteira, demostraram o po-
anatomicamente mo-
tencial do território balizado por estes dois sítios dernos ocuparam o
do Património Mundial. Os resultados revelaram Vale do Côa.
que a ausência de vestígios nesta região interme-
diária só podia ser explicada pela falta de inves-
tigação. As escavações realizadas no sítio da Car-
dina-Salto do Boi, 3 km a montante do sítio de
gravuras da Penascosa, mostram a presença de
vestígios dos primeiros Homens anatomicamen-
te modernos na região, a partir de 34 000 anos, e
um registo de 5 metros de espessura onde foram
encontrados artefactos atribuíveis ao Homem de
Neandertal, com datações entre 150 000 e 39 000
anos antes do presente.

UM LOCAL PRIVILEGIADO. Os estudos desen-


volvidos no Vale do Côa e nas regiões que só se
tornaram possíveis com a decisão de conserva-
ção da arte in situ, revelaram uma concentração
única no mundo de sítios de arte e de habitat que
resulta da biodiversidade desta região. A sua po-

65
No teto do Grande
Salão da caverna de
Altamira encontra-se
um impressionante
grupo de bisontes
pintados com
pigmentos minerais
SHUTTERSTOCK

de óxido de ferro
vermelho.

66
EM FUNDO, O norte peninsular

ALTAMIRA
A Capela
Sistina do
passado
A caverna de Altamira é uma referência mundial. Foi a primeira
prova conhecida da arte pré-histórica e, tendo sido habitada durante
25 000 anos, cobre todos os estilos de pintura rupestre. A sua
descoberta gerou uma controvérsia que duraria décadas.
POR MARTÍN CAGLIANI Jornalista científico

67
A necessidade de proteger
GETTY

a caverna original de
Altamira do número
crescente de visitantes
levou as autoridades a
criar uma réplica. Na
imagem, o trabalho de
reprodução das pinturas.

68
A Caverna de Altamira foi declarada Património
Mundial pela UNESCO em 1985

69
Ferramentas paleolíticas e
AGE

cópias das pinturas numa


das salas do Museu
Nacional e Centro de
Investigação de Altamira.

70
Em 2001, o Museu de Altamira, concebido pelo arquiteto
Juan Navarro Baldeweg, foi construído ao lado da gruta

71
A cabeça de uma corça, em frente
AGE

de um bisonte. Os artistas de
Altamira fizeram primeiro o esboço
e depois desenharam um contorno
preto com carvão vegetal. As
figuras foram então preenchidas
com tinta vermelha ou amarelada.

As técnicas de desenho, pintura e gravura, a utilização do


suporte e a tridimensionalidade já estavam aqui presentes

72
73
U
ma estreita fenda no lado de uma por vezes separadas, por vezes parte da mesma
pequena colina, 120 m acima do va- obra. Os artistas fizeram uso de todos os recursos,
le do rio Saja. Foi o que viu o caseiro por vezes explorando desenhos ou gravuras anti-
da propriedade, Modesto Cubillas, gas, por vezes utilizando protuberâncias na rocha
em 1868, quando seguia o seu cão para dar volume ou para evidenciar os olhos.
durante uma tarde de caça. A fenda levou à ca-
verna que mais tarde se chamaria Altamira, loca- AS PINTURAS COBREM UM PERÍODO DE 36
lizada em Santillana del Mar (Cantabria). Selada 000 A 12 000 ANOS ATRÁS, o que não quer di-
do exterior durante séculos, acredita-se que fo- zer que tenham sido as primeiras pinturas feitas
ram detonações a partir de uma pedreira próxi- na pré-história, mas são as primeiras provas co-
ma que abriram a brecha pela qual o cão de Cubil- nhecidas de que o homem pré-histórico tinha a
las entrou. O caseiro nunca viu as pinturas, mas capacidade de criar arte. Este é um detalhe im-
relatou a descoberta ao proprietário do terreno, portante, uma vez que na altura em que foram
Marcelino Sanz de Sautuola (1831-1888), que gos- dadas a conhecer, o estudo científico da pré-his-
tava de explorar as cavernas da região em busca tória estava em fase inicial. Em 1879, o mundo da
de restos paleontológicos e pré-históricos. ciência estava apenas a começar a digerir o facto
de que tinha existido um homem pré-histórico
EM 1879, SAUTUOLA FOI EXPLORAR A CAVER- que se acreditava ser selvagem e semelhante a um
NA, ACOMPANHADO PELA SUA FILHA MARÍA símio, como Charles Darwin tinha descrito nos
de oito anos. Enquanto o seu pai se divertia com seus livros A Origem da Espécie (1859) e A Ori-
várias ferramentas líticas encontradas no chão à gem do Homem (1871). Quando Sanz de Sautuola
entrada — a caverna estende-se por 270 m — a disse aos especialistas em pré-história que tinha
menina disse-lhe: “Há bois pintados no teto”. descoberto que os homens das cavernas produ-
Tratava-se do Grande Salão, com 18 m de com- ziam arte e que esta era bela, a notícia foi indi-
primento por 9 m de largura, mas com uma altu- gerível para a maioria deles. Não podiam aceitar
ra baixa, variando entre 1,90 m e 1,10 m. Por isso, que fossem tão sofisticados, por isso ignoraram
só alguém de baixa estatura poderia olhar para Altamira durante décadas e até acusaram o seu
cima para ver a manada de bisontes pré-históri- descobridor de ser um falsificador.
cos vermelhos e pretos, machos, fêmeas e crias, As primeiras descrições das pinturas foram pu-
nas mais variadas posturas e atitudes. blicadas por Sautuola nas suas Breves Notas de
Altamira é hoje uma referência mundial, uma 1880. Estava convencido de que eram da Idade da
enciclopédia de arte rupestre, uma vez que nas Pedra, não só por causa dos animais extintos que
suas paredes e tetos se podem ver exemplos de viu retratados, mas também por causa dos restos
arte feita ao longo de 25 000 anos, abrangendo de esculturas e ferramentas ósseas e líticas que ali
todos os estilos, técnicas e temas conhecidos da tinha descoberto. Mas naqueles dias, a pré-histó-
arte paleolítica. Por este motivo, em 1985 foi de- ria estava longe das universidades, não tinha sido
clarada Património Mundial pela Unesco. Ao lon- reconhecida academicamente. Muitos conside-
go da caverna, podem-se ver gravuras e pinturas, ravam extravagante o hobby de procurar e cata-

O aristocrata santanderino
Marcelino Sanz de Sautuo-
la (1831-1888),
antropólogo amador, des-
cobriu a caverna de
Altamira numa das suas
propriedades. Inicialmen-
te, quase ninguém
acreditava na veracidade
da descoberta. Um dos
AGE

poucos que o apoiou foi o


professor de Paleontologia
na Universidade de Madrid
Juan Vilanova y Piera
(1821-1893), à direita nas
fotografias..

74
Entrada atual

LEGENDA
Bordos do solo
ARCHIVO TK Adições artificiais

ARCHIVO TK
Colunas naturais
Colunas artificiais

À esquerda, planta da gruta de Altamira. Acima, placa


comemorativa em frente à entrada da caverna. Situa-se no
prado que lhe dá o nome, no município cantábrico de
Santillana del Mar,, a cerca de 5 km da costa cantábrica..

CAVERNA DE ALTAMIRA
um livro com as suas descobertas e encomendou
PLANO DE FUNDO réplicas das obras de arte rupestre, mas foi Juan
Equidistância 0,25 m
mts.
Vilanova y Piera (1821-1893), geólogo e professor
de paleontologia na Universidade Central de Ma-
drid, que as apresentou em conferências de pré-
logar ossos e restos líticos atribuídos a esses tem- -historiadores. Apesar disso, a rejeição foi devas-
pos. A religião ainda tinha uma influência muito tadora. Ninguém os apoiou. O que as pinturas de
forte, especialmente na Espanha de Sautuola, pe- Altamira representavam rompia com todos os
lo que não se acreditava que a antiguidade da hu- preconceitos. Não só os cristãos, mas também os
manidade tivesse mais do que alguns milhares de parâmetros que os próprios pré-historiadores ti-
anos, como se depreende da Bíblia. nham lutado tanto para estabelecer nos poucos
Tanto a biologia como a geologia ainda esta- anos que a disciplina ainda tinha. As belas pintu-
vam a travar uma dura batalha contra o conser- ras de Altamira não se encaixavam nos esquemas
vadorismo cristão nas universidades. Duvidar da científicos da época, eram inaceitáveis, uma vez
veracidade literal dos textos bíblicos era inacei- que apenas algumas pedras e ferramentas ósseas
tável. Alguns afirmaram que os pré-historiado- eram conhecidas.
res não eram mais do que trapaceiros que procu-
ravam atacar as fundações da religião. Este foi o VILANOVA Y PIERA NÃO DUVIDOU DA SUA
contexto em que Sanz de Sautuola, um advogado ANTIGUIDADE QUANDO VISITOU A CAVERNA,
que gostava de estudar os fósseis e vestígios an- e logo se tornou o seu mais fervoroso defensor,
tigos que encontrou nas muitas grutas da costa embora não tenha visto o seu reconhecimento
cantábrica, deu a conhecer as pinturas de Alta- final durante a sua vida. Apresentou as pinturas
mira. Embora a sua formação fosse conservado- à comunidade científica durante um congresso
ra e católica, ele acreditava nos avanços da ciên- realizado em 1880 em Lisboa, mas os partici-
cia. Ficou assim surpreendido quando a grande pantes não acreditaram nele, recusaram-se a ir
maioria dos estudiosos da época rejeitaram que vê-las e alguns até abandonaram a conferência.
as pinturas de Altamira fossem antigas e alguns Não aceitaram que o homem pré-histórico fos-
até o acusaram de as falsificar. Sautuola publicou se capaz de criar tal beleza. Os inimigos mais

Muitos estudiosos negaram a antiguidade das pinturas,


uma vez que contrariava a suposta veracidade da Bíblia

75
A réplica do Museu de
Altamira reproduz o
ambiente natural da gruta,
onde a temperatura e a
humidade são mantidas
constantes.

CREDITO

Os seus artistas eram Homo sapiens como nós. Com menos


meios, partilhavam preocupações semelhantes às nossas
amargos de Altamira eram os pré-historiadores sidade Complutense de Madrid e especialista em
franceses, sobretudo Émile Cartaihac e Gabriel de arte rupestre. Acrescenta que Altamira tem re-
Mortillet, e a maior parte dos estudiosos alinhava presentado “um marco do Património Cultural
com eles. Como curiosidade, vale a pena men- de Espanha, uma referência social, económica e
cionar que num congresso onde Vilanova expôs turística, que, com os seus altos e baixos na ges-
os méritos de Altamira, Mortillet apresentou um tão passada, tem sido uma força motriz para o
artigo sobre a Atlântida e os seus habitantes. Mas desenvolvimento e consideração do Património.
em 1894 o vento mudou graças a novas desco- Altamira é um Património Mundial, a sua arte é
bertas, pois em França foram encontradas grutas original e excepcional, e é representativa da pri-
com figuras, como as dos mamutes de Chabot ou meira arte, das capacidades simbólicas e crenças
as de Marsuolas. Era demasiado tarde para Sau- dos nossos antepassados”.
tuola e Vilanova y Piera, que já tinham morrido.
Em 1902, Altamira foi aceite no clube juntamente SEGUNDO DIEGO GÁRATE, ESPECIALISTA EM
com as cavernas francesas. O próprio Cartaihac ARTE RUPESTRE DA UNIVERSIDADE DE CAN-
reconheceu o seu erro no seu artigo intitulado TÁBRIA, “estamos a falar de uma caverna que
Mea culpa d’un sceptique, e continuou a escre- não deixa ninguém indiferente devido à sua
ver uma série de livros sobre a gruta cantábrica qualidade estética e à elevada capacidade de
depois de a ter visitado. transmissão das suas obras. Abriga centenas de
representações animais, o que a torna uma das
OS ESTUDOS QUE SE SEGUIRAM À SUA ACEITA- mais complexas”. Para Marcos García Diez, “as
ÇÃO OFICIAL PELO mundo académico levaram imagens mais antigas em Altamira têm cerca de
à descoberta da sua natureza excepcional entre 36 000 anos e correspondem a sinais a que cha-
o grande número de exemplos de arte rupestre mamos claviformes. Não sabemos o que são, são
que se estavam a tornar conhecidos. “Altami- uma espécie de triângulo com um apêndice pro-
ra é um ponto de referência da arte paleolítica nunciado. É possível que haja coisas mais anti-
a nível mundial, porque reconhece muitos dos gas, mas isto é uma intuição, não está provado.
estilos, técnicas e temas da arte paleolítica”, diz A caverna foi habitada mais ou menos continua-
Marcos García Díez, pré-historiador da Univer- mente até cerca de 12 000 anos atrás, o que lhe

76
O cavalo ocre, datado
de cerca de 20.000 anos
atrás, é uma das figuras
mais antigas da famosa
caverna.
CREDITO

dá uma gama de cerca de 25 000 anos de ocupa- dos, no plural, uma vez que as obras aparecem
ção, durante os quais os artistas retrataram uma em contextos espaciais e sociais muito diversos,
grande variedade de estilos. Embora os bisontes o que nos leva a pensar que podem ter tido mo-
– de há 14 000 e 12 500 anos atrás – eclipsem o tivações diferentes. Em qualquer caso, a arte pa-
restante, sabemos que há muita Altamira inter- leolítica mostra pouca diversidade gráfica, o que
média. Existem fases, possivelmente entre 30 sugere uma espécie de controlo sobre a produção
000 e 22 000 anos atrás, em que pintaram os ani- artística imposta por uma parte da sociedade.
mais de vermelho. E depois há mais do que uma Neste caso, teria um valor coletivo relacionado
fase de gravuras, em que os veados se destacam. com o equilíbrio de poder.
A Altamira que conhecemos é a soma de muitos García Diez acredita que a interpretação é
momentos, e em cada um deles foram utilizadas uma inclinação escorregadia: “Não podemos fa-
imagens anteriores numa espécie de soma con- lar com aqueles que a fizeram e as imagens que
tínua. O que existia anteriormente não era igno- nos deixaram não correspondem a um código a
rado e iam-se adicionando elementos para fazer que estamos habituados. Para mim, Altamira é
algo novo”. constituída por símbolos que integram um sig-
nificado. Qual? Não sei, talvez não tenha sido
“A CAVERNA DE ALTAMIRA MOSTRA VÁRIAS constante, nem o uso nem a sua função. O que
FASES DE DECORAÇÃO AO LONGO DE MI- é claro é que pintaram o que viram no seu am-
LHARES DE anos do que chamamos o Paleolí- biente natural. Talvez os animais que comiam ti-
tico Superior”, continua Gárate. E acrescenta: vessem um valor especial para eles, ao ponto de
“Em quatro ou cinco momentos diferentes, os os imortalizarem na parede, mas será que imor-
grupos humanos que habitavam ou visitavam a talizaram o animal ou quiseram imortalizar as
caverna deixaram as suas marcas nas paredes. suas características?
Em qualquer caso, eles eram Homo sapiens co- A razão pela qual os nossos antepassados dei-
mo nós. Organizados em grupos mais ou menos xaram tais exposições artísticas está para além
pequenos mas bem relacionados com os seus dos especialistas e pode nunca ser conhecida.
vizinhos e outros habitantes de uma área muito Que foi arte pela arte é uma possibilidade. Há
vasta. Embora com uma tecnologia mais parca, quem lhe tenha atribuído um significado mágico
partilharam muitas das preocupações que nos ou religioso, a procura de comunhão com a na-
têm ocupado ao longo dos anos. Não eram muito tureza ou de influenciar a caça. O que é certo é
diferentes de nós próprios”.Gárate acredita que que é uma arte magnífica, mesmo do ponto de
o significado da arte paleolítica “ainda é uma in- vista atual. Já dizia Picasso que “desde Altamira,
cógnita”. Hoje falamos mais sobre os significa- tudo é decadência”. e

77
Gruta do
Escoural
A Gruta do Escoural representa um marco
incontornável do período Paleolítico no
Alentejo. Esta importância advém não
só da sua condição como recetáculo de
arte parietal, mas também pela presença
de níveis arqueológicos atribuídos ao
Paleolítico Médio. Durante o Neolítico
assumiu novas funções, servindo as
populações circundantes como necrópole.

DIREÇÃO REGIONAL DE CULTURA DO ALENTEJO / FOTOS JOSÉ ALDEANO

78
Entrada atual da Gruta do
Escoural. São visíveis as frentes
da pedreira cujos trabalhos
levaram à sua descoberta.

79
E
sta cavidade cársica foi descoberta
acidentalmente, a 17 de abril de 1963,
durante a exploração de uma pedreira
situada no maciço calcário onde esta se
insere. Rapidamente foi alvo das aten-
ções da comunidade científica e, no dia 19, já a
gruta era visitada pelo arqueólogo Farinha dos
Santos sob indicação de Manuel Heleno, dire-
tor do Museu Etnológico de Belém (hoje Museu
Nacional de Arqueologia), tendo o primeiro
iniciado os trabalhos arqueológicos na Gruta
do Escoural no dia 28 de abril. Esta intervenção
iniciou-se com a realização de um levantamen-
to topográfico da gruta, com o registo do espó-
lio da necrópole neolítica e a recolha dos ma-
teriais que se encontravam soltos (Silva, 2011).
No outono de 1963 foram identificados os
primeiros vestígios relacionados com arte ru-
pestre do Paleolítico superior que decorava a
cavidade. A existência de outras pinturas e gra-
vuras, que poderiam ser atribuídas a este pe-
ríodo, e identificadas por Farinha dos Santos,
levaram este investigador a perceber o verda-
deiro alcance desta descoberta e a real impor-
tância deste sítio no contexto da arte paleolíti-
ca europeia. Na Gruta do Escoural foram sendo
identificadas tanto pinturas como gravuras
apresentando os motivos característicos da arte
do Paleolítico Superior, sobressaindo as repre-
sentações de cavalos e bovídeos.

ALÉM DESTAS DUAS OCUPAÇÕES HUMANAS,


atribuídas ao Paleolítico Superior e Neolítico, esta
cavidade iria ainda revelar a presença de vestígios
de uma frequentação mais antiga. Os primeiros
vestígios Moustierenses foram recolhidos, e estu-
dados, junto a uma fissura ainda por Farinha dos
Santos (Silva, 2011). A Gruta do Escoural foi alvo
de novos trabalhos entre 1989 e 1992 na área onde
se devia situar a entrada original. O nível identi-
ficado como Paleolítico Médio apresentou uma
indústria lítica abundante (mais de 900 peças),
realizada quase exclusivamente em quartzo apre-
sentou também uma grande concentração de
fauna, nomeadamente ossos de Hiena, e copró-
litos deste mesmo animal. Uma datação de U/Th,
realizada sobre um dente de veado, forneceu uma
datação a rondar os 50 000 anos. É durante esta
investigação que se produz o levantamento mais
exaustivo da arte rupestre existente na Gruta do
Escoural (Araújo e Lejeune, 1995).
Nos últimos tempos, o interesse pela arte pa-
leolítica da Gruta do Escoural foi retomado. Em
2019, deu-se início ao projeto transfronteiri-
ço FIRST-ART enquadrado por financiamentos

80
A gruta do Escoural é
ímpar, porque continua
a ser o único exemplar de
uma cavidade cársica com
arte parietal atribuída
ao Paleolítico superior,
presente no atual
território português

A beleza natural da Gruta do


Escoural não foi indiferente
aos nossos antepassados que
ao longo dos tempos a
elegeram para santuário
artístico e funerário.

81
europeus no âmbito do INTERREG V, Espanha- te obter as primeiras datações absolutas para a
-Portugal (POCTEP) denominado “Conser- gruta do Escoural (Garcês et al, 2020).
vação, documentação e gestão das primeiras
manifestações de Arte Rupestre no SW Ibérico: A GRUTA DO ESCOURAL É ÍMPAR, porque con-
Grutas do Escoural e Maltravieso (FIRST-ART)”. tinua a ser o único exemplar de uma cavidade
Este projeto retoma os estudos dos motivos ru- cársica com arte parietal atribuída ao Paleolítico
pestres tanto da gruta do Escoural como da gruta superior, presente no atual território português.
de Maltravieso, situada na vizinha Extremadura Esta singularidade justifica, por si só, a classifi-
espanhola. O projeto FIRST-ART foi promovido cação de Monumento Nacional que lhe foi atri-
pela Junta da Extremadura, estando nele envol- buída, que a pluralidade das várias ocupações
vidos pela parte portuguesa, a Direção Regional arqueológicas que ostenta reforça. Pelo valor de
de Cultura do Alentejo (que tutela a Gruta do Es- ser o único exemplar nacional de arte rupestre
coural), o Município de Montemor-o-Novo e o parietal em contexto cársico, impõe-se sobre
Município de Mação, através do Museu de Arte este sítio um conjunto de limitações quanto ao
Pré-histórica e do Sagrado do Vale do Tejo. No número e organização das visitas, sendo alvo de
que diz respeito à Gruta do Escoural, a com- uma monotorização ambiental específica.
ponente de investigação vai permitir rever de A principal atração deste espaço consiste ob-
forma sistemática e completar, com recurso às viamente na presença de pinturas e gravuras
novas metodologias de deteção e registo, o ca- do Paleolítico Superior identificadas em várias
tálogo das figuras rupestres identificáveis. Além áreas da gruta. A vida dos caçadores-recolec-
disso, pretende-se sistematizar e atualizar tanto tores que nos deixaram esta arte, alguma bem
quanto possível os dados referentes à contextua- evidente nas paredes mais visíveis, outra res-
lização arqueológica da arte rupestre. Por fim, é guardada nos recônditos mais recatados desta
objetivo desenvolver estudos analíticos sobre os cavidade, é a fonte de inspiração dos motivos
motivos rupestres, em particular sobre as pin- pictóricos que chegaram até nós. O modo de
turas, no que se refere à composição e uso dos subsistência das comunidades de Homo sa-
respetivos pigmentos, tentando paralelamen- piens, assente na caça de grandes herbívoros,

Pormenor de uma pintura a


vermelho, um dos primeiros
painéis visíveis assim que se
entra na gruta. Representa
um equídeo, com cabeça e
82
corpo de perfil.
Um dos painéis mais
complexos identificados
na gruta do Escoural,
localiza-se na sala 1.
Apresenta três conjuntos
de pinturas. Este painel
deverá integrar-se,
cronologicamente, no
Solutrense Antigo.

É, principalmente, na sua fauna contemporânea que os


nossos antepassados se vão inspirar. Não é, portanto, de
estranhar que, entre os principais motivos identificados
na gruta do Escoural, se encontrem equídeos e bovídeos
influencia determinantemente a sua criação método Urânio-Tório. Este projeto inseriu -se
artística. É, principalmente, na sua fauna con- numa tentativa de datar várias grutas com arte
temporânea que os nossos antepassados se vão rupestre paleolítica da Península Ibérica (Pike,
inspirar. Não é, portanto, de estranhar que, et al., 2012). As amostras foram selecionadas
entre os principais motivos identificados na tendo como objetivo a datação absoluta sobre
gruta do Escoural, se encontrem equídeos e a respetiva formação calcítica e com o fim de se
bovídeos. Certos painéis apresentam um pro- obterem datações mínimas para as pinturas. No
cesso de elaboração mais complexa, com várias entanto, no que respeita ao Escoural, ainda não
figuras, outras realizadas singelamente recor- há resultados conhecidos.
rendo à pureza estilística de um simples traço.
Por vezes sobreviveram ao tempo apenas umas UM DOS PRIMEIROS PAINÉIS VISÍVEIS ASSIM
diminutas manchas de pigmento. QUE SE ENTRA NA GRUTA, infelizmente já al-
A datação da arte rupestre da Gruta do Es- terado pelas escorrências de água, correspon-
coural resulta da análise estilística dos painéis de a uma pintura a vermelho. Representa um
e da sua comparação com outras manifestações equídeo, com cabeça e corpo de perfil, com a
artísticas de outros locais datados através de curvatura da mandíbula pronunciada, as cri-
métodos de datação absoluta. nas verticais e as pernas figuradas em forma de
Recentemente, uma equipa internacional V. A linha cervico-dorsal é ondulada e a linha
procedeu à recolha de amostras de crostas de ventral convexa. Junto a esta figura identifica-
calcite das paredes da gruta para datação pelo ram-se alguns pontos e traços de cor vermelha

83
Outro dos painéis mais
reconhecidos no registo
pictórico da gruta do
Escoural apresenta três
cabeças de equídeo,
gravadas, representadas de
perfil. Estilisticamente
deverão pertencer ao
Solutrense Superior ou
Madalenense Inicial.

e negra. Estas características estilísticas permi- reconhece-se, à direita dessa primeira figura,
tem atribuir este painel ao Solutrense Antigo. o perfil de um quadrúpede, cuja cabeça não se
Um dos painéis mais complexos identificados conservou. Trata-se provavelmente de um bo-
na gruta do Escoural, localiza-se na sala 1. Apre- vídeo, com o ventre bem saliente e os membros
senta três conjuntos de pinturas. Na parte su- em forma de V. Na parte inferior do painel está
perior do painel observa-se a representação de representado um segundo conjunto de figuras,
uma cabeça de equídeo, de perfil e voltada para a interpretado inicialmente como uma represen-
esquerda. Igualmente orientado para esquerda, tação antropozoomórfa, meio humana e meio

84
Os processos técnicos utilizados pelos nossos antepassados
para materializar as suas expressões artísticas apresentam
duas metodologias. A primeira consiste na gravação dos
temas escolhidos nas paredes cársicas, com recurso a
ferramentas líticas. Outra forma de trabalhar consistia na
pintura dos temas desejados
animal. Novas leituras da pintura considera a tilisticamente deverão pertencer ao Solutrense
existência de justaposição de três animais, duas Superior ou Madalenense Inicial.
cabeças de equídeo representadas de perfil e em
direções opostas e o corpo de um outro provável NA ENTRADA DA GALERIA 1, foi localizado um
quadrúpede. Este painel deverá integrar-se cro- painel, também atribuído ao mesmo período,
nologicamente no Solutrense Antigo. onde se observa a cabeça e o arranque do pes-
Outro dos painéis mais reconhecidos no re- coço de um auroque, figurado de perfil e orien-
gisto pictórico da gruta do Escoural apresenta tado para direita. À esquerda desta figura, so-
três cabeças de equídeo, gravadas, representa- brepondo-se parcialmente está representada a
das de perfil. Estas figuras estão voltadas para o metade traseira de um equídeo. Está represen-
lado esquerdo e encontram-se preenchidas por tado de perfil e voltado para o lado esquerdo.
múltiplas incisões filiformes. Duas das cabeças Na parte superior do painel identificou-se um
pertenceriam a indivíduos adultos sobrepon- terceiro quadrúpede, possivelmente um capri-
do-se parcialmente. A terceira, de menores di- no. Neste painel reconhecem-se também ou-
mensões, representada sob as duas outras, de- tros traços de cor vermelha e numerosas gra-
verá corresponder a um individuo jovem. Es- vuras filiformes.

Pormenor do painel
situado na entrada da
galeria 1, com a
representação da
metade traseira de um
equídeo. Por cima da
linha do dorso é
identificado um traço
de cor vermelha.

85
Muitas das figuras representadas na Gruta mente pelos vários tons de ocre, desde o ama-
do Escoural podem ser identificadas como re- relo, passando pelo castanho e o vermelho. A
presentações de animais. Outras existem cujo estas cores acrescentava-se o preto resultan-
significado é mais opaco. É o caso do painel te maioritariamente da utilização do carvão.
onde foram identificados um conjunto de seis Muitas vezes a pintura consiste num simples
traços pintados de cor vermelha. Três destes desenho dos contornos a preto.
traços encontram-se dispostos na vertical en-
quanto outros três , convergentes, estão loca- OS PIGMENTOS UTILIZADOS PARA A REA-
lizados à esquerda dos primeiros. LIZAÇÃO DAS PINTURAS identificadas na
Os processos técnicos utilizados pelos nos- gruta do Escoural foram alvo de análises quí-
sos antepassados para materializar as suas micas de modo a perceber a sua composição.
expressões artísticas apresentam duas me- Chegou-se a conclusão que o preto foi con-
todologias. A primeira consiste na gravação seguido recorrendo a óxido de manganês,
dos temas escolhidos nas paredes cársicas, carvão animal, resultante da queima de osso,
com recurso a ferramentas líticas. As lascas de e carvão vegetal. As figuras pintadas a ver-
pedra são propositadamente produzidas pa- melho resultam do uso de ocres naturais na
ra permitir um gravado bem definido. Outra forma de nódulos brutos. Porém, em certas
forma de trabalhar consistia na pintura dos amostras estudadas verificou-se a presença
temas desejados. Este processo consistia na de biotite e de feldspato potássico, o que pode
aplicação de pigmentos de várias cores com indicar a existência de processos de manufa-
recurso aos dedos ou improvisados “pinceis”. tura para se conseguir pigmentos vermelhos
A paleta cromática era constituída principal- (Silva et al, 2017).

Painel localizado num


pequeno nicho
consistindo num
conjunto de seis traços
pintados de cor
vermelha. Três destes
traços encontram-se
dispostos na vertical
enquanto outros três,
convergentes, estão
localizados à esquerda
dos primeiros.

86
A gruta do Escoural é ímpar, porque con-
tinua a ser o único exemplar de uma cavida-
de cársica com arte parietal atribuída ao Pa-
Bibliografia:
leolítico Superior, identificada em território
português, mas plural, pela variedade das ARAÚJO, A. C.; LEJEUNE, M. (1995) –
ocupações arqueológicas que ostenta. Encon- Gruta do Escoural: Necrópole Neolítica e
tram-se atualmente a decorrer vários projetos Arte Rupestre Paleolítica. Lisboa, Trabalhos
de investigação incidindo sobre a gruta do Es- de Arqueologia, nº 8, IPPAR.
coural. É neste conhecimento renovado que se
alicerçam as metodologias que permitem me- GARCÊS, S., COLLADO, H., GARCÍA
lhores condições para a fruição, conservação e ARRANZ, J. J., OOSTERBEEk, L., CARLOS
divulgação deste património. SILVA, A., ROSINA, P., GOMES, H.,
A arte da Gruta do Escoural sobreviveu mais BORRALHEIRO PEREIRA, A. NASH, G.,
de 25 000 anos antes de ser redescoberta. Em- GOMES, E., ALMEIDA, N. e CARPETUDO,
bora a sua antiguidade nos incuta uma falsa C. (2020): O projeto FIRST-ART–
sensação de perenidade, os desenhos, pinturas
conservação, documentação e gestão das
e gravuras presentes na Gruta do Escoural são
de uma grande fragilidade. É nossa obrigação, primeiras manifestações de arte rupestre no
mais que a sua divulgação, preservar para as sudoeste da Península Ibérica: as grutas do
gerações futuras as mensagens que os nossos Escoural e Maltravieso. In: Morais Arnaud, J.,
antepassados, voluntariamente ou não, fizeram Neves, C. e Martins, A..(eds.) Arqueologia
questão de nos deixar. e em Portugal / 2020 – Estado da Questão.
Associação dos Arqueólogos Portugueses
e CITCEM, Lisboa, p. 513- 521.
GOMES, M. V. (1994) – Escoural et
Mazouco: deux sanctuaires paléolithiques
du Portugal. Les Dossiers d’Archéologie,
198 (01/11/1994), pp. 4-9.
PIKE, A.; HOFFMANN, D.; GARCÍA-DÍEZ,
M.; PETTITT, P.; ALCOLEA, J.; BALBÍN, R.;
GONZÁLEZ-SÁINZ, C.; DE LAS HERAS, C.;
LASHERAS, J. A.; MONTES, R.; ZILHÃO, J.
(2012) – U -Series Dating of Paleolithic Art
in 11 Caves in Spain. Science 336 (6087),
pp. 1409 -1413.
SILVA, A. C. (2011): “Escoural: Uma
gruta pré-histórica no Alentejo”. Direcção
Regional de Cultura do Alentejo.
SILVA, A. C.; MAURAN, G.; ROSADO, T.;
MIRÃO, J.; CANDEIAS, A.; CARPETUDO,
C.; CALDEIRA, A. T. (2017) – A Arte
Rupestre da Gruta do Escoural – novos
dados analíticos sobre a pintura paleolítica.
IN: Arnaud, J.M. & Martins, A. (Coords.)
Arqueologia em Portugal. 2017 – Estado
da Questão. II Congresso da Associação
dos Arqueólogos Portugueses. Lisboa, pp.
1003-1019.

87
O património
mundial do
Cantábrico
As grutas decoradas no norte da Península Ibérica ilustram o início, pico
e declínio da arte rupestre paleolítica, ligada ao aparecimento do Homo
sapiens. Altamira e os outros sítios nas Astúrias, Cantábria e País Basco
formam um dos principais centros mundiais deste período artístico,
tal como foi reconhecido pela Unesco.
POR ROBERTO ONTAÑÓN PEREDO
Diretor do MUPAC e das Grutas Pré-históricas de Cantábria

88
EM FUNDO, O norte peninsular

Réplica do Painel dos


AGE

Cavalos na caverna
Ekain, em Gipuzkoa,
que alberga vários
conjuntos de
magníficas pinturas
rupestres do período
Magdaleniano.

89
O Frizo das Mãos nas
AGE

grutas do Monte Castillo,


um promontório calcário
localizado em Puente
Viesgo (Cantábria), junto
ao rio Pas.

90
O Monte Castillo é o lar de quatro grutas frequentadas
por humanos há pelo menos 150 000 anos

91
Uma das salas do Museu de Pré-História e Arqueologia
AGE

da Cantábria (MUPAC), em Santander. Algumas das


espécies animais que habitaram a região durante o
período do Paleolítico Superior, encontram-se aqui
representadas.

92
Bisontes, camurças, ursos, veados e até rinocerontes
habitavam o norte da Península Ibérica no
período Paleolítico

93
Reprodução no Parque
AGE

Pré-histórico de Teverga
(Astúrias) de bisontes
pintados há 14 000 anos
na gruta de Covaciella.

94
La Covaciella foi descoberta em 1994 depois de uma
explosão para obras rodoviárias ter aberto um buraco
na caverna

95
A
arte parietal é a arte que aparece pelos elevados níveis de perfeição técnica
nas paredes de grutas e cavernas alcançados. Neste contexto, a região cantá-
rochosas. É um fenómeno carac- brica constitui um dos núcleos mais impor-
terístico da nossa espécie — talvez tantes da arte rupestre paleolítica do mundo,
partilhado com os nossos paren- tanto pela elevadíssima densidade das grutas
tes mais próximos, os Neandertais — cuja apa- como pela excelente qualidade dos seus lo-
rência está relacionada com o aparecimento cais decorados. Nesta zona do norte de Espa-
de novas formas culturais impulsionadas pelo nha, a investigação realizada desde o último
desenvolvimento de uma forma de pensamen- terço do século XIX permitiu documentar,
to simbólico expresso através da pintura, gra- na sua variedade de temas e técnicas, um fe-
vura e escultura. nómeno cultural que se desenvolveu, tanto
Considerada no seu tempo, esta arte pré- quanto sabemos, ao longo de um período de
-histórica é espantosa pela formidável ca- cerca de trinta mil anos, incluindo algumas
pacidade expressiva alcançada com meios das datas mais antigas associadas à arte ru-
verdadeiramente rudimentares, bem como pestre conhecida.

Uma coleção que pertence à humanidade

A 7 de julho de 2008, o Comité do Patrimó-


nio Mundial incluiu na sua lista selecionada
dezassete grutas com arte paleolítica na região
ma e Covalanas, na Cantábria; e Santimamiñe,
Altxerri e Ekain, no País Basco, constituem ver-
dadeiras monografias da arte paleolítica can-
cantábrica como uma extensão de Altamira, já tábrica, excepcionalmente rica e diversificada.
inscrita em 1985. La Peña de Candamo, Tito Complementam e reforçam a importância de
Bustillo, Covaciella, Llonín e El Pindal, nas Astú- Altamira, à qual dão contexto, e contribuem pa-
rias; Chufín, Hornos de la Peña, as quatro grutas ra uma melhor compreensão do valor universal
de Monte Castillo (Las Monedas, La Pasiega, excepcional do fenómeno artístico paleolítico,
Las Chimeneas e El Castillo), El Pendo, La Gar- a primeira arte da humanidade.
PATRIMONIO MUNDIAL

O mapa mostra os dezassete sítios de arte rupestre na região de Cantábria incluídos pela UNESCO na sua lista do
Património Mundial em 2008. Acrescem a Altamira, que já estava reconhecida desde 1985.

96
A entrada para a gruta
de El Pindal está locali-
zada num penhasco em
Pimiango, no conselho
asturiano de Ribadedeva,
junto ao Mar Cantábrico.
As pinturas que contém
são, na sua maioria, re-
presentações de animais
ou sinais abstratos em
vermelho.Estima-se que
tenham entre 21 000 e
16 500 anos de idade.

SHUTTERSTOCK

Outra característica muito notável da ar-


te rupestre paleolítica na costa cantábrica é o
bom estado de preservação das manifestações
parietais. Preservado durante milénios no am-
biente protetor das grutas profundas perto das
costas asturianas, cantábricas e bascas, é ago-
ra nossa responsabilidade preservá-lo para as
gerações futuras.
AGE

A COSTA CANTÁBRICA FOI CERTAMENTE UM


BOM LOCAL PARA SE VIVER DURANTE a últi- mente ocupadas pelos primeiros habitantes da
ma era glaciar. Trata-se de uma faixa estreita região. A combinação destas duas característi-
de terra com cerca de 400 km de comprimen- cas tornou a região num local agradável mes-
to e uma média de 40 km de largura, confina- mo durante os episódios mais graves da última
da entre a cordilheira cantábrica e o Oceano era glaciar, o que explica a densidade do seu
Atlântico. Este cume montanhoso, exposto ao povoamento em todo o Paleolítico Superior e,
ambiente oceânico que tempera as condições como consequência, a enorme riqueza do re-
climáticas, sempre foi um lugar ideal para a gisto arqueológico formado nesse período da
ocupação humana. A abundância de substra- pré-história (cerca de 40 000 - 11 000 anos an-
tos calcários, profundamente corroídos pela tes do presente).
ação da água, favoreceu também a existência As paisagens em que se encontram as gru-
de numerosas cavidades que foram intensa- tas com arte rupestre, que estão espalhadas

O clima ameno desta costa explica porque era


densamente povoada mesmo durante a última era glaciar

97
AGE
Acima, a entrada da
gruta das Covalanas,
numa parede íngreme
formada pelo rio
Calera, na Cantábria.
Contém amostras de
arte rupestre com
20 000 anos de idade.
Foi descoberta pelo
arqueólogo Palencia
Hermilio Alcalde del
Río em 1903.
AGE

por formações calcárias vincadas e fortemente ticos contemplavam eram paisagens ondula-
cartificadas, têm muitas semelhanças. Em ge- das, mais ou menos acidentadas dependendo
ral, o relevo da região tem uma forte compo- da área, cobertas por uma floresta escassa do-
nente fluvial, e está organizado numa sucessão minada por coníferas e extensos prados pasta-
de vales mais ou menos perpendiculares à cos- dos por grandes manadas de ungulados. Estes
ta, de acordo com as condições estruturais foram a sua principal fonte de proteína animal
que, numa curta distância, descem das altu- e inspiração artística, como evidenciado pelas
ras da referida cadeia montanhosa até à pla- centenas de pinturas e gravuras que retratam
nície costeira. É de notar, contudo, que em estes animais.
resultado da acumulação de água nas calotas
de gelo, o nível do mar era várias dezenas de GRAÇAS À LONGA TRADIÇÃO DOS ESTUDOS
metros mais baixo do que é hoje, o que des- PRÉ-HISTÓRICOS NA REGIÃO, sabemos ago-
locou a linha costeira vários quilómetros para ra que o Mar Cantábrico foi um dos berços da
norte e expôs uma área de costa muito maior arte. Podemos também dizer que foi aqui que
do que a que existe hoje. Com esta advertência nasceu o próprio conceito de arte paleolítica.
em mente, as vistas que os caçadores paleolí- Graças ao conhecimento e à brilhante intui-

98
Os caçadores paleolíticos visualizavam os vastos
prados onde grandes manadas pastavam
ção do descobridor de Altamira, Marcelino mo na localidade asturiana de San Tomán de
Sanz de Sautouola, um grupo parietal da an- Candamo, estudada e publicada em 1919 por
tiguidade paleolítica foi reconhecido nesta re- Eduardo Hernández Pacheco. Em 1916, San-
gião pela primeira vez em 1879. A proposta de timamiñe (Vizcaya) foi descoberta e estudada
Sautuola estava tão à frente do seu tempo que por Telesforo de Aranzadi e José Miguel de Ba-
demoraria mais de vinte anos a ser aceite pela randiarán.
ciência e pelo público em geral. O trabalho da segunda geração de pionei-
A partir de 1902, os principais investigado- ros, Hermilio Alcalde del Río e Lorenzo Sier-
res concentraram os seus esforços no estudo ra, a que se juntou o francês Henri Breuil com
desta manifestação cultural na área cantábri- financiamento de Albert I do Mónaco, lançou
ca, e desencadearam uma corrida de desco- as bases para os estudos de arte rupestre na re-
bertas que levou à descoberta e documenta- gião. Desde então e até aos dias de hoje, foram
ção de dezenas de conjuntos de pinturas: Em realizados numerosos projetos de investigação
1903, Covalanas e La Haza, El Castillo, Hornos de campo e laboratorial, cujos resultados fo-
de la Peña e El Salitre; em 1904, Venta de la ram publicados em inúmeras publicações. Em
Perra; em 1905, Santián; em 1906, El Pendo, 1906, a primeira monografia sobre Altamira
La Clotilde e Sotarriza; em 1907, La Meaza; foi publicada por Cartailhac e Breuil. Nesse
em 1908, El Pindal, La Loja e El Otero; em mesmo ano, Alcalde publicou os seus primei-
1909, Las Aguas; e em 1911, La Pasiega. Em ros estudos sobre quatro grutas na região. Em
1914, foi descoberta a caverna Peña de Canda- 1911, a primeira obra sobre arte rupestre pa-

SHUTTERSTOCK
A utilização de
ferramentas
modernas, como o
espectrómetro de
massas com
acelerador, permite
uma datação cada
vez mais precisa de
amostras de arte
pré-histórica.

99
Recriação de uma refeição
AGE

em grupo após uma boa


caçada no Paleolítico
Superior, no final da
última Idade do Gelo.

100
A última grande descoberta na região teve lugar em
1995 no complexo de La Garma (Cantábria)
leolítica foi publicada em território cantábri- La Garma, na Cantábria. Aqui, na cavidade co-
co, Les cavernes de la région cantabrique, nhecida como Galeria Inferior, está a ser es-
assinada por Breuil, Alcalde e Sierra. tudada uma importante coleção de pinturas e
Durante as décadas seguintes – com o pa- gravuras, cuja fase mais recente, do Magdale-
rêntesis da guerra civil e o primeiro período niano médio, decora as paredes do que outro-
pós-guerra – investigadores de instituições ra foi um grande campo, preservado intacto
locais, nacionais e estrangeiras continuaram a após o seu abandono há cerca de 16.000 anos.
tarefa, aumentando o número de descobertas Aqui temos uma oportunidade quase única
e o conhecimento sobre as mesmas, e ao mes- de estudar a arte Paleolítica no seu contexto,
mo tempo abrindo o campo de estudo às vá- associando-a a lugares de habitação e espaços
rias facetas de um fenómeno verdadeiramente rituais, com os restos da produção e utiliza-
multifacetado. Sem querer ser exaustivo, as ção de elementos de subsistência e também de
descobertas nos anos 1950 das grutas de Las elementos ornamentais ou artísticos pessoais
Chimeneas e Las Monedas na Cantábria, e nos (conhecidos como arte móvel).
anos 1960 e 1970, de Ekain e Altxerri em Gui-
púzcoa, Arenaza na Biscaia e Tito Bustillo nas O ESTUDO DA ARTE RUPESTRE É, DE FAC-
Astúrias devem ser aqui destacadas. TO, UMA ABORDAGEM multidisciplinar que
A última grande descoberta na região teve considera o objeto a ser analisado nos seus
lugar em 1995 no complexo arqueológico de vários aspetos técnicos, temáticos e interpre-

AGE
AGE

A caverna de Santimamiñe, descoberta em 1916, está


localizada na cidade de Cortézubi, na Biscaia. No seu
interior, foram encontrados vestígios e pinturas datadas
do período Magdaleniano (entre 17 000 e 11 000 anos
atrás). Acima, um dos bisontes pintados nas paredes.
Abaixo, cinzel de bronze e cabo de chifre.
AGE

101
AGE
AGE

tativos, entendendo-o como mais um aspe- Outra área de inovação e debate científico
to do comportamento humano. Nos últimos diz respeito à datação desta arte pré-histórica.
anos, o aumento impressionante do número Nos primeiros tempos da investigação pré-his-
de descobertas no setor mais oriental da costa tórica na região, as primeiras abordagens bem
cantábrica é também digno de nota. Se até re- sucedidas para determinar a verdadeira idade
centemente o número de conjuntos parietais e, consequentemente, a autenticidade das re-
paleolíticos conhecidos aqui era inferior a dez, presentações paleolíticas, vieram da aplicação
hoje este número quase triplicou, provando do método por excelência em arqueologia, o
que o suposto vácuo basco se devia apenas a método estratigráfico: depósitos de cronologia
uma falta de investigação bem orientada. paleolítica cobrindo painéis com arte rupestre

102
SHUTTERSTOCK
A descoberta de cada vez mais vestígios nas Astúrias impulsionou o desenvolvimento do turismo pré-histórico na
região. Um dos locais que atrai mais visitantes é a caverna Tito Bustillo (acima, nas fotos), cuja entrada se situa nas
margens do estuário de Sella, em Ribadesella. Contém pinturas de cavalos paleolíticos de cerca de 15 000 anos atrás.
Alguns deles foram reproduzidos – em baixo, à esquerda – no Parque Pré-Histórico de Teverga.

ou fechando o acesso a salas decoradas, tetos e subsequentes nas ciências físicas deram um
escalas de parede com vestígios incluídos nos forte impulso ao método, graças à sua apli-
estratos destas cronologias, ofereceram pro- cação através da técnica de espectrometria
vas irrefutáveis da autenticidade destas ma- de massa com acelerador (AMS), que permi-
nifestações artísticas. Os avanços científicos e te obter uma datação muito precisa com uma
técnicos do século XX tornaram possível, em quantidade mínima de corante. Estes avan-
meados do século, a utilização de métodos ços incluem também a progressão das curvas
radiométricos (principalmente baseados no de calibração, que excede largamente o limiar
carbono-14) que tornaram possível datar di- anterior de 20 000 anos e permite a datação
retamente pinturas rupestres executadas com em anos civis de representações pertencentes
corantes contendo matéria orgânica. a fases mais antigas deste ciclo artístico.
As primeiras aplicações do radiocarbono à
datação da arte parietal cantábrica terão como OUTROS MÉTODOS RADIOMÉTRICOS, COMO
principal resultado a confirmação das crono- A TERMOLUMINESCÊNCIA e as séries de urâ-
logias propostas para o período Magdalenia- nio, tornaram possível, através da datação de
no (17 000 - 11 000 a.C.). Os desenvolvimentos formações carbonatadas associadas às repre-
sentações, estender o objeto de análise a moti-
vos executados com corantes inorgânicos. Isto
Atualmente, os especialistas torna possível determinar a idade dos conjun-
tos atribuídos às fases arcaicas do desenvolvi-
estão a debater se os Nean- mento da arte rupestre, que podem ser rastrea-
das até cerca de 40 000 anos atrás. O resultado
dertais poderiam ter sido obtido sobre uma pequena crosta carbonatada
sobreposta a um motivo geométrico da caverna
os autores de algumas das La Pasiega, em Puente Viesgo, abriu a discussão
sobre a suposta autoria neandertal de algumas
obras parietais na área das obras parietais da região. e

103
Arte rupestre
levantina:
Quem e
quando?
A parte oriental da Península Ibérica alberga algumas das pinturas
mais vivas e refinadas das cavernas rupestres e grutas naturais dos
tempos pré-históricos.

POR JOSEP CASABÓ BERNAD


Doutor em Pré-História e ex-diretor do Museu de La Valltorta (Castellón)

104
A Caverna Remigia fica
em Aresdel Maestrat, no
interior da província de
Castellón, e tem mais de
750 figuras pintadas em
bom estado de conserva-
ção: há animais, cenas
de caça como as da foto,
JOSEP CASABÓ

coletores de mel, arquei-


ros e guerreiros...

105
A arte levantina é principalmente narrativa:
mostra animais e humanos a interagir em cenas
que contam histórias

106
As pinturas rupestres da
caverna de Las Cabras
Blancas (Tormón, pro-
víncia de Teruel) têm
entre 7000 e 4500 anos
de idade.
Destacam-se pela sua
cor branca, em contras-
te com o vermelho
GETTY

típico da arte levantina.

107
Cena com grandes bovi-
ALBUM

nos e um humano numa


das cavernas de El Cogul
(Lérida), um dos locais
mais notáveis da arte
rupestre Levantina.

108
Estas pinturas foram feitas em cavernas rochosas pou-
co profundas e em locais onde eram bem visíveis

109
N
o final do século XIX, os pré-his- bem como a Cueva de la Vieja (Albacete); pou-
toriadores europeus estavam en- co depois, os sítios de Minateda (Albacete) e Las
volvidos num aceso debate sobre Tortosillas (Valência), e o extraordinário grupo
a autenticidade das pinturas de de cavernas pintadas que marcam a ravina La
Altamira. Poucos ousaram ima- Valltorta, a Caverna Remigia e El Cingle (os três
ginar que os humanos primitivos fossem tão sítios em Castellón), e a Cueva de la Araña (Va-
sofisticados a ponto de terem pintado uma ar- lência). Muito em breve as manifestações deste
te tão esplêndida nas paredes das cavernas que estilo artístico peculiar viriam a ser encontradas
habitavam. Este contexto explica porque é que noutros territórios do leste da península, daí o
a descoberta publicada por Eduardo Marconell nome Arte Levantina.
em 1892 passou despercebida: touros pintados
de branco nas cavernas rochosas de Prado del SE HÁ ALGO QUE DEFINE ESTA ARTE ATRA-
Navazo e Cocinilla del Obispo, perto de Albar- TIVA É O SEU CARÁCTER EMINENTEMENTE
racín (Teruel). NARRATIVO, com humanos e animais a in-
Anos mais tarde, quando a cronologia de Al- teragirem em cenas que contam histórias. A
tamira foi finalmente aceite, o cenário tornou- figura humana é geralmente o centro de um
-se favorável a novas descobertas, e foi isso que universo em que episódios de guerra, rituais,
aconteceu: na primeira década do século XX, eventos sociais, caçadas e passagens da vida
foram encontradas as cavernas de Roca de los quotidiana são narrados de uma forma única.
Moros de Calapatá (Teruel) e Cogul (Lérida), Embora não faltem animais isolados, é preci-

JOSEP CASABÓ

Este arqueiro encontra-se na caverna de


La Saltadora, pertencente às grutas de
Vinromá (Castellón).Existem vinte e seis
cavernas com pinturas de temas muito
diversos, e mais de trezentas figuras
executadas numa notável variedade de
estilos e técnicas.

110
Distribuição da Arte Levantina
D esenvolveu-se em toda a parte oriental da
Península Ibérica, desde a Catalunha até à
Andaluzia, e no interior até Castela-La Mancha.
Foram descobertas centenas de cavernas com
pinturas que refletem numerosas atividades de
vida pré-histórica.
JOSEP CASABÓ

samente este carácter social, narrativo e an- sam de ser qualificadas. Embora rara, a gravura
tropocêntrico que distingue este estilo de ou- foi também utilizada para esboçar figuras que
tras manifestações artísticas mais ou menos foram posteriormente pintadas ou mesmo para
contemporâneas. as executar na sua totalidade, como na caverna
Se o leitor fizer a sua própria pesquisa, encon- Barranco Hondo em Castellote (Teruel) ou na
trará numerosas referências a outras caracterís- caverna Perellada IV (Tarragona). Há também
ticas da arte Levantina, tais como o facto de ter documentação de figuras bicromáticas, deli-
sido sempre feita em cavernas rochosas pouco neadas, parcialmente preenchidas com tinta ou
profundas em enclaves geralmente abruptos, com um corpo listrado.
com boa visibilidade e em ambientes que conti-
nuam a mover os visitantes. Aprenderá também NO QUE DIZ RESPEITO AO NATURALISMO,
que a técnica utilizada foi principalmente a tin- UMA LEITURA SIMPLES DE QUALQUER publi-
ta monocromática, aplicada sob a forma de tin- cação especializada, mostra-nos um amplo es-
ta lisa, e que é um estilo naturalista. Todas estas pectro no qual encontraremos representações
declarações são corretas, mas algumas preci- naturalistas, juntamente com figuras humanas

Alguns peritos acreditam que esta arte nasceu há 8500-


8000 anos; outros que nasceu há 7000-6500 anos

111
Os arqueiros — figuras
JOSEP CASABÓ

esquemáticas e dinâmicas
— são recorrentes na arte
Levantina. Estes,
compõem uma cena na
Cova del Civil (Castellón).

112
que exibem uma desproporção anatómica no- as descobertas das primeiras cavernas de arte
tável, com troncos excessivamente alongados, levantina foram também atribuídas ao Paleo-
pernas excessivamente grossas, corpos quase lítico sem discussão. Logo surgiram dúvidas, e
esquemáticos ou cabeças enormes em compa- muitos investigadores apoiaram a ideia de que
ração com o resto do organismo. Parece que esta manifestação artística não poderia recuar
algumas destas características técnicas, estilís- mais do que o Neolítico. A comunidade cientí-
ticas e temáticas variam ao longo do tempo, e fica iniciou assim uma amarga disputa, agora
podem ser marcadores cronológicos que ainda com mais de cem anos de idade, que, longe de
não somos capazes de reconhecer claramente, se abater com o tempo, é reativada com novas
pelo menos a uma escala global. descobertas.
A questão torna-se diferente se aplicarmos Em suma, a questão é a seguinte: a arte le-
um estudo deste tipo a um nível regional. Se vantina é uma manifestação dos últimos gru-
tomarmos o caso de La Valltorta-Gassulla (Cas- pos de caçadores-coletores da Península Ibé-
tellón) como exemplo, vemos que a análise das rica ou, pelo contrário, devemos atribuir a sua
sobreposições nos permitiu diferenciar várias autoria às primeiras sociedades camponesas
fases na forma como os seres humanos são re- deste território?
presentados. O estilo mais antigo, o Centelles, Durante mais de um século, foram mantidas
é caracterizado por figuras com pernas muito posições opostas, procurando em vão o argu-
largas, em cenas de agregação social em que mento definitivo que iria fazer pender a ba-
não foram documenta- lança em favor dos seus
das atividades de caça postulados. Neste tex-
ou luta. Segue-se o es- Terão sido os últimos to limitar-nos-emos a
tilo Civil, com figuras uma breve abordagem
com torsos alongados e caçadores-coletores da questão, centrando-
desproporcionados re- -nos um pouco mais nos
tratados na caça, reu- da Península Ibérica argumentos que mais
niões sociais e atividades influenciaram a comu-
supostamente bélicas ou os seus primeiros nidade científica nos úl-
que parecem fazer par- timos anos. Como refe-
te de um ritual e não de agricultores a fazer rência, o leitor deve ter
confrontos reais. Depois em mente que para os
deparamo-nos com re- esta arte? apoiantes da cronologia
presentações dos tipos antiga, a arte Levantina
Mas d’En Josep, Cingle teria começado no Me-
e Filiformes, nas quais podemos ver uma es- solítico, há aproximadamente 8500-8000 anos;
tilização progressiva e uma perda de detalhes mas para aqueles que a consideram uma mani-
anatómicos. Cenas de caça, cenas de guerra e festação Neolítica, ela teria surgido entre 7000 e
falanges de arqueiros são agora comuns; além 6500 anos atrás, ou mesmo mais recentemente.
disso, em muitas ocasiões, as figuras destes es- Inicialmente, a discussão centrou-se na pre-
tilos são acrescentadas a cenas ou motivos pré- sença ou ausência de determinada fauna entre
-existentes. as representações, e na cronologia do contexto
arqueológico do próprio local ou dos seus ar-
NESTE PONTO VALE A PENA PERGUNTAR: redores. Mas não há grande diferença entre os
EXISTE UMA ÚNICA ARTE LEVANTINA ou é animais do Pleistoceno Final e os do Holoceno,
melhor falar de artes Levantinas? Qual é a sua que começaram há menos de 12.000 anos, o
cronologia? Onde surgiu? É possível vislumbrar que torna a datação difícil. Além disso, muito
mudanças temáticas ou tecnológicas ao lon- poucos abrigos têm estratigrafia sobrevivente,
go do tempo? Qual é o seu significado? Como e a cronologia dos locais próximos só pode ser
veremos a seguir, apesar do enorme esforço de conjeturada, nunca provada. Mais tarde, fo-
investigação, há ainda muito mais perguntas ram experimentadas periodizações com base
do que respostas e há questões que continuam em dados estilísticos, o que muitas vezes levou
a ser objeto de intensa controvérsia. Nesse con- a becos sem saída. Finalmente, na ausência de
texto, a questão cronológica foi talvez a que séries de datação absoluta, foram feitas ten-
gerou mais controvérsia. Uma vez aceite a cro- tativas para contextualizar os diferentes esti-
nologia paleolítica da arte franco-cantabrica, los artísticos pós-Glaciais com objetos móveis

113
Visita guiada à caverna
de Caballos, localizada
na ravina de Valltorta
(Tírig, Castellón). As
pinturas, entre as quais
há muitas cenas de ca-
JOSEP CASABÓ

ça, têm 80 metros de


altura.

paralelos cuja proveniência estratigráfica era A descoberta, na década de 1980, da arte ma-
precisa. croesquemática, atribuída ao Neolítico Primi-
No seio desta controvérsia, a primeira con- tivo, deu um novo impulso à longa discussão
tribuição realmente inovadora foi feita pelo sobre a origem e cronologia da arte Levanti-
pré-historiador Javier Fortea, que nos anos 70, na. A nova hipótese baseava-se em três pilares
com base na descoberta de um interessante con- fundamentais. Por um lado, a sobreposição de
junto de lajes de pedra com decoração geomé- motivos Levantinos sobre motivos macroes-
trica no nível II da caverna La Cocina (Valência), quemáticos em La Sarga (Alcoi, Alicante). Por
propôs a existência do que ele chamou de arte outro lado, a descoberta de figuras humanas
linear-geométrica, da cronologia epipaleolítica orantes impressas na cerâmica neolítica antiga
(de aproximadamente 8000 a.C. a 6000 a.C.). tornou possível atribuir uma cronologia a este
A teoria pretendia ser reforçada pelo suposto estilo artístico; e finalmente, a descoberta de
apoio oferecido por algumas cavernas com mo- zoomorfos em cerâmica neolítica mais recente
tivos reticulares, tais como a de Cantos de la Vi- colocou a arte Levantina no seu lugar, o que foi
sera (Região de Múrcia), que Fortea considerou explicado como a resposta das sociedades me-
ser anterior às cenas Levantinas, com base numa solíticas no caminho para o neoliticismo, ante a
sobreposição cromática controversa. Como re- força aculturadora do Neolítico.
sultado, a arte Levantina teria uma idade Neolí-
tica e uma origem muito diferente da arte linear EM APOIO DESTAS TESES, NAS ÚLTIMAS DÉ-
geométrica, que apresentava mais semelhanças CADAS TEM SIDO SALIENTADO que em algu-
com as antigas representações Paleolíticas. mas representações Levantinas existem clara-

Não sabemos se as pinturas eram meramente


representações de episódios a recordar ou
representações simbólicas

114
Cena de amamentação
no Racó dels sorellets
(Castell de Castells,
Alicante). É uma pintura
JOSEP CASABÓ

excecional na arte das


cavernas europeias.

115
mente elementos Neolíticos, tais como bracele- motivos zoomórficos e sinais de uma clara tra-
tes e pontas de flecha com formas geométricas dição paleolítica em territórios de arte tradi-
e foliadas. Para não desapontar o leitor, que cional levantina reabriu a controvérsia. Estas
por esta altura já terá adivinhado que estamos são representações geralmente gravadas, mas
a lidar com posições irreconciliáveis, diremos também pintadas, que aparecem em cavernas
que algumas destas provas também foram te- interiores pouco profundas no norte de Cas-
nazmente contestadas com argumentos tais tellón, que os seus descobridores atribuíram
como que a ausência de elementos decorativos ao Epipaleolítico ou ao Mesolítico, mas sem
em sítios Mesolíticos não prova que eles não qualquer relação com o estilo Levantino. Mas
existiam, mas que poderiam ter sido feitos com há duas questões que não se enquadram: por
materiais perecíveis que não duraram, e que um lado, não se trata de um estilo uniforme,
numa representação pictórica Levantina não mas sim de diferenças notáveis entre diferen-
é possível discernir se os pontos geométricos tes grupos de zoomorfos, o que sugere uma
pertencem a um período ou a outro. certa amplitude cronológica; por outro lado,
Seria injusto não salientar que os apoiantes parece que o uso de gravura fina com traços
da cronologia Neolítica são agora a maioria na múltiplos não é estranho em contextos clara-
comunidade científica. No entanto, nos últi- mente levantinos como o de Barranco Hondo
mos anos, a descoberta de várias cavernas com de Castellote (Teruel), onde há também um

116
As muitas cenas de caça e recolha de alimentos sugerem
que são obra de caçadores-coletores

ICREA-UB
Um ser humano sobe uma
escada para recolher mel de
uma colmeia. A pintura
encontra-se na caverna
Barranco Gómez (Castellote,
Teruel) e tem cerca de
7500 anos de idade.

corço com um aspeto paleolítico no mesmo os proponentes de uma cronologia antiga não
painel. fornecem provas sólidas para além da associa-
A situação não melhora se olharmos para o ção de cenas de caça com caçadores-coletores
outro lado deste abismo. Não há dados fiáveis e do uso da gravura para executar determina-
para apoiar uma datação antiga, e as indica- das figuras.
ções não são suficientes. No caso dos zoomor- As técnicas de datação absoluta têm sido
fos, os paralelos móveis não vão além do fim aplicadas nos últimos anos com resultados
do Paleolítico, enquanto os sinais geométricos discretos mas promissores. A datação por car-
durariam até ao Mesolítico geométrico. bono foi testada em figuras negras feitas com
pigmento vegetal, crostas calcárias e patinas
O PROBLEMA, APARENTEMENTE INSOLÚ- de oxalato de cálcio, embora de momento ain-
VEL, SÓ PODE COMEÇAR a desvendar-se se da não seja possível decidir a favor de nenhu-
aplicarmos abordagens diferentes. É necessá- ma das duas hipóteses. Em qualquer caso, os
rio eliminar os preconceitos e reconhecer que, resultados obtidos nos locais das cavernas Tío
de uma perspetiva estilística, só chegamos a Modesto, Selva Pascuala e Marmalo III (todas
um beco sem saída. A estratigrafia cromática em Cuenca) apontariam para uma origem da
pode ser aplicável num contexto estritamente arte Levantina contemporânea ou anterior ao
local, mas é por vezes contraditória. Os pa- do primeiro Neolítico.
ralelos móveis também devem ser tomados Quer a arte Levantina tenha surgido no Meso-
com precaução, especialmente quando são lítico ou no Neolítico, muitas questões perma-
tão poucos e tão discutíveis. Por outro lado, necem por explicar. Na minha opinião, o desco-

117
A proteção de um legado único

A arte levantina é provavelmente a manifestação


mais viva e genuína da pré-história europeia.
Já passou mais de um século desde a sua des-
O seu extraordinário valor cultural levou a
Unesco em 1998 a incluir a arte rupestre do ar-
co mediterrânico da Península Ibérica na sua Lis-
coberta, e ainda desperta um enorme interesse ta do Património Mundial. O texto da declaração
entre a comunidade científica, resultando em nu- sublinhava que estas manifestações artísticas se
merosos projetos de investigação e centenas de encontram em zonas escassamente povoadas e
cavernas conhecidas no leste da Península Ibérica, de elevado valor paisagístico. As administrações
muitas delas maravilhosas pelo seu dinamismo e espanholas, por seu lado, promoveram museus e
frescura. centros de estudo e divulgação da arte rupestre,
O mais provável é nunca conhecermos com cer- estabeleceram planos de proteção e divulgação,
teza o significado desta arte, nem se uma cena de e criaram parques culturais para proteger e divul-
caça, luta ou dança é apenas a representação de gar um legado que pertence não só àqueles que
um episódio que os seus protagonistas quiseram vivem nas proximidades das cavernas rupestres,
recordar ou, pelo contrário, se representa algum mas a toda a humanidade.
mito ou crença importante para a sociedade que
a representou. Esta é a maldição do pré-historia- Têm sido seguidas diferentes estratégias pa-
dor quando confrontado com o estudo da arte ra divulgar este património. Por exemplo, a Lei
pré-histórica, uma vez que nos falta o código para dos Parques Culturais de Aragão tornou possível
a decifrar. a criação dos parques de Rio Vero, Rio Martín,
Albarracín, Maestrazgo e Bajo Aragón. O Parque
Cultural Valltorta-Gassulla, cujo epicentro é o
GETTY

Uma parede na Plaza Porticada Museu de La Valltorta, responde a uma estraté-


em Castellón reproduz as pintu- gia semelhante, que na Comunidade Valenciana
ras rupestres de Valltorta.
se completa com o Centro de Interpretação de
Morella la Vella, o Ecomuseu de Bicorp e as visi-
tas guiadas ao santuário de Pla de Petracos pelo
Museu Arqueológico de Alicante. Recentemen-
te, o Plan de Puesta en Valor del Arte Rupestre
Valenciano, promovido pela Generalitat em co-
laboração com as câmaras municipais, fez com
que mais de 20 cavernas anteriormente fecha-
das ao público fossem abertas aos visitantes. E
estão em curso trabalhos para a criação de dois
novos parques culturais: o Caroig em Valência e
o Montaña Alicantina.
Na Catalunha, os Centros de Interpretação Ro-
ca dels Moros del Cogul, Muntanyes de Prades e
Abrics de l’Ermita, todos geridos pelo Museu de
Arqueologia da Catalunha, têm uma função se-
melhante. Em Castilla-La Mancha, as cavernas de
Nerpio, Villar del Humo ou Alpera são protegidas
pela figura do Parque Arqueológico para lhes dar
visibilidade, enquanto que em Múrcia e Andalu-
zia estas figuras de proteção estão quase ausen-
tes, e na gestão e divulgação intervêm a adminis-
tração autónoma e as câmaras municipais.

118
nhecido mais fascinante é a origem deste estilo. as mudanças nas decorações de cerâmica neolí-
Recapitulemos: se, como defendem os propo- tica são apenas isso ou se existe algo mais, como
nentes de uma cronologia antiga, tem as suas a chegada de novas populações com uma tradi-
raízes na arte dos últimos caçadores do Paleolí- ção cultural diferente que se expressa de uma
tico e Mesolítico tardio, como podemos explicar forma diferente da dos primeiros agricultores
as profundas diferenças de estilo e de assunto? e pastores; mas ao mesmo tempo devemos
Em que momento e porque é que a figura huma- abordar o que está por detrás das duas gran-
na parece assumir as composições? Inversamen- des ruturas observadas no Mesolítico Ibérico (o
te, se é arte neolítica, porque é tão radicalmente Macrolítico e o Geométrico), e como o processo
diferente em estilo, assunto e execução dos esti- erosivo que sabemos ter ocorrido entre 8500 e
los macroesquemáticos e esquemáticos? 8000 anos atrás influenciou a preservação dos
sítios dos últimos caçadores-coletores.
A RESPOSTA A ESTAS QUESTÕES SURGIU DE Como em tudo o que se relaciona com os
UMA HIPÓTESE que visa explicar o processo processos sociais, a solução para os enigmas é
Neolítico na Península Ibérica: de acordo com frequentemente complexa, mas talvez tenha
esta teoria, as representações levantinas são a chegado o momento de abrir os nossos olhos,
resposta das sociedades indígenas mesolíticas de não tomar nada por garantido e de abordar
à iconografia neolítica que os primeiros cam- os problemas de uma nova perspetiva, quase do
poneses deixaram em cavernas e grutas no zero, aberta a todas as possibilidades e a outras
norte de Alicante e sul de Valência. Se isto for disciplinas, e de concentrar esforços na obten-
verdade, encontrar-nos-íamos provavelmente ção de datas absolutas e em estudos genéticos.
perante um dos episó- Acreditamos que aspe-
dios mais incríveis da
pré-história europeia,
A arte levantina tos essenciais como a es-
tratigrafia, os complexos
uma vez que populações
praticamente residuais,
pode tornar-se uma industriais à escala local
ou regional, o estudo do
cujas únicas manifes-
tações artísticas reco-
importante fonte de território, as estratégias
de exploração dos re-
nhecidas por todos os
investigadores são algu-
rendimento para as cursos, e as mudanças
sócio-culturais que ti-
mas placas de pedra com
decoração geométrica
áreas despovoadas de veram lugar entre o fim
do Paleolítico regional
incisa, teriam de repen-
te inventado um novo
Espanha e o estabelecimento de
sociedades plenamente
mundo icónico, e teriam neolíticas devem ser in-
começado a retratar cenas naturalistas, dinâ- corporados na discussão. Isto provavelmente
micas e antropocêntricas nas paredes rochosas também não será suficiente, e teremos de re-
das cavernas sem paralelos no resto da Europa. pensar a própria natureza do estilo Levantino,
A teimosia dos dados que emerge do registo explicar convincentemente a sua heterogenei-
arqueológico, pelo menos ao nível da Comuni- dade e, porque não, perguntarmo-nos sobre a
dade Valenciana, sugere uma forte rutura entre sua proveniência.
o Mesolítico e o Neolítico, o que não suporta
processos de transição social que justificariam AO LONGO DESTE TEXTO PROCURÁMOS
o aparecimento da arte Levantina. DESCREVER O ESTILO ARTÍSTICO Levantino e
Em qualquer caso, uma rutura tão radical confrontar as teorias sobre a sua origem e cro-
desta arte com o que a precedeu, com o que era nologia, mas sobretudo transmitir a paixão pe-
supostamente contemporâneo e com o que a lo legado dos nossos antepassados. Seria errado
sucederia a nível artístico, deveria necessaria- investir os escassos recursos de que dispomos
mente ter deixado vestígios noutras áreas, tais apenas na investigação: o que é realmente im-
como a esfera doméstica. Na minha opinião, portante é torná-lo conhecido, fazer com que
é uma tarefa urgente concentrar os esforços os cidadãos o respeitem e o façam seu, e porque
de investigação na procura de quebras nas se- não, vê-lo como mais um recurso económico
quências arqueológicas, mudanças nos padrões que ajuda na difícil situação em que muitas das
de povoamento, utensílios, rituais funerários, regiões levantinas, que sofrem de despovoa-
captação de recursos.... Devemos considerar se mento, se encontram. e

119
Em 2008, uma equipa de
HANNES WIEDMANN / CC

investigadores da
Universidade de Tübingen,
liderada por Nicholas
Conard, descobriu esta
peça, partida em seis
partes, perto da aldeia de
Schelklingen. Hoje é a peça
central do Museu da Pré-
História em Blaubeuren,
Alemanha.

120
O mistério
das vénus
Os peritos ainda estão a debater o significado e a função destas
representações pré-históricas femininas, encontradas em vários
locais do Velho Continente. São consideradas obras-primas da
arte móvel, e alguns especialistas ligam-nas a cultos primitivos
de fertilidade.

POR MARIO GARCÍA BARTUAL,


Paleoantropólogo, membro do Grupo Internacional de Investigação sobre Evolução Humana

Vénus de Hohle Fels as do período cultural gravetiano em pelo menos


5000 anos, e é morfologicamente bastante dife-
rente. Isto sugere que não representa uma fase
Sítio: Hohle Fels (Alemanha)
inicial da tradição do gravetiano e pode não ter
Datação: 31290 - 34570 anos AP / 42000 -
tido o mesmo objetivo ou simbolismo .
44000 cal AP (Calpal-Hulu) (*) Em vez de uma cabeça, tem um anel esculpido
Cronocultura: Aurignaciano para que possa ser pendurada numa corda ou
Material: marfim de mamute correia. Há incisões no braço direito e estriações
Altura: 5,97 cm horizontais no abdómen. Os lábios da vulva são
gigantescos. O dorso é liso exceto para linhas
Esta estatueta está quase completa;apenas fal- incisas na cintura e uma ranhura vertical que in-
tam o braço e o ombro esquerdos. É a mais anti- dica a fenda entre as nádegas. Não há sinais de
ga Vénus conhecida, pois a sua idade antecede que tenha sido coberta com pigmento.

(*) AP: ANTES DO PRESENTE; CAL AP: ANOS CALIBRADOS ANTES DO PRESENTE; CALPAL-HULU: CURVA DE CALIBRAÇÃO CALPAL-HULU

121
Vénus de Lespugue mava do fim, um golpe final de picareta trouxe-
-a à luz, apesar da parte frontal ter ficado muito
Sítio: Grotte des Rideaux (França) danificada.
Datação:ca. 24000 - 26000 anos AP Vem de um contexto arqueológico preciso,
(segundo o contexto arqueológico) uma vez que a indústria lítica e óssea da ca-
Cronocultura: Gravetiano mada em que foi encontrada pertence ao pe-
Material: marfim de mamute ríodo Gravetiano, e esta é a base para a idade
Altura: 14,4 cm que lhe foi atribuída.
Alguns autores, tais como Olga Soffer, Ja-
Foi descoberta a 9 de agosto de 1922 por mes M. Adovasio e Elizabeth Wayland Barber,
René e Suzanne de Saint-Périer na gruta de notam a presença de um cinto por baixo das
Rideaux. Esta é uma das grutas localizadas nádegas preso a uma saia com cordão de fi-
nas gargantas do rio Save, não muito longe bras retorcidas, com extremidades desfiadas.
do município de Lespugue, no sul de França. Wayland Barber fez, inclusivamente, um dia-
À medida que a escavação do local se aproxi- grama da disposição do suposto padrão têxtil.

Liliana Huet, diretora


da coleção do Musée de
l’Homme em Paris,
mostra a Vénus de
Lespugue, uma
PATRICK KOVARIK / GETTY

escultura do Paleolítico
Superior atualmente
detida pela instituição
francesa.

122
123
Entre os milhares de
CANGADOBA / CC

obras expostas no
Museu Nacional de
Arqueologia de França
está esta figura, cujos
atributos sexuais
inicialmente
confundiram os
especialistas.

A estatueta com cinto


Sítio: Grotte du Pape (França) destes fragmentos foi a Vénus com cinto – figu-
Datação: sem data por datação por rine à la Ceinture, em francês –.
carbono-14 É esguia e de pernas longas, e pode corres-
Cronocultura: possivelmente Gravetiano ponder à figura de uma rapariga jovem. Os pré-
Material: marfim de mamute -historiadores denotam algo como um cinto
Altura: 6,8 cm frontal, mas que não continua na parte de trás.
Na realidade, poderiam ser os braços a repousar
Esta escultura é proveniente da Grotte du Pape, na barriga com as mãos entrelaçadas.
em Brassempouy, França, que Pierre-Eudoxe Na zona púbica há uma protuberância igual-
Dubalen escavou pela primeira vez em 1880. mente problemática. Piette hesitou entre inter-
Como as técnicas arqueológicas estavam ape- pretar como um homem com uma pequena tan-
nas a começar a desenvolver-se, foi dada pouca ga ou como uma mulher com um pronunciado
atenção à estratigrafia dos materiais. monte de vénus. No final, optou pela primeira
Em setembro de 1892, o local foi saqueado e possibilidade. Para o especialista Randall White,
perturbado por uma excursão amadora da As- trata-se de uma vulva com uma fenda e um monte
sociação Francesa para o Progresso da Ciência. de vénus salientes. No entanto, ele aponta cau-
Édouard Piette retomou as escavações em 1894 telosamente que as estatuetas do período Grave-
e encontrou fragmentos de estatuetas femininas tiano apresentam frequentemente uma ambigui-
num nível atribuído ao período Gravetiano. Um dade visual que pode muito bem ser intencional.

124
125
Vénus de Willendorf Josef Szombathy, curador do museu, assim co-
mo Hugo Obermaier e Josef Bayer, então dois
jovens cientistas, estavam presentes quando foi
Sítio: Willendorf II (Áustria)
desenterrada. O seu nome oficial é Vénus I, para
Datação: 24900 - 25800 anos AP/29100 -
a distinguir de duas outras estatuetas — VénusII
30800 cal AP (IntCal13) e Vénus III —encontradas no mesmo local.
Cronocultura: Gravetiano A peça é feita de uma rocha chamada calcário
Material: calcário oolítico oolítico, formada por pequenos corpos carbo-
Altura: 11,1 cm natados esféricos. A sua estrutura provoca o
aparecimento de pequenas cavidades redon-
O complexo arqueológico Willendorf é cons- das na superfície quando uma esfera é desta-
tituído por oito sítios ao longo do rio Danúbio cada. Uma destas depressões foi habilmente
no vale do Wachau. A 7 de agosto de 1908, utilizada pelo artista para retratar um umbigo.
durante escavações patrocinadas pelo Museu Tem também uma decoração estranha na ca-
de História Natural da Corte Imperial em Viena, beça. Durante anos, foi interpretada como um
foi encontrada no local a Vénus que hoje adota penteado sofisticado, mas alguns peritos sus-
o seu nome. tentam que é uma espécie de boné.

Um “penteado enigmático”
W alpurga Antl-Weiser, consumada especia-
lista nesta Vénus, afirma que o curioso de-
senho na cabeça foi criado por uma combinação
ter servido como um manual de instruções para
mostrar aos tecelões como fazer estes toucados.
A antropóloga Mariana Gvozdover salienta, no
de linhas transversais e concêntricas. Vestígios de entanto, que se se trata, de facto, de um gorro ve-
ocre vermelho são particularmente bem preserva- getal, Adovasio e Soffer deveriam publicar dese-
dos nas cavidades das placas. nhos detalhados dos padrões de trança, mas isso
Olga Soffer e James M. Adovasio afirmam que não é assim tão simples. Antl-Weiser — no centro
se trata, de facto, de um gorro “tecido” à mão de da imagem abaixo, com Anton Kern, diretor do De-
forma radial. Este poderá ter sido começado a par- partamento de Pré-História do Museu de História
tir de um centro com nós, tal como certos cestos Natural de Viena, onde se encontra a estatueta —
enrolados feitos hoje em dia por algumas tribos publicou fotografias ampliadas mostrando entre-
indígenas americanas. Sete circuitos circundam laçamentos verticais com áreas ovais espessadas
a cabeça, com dois meios-circuitos adicionais na que podem ser nós, seguidas de desbaste que
nuca. A configuração de todos os pontos é tão pre- podem ser voltas. Mas daí até deduzir um padrão
cisa que estes investigadores sugerem que deve preciso é um longo caminho a percorrer.
NHM WIEN / KURT KRACHER

126
A mais famosa das
Vénus pré-históricas
é provavelmente
esta de Willendorf,
uma figura esculpida
em calcário oolítico
e manchada de ocre,
MICHAEL KHAN / CC0

encontrada em 1908
num local perto do
Danúbio.

127
Vénus de Menton
Sítio: Barma Grande (Itália)
Datação: sem data por carbono-14
Cronocultura: possivelmente Gra-
vetiano
Material: Esteatita âmbar
Altura: 4,7 cm

Esta é uma das famosas Vénus de


Grimaldi, na Ligúria (Itália). Foi encon-
trada por Louis Alexandre Jullien em
dezembro de 1883 em Barma Gran-
de. Este sítio arqueológico é também
conhecido como Menton, Baoussé-
-Roussé e Balzi Rossi.
A cabeça da estatueta, que não tem
traços faciais, é ovóide. Na nuca, es-
tende o que parece ser um penteado
de cauda de pónei até à cintura. Os
braços estão delineados e completa-
mente presos ao corpo. Não há ante-
braços. Os peitos são arredondados
e muito grandes. Tem uma barriga
proeminente, sem vulva, e ancas lar-
gas. As pernas terminam acima dos
joelhos.
É feita de esteatita, uma variedade
de talco — uma rocha metamórfica
muito macia, ideal para talha, e não
foi encontrado qualquer vestígio de
ocre na mesma.

Esta estatueta foi encontrada a


pouco mais de 4 m de
profundidade, num depósito no
sítio arqueológico italiano de
Barma Grande. Pensa-se que tenha
mais de 22 000 anos de idade.
Encontra-se agora no Musée
GETTY

d’Archeologie Nationale em França.

128
Os primeiros humanos modernos estabelecidos na Europa
já faziam figuras com atributos de animais e pessoas

O
Homo sapiens do Próximo Orien- Na Bulgária, os invernos podem atingir -15
te apareceu na Europa de Leste graus Celsius. As temperaturas de verão não ex-
entre 45 900 e 43 500 anos AP, na cediam os 10 graus Celsius. Estamos a falar de
caverna Bacho Kiro (Bulgária), um clima subártico, com muita neve e poucas
durante o Aurignaciano basal. O horas de luz solar. A gelidez testou a capacida-
Aurignaciano é o primeiro tecnocomplexo dos de técnica dos nossos antepassados para desen-
humanos modernos a alcançar o Velho Conti- volver estratégias de caça e para obter vestuário
nente, ou seja, a sua primeira cultura material, isolante e habitações suficientes. Seria interes-
que levará ao início do Paleolítico Superior. sante perguntar-lhes se ficariam angustiados
Distingue-se pelo uso de finas lâminas líticas, com um ligeiro aumento de temperatura.
ferramentas ósseas, contas e outros objetos de
decoração pessoal, bem como estatuetas e pin- APESAR DO FRIO, JÁ CRIAVAM MÚSICA COM
turas parietais surpreendentes, como as da ca- DELICADAS FLAUTAS de marfim e explora-
verna francesa de Chauvet. vam a ideia do humano e do animal sob a forma
Os Aurignacianos são originários de África, de teriantropos, estatuetas de seres abstratos
provavelmente de pele escura, talvez com olhos combinando qualidades humanas e animais.
inclinados, e são os que estabeleceram contac- Um exemplo magnífico é o homem-leão da Ca-
to com os Neandertais. A sua chegada coincide verna do Stadel no sul da Alemanha. Esculpido
com o evento Heinrich 5, um evento climático em marfim de mamute, tem a cabeça e as patas
observado nos levantamentos de sedimentos dianteiras de um leão da caverna, mas o corpo e
marinhos e abreviado como H5. Pensa-se que as as pernas de um homem.
temperaturas durante o H5 foram dez a quinze Os conceitos de mulher e homem já tinham
graus Celsius inferiores às de hoje. sido inventados. O masculino é encarnado num

Aventuras e desventuras das Vénus de Grimaldi


A s grutas de Grimaldi são um dos locais
paleolíticos mais importantes da Europa.
De oeste para leste encontram-se Grotte des
– foram compradas pelo famoso pré-historia-
dor e colecionador de arte paleolítica Edouard
Piette, que em 1906 entregou toda a sua cole-
Enfants, Abri Mochi, a Grotte du Cavillon, Abri ção ao MAN, onde hoje podem ser apreciadas.
Bombrini, Barma Grande, Baousso da Torre e No entanto, há mais exemplares. Uma oitava
a Grotte du Prince. Louis Alexandre Jullien, um estatueta é mantida no Peabody Museum of
arqueólogo antiquário e amador de Marselha Archaeology and Ethnology, ligado à Universi-
que as examinou no final do século XIX, esta- dade de Harvard nos EUA.
va mais interessado em ganhos financeiros do Outras sete foram descobertas em 1994 em
que em escavações cuidadosas, e muitos de- Montreal, Canadá, a partir da coleção pessoal
talhes dos seus achados são desconhecidos. de Jullien, que se mudou para lá entre 1895 e
Jullien descobriu duas estatuetas femininas 1900. Estas foram preservadas pela sua famí-
em dezembro de 1883 em Barma Grande. A lia durante quase um século, e apenas uma,
mais completa é a de esteatita ambarina ou ama- conhecida na literatura como o Busto, tinha si-
rela aqui mostrada. Em 1896, vendeu-a a Solo- do previamente estudada pelo pré-historiador
mon Reinach do Musée d’Archéologie Nationale francês, naturalista e abade Henri Breuil. Em
(MAN) em Saint-Germain-en-Laye, França. 1995, foram expostas numa exposição no Mu-
Outras seis – cinco em 1897 e uma em 1903 seu de História do Canadá, em Gatineau.

129
Vénus negra de
falo esculpido no núcleo do corno de um bisonte Dolní Vĕstonice
proveniente do abrigo Blanchard no sudoeste de
França; a escultura tem 36 000 anos e mede 25 Sítio: Dolní Vĕstonice I (República Checa)
centímetros. A imagem feminina aparece pela Datação: 33000 - 28000 anos AP (datação
primeira vez no sítio alemão de Hohle Fels. Data
por carbono-14 e termoluminescência)
de entre 40 000 e 35 000 anos AP e é espantosa:
tem seios grandes, projetados para a frente, que Cronocultura: Gravetiano
se situam bem acima do tronco. A vulva é incri- Material: terracotta
velmente aumentada, e as pernas — na verdade, Altura: 11,1 cm
apenas as coxas — estão bem afastadas. É a única
estatueta feminina conhecida do Aurignaciano. Juntamente com outras estatuetas encontra-
das nas proximidades, é a mais antiga figura
CINCO MIL ANOS MAIS TARDE, HOUVE UMA
de terracota conhecida no mundo, anterior
PROLIFERAÇÃO DESTE TIPO de estatueta, ge-
ao uso de barro cozido para fazer cerâmica.
nericamente conhecida como vénus. Aparecem
com a cronocultura Gravetiana, entre 30 000 e A sua fisiologia sugere que se trata de uma
22 000 anos antes do presente. Inicia-se duran- fêmea madura e multípara. Para o palaeoan-
te o evento Heinrich 3, também caracterizado tropólogo Erik Trinkaus, que investigou os
por baixas temperaturas e condições glaciais, vestígios humanos no local, o realismo da
altura em que já não existiam Neandertais. A sua obesidade é um paradoxo, pois os fós-
coleção é constituída por cerca de 200 estatue- seis encontrados mostram que as pessoas
tas e fragmentos tridimensionais da Sibéria ao na área sofreram de uma série de doenças
oeste da França — não foi encontrada nenhuma conflituosas, resultado de longas distâncias
na Península Ibérica. a pé, carregando cargas pesadas e ocasio-
As Vénus do Gravetiano caracterizam-se pela
nais carências alimentares.
sua barriga e seios aumentados. No entanto, ao
O arqueólogo Bohuslav Klíma acredita que
contrário da de Hohle Fels, são de aspeto natu-
ral e de aparência flácida sobre o abdómen de- o enclave poderia ter sido ocupado durante a
vido ao seu peso. maior parte do ano e durante longos períodos
O tronco é bem modelado e as mãos são re- de tempo. Assim, organizar-se-iam, de vez
tratadas de forma esparsa. As cabeças são ca- em quando, viagens a lugares distantes pa-
racteristicamente inclinadas para baixo e para a ra recolher as matérias-primas necessárias
frente, sem características faciais, embora haja para fazer ferramentas e encontrar novos lo-
exceções. A pose do corpo faz com que pareçam cais de caça. Os sujeitos menos capazes, ou
sem peso, como se estivessem suspensas, e não talvez mais privilegiados, ficariam para trás
como a de Hohle Fels, que transmite uma sen- para manter os fogos a arder para aquecer e
proteger a povoação. Um estilo de vida tão
O Museu da sedentário faria engordar.
MIROSLAV ZACHOVAL / CC

Moravia em Brno A linha horizontal em torno do abdómen


(República Checa) da Vénus, abaixo do umbigo, foi interpretada
detém esta como um cinto. Tem quatro buracos no topo
estatueta, que foi
da cabeça e estava dividida em dois quando
encontrada no que
poderá ter sido a foi encontrada. Há também um vestígio de
oficina de um uma impressão digital no seu verso. A aná-
artesão do lise indica que quem segurou a peça antes
Paleolítico. de ser cozida tinha entre sete e quinze anos
de idade. Esta pessoa poderá não ter sido o
artesão, pois ainda não tinha atingido o nível
de habilidade necessário.

130
Perto do sítio onde

AGE
sação de apoio e de peso. Da mesma forma, as apareceu a Vénus
negra, foram
pernas, juntas, mostram certas proporções.
encontradas
Algumas têm ornamentos e decorações inte-
numerosas
ressantes; faixas de corpo, pulseiras e até saias. estatuetas de
Mas para muitos pré-historiadores, como Paul animais e esferas
Mellars da Universidade de Cambridge (Reino de barro que ainda
Unido) e Nicholas Conard da Universidade de não tinham sido
Tübingen (Alemanha), o aspeto mais decisivo trabalhadas.
reside na sua enorme carga sexual. Sugerem
que foram criadas para chamar a atenção para
alguns elementos que se destacam dos restan-
tes: a vulva, os seios, o estômago e as nádegas.
Nas últimas décadas, alguns pré-historiadores
questionaram a componente erótica e ligaram
esses atributos ao pós-parto e à lactação.
A figuração genital é simétrica na sua con-
trapartida masculina. Os sítios Aurignacianos
e Gravetianos contêm representações fálicas
igualmente explícitas, mas não recebem a mes-
ma atenção mediática.
No seu livro The Invisible Sex, os antropólogos
James M. Adovasio e Olga Soffer sublinham que

A antiguidade das Vénus, um verdadeiro problema


M uitas destas estatuetas foram encontra-
das nos primeiros tempos da arqueologia
moderna, quando não havia um planeamento
A partir daí, as primeiras são mais jovens que
as segundas. Tal irregularidade torna necessá-
rio elaborar uma curva de calibração, para obter
adequado ou os métodos de escavação ultra um resultado em anos de calendário ou anos
cautelosos de hoje em dia. Em nenhum dos lo- calibrados — abreviado como cal. Por exemplo,
cais clássicos foram recolhidas amostras orgâ- 5000 anos cal AP significa 5000 anos calibra-
nicas para estimar a sua idade. A datação por dos — ou anos de calendário — antes de 1950.
radiocarbono, em que se utiliza o isótopo carbo- Para se ter uma ideia: 32 000 anos AP corres-
no-14, entrou em uso muito mais tarde, no final ponde aproximadamente a 36 000 anos cal AP.
da década de 1940, requerendo frequentemen- Fazer uma curva de calibração é difícil. Para
te a re-escavação dos locais. tal, é feita uma comparação de anéis de cresci-
A idade das vénus tem sido tradicionalmente mento de árvores, espeleotemas, corais, fósseis
estimada com base na cronocultura associa- e outros procedimentos com os padrões radio-
da — artefactos, elementos artísticos, etc...—. métricos obtidos em laboratório. Ao longo dos
Contudo, as culturas arqueológicas têm um pe- últimos trinta anos, muitas curvas de calibração
ríodo de tempo considerável, e a datação por padrão foram publicadas utilizando vários méto-
radiocarbono é mais precisa para refinar datas. dos e abordagens estatísticas. Na sua maioria,
As datas de radiocarbono não são calculadas foram substituídas pela série IntCal por serem
com base no nascimento de Jesus Cristo, mas mais precisas. A primeira foi publicada em 1998
na convenção antes do presente (AP), fixada em e foi chamada IntCal98. Foi atualizada em 2004,
1 de janeiro de 1950. 2009, 2013 e 2020. A mais recente é, portanto,
A produção de carbono-14 não é constante IntCal20. A Universidade de Colónia (Alemanha)
ao longo do tempo, pelo que as datas obtidas utiliza a curva de calibração CalPal-Hulu, que é
pela sua utilização e as datas do calendário só amplamente utilizada pelos arqueólogos que
coincidem nos últimos 2500 anos. trabalham na costa cantábrica.

131
Vénus de Kostenki I
Sítio: Kostenki I (Ucrânia) é inegável que os escultores das vénus tiveram
Datação: 23260 - 23530 anos AP/ 27400 muito trabalho para mostrar as características
sexuais da mulher, ao ponto de deixar o resto da
- 27800 cal AP (IntCal13)
figura — rosto, pés, braços... — representados
Cronocultura: Gravetiano de forma abstrata ou totalmente ausente. No en-
Material: marga tanto, é de notar que nem todas têm uma vulva,
Altura: 10,3 cm algumas mostram uma dualidade corporal. Há
também aquelas com corpos e pernas alonga-
Esta obra foi descoberta durante as escavações das, por vezes até esbeltas. Estas vénus estiliza-
das foram encontradas nos sítios russos de Ga-
conduzidas pelo arqueólogo Nikolai Dmitrie-
garino, Avdeevo e Kostenki 1, e no sítio francês
vich Praslov, em 1983. Foi encontrada virada
de Brassempouy. Isto revela a complexidade do
para baixo no chão de um complexo habitacio- seu simbolismo como objetos expressivos.
nal em Kostenki — ou Kostienki. Este não é um
sítio único, mas sim toda uma área constituída QUE SIGNIFICADO PODERIAM TER? Os pré-
por mais de 20 sítios arqueológicos na margem -historiadores têm vindo a trabalhar nisto há
direita do rio Don.Os especialistas russos cha- mais de um século. As vénus paleolíticas são
mam-lhe a área Kostenki-Borshchevo, uma vez tanto ícones como símbolos. São icónicas, por-
que se situa entre estas localidades . que têm indubitavelmente características femi-
A cabeça da vénus foi partida e mais tarde ninas que servem para que as nossas mentes as
colada ao corpo. A sua superfície é bem alisa- associem ao conceito de mulher. São símbolos
porque sentimos que um artesanato tão deli-
da e pintada com ocre vermelho. A parte su-
cado e laborioso requer motivações profundas
perior do tronco tem faixas trançadas presas
e um sistema complexo de crenças que só faria
às costas e cuidadosamente unidas, de modo sentido dentro das comunidades paleolíticas,
a poder ser pendurada à volta do pescoço com as suas próprias línguas e o uso de acordos
ou presa à parte superior do busto, como um tácitos — convenções — para expressar ideias e
ornamento. Os braços têm braceletes e são sentimentos.
mantidos perto do corpo, com as mãos na bar- Para Soffer e Adovasio, as parcas peças de
riga. Tem também um toucado semelhante ao vestuário que enfeitam as vénus provam que
da Vénus de Willendorf. as mulheres do Gravetiano faziam vestuário

Esta figura,
encontrada num
complexo
arqueológico perto
EFE/ ROBIN VAN LONKHUIJSEN

do rio Don na
Rússia,faz parte da
coleção do Museu
Hermitage em São
Petersburgo.

132
Vénus de Gagarino
vegetal. Além disso, as suas portadoras teriam
1927c
um elevado estatuto social e teriam usado uma Sítio: Gagarino (Rússia)
grande variedade de artesanato, incluindo ves-
Datação: ca. 21 800 anos AP (a partir de
tuário entrançado e tecelagem simples sem fa-
brico em tear. Este seria um salto tecnológico e uma única amostra)
que iniciaria “a revolução da corda”, segundo a Cronoculturea: Gravetiano
arqueóloga Elizabeth W. Barber. Para o seu co- Material: Marfim de mamute
lega Alexander Marshack, as vénus apresentam Altura: 7,15 cm
uma imagem variada e complexa, apresentando
nulíparas e grávidas. Da mesma forma, o pro-
Gagarino está localizado num terraço de loess
fessor de arte LeRoy McDermott argumenta que
representam a topografia biológica do corpo — depósitos de sedimentos formados por
feminino, com uma função semelhante à dos partículas sopradas pelo vento — na margem
manuais modernos de obstetrícia e ginecologia. norte de uma ravina na margem direita do rio
Os antropólogos Randall White e Michael Bis- Don. Fica a norte dos sítios Kostenki. Os agri-
son conjeturam que eram usadas por mulheres cultores locais descobriram um poço de com-
grávidas para promover uma boa gestação e um plexo habitacional ao cavar uma vala de silo.
parto seguro. Infelizmente, esta atravessou o eixo principal
do sítio e destruiu grande parte do mesmo.
ACERCA DO ASPETO OBESO, OUTRO ANTRO- A estatueta 1927c tem tronco e pernas lon-
PÓLOGO, JOHN HOFFECKER, salienta que as
gos e esguios. Pertenceria ao grupo das vénus
pessoas em ambientes subárticos tendem a co-
estilizadas. Os braços estão partidos. Parece
mer uma dieta rica em proteínas e gordura de-
vido às maiores exigências calóricas de climas representar uma mulher após a gravidez, por-
mais frios e à menor disponibilidade de vegetais. que a sua barriga e seios estão flácidos.
Além disso, a gordura corporal atua, até certo
ponto, como isolante térmico. Neste sentido,
um dos principais problemas em considerá-las
como símbolos de fertilidade deve-se à ciência
Entre as oito
ANDREAS FRANZKOWIAK / CC

atual, pois existe uma forte ligação entre a obesi-


esculturas
dade e a infertilidade. Assumindo que a maioria
conhecidas como
delas representa mulheres com excesso de peso,
as Vénus de
é paradoxal que tais figuras estejam longe de ser Gagarino no
alegorias de fertilidade. Será que as pessoas do Museu Hermitage,
Paleolítico Superior sabiam disso? É possível, esta, com as suas
uma vez que tudo o que se relacionava com a na- características
talidade envolvia a sua sobrevivência. mais estilizadas,
Num estudo sobre se simbolizavam a fertilida- destaca-se.
de ou atração sexual, Alan F. Dixson e Barnaby
J. Dixson concluíram que haveria três cenários
possíveis: uma minoria destinar-se-ia a repre-
sentar mulheres adultas jovens, sexualmente
atraentes e nulíparas, que poderiam ser con-
sideradas vénus no sentido tradicional; outro
subconjunto de estatuetas representaria mu-
danças na forma do corpo durante a gravidez
e poderiam ser símbolos de fertilidade; final-
mente, estatuetas personificando mulheres
corpulentas e frequentemente de meia-idade
não seriam vénus num sentido moderno ou
convencional. Em vez disso, podem represen-
tar a esperança de sobrevivência e de como al-
cançar a maturidade através de uma alimenta-
ção abundante durante os tempos mais duros
da última era glacial. e

133
O pintor russo
ALBUM

Konstantin Pavlovich
Kuznetsov (1863-1936)
imaginou assim o seu
Homem das cavernas a
tocar flauta.

134
Chamem-me
“Homo musicalis”
A música pode ter sido o primeiro instrumento de comunicação
da nossa espécie, e continua a ser o veículo que melhor
transmite e desperta as nossas emoções mais profundas.
POR ELENA SANZ
Jornalista científica

“N
o princípio era o Verbo...”, assim plantar a música e hoje seja o nosso meio de
afirma o primeiro versículo do comunicar ideias e informação, a música ain-
Evangelho de João na Bíblia. Mas da desperta as nossas emoções mais básicas”.
não é exatamente assim. Até onde A música ajudou — e ajuda — os hominídeos a
os palaeoantropólogos consegui- encontrar um companheiro, a confortar uma
ram descobrir, “no início era música...”. An- criança ou a unir um grupo social, seja um gru-
tes das primeiras palavras agraciarem os nossos po de caçadores pré-históricos, uma comuni-
lábios, provavelmente comunicávamos com dade de frequentadores de igrejas, os membros
murmúrios melódicos e musicais. de uma orquestra ou um bando de crianças a
Mas o que queremos dizer exatamente quan- cantar juntos na hora do recreio. Como dis-
do falamos de música? Uma boa — e ao mesmo se uma vez o escritor Aldous Huxley: “Depois
tempo complexa — questão. Jeremy Monta- do silêncio, a coisa que mais se aproxima da ex-
gu (que morreu em dezembro de 2020 com 92 pressão do inexprimível é a música”.
anos), investigador da Universidade de Oxford
e uma das principais autoridades mundiais so- AOS SERES HUMANOS BASTAM APENAS AL-
bre a história e origem dos instrumentos mu- GUMAS NOTAS PARA RECONHECER uma can-
sicais, foi bastante claro: “A sua ideia de mú- ção de embalar. Não importa se é uma canção
sica é provavelmente diferente da minha, e da de embalar na língua Lingala, falada na África
do nosso vizinho também. Só posso dizer que central, ou se é uma mãe sami na Lapónia que
a minha, é que a música é o som que transmite a canta. O mesmo se aplica às canções concebi-
a emoção”. das para nos fazer mexer na pista de dança: têm
De facto, uma das provas de que a música não uma estrutura universal, que identificamos
é um elemento supérfluo na história do Homo instantaneamente.
sapiens é a facilidade com que nos move. Ste- Depois de estudar mais de 300 culturas di-
ven Mithen, Professor de Arqueologia na Uni- ferentes em todo o mundo, Samuel Mehr da
versidade de Reading (Reino Unido), argumen- Universidade de Harvard (EUA) chegou a vá-
ta que “embora a linguagem acabasse por su- rias conclusões. Antes de mais, não há ne-

135
Não há nenhum grupo
humano, por mais
isolado que seja, que não
tenha produzido algum
tipo de música
nhum grupo cultural humano, por mais remo-
to ou isolado que não tenha desenvolvido músi-
ca. Em segundo lugar, identificou que a música
está associada acima de tudo a quatro contex-
tos culturais: cuidados infantis, cura, dança
e amor. Mas está também associada ao luto, à
guerra e aos rituais.
Além disso, em cada um destes contextos,
as características das canções são muito se-
melhantes, independentemente da sua prove-
niência. De facto, quando Mehr e os seus co-
legas pediram a um grupo de pessoas de etnia
Kreung do Camboja rural para criar música que
soasse feliz, zangada ou triste, e depois a toca-
rem para indivíduos seus antípodas a ouvirem,
todos eles rapidamente identificaram as mes-
mas emoções.
A explicação é tão simples como: a música
funciona como uma cola social. Os antropólo-
gos argumentam que canções com um ritmo

136
Há cerca de 18 000
anos, os habitantes
DIDIER DESCOUENS / CC BY 4.0

da gruta Marsoulas
(Pirenéus franceses)
manipularam esta
concha marítima pa-
ra produzir sons.

137
Esta flauta de marfim é um dos
mais antigos instrumentos
musicais conhecidos. Foi
encontrada na Alemanha e tem
mais de 35 000 anos de idade.
AGE

O sentido de ritmo é inato


C om apenas três dias de vida, quando os nos-
sos olhos mal conseguem distinguir mais
do que sombras desfocadas, os humanos já
a primeira batida da sequência rítmica era pe-
riodicamente saltada, os recém-nascidos não
a perdiam.
conseguem detetar o ritmo da música. Como Pareciam continuar a marcar a batida inter-
prova disso, investigadores húngaros e holande- namente e reagiam com surpresa quando uma
ses mediram a atividade cerebral de 14 recém- batida falhava. Tal precocidade, dizem os peri-
-nascidos enquanto ouviam ritmos rock básicos tos, é mais uma prova de que a música e os seus
tocados com tarola, baixo e címbalos, através de ritmos devem proporcionar alguma vantagem
auscultadores. A gravação revelou que, quando evolutiva.

As pesquisas
indicam que o ritmo
cardíaco do bebé e
o do pai ou da mãe
a cantar uma
canção de embalar
SHUTTERSTOCK

para o bebé se
sincronizam.

138
intenso e forte ajudam a coordenar grupos hu- reduz os seus níveis de stress, aumenta a sua
manos a agir e a mover-se em conjunto, o que, capacidade de concentração e ajuda-os a for-
por sua vez, reforça os laços sociais. Ninguém mar laços emocionais profundos com os seus
pode negar, neste momento, que a música gos- pais ou prestadores de cuidados. A ligação al-
pel une, tal como as marchas realizadas duran- cançada desta forma é tão estreita que os ritmos
te as procissões da Semana Santa, a tarantel- fisiológicos (respiração, batimentos cardíacos,
la dançada pelos italianos do sul nas suas cele- sinais elétricos do cérebro) do bebé e do presta-
brações, ou os hinos e aplausos cantados pelos dor de cuidados se tornam sincronizados. Mais
adeptos de futebol quando estes aplaudem as uma vez, a música atua como uma cola social,
suas equipas no estádio. só que neste caso, entre os mais pequenos e os
Em geral, e desde os tempos em que os nos- seus cuidadores.
sos antepassados viviam em cavernas, a música Ao contrário do que se poderia pensar à luz
partilhada ajuda-nos a unir grupos humanos, a destas descobertas, a composição musical mais
trabalhar melhor em equipa e, possivelmente, antiga gravada na história não foi nem uma
a defender com sucesso os nossos territórios. canção de embalar nem uma melodia para dan-
Por outras palavras, sobreviver. çar à volta da fogueira. Era um hino hurriano
(um povo da Mesopotâmia) dedicado à deusa
MEHR TAMBÉM TEM UMA EXPLICAÇÃO PARA Nikkal e composto por um escriba chamado
O GRANDE PODER CALMANTE das canções de Hammurapi, cerca de 3400 anos atrás. O hino
embalar. “Os pais ou cuidadores precisam de foi escrito em alfabeto cuneiforme ugarítico so-
enviar sinais fiáveis ao seu bebé de que estão a bre placas de barro, e a sua transcrição foi con-
prestar-lhe atenção. E como a atenção é uma seguida, após muito esforço, por Anne Kilmer,
propriedade invisível e intangível da mente, especialista em Assiriologia na Universidade da
a melhor maneira de mostrar ao seu bebé que Califórnia (EUA).
tem todos os seus sentidos voltados para ele é O mais interessante é que, além da sua letra, a
cantar”. peça contém instruções para afinar o sammûm,
Como se tudo isto não fosse suficiente, a re- uma espécie de harpa ou lira com nove cordas.
cente investigação neurocientífica sugere que a Escusado será dizer que, para os paleomusicó-
audição de canções de embalar promove o de- logos, é uma relíquia quase sagrada. A sua exis-
senvolvimento cerebral em recém-nascidos, tência prova que as noções de harmonia e a es-

As canções de embalar acalmam os bebés porque são a


prova de que lhes é dada toda a atenção que necessitam

139
O paleomusicólogo Eric

SPL
Gonthier, do Museu de
História Natural de
Paris, toca litofones,
instrumentos musicais
feitos de pedras polidas
que remontam ao
período Neolítico.

A composição musical mais antiga que se conhece


tem cerca de 3400 anos de idade. É um hino da
Mesopotâmia à deusa Nikkal

cala diatónica de sete notas já estavam em uso Mais a sul, na Caverna do Matjes River, na
antes da Grécia Antiga. África do Sul, a arqueóloga e musicóloga Sarah
Muito antes desse hino, há cerca de 35 000 Wurz desenterrou, há alguns anos, um peda-
anos, os primeiros humanos a estabelecerem- ço de osso liso com um buraco; rapidamente
-se na Alemanha atual encontraram um osso o reconheceu como parte de um zumbador ou
alongado de abutre com cerca de 20 centíme- bramadeira. Trata-se de um instrumento de so-
tros de comprimento. Com grande delicadeza, pro que emite um som semelhante ao zumbido
esculpiram cinco pequenos buracos e um enta- das abelhas. Na sua configuração mais comum,
lhe numa das extremidades. E sopraram atra- consiste numa tala leve, em forma elíptica, li-
vés deste para fazer música, tapando os bura- gada a uma corda que é utilizada para a fazer
cos com os dedos para percorrer as diferentes rodar sobre si mesma, o que gera o som. Embo-
notas que esta flauta primitiva, o mais anti- ra a sua origem remonte ao período Paleolítico,
go instrumento musical conhecido, era capaz parece que quase todas as culturas do mundo o
de emitir. Os seus contemporâneos em outras utilizaram em algum momento do seu desen-
partes da Europa fizeram algo semelhante, mas volvimento. Ainda hoje, os bosquímanos da
com presas de mamute. Até à data, pelo menos África Austral e os aborígenes australianos uti-
oito flautas de marfim deste tipo foram encon- lizam-nos em várias das suas cerimónias.
tradas com datações semelhantes, provando
que a música era importante para os nossos an- OS PALEONTÓLOGOS SUSPEITAM QUE ESTE
tepassados. INSTRUMENTO SURGIU espontaneamente da

140
Vá lá, todos juntos!
Q uando se trata de cantar, é melhor fazê-lo
acompanhado do que sozinho. Por mui-
tas razões, algumas delas relacionadas com
Mas isso não é tudo. Outro estudo de in-
vestigadores australianos mostrou que can-
tar e dançar em uníssono com outras pessoas
a saúde física e mental. Cientistas alemães da abranda o ritmo cardíaco daqueles que o fazem
Universidade de Frankfurt demonstraram há e reduz a sua perceção de dor. Além disso, há
alguns anos que os membros de um coro têm provas irrefutáveis de que as pessoas que can-
níveis mais elevados de imunoglobulina A e ci- tam em grupo experimentam mais sentimentos
tocinas, dois marcadores claros de um sistema de ligação e inclusão social, e mesmo um sen-
imunitário robusto que, entre outras coisas, é tido de significado na vida, do que aquelas que
mais capaz de combater o cancro. cantam sozinhas ou não cantam de todo.
SHUTTERSTOCK

O povo Hamer, que vive no sul da Etiópia, dança em grupo durante uma cerimónia de iniciação juvenil. O
canto e a dança comunitária têm sido um instrumento de união desde tempos imemoriais.

utilização circular da fisga para atirar pedras na micas indica que a percussão está connosco há
caça ou na luta. Percebendo que a arma emitia milhões de anos. Por outras palavras, os primei-
um som rítmico, os nossos antepassados de- ros hominídeos já batiam voluntariamente no
vem ter pensado que poderiam usar um objeto chão com as mãos, um pau ou pedras — ou com
semelhante (e mais leve) para criar música. as pernas — para produzir sons.
Quando perguntamos a Andrea Ravignani so-
bre os primeiros instrumentos musicais da hu- ENQUANTO PROCURAVA A ORIGEM DO SEN-
manidade, ele não pensa duas vezes: a voz — dis- TIDO DO RITMO, OCORREU A RAVIGNANI
ponível mesmo antes de sermos capazes de fazer QUE, ao rastrear características musicais de ou-
instrumentos — e a percussão. Este investigador tras espécies de mamíferos, ele podia construir
do Instituto Max Planck de Psicolinguística em uma árvore evolutiva de capacidades rítmicas.
Nijmegen (Holanda) acredita que o facto de os Fixou, assim, o seu objetivo nos Indri indri,
grandes símios fazerem gestos semelhantes a ba- lémures de Madagáscar, primatas do tamanho
ter um tambor e assim produzir sequências rít- de um gato doméstico e agora em perigo de ex-

141
Sons para comunicação à distância

E m África, o povo do Alto Congo tem vindo


a trocar mensagens à distância há séculos
utilizando tamtam, tambores de madeira que
sido utilizada desde tempos imemoriais na ilha
de La Gomera para comunicar a longas distân-
cias. Permite a troca de uma gama ilimitada de
podem ter dois metros de comprimento. Só mensagens através da reprodução das caracte-
precisam de duas notas, uma alta e outra bai- rísticas sonoras de uma língua falada através de
xa, para enviar qualquer mensagem aos seus assobios. Hoje reproduz o espanhol falado nas
vizinhos. Outro exemplo de sons musicais para Ilhas Canárias, mas, pelo menos em teoria, po-
telecomunicações é encontrado nos pastores deria fazer o mesmo com qualquer outra língua.
e vaqueiros dos vales alpinos, que até há algu- Embora em algumas ocasiões tenha sido utiliza-
mas décadas atrás comunicavam com os seus da como língua secreta — durante a conquista
vizinhos com um longo corno de madeira, co- castelhana no final do século XV, em guerras,
nhecido como alpenhorn em alemão da Suíça. para contrabandear — as mensagens emitidas
Ainda mais sofisticado é o silbo gomero das por meio do silbo são públicas, porque assim o
Ilhas Canárias, uma língua assobiada que tem exige a natureza deste código.
SHUTTERSTOCK

O tubo alpenhorn pode ter mais de 3,5 metros de comprimento. É conhecido desde tempos antigos como um instru-
mento de comunicação e musical, e existem instrumentos semelhantes em outras regiões montanhosas do mundo.

tinção. Após anos a observá-los, descobriu que Segundo o psicolinguista, esta capacidade
as suas canções têm ritmos categóricos. Este é pode ter evoluído independentemente entre as
o nome dado aos ritmos em que os intervalos espécies cantoras, pois o último antepassado
entre sons têm exatamente o mesmo compri- comum dos seres humanos e dos indri viveu há
mento (ritmo 1:1), ou o dobro do comprimento cerca de 77,5 milhões de anos.Ravignani defen-
(ritmo 1:2). Este tipo de ritmo torna uma peça de fortemente o papel central dos ritmos com-
facilmente reconhecível, mesmo que seja can- portamentais e cerebrais na música, linguagem
tada a velocidades diferentes. E é um padrão e movimento. “Não nos damos conta, mas a
universal que parece ser encontrado em todas linguagem falada tem o seu próprio ritmo, que
as culturas musicais humanas. capta a nossa atenção, regulariza a cadência da

142
As competências musicais podem ter evoluído como
um indicador da “qualidade genética” de potenciais
companheiros
fala, enfatiza certos significados e facilita a nos- como a cauda de um pavão: embora aparente-
sa interação com os outros”, afirma o especia- mente inútil, atrai a atenção dos nossos poten-
lista à Super Interessante. Embora admita que é ciais companheiros de uma forma poderosa.
mais difícil definir o ritmo da conversa do que o Para quantificar até que ponto somos sedu-
da música e a sua cadência, não deve ser relega- zidos pelas capacidades musicais, o psicólogo
do para uma posição secundária. “Na antropo- Guy Madison e os seus colegas da Universidade
logia reconhece-se que quando as pessoas tra- de Umea (Suécia) conduziram uma experiên-
balham em conjunto ou se movem em conjun- cia. Convidaram 54 estudantes (metade ho-
to, os seus movimentos acabam por se ajustar a mens, metade mulheres) a improvisar tocando
um ritmo partilhado, sem que muitas vezes te- saxofone, tambor e violino. Depois mostraram
nham consciência disso”, explica ele. “Há uma as suas caras, enquanto a música estava a tocar,
predisposição biológica para o ritmo, bem co- às pessoas do sexo oposto. Foi-lhes então pedi-
mo uma transmissão social”, acrescenta. do que classificassem a inteligência, saúde, es-
tatuto social e aparente capacidade parental da
VAMOS RECUAR 35 000 ANOS, POR UM MO- pessoa retratada apenas com base nesta infor-
MENTO, ATÉ AO TEMPO em que os adolescentes mação. Foi-lhes também pedido que dissessem
da Idade da Pedra se reuniam nas entradas das até que ponto estariam interessados em namo-
cavernas. Podemos imaginá-los a cantarolar e a rar a pessoa, ou criar uma relação de curto ou
bater com os pés numa tentativa de se relaciona- longo prazo. Os resultados foram claros: quan-
rem. Pelo menos é isso que a hipótese de seleção to maior a proeza musical, maior a atração se-
sexual defende, uma das propostas mais bem xual que despertamos.
posicionadas quando se tenta explicar porque é Confirmaram assim algo previsto por Dar-
que a música é um fenómeno universal. O que win: expressar emoções complexas como o
esta teoria propõe é que a música evoluiu como amor através da composição de peças musicais
um indicador da qualidade genética de poten- é uma vantagem importante para encontrar
ciais companheiros. De certa forma, funcionaria um companheiro. Pura seleção natural. e

Os abrigos rupestres de

SHUTTERSTOCK
Bhimbetka situam-se no sul do
planalto central da Índia. As
suas pinturas mais antigas têm
cerca de 9000 anos de idade.
Há muitas representações de
músicos, tais como estes a
tocar instrumentos.

143
Grande Mural
As Telas de Pedra
da Baixa
Califórnia
A península da Baixa Califórnia contém o seu próprio tipo de arte
pré-histórica. Ao longo das suas cadeias montanhosas há sítios
rochosos com milhares de figuras de grande dimensão. Algumas
foram pintadas em partes extremamente altas das grutas, o que
acentua ainda mais a sua grandiosidade.
POR MARIO GARCÍA BARTUAL
Paleoantropólogo, membro do Grupo Internacional de Investigação da Evolução Humana

144
Algumas das figuras que
decoram Brinco IV, na
serra de São Francisco
— aqui retratadas —
têm cerca de nove
metros de altura. Há
algum debate sobre a
GEORGE STEINMETZ / GETTY

autoria e idade das


pinturas rupestres nesta
área; as mais antigas
podem ter mais de
10 000 anos de idade.

145
Em Cataviñá, perto da
SHUTTERSTOCK

aldeia de San Quintín,


pequenos motivos e
desenhos geométricos
e esquemáticos
sobreviveram, um em
cima do outro, o que,
segundo os peritos,
sugere que certos sítios
foram ocupados por
várias gerações.

Ehem iam publiuraria Simis, consuam tesunt publici


errituam Pali, uterrae, con nit, qua viti vini vidi vinci

146
A
s cordilheiras centrais da Baixa Ca- cas parecem encaixar nas folhas de agave locais,
lifórnia no México são o cenário de que são extremamente ricas em fibra, pelo que
um extraordinário evento pré-his- foram provavelmente usadas como pincéis. Foi
tórico. Aí ocorreu uma das tradi- sugerido que os pincéis eram montados e fixos
ções de pintura rupestre de maior em paus longos, mas não se pode excluir que os
escala do mundo. O seu carácter excecional le- artistas tenham construído andaimes ou utili-
vou o escritor e fotógrafo Harry W. Crosby a zado troncos de palmeira encostados à parede
chamar-lhe o Grande Mural em 1975. As suas para alcançar a elevação desejada.
imagens incluem representações tanto de ani- Existem também petróglifos, muitas ve-
mais como de pessoas, e os seus pictogramas de zes em menor escala. É comum os petróglifos
veados e antropomorfos, de tamanho superior e pictogramas aparecerem juntos, embora os
ao natural, são particularmente característicos. sítios exclusivos de uma técnica ou de outra
Embora as figuras zoomórficas estejam presen- não sejam incomuns. Os petróglifos não cos-
tes em quase todas as composições, os veados tumam repetir a representação pictórica, mas
desempenham um papel de liderança, apare- complementam-na com desenhos de nature-
cendo na maioria dos painéis. Abundam tam- za sexual — alguns mostram vulvas femininas,
bém os antílopes e os carneiros seguidos de pu- por exemplo — e diferentes tipos de riscados e
mas, coiotes, aves, cobras, baleias, tartarugas, pontilhados.
leões marinhos e outros
vertebrados.
Enquanto algumas das
Muitas das pinturas O FENÓMENO ARTÍSTI-
CO DO GRANDE MURAL
composições transmi-
tem um hieratismo e ri-
são profusamente ESTENDE-SE DE NORTE A
SUL através das serras de
gidez deliberados, ou-
tras são dinâmicas e flui-
sobrepostas, San Borja, San Juan, San
Francisco e Guadalupe. A
das. No Grande Mural
não há apenas pictogra-
como um grande sua concentração também
aumenta de norte para sul.
mas naturalistas, mas
também representações
palimpsesto Em geral, os motivos geo-
métricos e abstratos ten-
geométricas e abstra- dem a dominar as extre-
tas. Os locais mais emblemáticos têm painéis midades da península, enquanto que os motivos
com centenas de figuras, algumas das quais fo- naturalistas prevalecem na parte central.
ram pintadas em partes muito altas dos abrigos Na sua grande obra de 1997, The Cave Pain-
rupestres, acentuando ainda mais a sua monu- tings of Baixa Califórnia: Discovering the
mentalidade. As pinturas são muitas vezes lu- Great Murals of an Unknown People, (As
xuosamente estratificadas, como um grande pinturas rupestres da Baixa Califórnia: des-
palimpsesto concebido em tons de vermelho, cobrindo os grandes murais de um povo des-
preto, amarelo, branco e ocre. Notavelmente, conhecido), na qual sintetiza tudo isto, o his-
muitas delas — incluindo os humanos — en- toriador e fotógrafo americano Harry Crosby
contram-se trespassadas por flechas ou lanças. identificou variantes regionais através destes
As imagens frequentes em tetos e paredes domínios montanhosos, a que chamou sub-
muito altos podem ter constituído uma das difi- -estilos. No total identificou cinco: Vermelho
culdades tecnológicas mais significativas na sua sobre Granito, San Francisco, San Borjitas, La
execução. Como aponta a arqueóloga mexicana Trinidad e Semi-abstrato Meridional. De toda
María de la Luz Gutiérrez Martínez, alguns pai- a arte rupestre nas Américas, nenhuma é mais
néis mostram claramente a utilização de algum espetacular e reconhecida do que o estilo do
tipo de pincéis. A largura e rugosidade das mar- Grande Mural. e

147
Serra de São Francisco
A paisagem destas montanhas apresenta elevados
cumes seccionados por profundos desfiladeiros
que se estendem radialmente. A serra atinge uma al-
titude máxima de 1590 m acima do nível do mar e co-
bre uma área de aproximadamente 3600 km². Alguns
dos seus sítios mais emblemáticos são Cueva Pintada,
Cuesta de Palmarito, La Palma de San Gregorio ou La
Cueva de las Flechas.

Imagens franciscanas
A cordilheira de São Francisco alberga os locais mais
espetaculares e mais bem preservados do Grande
Mural. As suas pinturas são Património Mundial da
UNESCO desde 1993. As figuras humanas,sempre es-
táticas e com os braços levantados, são mostradas nu-
ma posição frontal, embora haja casos em que estão
inclinadas, invertidas ou mesmo horizontais. Algumas
podem ser identificadas como mulheres pela presen-
ça de seios, em perfil e localizadas sob as axilas, uma
convenção comum na Austrália e em outras áreas de
arte rupestre. Os homens não mostram genitália. O
seu pictograma característico permitiu a Crosby defi-
nir o sub-estilo São Francisco.

Particularidades artísticas
Abrange uma vasta área geográfica. Está centrada na
cordilheira de São Francisco e estende-se a norte até à
cordilheira de San Juan e a sul até ao canto nordeste da
cordilheira de Guadalupe. Aqui, a maioria dos veados,
carneiros e humanos são muito homogéneos. Os seres
antropomórficos posam hieraticamente, virados para a
frente. As suas cabeças são arredondadas, sem pes-
coços e são apoiadas por um tronco compacto e uni-
forme. Os braços são invariavelmente levantados, com
os cotovelos dobrados. As mãos, abertas, mostram a
palma e os dedos. As pernas são direitas e separadas,
e os pés são representados em perfil, de modo a que
os dedos e as plantas também sejam mostrados .Quase
não há detalhes de características faciais ou vestuário. O realismo das
O zoneamento das figuras por cores varia e apre-
senta padrões fortes; as figuras humanas exibem fre- representações
quentemente bicromia de vermelho e preto na vertical
e, em menor grau, na horizontal. Os cervídeos e car- animais contrasta com
neiros são muito realistas, em tamanho real e até maio-
res. Ambos os tipos de animais foram cuidadosamen-
a natureza hierática
te detalhados, sugerindo a grande importância desta
iconografia na diferenciação precisa das espécies.
das representações
humanas

148
Os cascos, orelhas
e chifres dos veados e
carneiros que adornam as
paredes rochosas desta área
— na imagem, na caverna
GEORGE STEINMETZ / GETTY

Boca de San Julio— foram


desenhados em pormenor,
indicando que se tratava de
espécies importantes para a
população local.

149
As figuras humanas são invariavelmente representadas
estáticas e com os braços levantados

O Museu Nacional
de Antropologia na
Cidade do México
aloja esta réplica
de Cueva Pintada.
Apresenta várias
figuras femininas
entrelaçadas com
xamãs, bem como
a divindade dos
CORDON

veados.

150
Cueva Pintada, o grande
emblema da serra de São
Francisco
Localização: Canyon de Santa Teresa

C ueva Pintada ou La Pintada é um dos exemplos


mais significativos de arte rupestre pré-histórica na
Baixa Califórnia. A sua existência é há muito conhecida
dos habitantes locais. Foi dada a conhecer ao público
em geral em 1962 pelo escritor americano Erle Stanley
Gardner num artigo na revista Life.
La Pintada caracteriza-se pela abundância de repre-
sentações de veados, que representam mais de 50%
do total da fauna representada. Segundo um estudo
de Ramón Viñas e Jordi Rosell, os cervos com corpos
retangulares e pernas retas e desproporcionadas cor-
respondem à arte mais antiga. Por sua vez, os mais es-
quemáticos e em posição vertical seriam os mais mo-
dernos. Existem também caracteres geométricos ou
abstratos, que prosperam e se diversificam nos perío-
dos posteriores. Na sua maioria, consistem em formas
quadradas, retangulares, circulares e ovais, cujo interior
foi preenchido com um desenho reticulado.
A idade das pinturas na Cueva Pintada é uma questão
difícil. Na década de 1960, o arqueólogo americano
Clement Meighan obteve fragmentos de cana e ma-
deira nos sedimentos que datavam de cerca de 530
anos antes do presente (AP). Ele considerou que a data
fornecia um indicador correto da idade dos murais pin-
tados, mas alguns peritos acreditam que as amostras
foram recolhidas a níveis próximos da superfície e não
refletem ocupações mais antigas.
A este respeito, uma escavação arqueológica reali-
zada durante o Proyecto Arte Rupestre Baixa Califórnia
Sur (PARBCS), entre 1993 e 1994, recuperou um frag-
mento de carvão vegetal a um nível arqueológico de
cerca de 35 centímetros de profundidade. A amostra
deu uma data calibrada entre 12 990 e 12 570 anos
AP. Um tal resultado é espantoso. Como vem de um
contexto arqueológico, poderia indicar uma ocupa-
ção antiga da Cultura Clovis. Contudo, também não
se pode excluir que o carvão vegetal de Cueva Pintada
tenha tido uma origem natural.

151
Serra de Guadalupe
É maior e tem melhores cursos de água do que as outras serras do
Grande Mural. Os registos das missões jesuítas mostram que a
densidade populacional era a mais elevada na zona central do de-
serto. Há centenas de sítios na zona que “enpequenecem” os das
outras serras. Destacam-se as cavernas de San Borjitas, os Monos
de San Juan, os Clavelitos, o Chavalito, os Monos de Santo Domingo
e Agua Grande.

O imaginário guadaloupeano
As convenções na Serra de Guadalupe variam e não mostram a rigi-
dez conceptual vista em São Francisco, embora, infelizmente, muitos
pictogramas se encontrem em mau estado.
A maioria das figuras humanas têm os braços levantados, mas há
casos em que estão voltados para baixo. As pernas podem estar do-
bradas e estendidas. Gutiérrez Martínez chama a esta postura, uma
postura dinâmica. Por vezes são mostrados os órgãos genitais mas-
culinos e femininos. Há cabeças, em algumas figuras, que apresen-
tam uma rica variedade de formas, tais como os pontilhados pretos
no rosto e outros no corpo, preenchidos com padrões axadrezados.
Poder-se-ia dizer que a arte da serra de São Francisco é a mais
elegante, mas que, na serra de Guadalupe, a criatividade reina. No
setor norte, o sub-estilo São Francisco ainda sobrevive. No entanto,
há outros três: San Borjitas, La Trinidad e o semi-abstrato meridional.
No entanto, é difícil definir os seus limites, pois existem grandes va-
riações que coexistem sem ordem aparente.

Particularidades artísticas
Crosby definiu o sub-estilo San Borjitas pelas características pre-
sentes no painel da gruta homónima. Os seus antropomorfos foram
feitos de acordo com certas convenções normalizadas do Grande
Mural, mas apresentam características particulares. Os seus atribu-
tos incluem cabeças quadradas e desproporcionadas, corpos em
forma de barril em bruto decorados com riscas, quadrículas ou mo-
tivos axadrezados, pernas separadas e curtas e braços estendidos.
Além disso, muitas figuras masculinas exibem falos proeminentes.
Para Crosby, até os animais são algo invulgares.
No sub-estilo La Trinidad, os corpos das figuras têm padrões axa-
drezados ou uma ausência de cor, em vez da habitual bicromia. O
veado tem um corpo proeminente e geralmente pernas curtas,bem
como uma linha que começa na língua e termina na cauda. Os seus
chifres, ao contrário do sub-estilo de São Francisco, estão arquea-
dos para dentro .
O sub-estilo semi-abstrato meridional tende a ser menos realista.
Segundo Crosby, alguns veados são concebidos como retângulos
com pequenas cabeças e pernas adicionadas, e preencher as for-
mas com cor é menos comum. A área geográfica do Grande Mural
terminaria aqui, numa espécie de transição para as imagens abstra-
tas da Sierra de la Giganta, mais a sul.
AGE

152
O estilo parece tornar-se mais abstrato à medida
que se avança para sul

Os veados
do sub-estilo La
Trinidad — na
imagem maior —
mostram padrões
quadriculados e uma
linha característica
que tem origem na
sua língua. As
características das
figuras humanas — à
SHUTTERSTOCK

esquerda, um xamã
— são também mais
grosseiras.

153
A profusão de imagens de pessoas em alguns
locais sugere que foi feita uma tentativa de
recriar um confronto ou um rito sacrificial

As observações da arte
parietal da Baixa
Califórnia realizadas
na década de 1970
pelo escritor Harry W.
Crosby — na imagem,
GEORGE STEINMETZ / GETTY

na Serra de Guadalupe
— foram
fundamentais na sua
divulgação e promoção
do seu valor.

154
Cueva de San Borjitas,
o orgulho da Serra de
Guadalupe
Localização: Rancho San Baltasar

E m 1951, Barbro Dahlgren e Javier Romero estu-


daram a sua pictografia e realizaram a primeira
escavação sistemática em San Borjitas. Classificaram
as figuras antropomórficas em quatro tipos: cardones,
porque evocam as plantas de cactos que crescem nas
proximidades; espantajos, porque parecem espanta-
lhos; bicolores, que também incluem figuras unicolo-
res; e os excêntricos, que pensavam estar ligados às
crenças dos antigos colonos.
Para Léon Diguet, um químico francês que também
estudou o local no final do século XIX, o mural de San
Borjitas retrata uma cena de guerra. Esta ideia também
partilhada por Dalgren e Romero, que sugerem a repre-
sentação de uma batalha envolvendo diferentes clãs,
que pode ser distinguida pelas diferenças na cor dos
antropomorfos e dos toucados nas suas cabeças. Pa-
ra um grupo de pré-historiadores da Universidade de
Barcelona, liderado por Josep Maria Fullola, tratar-se-ia
de uma representação do sacrifício humano em povos
com uma tradição cultural de caçadores-coletores. Eles
baseiam a sua hipótese na ausência de partes em con-
flito na composição.
O geólogo Alan Watchman e os seus colaborado-
res recolheram amostras dos aglutinantes orgânicos
em algumas das pinturas, para calcular idades a partir
desta fonte de carbono. Em 2002, foi publicado um
breve estudo preliminar no qual foram datadas vá-
rias figuras humanas entre 5000 e 5500 anos antes
do presente — as figuras parecem não estar calibra-
das — por espectrometria de massa com acelerador
(AMS). Uma antiguidade notável. A questão pendente
é se o carbono orgânico analisado é realmente con-
temporâneo com as pinturas e não contaminado por
outras fontes.

155
O antigo povo Clovis e a primeira
ocupação humana da Baixa Califórnia
O termo clovis deriva das poderosas pon-
tas de projéteis habilmente esculpidos,
encontrados pela primeira vez nas décadas de
Munidos de armas tão poderosas, caçaram
intensivamente e talvez tenham acelerado a
extinção da megafauna americana. De qual-
1920 e 1930. Foram encontrados em locais quer modo, a datação radiométrica mostrou
perto de Clovis, uma cidade no leste do Novo que a cultura Clovis tinha até 13 100 anos de
México (EUA). idade. Os arqueólogos não encontraram ves-
Tais pontas parecem ter sido especialmen- tígios que pré-datassem as ferramentas Clo-
te concebidas para a caça de grandes pre- vis, sugerindo que os seus portadores foram
sas, e os arqueólogos pensavam que os seus os primeiros americanos.
portadores desenvolviam uma cultura ma- Mas será que chegaram à Baixa Califórnia no
terial orientada principalmente para a caça México? Há indícios de tal. Em 1952, o geógra-
grossa. Imaginavam que o continente ame- fo Homer Aschmann anunciou a descoberta da
ricano naquela época era um paraíso de ca- primeira ponta de flauta clovis, encontrada por
ça onde grandes presas, como mamutes e residentes e sem contexto arqueológico. Qua-
bisontes, eram abundantes. As escavações se 45 anos depois, a metade dividida de outra
subsequentes revelaram que as ferramentas ponta clovis, feita de obsidiana, foi descoberta
dos Clovis eram abundantes e disseminadas durante o curso do Proyecto Arte Rupestre Baixa
em locais em todo o continente. Isto reforçou Califórnia Sur (PARBCS), um programa multidis-
a ideia de que os Clovis tinham avançado mui- ciplinar patrocinado pelo Instituto Nacional de
to rapidamente de norte para sul. Antropologia e História do México.

CENTER FOR THE STUDY OF THE FIRST AMERICANS / TEXAS A&M UNIVERSITY

As pontas líticas
feitas pela
cultura Clovis,
como estas
encontradas no
Texas, têm uma
forma lanceolada
distinta e uma
ranhura em
ambos os lados.

156
O mural que decora a
caverna de Soledad,
onde foram
encontrados alguns
dos motivos mais
antigos, tem mais
de 4 m de altura.

ANDREA SCHIEBER / CC
O problema da datação do Grande Mural
A obtenção de boas datas radiométricas é
sempre um desafio científico, o que no
caso da Baixa Califórnia é ainda mais com-
Cueva de la Soledad
Nível arqueológico: Unidade 1
Profundidade: entre 50 e 60 cm
plicado. Enquanto na Serra de São Francisco Material: pedaço de fio de agave
existe uma clara correlação entre os abrigos Data: 7 650 - 7 910 anos cal AP
rupestres com depósitos arqueológicos e as
imagens do Grande Mural, outros painéis nos AP: antes do presente, i.e. 1950, por conven-
restantes domínios não estão associados a ção; cal: data calibrada.
materiais arqueológicos. Isto torna difícil a
amostragem para a datação sistemática para Após a data obtida na caverna de Soledad,
verificar a continuidade cultural a longo prazo a seguinte que aparece marca 3300 anos AP,
ou mudanças ideológicas nos povoados. na cordilheira de São Francisco. Há uma lacu-
Além disso, a datação por AMS de amostras na de quase 3700 anos. O que aconteceu aos
de rochas é tema de intenso debate, especial- primeiros colonos? Será que este período de
mente se a pureza das amostras e a origem tempo significa o desaparecimento dos Clo-
do carvão vegetal de onde as datas foram vis? Ainda ninguém sabe. É também interes-
obtidas estiverem em dúvida. O trabalho mais sante notar que a maior frequência de datas
ambicioso teve lugar durante o PARBCS antes obtidas pelo PARBCS é entre hoje e 1500 AP;
mencionado, tendo sido obtidas 81 datas por ou seja, entre hoje e o ano 450.
AMS procedentes da Sierra de San Francisco. Gutiérrez Martínez assinala na sua tese
Duas são realmente antigas: de doutoramento que se as datas mostra-
rem uma relação com os parâmetros popu-
Cueva Pintada lacionais, a distribuição das datas poderia
Nível arqueológico: Unidade 1 sugerir que houve um aumento da popu-
Profundidade: entre 30 e 40 cm lação no início da nossa era e um declínio
Material: Fragmento de carvão por volta de 1300, seguido de outro rápido
Data: 12 570 -12 990 anos cal AP aumento.

157
A enigmática
cultura
megalítica

A Via Láctea brilha


sobre Lanyon Quoit, um
dólmen na Cornualha, no
canto sudoeste da Grã-
Bretanha. As três pedras
verticais têm cerca de
1,5 m de altura, e a laje
horizontal tem 5,5 m de
GETTY

comprimento.

158
EM FUNDO, O Megalitismo

Há quase 7000 anos, diferentes povos da


Europa Ocidental começaram a erguer colossais
monumentos de pedra. Mais de três milénios
depois, abandonaram esta prática, igualmente de
forma misteriosa. Como eram estas construções e os
seus autores e para que foram erigidas?

POR JOSÉ RUIZ MATA


Escritor. Autor do livro Megalitismo. Dólmenes y megalitos en el sur de la Península Ibérica
(Ed. Almuzara, 2018).

159
O Cromeleque dos
GETTY

Almendres (em
Évora) é um dos
monumentos
megalíticos mais
importantes e mais
bem conservados
da Península
Ibérica e da
Europa.

160
Um cromeleque é uma construção feita de menires
cravados no solo e dispostos de forma elíptica ou circular

161
Todos os solstícios de verão,
GETTY

muitas pessoas vão a Stonehenge


(Inglaterra) para assistir ao nascer
do sol. São muitas as que fazem
selfies, como esta mãe e filha.

162
Para além de ser uma relíquia impressionante
e uma atração turística, Stonehenge é um íman
para os supersticiosos

163
M
egalítico é o nome dado a uma O maior menir conhecido é Le grand me-
civilização que surgiu na frente nir brisé d’Er Grah, perto da pequena cidade
atlântica europeia por volta do de Locmariaquer na Bretanha, França. É as-
primeiro terço do 5º milénio sim chamado porque está dividido ou partido
a.C. e durou até ao início do 2º (brisé, em francês). Deveria pesar cerca de
milénio a.C. Foi a primeira grande cultura que 355 toneladas e ter mais de 20 metros de al-
uniu os diferentes povos da Europa Ocidental e tura. O menir mais alto da Península Ibérica é
do Norte de África. Porque se chama assim? De- o da Meada. Com cerca de 18 toneladas e com
vido aos seus grandes monumentos de pedra: a uma altura visível de 7,15 metros, encontra-se
palavra megalite vem das palavras gregas me- perto da aldeia de Castelo de Vide (Portugal).
ga, que significa ‘grande’, e lithos, ‘pedra’.
Os tipos básicos de estruturas de pedra lega- OS GRUPOS DE MENIRES SÃO PARTICULAR-
dos à posteridade por estes antigos europeus MENTE MARCANTES pelos seus alinhamen-
são o dólmen e o menir. Embora não seja cla- tos, em que estas grandes pedras verticais
ro, parece que a palavra dólmen vem do bre- estão dispostas em filas numa vasta área. Os
tão e significaria “mesa de pedra”; este tipo de mais famosos são os de Carnac, também na
monumento é composto por uma ou mais lajes Bretanha, que, em conjunto, constituem o
assentes sobre duas ou mais pedras verticais. O maior monumento pré-histórico do mundo.
significado da palavra menir, “pedra longa”, Muitos especialistas acreditam que as pedras
na língua celta, é mais amplamente aceite. Tra- formavam uma espécie de avenida que condu-
ta-se de uma pedra alongada colocada vertical- zia a um recinto sagrado, mas como acontece
mente sobre o solo. Pelo seu agrupamento, pela com tantos aspetos da cultura megalítica, esta
sua combinação ou pela maior ou menor com- é uma hipótese que talvez seja impossível de
plexidade da estrutura que formam, os menires verificar.
dão origem a alinhamentos e cromeleques; os Por seu lado, o cromeleque, um nome que
dólmenes, a antas e tolos. A Europa Ocidental vem da língua galesa, é um grupo de menires
está pontilhada destes monumentos, que mui- colocados em forma elíptica ou circular, de
tas vezes formam figuras geométricas com um uma forma que está normalmente relacionada
significado a ser decifrado. com a posição da Terra em relação ao Sol nas
diferentes estações, o que indica que poderia
ter servido como uma espécie de observatório
ARCHIVE TK

astronómico e talvez para celebrar cerimónias


de algum tipo ou como um local de peregrina-
ção e reunião. O mais famoso é Stonehenge (sul
de Inglaterra); também impressionante é o dos
Almendres, perto de Évora (sul de Portugal).

PASSEMOS ÀS ESTRUTURAS CRIADAS PE-


LOS DÓLMENES, de utilidade incerta: eram
sepulcros coletivos, monumentos para mar-
car um território como próprio, ou de natu-
reza religiosa? Como dissemos anteriormente,
formam antas ou tolos. Os primeiros têm um
corredor que dá acesso a uma ou mais câma-
ras; todas as paredes do recinto são compostas
por grandes blocos ou lajes verticais chamados

A cultura megalítica foi a


primeira a unir os povos
do Norte de África e da
Civilização megalítica espalhada pela Europa Ocidental e
Norte de África: há vestígios na zona vermelha. Europa Ocidental

164
GETTY
Este “enhiesto
surtidor de sombra”
(construção geradora
de sombra), como
diria o poeta Gerardo
Diego, é o menir da
Meada (Portugal). É o
mais alto da
Península Ibérica:
7,15 metros de altura.

165
Corredor do dólmen de
El Romeral, um dos
que fazem parte do Sítio de
Dólmenes de Antequera.

SHUTTERSTOCK

ortóstatos. O telhado Dólmenes tais como único espaço interior;


do complexo é plano, são geralmente pe-
embora possa ter altu- os de Antequera quenos, mas existem
ras diferentes, e as suas alguns espetaculares.
lajes são chamadas co- consistem num Em segundo lugar, há
berturas. os que têm câmaras
Os tolos, por outro corredor que conduz a com corredores, onde
lado, têm um telhado o acesso à câmara ou
plano no corredor, mas uma grande câmara câmaras se faz através
a câmara é fechada por de um corredor. Um
uma cúpula falsa feita muito famoso é o do
através da construção de um telhado a partir Soto, em Trigueros (Huelva), de que falaremos
de uma parede circular na qual as sucessivas mais tarde; na Península Ibérica encontramos
filas de lajes de pedra se afunilam a partir da também a Anta Grande do Zambujeiro, perto
inferior; isto cria um telhado alto, hemisféri- de Évora, com uma câmara poligonal formada
co, que é normalmente encimado por uma laje por sete ortóstatos de oito metros de altura. Os
plana. Tanto os dólmenes como os tolos estão que têm múltiplas câmaras são característicos
cobertos por um monte de terra que envolve o da província de Huelva, onde se destacam os
todo, como se fosse uma colina, o que favorece de Zalamea la Real e o grupo de Los Gabrieles,
a ideia de uma caverna, um claustro materno, em Valverde del Camino.
o que pode ter tido implicações funerárias. Finalmente, os dólmenes de galeria são
Existem vários tipos de dólmenes: em pri- aqueles cujo corredor se alarga da porta para
meiro lugar, existem os de câmara, com um a câmara, de modo a não ficar claro onde uma

166
Interior da câmara do Dólmen de
Menga (Antequera), construído com
grandes pedras verticais
(ortóstatos) e pedras horizontais
(coberturas).

SHUTTERSTOCK

termina e a outra começa. A sua forma repre- tem um diâmetro de 4,75 metros, a segunda
senta uma vagina e o útero, o claustro mater- de 2,70 metros, o corredor de acesso tem 32
no da Terra, em oposição ao menir de pé, que metros de comprimento e o túmulo que o co-
corresponderia ao masculino, ao sol que gera, bria tem cerca de 70 metros de diâmetro. O
ao poder que vem dos céus. Os dólmenes de Newgrange, que fica em County Meath, Irlan-
galeria são os mais antigos que conhecemos, da, perto de Dublin, é também muito famoso.
e em Espanha encontram-se entre Anteque- O tolo com o corredor mais longo da Penín-
ra (Málaga) e Villamartín (Cádiz). Os edifícios sula Ibérica — e talvez do mundo — é o de La
mais importantes deste tipo são os dólmenes Pastora, em Valencina de la Concepción (Sevi-
de Alberite, em Villamartín, e Menga, em An- lha), que tem 42 metros de comprimento. Tem
tequera, com os quais nos ocuparemos mais a peculiaridade de as coberturas dos corredo-
tarde. res não serem apoiadas por ortóstatos, mas re-
pousarem no próprio chão; as paredes são co-
OS TOLOS TÊM NORMALMENTE UM CORRE- bertas com fileiras de pedras de ardósia sobre-
DOR DE ACESSO À CÂMARA que, como men- postas que as adornam e evitam o seu colap-
cionado acima, tem uma cúpula falsa. Supõe- so. Existem também construções megalíticas
-se que apareçam em Los Millares, em Santa Fe mais pequenas, tais como cistas, semelhantes
de Mondújar (Almería), embora a descoberta a dólmenes. Estas não excedem normalmen-
dos tolos de Montelirio, em Castilleja de Guz- te um metro quadrado de tamanho e são total
mán (Sevilha), que parece ser anterior devido ou parcialmente escavadas no solo. Existem
à sua estrutura, lance dúvidas sobre esta teo- também os hipogeus ou grutas artificiais, que
ria. Montelirio é um dos maiores monumentos consistem em abóbadas subterrâneas; e grutas
megalíticos conhecidos: a câmara principal artificiais semi-megalíticas, onde uma cavida-

167
de natural existente foi aproveitada para adi- entre dois segmentos de uma linha reta) entre
cionar uma entrada ou corredor de ortóstatos. os dois monólitos à entrada, uma relação que
O referido dólmen de Alberite é o mais an- encontramos novamente no interior.
tigo monumento megalítico conhecido na
Península Ibérica: foi construído por volta de O DÓLMEN DE MENGA É PARTE DO COMPLE-
4700 a.C. Pertence, como já dissemos, ao tipo XO MEGALÍTICO DE ANTEQUERA, que foi ga-
de galeria. O seu tamanho é considerável: tem lardoado com o título de Património Mundial
23 metros de comprimento e varia em largura pela UNESCO em 2016. A sua estrutura é uma
desde dois metros à entrada até quatro metros galeria, com um comprimento, considerando
no topo. Aparenta ter sido completamente o átrio, de 27,5 metros; a altura, de 2,7 metros
rebocado com uma pasta ocre avermelhada. à entrada, atinge 3,5 metros na cabeceira; a
Hoje em dia, embora tenha sido reconstruído, sua largura máxima é de seis metros, e é atin-
perdeu as suas coberturas. Não só apresenta gida no fundo da câmara. Tem um poço no seu
uma forma construtiva cuidadosa, mas de um interior que tem 19,5 metros de profundidade,
ponto de vista simbólico, não deixa de sur- a mesma profundidade que o edifício coberto.
preender os estudiosos. A cobertura da câmara, medindo seis por sete
A sua orientação permite que a luz do sol o metros, pesa aproximadamente 180 tonela-
penetre desde o equinócio da primavera até ao das; é de notar também que várias das pedras
solstício de verão, com um momento de pico, que compõem o monumento pesam mais de
por volta de 25 de Abril, quando o sol entra pelo 70 toneladas. É um dos maiores monumentos
eixo do monumento para iluminar completa- megalíticos e um dos mais impressionantes
mente a laje na parte de trás. A luz estabelece para os visitantes modernos.
um diálogo simbólico entre o macrocosmo e o Tem havido muita especulação sobre a sua
microcosmo num jogo entre o exterior e o inte- orientação particular, 45º azimute, a norte do
rior do edifício, no qual o sol nascente marca a nascer do sol no solstício de verão, e sobre a
proporção dourada (uma relação ou proporção geometria da sua construção e o seu carácter

GETTY

Na praça central da cidade


de Pavia (Alentejo, Portugal)
existe uma capela do século
XVII que utiliza um dólmen
como parte da sua estrutura.

168
O grande menir dividido de Er Grah
está na Bretanha, França; enquan-
to erguido e intacto, a sua altura
excedia os 20 metros.

ESFILLDESFAR / CC 4.0

supostamente simbóli- Erguer estes grandes um rio e que, por razões


co. Em todo o caso, foi que não compreen-
datada de cerca de 3700 monumentos exigia demos, se põem a le-
a.C. Na minha opinião, vantar grandes pedras
e dada a sua estrutura tecnologia avançada uma em cima da outra,
complicada, deve ser especialmente quando
muito anterior, pelo e uma sociedade com algumas delas pesam
menos de meados do V mais de cinquenta ou
milénio a.C. uma hierarquia bem cem toneladas. Para
Terminamos esta re- transportar estas mas-
visão dos grandes dól- organizada sas e colocá-las no seu
menes da Península lugar, acreditamos que,
Ibérica com o dólmen no mínimo, é necessá-
Soto, localizado na propriedade La Lobita, em rio ter um pensamento que elabore uma filoso-
Trigueros (Huelva): é um dos chamados dól- fia pela qual se acredite na necessidade de tal
menes de corredor, datado entre 3000 a.C. e construção, e um estudo do ambiente que as
2500 a.C., e é bastante impressionante. Tem 21 rodeava, incluindo o cosmos, que lhes permita
metros de comprimento e a sua largura varia de conceber o desenho mais adequado para o fim
0,82 metros à entrada até 3,1 metros na câma- proposto.
ra, onde atinge uma altura de quatro metros. Depois precisavam de uma técnica e fer-
Alguns dos seus ortóstatos pesam mais de 22 ramentas suficientemente avançadas, uma
toneladas. organização capaz de antecipar os passos ne-
Mas porque foram erguidos estes monumen- cessários para completar o trabalho, uma hie-
tos imponentes? É demasiado fácil ter a imagem rarquia de tarefas (e o poder de impor a sua
de alguns selvagens que vivem nas margens de execução, se necessário), uma mão-de-obra

169
ALBUM

abundante que pudesse ser libertada da ta- ter-se em conta que a arquitetura megalítica
refa de produzir alimentos mas que tivesse não é oportunista, de pessoas que não sabiam
de ser alimentada... De todos estes requisi- construir com alvenaria feita de materiais de
tos é evidente que seriam povos sedentários, dimensões mais manejáveis, mas que a escolha
com agricultura e pecuária especializadas, destas enormes pedras obedecia a um objetivo
com uma população considerável, uma elite muito específico.
estabelecida e pessoas com conhecimentos Os monumentos megalíticos têm geralmente
suficientes para estudar, conceber, desenhar um eixo de simetria que determina a sua orien-
e dirigir operações de construção. Uma so- tação. Se ficarmos no centro da câmara e traçar-
ciedade complexa e evoluída, em suma. Deve mos uma linha através do centro da entrada, es-

170
Os dólmenes foram
utilizados como túmulos
até muitos séculos após
a sua construção

O ilustrador imaginou assim um


enterro em Arthur’s Stone, um
dólmen construído algures entre
3700 a.C. e 2700 a.C. no que é
agora o condado de Herefordshire
no leste de Inglaterra.

ta é a orientação do dólmen. Do estudo de mais contrados funerais no seu interior é circunstan-


de 1700 construções distribuídas no sudoeste cial; as igrejas também têm túmulos e não são
e norte de Espanha, Portugal, oeste e nordes- panteões. Os pequenos edifícios, aqueles que
te de França e nas Ilhas do Canal, verificou-se são estreitos, com tetos muito baixos e onde,
que apenas 5 delas não estão orientadas para o além disso, foram encontrados restos humanos
nascer do sol em qualquer altura do ano, e que abundantes, devem certamente ter sido túmu-
a maioria delas tem uma orientação relacionada los. Por outro lado, no caso dos grandes monu-
com o solstício de verão. Também é recorrente mentos, estamos relutantes em pensar em tal
pensar que estes edifícios foram construídos co- uso; ficaremos sempre com a dúvida se foram
mo sítios funerários. O facto de terem sido en- templos, locais de reunião ou enclaves para ce-

171
Um vaso de cerâmica
rimónias. Embo-
em forma de sino
ra seja mais pro- decorado da caverna de
vável que fossem Aigüesvives (Lérida).
também locais de Tem pelo menos 4000
peregrinação, locais anos de idade.
de encontro, locais
de celebração, com
um grande número em forma de sino.
de visitantes. A área de expan-
são desta cultura,
EVENTUALMEN- embora global-

ALBUM
TE OS QUE ERAM mente coinci-
CONCEBIDOS dente, é maior do
como panteões que a da cultura
devem ter aco- megalítica, com
lhido uma série de exceção da França
práticas funerárias central, países es-
que teriam abrangi- candinavos e parte da
do muito mais do que Irlanda; curiosamente,
o próprio edifício: cre- podem encontrar-se ves-
mações, desmancha de car- tígios desta cultura no centro
ne, preparação ritual dos cadáveres. da Península Ibérica, onde a cultura
Desta forma, as vias de comunicação e os seus megalítica não ocorre.
arredores devem ter desempenhado um papel O vaso em forma de sino aparece no pe-
importante no ritual. Hoje em dia, podemos ríodo Calcolítico (entre 3000 a.C. e 1700 a.C.
ver como uma peregrinação não se reduz ape- aproximadamente), e é uma cerâmica de luxo,
nas ao eremitério de destino, mas a tudo o que pelo que deve ser associada a um processo de
rodeia a festividade. Um exemplo disso são os hierarquização social. A acumulação destes
tolos de Montelirio, onde foram identificadas objetos, juntamente com adagas de lingueta,
uma série de estruturas funerárias anexas ao flechas de tipo Palmela, jóias de ouro e pulsei-
edifício principal. Os menires, alinhamentos ras de arqueiro, marcaram a adesão de elite.
ou cromeleques, bem como os petróglifos e es-
telas, também devem ser interpretados neste A CULTURA MEGALÍTICA ALCANÇOU UMA
sentido. UNIFORMIDADE IMPRESSIONANTE. O estudo
Nos grandes dólmenes andaluzes, Menga, detalhado dos seus monumentos levou alguns
Viera ou El Charcón, não foram encontrados investigadores a pensar que todos eles foram fei-
restos humanos; em Alberite, Soto, Matarru- tos a partir de uma espécie de unidade de medida
billa, El Romeral e La Pastora quase não foram pré-histórica a que Saulo Ruiz Moreno chama a
encontrados funerais. Além disso, Matarrubil- vara megalítica, relacionada com o raio da terra
la, Montelirio, Soto, el Romeral e la Encina têm no ponto em que o edifício está localizado. Por-
um altar de pedra para sacrifícios ou oferen- tanto, quanto mais a norte estiver, mais pequena
das, o que corrobora a opinião de que foram será a dimensão desta vara. Por exemplo, para
lugares de celebração de ritos. Pastora e Matarrubilla teria um comprimento
A civilização Megalítica de longa duração de 0,87 metros, e para El Romeral, que está um
abrange vários pe- pouco mais a sul, seria
ríodos: o Neolítico, o de 0,874 metros. Mas o
Calcolítico e parte da As construções importante é que esta
Idade do Bronze. A relação com o padrão de
olaria que lhe está as- megalíticas deixaram medição é também ver-
sociada no início é a dadeira na Irlanda e na
olaria de almagra, que de ser construídas no Grã-Bretanha, segundo
só ocorre na Andalu- o engenheiro escocês
zia, e mais tarde, com início do 2º milénio a.C., Alexander Thom: nestas
maior difusão, a cha- ilhas, este padrão é de
mada olaria de vaso e ninguém sabe porquê 0,83 metros.

172
Já mencionámos que as antas mais antigas da colocada em cima de outra. Também não é fiá-
Península Ibérica, as antas da galeria, encon- vel datar a partir dos restos encontrados no seu
tram-se numa zona da Andaluzia que se esten- interior, pois isto dir-nos-ia quando o monu-
de de Antequera (Málaga) a Villamartin (Cádis), mento foi utilizado, e não quando foi erguido.
que também alberga um dos sítios arqueológi- Isto dar-nos-ia apenas uma idade mínima. Foi
cos neolíticos mais antigos de Espanha, a gru- o que aconteceu no dólmen de Menga, onde su-
ta de La Dehesilla, situada perto de Jerez de la cessivas escavações foram atrasando a data de
Frontera. Estes são monumentos complexos, construção. Não sabemos o que o futuro pode-
verdadeiros feitos arquitetónicos cuja mag- rá revelar e quantos anos poderá ter a datação
nitude continua a surpreender. Os tolos mais desta cultura.
antigos conhecidos também se encontram na
Andaluzia, embora existam poucos menires. ESTA CIVILIZAÇÃO, CARACTERIZADA PELAS
Tudo isto me leva a supor que a civilização SUAS GRANDES CONSTRUÇÕES DE pedra,
megalítica nasceu na Andaluzia central no pri- desapareceu no início do 2º milénio a.C. sem
meiro terço do quinto milénio a.C., e que se razão conhecida: talvez se devesse ao esgota-
espalhou bastante rapidamente para o Alentejo mento das ideias por detrás dela. No entanto,
português, uma vez que a primeira fase do Cro- embora já não tenham sido construídos, estes
meleque dos Almendres foi datada até ao final monumentos foram reutilizados nos séculos
deste milénio. De qualquer modo, os dólmenes seguintes, pelo menos como locais de sepul-
já existiam no norte de Portugal e na Galiza por tamento. Em Portugal existem dois que foram
volta de 4000 a.C. A partir de 3800 a.C., che- transformados em igrejas, e em alguns da Pe-
garam ao oeste da França, e entre 3500 a.C. e nínsula Ibérica foram encontrados restos de
3000 a.C. mais a norte. É apenas uma teoria, locais de sepultamento dos períodos romano e
pois é muito difícil saber quando uma pedra foi mesmo visigótico, como no caso de Alberite. e

ARCHIVE TK

Os alinhamentos de Carnac
(Bretanha, França) são o maior
monumento pré-histórico do mundo:
milhares de menires plantados numa
data incerta, entre o 5º milénio a.C.
e o 3º milénio a.C.

173
Stonehenge ao
SHUTTERSTOCK

pôr-do-sol, no
solstício de verão.
SHUTTERSTOCK

STONEHENGE
Teorias mais
recentes
174
EM FUNDO, O megalitismo

Este semicírculo de pedras erguido entre o Neolítico tardio e o


início da Idade do Bronze em Inglaterra é um dos monumentos
megalíticos mais famosos do mundo. A sua intenção e objetivo
têm sido muito debatidos, desde a sua utilização como
observatório astronómico até um complexo funerário e um
centro de poder. O que dizem hoje os peritos?

POR VICENTE FERNÁNDEZ DE BOBADILLA


Jornalista

175
ARCHIVO TK

Esta é a ilustração mais antiga


conhecida de Stonehenge.
Encontra-se no manuscrito
The Roman de Brut, uma
história lendária da Inglaterra
escrita em anglo-normando
pelo poeta Wace no século XII.

O
círculo incompleto de pedra densamente povoado mesmo muito antes da
localizado perto de Salisbury, primeira pedra ter sido colocada. Na verdade,
no condado de Wiltshire (su- a abundância de seres humanos na área foi pro-
doeste de Inglaterra) tem pelo pícia à sua conceção.
menos uma coisa em comum Apesar de sempre ter feito parte de um gran-
com outros monumentos construídos antes de de centro populacional, há muito que circula
a humanidade começar a tomar consciência muita desinformação sobre Stonehenge. A sua
de si própria como uma cultura: uma vez que construção foi primeiro atribuída aos romanos,
não está ligado a nenhuma civilização que lhe mas quando chegaram, já estava feita; depois
tenha deixado um rasto escrito, é uma presa aos druidas, embora estivesse concluída antes
fácil para os amigos do sobrenatural, sempre do aparecimento destes padres celtas na Grã-
pronta a rotular qualquer vestígio arqueológico -Bretanha; e tem havido especulações sobre a
como místico como uma explicação para a sua influência extraterrestre, o que permitiu aos
origem. É semelhante ao que acontece com os seus construtores mover as gigantescas pedras,
moais da Ilha de Páscoa, com uma diferença: algumas com peso até vinte toneladas. Nessa
estes foram descobertos no século XVIII, mas a altura, porém, havia civilizações em várias par-
área onde Stonehenge foi erguido foi um local tes do mundo que, sem assistência alienígena,

176
ARCHIVO TK É assim que o
Stonehenge é
descrito no Atlas
Van Loon do
século XVII.

tinham encontrado formas perfeitamente ex- cujos restos eram menos óbvios. Stonehenge é
plicáveis de mover blocos semelhantes para er- o mais espetacular de todos, e o único que sem-
guer edifícios ainda maiores. Tem-se falado de pre permaneceu visível. Dois tipos de pedra
um centro de energias telúricas, um altar de sa- foram utilizados na sua construção. A maior,
crifício ou um lugar de cura, quando o primeiro arenito, conhecida como sarsen, foi transpor-
não tem nada a ver com nenhum rito antigo, e tada de uma pedreira na floresta de Wiltshire,
para o segundo e terceiro não há provas. Talvez a 25 quilómetros a norte. As pedras azuis, ou
a única coisa sobre a qual haja total concordân- bluestones, que são mais pequenas em peso e
cia é que este monumento foi construído com tamanho — entre duas e cinco toneladas — têm
um propósito místico ou religioso. Ou vários. uma origem mais surpreendente: as Colinas
de Preseli no sudeste do País de Gales, de onde
STONEHENGE FOI SEMPRE UM LUGAR ESPE- teriam feito uma viagem de quase 300 km até
CIAL. OS PRIMEIROS VESTÍGIOS da presença Stonehenge.
humana na área foram datados de cerca de 8000 Embora tenham sido descobertos numerosos
a.C., e há muitas provas que demonstram que se pedaços de ambos os tipos de rocha e os restos
manteve durante os milénios seguintes até que de ferramentas ao norte do monumento, indi-
o famoso monumento foi finalmente erguido cando que as pedras foram esculpidas antes de
por volta de 2500 a.C. As pessoas que o criaram serem colocadas em posição, é geralmente acei-
viveram ali durante séculos, e antes de ergue- te que as pedras azuis já tinham feito parte de
rem o complexo tinham erguido muitas outras outro monumento antes de serem incorporadas
construções com um propósito semelhante, no semicírculo. Foram originalmente dispostas

A sua construção foi inicialmente atribuída aos romanos,


mas o monumento já existia quando estes chegaram

177
Restauração do
monumento em
1920. Algumas
pedras caídas fo-
ram endireitadas sob a forma de um arco, mas duzentos ou tre-
e foram feitas zentos anos depois foram reorganizadas no seu
escavações na arranjo atual, com um círculo exterior e uma
base. ferradura interior.

UM LUGAR QUE FOI VENERADO DURANTE


MILÉNIOS E É CONSIDERADO suficientemen-
te importante para transportar pedras gigan-
tescas de outros monumentos que foram des-
mantelados teve de ser muito especial. Sabe-se
também que antes da colocação dos impres-
sionantes trilitos — pedras horizontais sobre
as verticais — existiam outros monumentos na
zona construídos em madeira. As pessoas que
os ergueram deverão ter sido em grande núme-
ro e bem organizadas para terem empreendido
tal tarefa, mas quando a escavação da área co-
meçou, não parecia haver vestígios de tal.
A investigação e a tecnologia moderna fize-
ram grandes progressos nos últimos anos para
explicar a presença humana na área. O sul de
Inglaterra é conhecido por ter sido densamente
florestado, mas Stonehenge está situado numa
das poucas planícies existentes. Antropólogos e
historiadores como o israelita Yuval Noah Hara-
ri, autor de Sapiens, recordam que quando um
grupo de humanos primitivos abandonou a caça
AGE

Distância: 280 km
Algumas das pedras de
Stonehenge vieram de uma
pedreira no País de Gales a
280 km de distância.Como
foram transportadas?
ARCHIVO TK

178
As pessoas que
ergueram os
megalitos, teriam
que ser em grande
número e bem
organizadas

O antiquário
William Stukeley
(1687-1765)
apaixonou-se
por Stonehenge
e dedicou anos
ARCHIVO TK

da sua vida ao
estudo do local.

179
Normanton Down
Barrows é um
cemitério neolítico
localizado a 1 km
de Stonehenge.

AGE

e a coleta de alimentos para se dedicar à agricul- ignorando quaisquer descobertas que pudessem
tura, tiveram de abandonar o nomadismo e criar ser encontradas na área circundante. O primei-
raízes algures, de preferência com vastas planí- ro inquérito conhecido foi realizado por Inigo
cies que pudessem apoiar as culturas. O terreno Jones por comissão direta do Rei James I. Jones
em Stonehenge reunia as condições. Muitos dos foi um dos maiores especialistas ingleses na sua
elementos que compõem o complexo megalítico área, ainda não designada de arqueologia, por-
estão alinhados com o nascer do sol nos solstícios que era então uma ciência ainda por batizar, mas
de verão e de inverno, duas datas ligadas ao apa- sim arquitetura. Isto pode explicar em parte as
recimento dos primeiros cultos religiosos e asso- suas conclusões, publicadas em 1655 pelo seu
ciadas a sociedades que dependiam de culturas aluno John Webb, nas quais ele estabeleceu que
abundantes para sobreviver. Os rituais em torno Stonehenge era os restos de um templo romano
destas datas foram comuns durante séculos e o construído de acordo com os princípios da ar-
seu principal objetivo era pedir aos deuses boas quitetura clássica.
colheitas e dar graças por tê-las recebido.
Stonehenge revelou os seus segredos sem pres- EM 1663, WALTER CHARLETON, FÍSICO E FI-
sa, já que a tecnologia avançou o suficiente para LÓSOFO, REFUTOU A TEORIA DE JONES, pro-
descascar as camadas da cebola. A iniciativa de pondo em vez disso que tinha sido um local pa-
algumas das pessoas que aí trabalharam tam- ra as cerimónias de coroação dos reis vikings.
bém trouxe avanços notáveis. O trabalho inicial Três anos mais tarde, o perito em antiguidade
centrou-se no próprio centro de Stonehenge, John Aubrey atribuiu a criação do complexo aos

Stukeley foi o primeiro a investigar minuciosamente


não só o semicírculo das pedras, mas também o
terreno circundante

180
habitantes originais da Bretanha, que na altu- sores de Aubrey fez uma das inovações mais
ra eram principalmente identificados com os importantes na investigação de restos da anti-
druidas. É evidente que nesses primeiros tra- guidade. O historiador Brian Fagan conta que
balhos era difícil chegar a acordo. No entanto, o antiquário William Stukeley (1678-1765) em
Aubrey foi um pouco mais longe que os seus 1723 teve o privilégio de jantar com o seu pa-
antecessores: fez o primeiro desenho cientifi- trono, Lord Winchelsea, em cima de um dos
camente preciso do complexo e desviou o olhar trilitões e “mencionou que alguém com sangue
das pedras e dos trilitos para o ambiente. En- frio e pés leves teria espaço para dançar um mi-
controu cinco cavidades no solo, com um me- nueto lá em cima”. Além disso, Stukley tomou
tro de profundidade, às quais não prestou aten- a iniciativa de investigar não só o monumento,
ção. Duzentos e cinquenta anos mais tarde, o mas também o terreno circundante, procuran-
seu trabalho seria recuperado e batizado com o do pistas que o esclarecessem quanto ao tipo de
seu nome pelos arqueólogos. Hoje, 56 dos bu- civilização que o construiu.
racos de Aubrey foram identificados, dispostos
em círculo e, à sua volta, uma vala circular com NÃO DEMOROU MUITO TEMPO A TROPEÇAR
duas entradas que definem o todo. NELAS. AS SUAS EXCURSÕES descobriram
vários caminhos pré-históricos marcados por
MAS A CONTAGEM DOS BURACOS E O QUE terraços e valas de pedra. Um deles — nomea-
NELES FOI DESCOBERTO FOI um longo cami- do por Stukeley como The Avenue — partia
nho no tempo. Anteriormente, um dos suces- da entrada nordeste do círculo e percorria 2,5

SHUTTERSTOCK

A estrutura central
do semicírculo, tal
como é hoje quando
visto de cima.

181
Acredita-se que existiam cerca de 1000 habitações que
teriam alojado uma população de 4000 pessoas
quilómetros até ao rio Avon. O outro era um tica da Universidade de Bradford, revelou até
pouco mais estranho, pois não estava ligado a quinze círculos de pedra, fossos e valas numa
nenhum edifício, e tinha três quilómetros de área de 14 quilómetros quadrados à volta de
comprimento e pouco mais de cem metros de Stonehenge.
largura. Stukeley não viu outra finalidade para Foram também encontradas outras provas
esta estrada isolada a não ser servir para corri- que não deixam dúvidas quanto ao seu obje-
das de cavalos, pelo que lhe deu o nome de Sto- tivo principal: quando a arqueologia voltou a
nehenge Cursus, da palavra latina para definir interessar-se pelos buracos de Aubrey no sé-
hipódromos, que se tornou o nome genérico culo XX, descobriu-se que havia mais do que
para tais estradas pré-históricas. se pensava originalmente, e que vinte e cinco
deles continham provas de cremação de cadá-
MAS SE HAVIA CAVALOS QUE PISAVAM O veres, juntamente com alguns restos de ossos
STONEHENDGE CURSUS, não o faziam para e vestuário. No total, 64 cremações e cerca de
fins competitivos, mas como meio de trans- 150 enterros foram descobertos na área. Sto-
porte para muitas das pessoas que se reuniam nehenge teria assim sido um dos maiores locais
na região. Este erro da parte de Stukeley não de sepultamento da era Neolítica. E foi assim
diminui o seu trabalho, graças ao qual se come- desde o seu início, uma vez que estes buracos,
çou a compreender que o monumento ocultava bem como vários dos restos humanos que alo-
muito mais do que o espetáculo arqueológico jaram, foram finalmente datados do terceiro
que oferecia à primeira vista. Os séculos se- milénio a.C. Além disso, a análise genética dos
guintes assistiram à chegada de escavações que restos mortais revelou que muitos não eram
alargaram a sua área de trabalho, descobriram nativos da área: foram transferidos de outro lu-
novas características e dataram-nas com pre- gar para Stonehenge. É de notar que nem todos
cisão. Por exemplo, o Cursus encontrado por os corpos encontrados são tão antigos. O mais
Stukeley, que ele estimou ser contemporâneo recente é de um homem decapitado da época
do monumento, foi construído pelo menos mil saxónica, em plena Idade Média.
anos antes, como provado pela datação por Quer pudesse ou não ter sido utilizado para
carbono de um osso de bovino encontrado ali. outros tipos de rituais dos quais não restam
O trabalho de teledeteção do Professor Vincent vestígios, é evidente que Stonehenge foi um
Gaffney, Professor de Arqueologia Paisagís- local de enterro suficientemente importante

SHUTTERSTOCK

Ao lado de Stonehenge, foi


erguido um povoado neolítico à
imagem de como poderia ser
naquela época.

182
para merecer que alguns dos corpos enterrados e uma área de habitações revelando uma po-
fossem trazidos de outras áreas, talvez numa voação permanente, de dimensão considerá-
espécie de cerimónia de peregrinação fune- vel para a época. Estima-se que existiam cer-
rária. Mas isso é apenas parte da história, e a ca de 1000 casas, que poderiam ter alberga-
chave para a história completa não está no seu do uma população de 4000 pessoas. Era uma
interior, nem na sua área de influência direta. cidade pequena, estruturada e socialmente
Encontra-se num local próximo, muito menos organizada. Juntamente com os restos das ca-
espetacular e, portanto, mais desapercebido sas, foram encontrados ossos de animais em
durante séculos. Foi descoberto em 1966 e ape- abundância e restos de cerâmica, semelhantes
nas trabalhos recentes revelaram o seu papel aos encontrados nas áreas que abrigavam os
no labirinto neolítico. construtores das grandes pirâmides do Egito.
O mistério de onde as pessoas que construí-
ESTAMOS A FALAR DE DURRINGTON WALLS, ram e usaram Stonehenge se encontravam foi
OUTRA CONSTRUÇÃO localizada a 3,2 quiló- finalmente resolvido.
metros de Stonehenge, reduzida hoje a uma
planície arredondada, sem vestígios de qual- ESSE ASSENTAMENTO HUMANO, PORÉM,
quer edifício que possa ter estado no seu inte- NÃO SE ENCONTRAVA DENTRO DE Durrin-
rior, mas que desempenhou um papel básico gton Walls. O que foi encontrado no interior
na história do monumento, pois continha a são os restos de dois edifícios de madeira que
resposta a um dos seus principais enigmas: on- formavam dois círculos, um a norte e outro
de viveram e se instalaram as pessoas que gas- a sul. Estes edifícios foram erguidos ao mes-
taram tanto esforço e tantos anos a construir o mo tempo que as pedras em Stonehenge, mas
impressionante labirinto de pedra. porque não foram feitos com o mesmo mate-
Em 2003, o arqueólogo inglês Mike Parker rial? Uma explicação pode ser que o esforço
Pearson iniciou o Projeto Stonehenge River- envolvido foi demasiado intenso para se re-
side, tendo Durrington Walls como principal petir, mas Parker Pearson tem outra teoria.
área de trabalho. Ele procurou provar que os Durrington Walls e Stonehenge foram utiliza-
dois sítios estavam ligados e que faziam parte dos para rituais diferentes: os celebrados em
do mesmo complexo cerimonial. As suas es- Durrington Walls estavam relacionados com a
cavações revelaram uma avenida que liga o vida, enquanto que os de Stonehenge estavam
sul das Muralhas de Durrington ao rio Avon relacionados com a morte, e ele apoia esta

SHUTTERSTOCK

Um grupo de jovens faz ioga ao


nascer do sol durante as celebrações
do solstício de verão.

183
A obra que nunca foi terminada?
U ma das questões não resolvidas sobre Sto-
nehenge é se a forma como a conhecemos
é a forma final, ou se as pedras alguma vez for-
área de Wiltshire onde se encontra e revelou
a marca anteriormente despercebida de dois
sarsens na relva, posicionados precisamente
maram um círculo completo. Vários sarsen estão onde eram necessários para fechar o círculo.
caídos ou deteriorados, alguns estão incomple- O que aconteceu com as pedras em falta,
tos, e alguns simplesmente desapareceram, le- continua por responder, a menos que apare-
vando à hipótese de que o círculo de pedra, por çam noutro lugar, provavelmente nunca sa-
qualquer razão, nunca foi terminado. A maioria beremos. Mesmo quando as primeiras civi-
dos arqueólogos rejeitam esta teoria, e argu- lizações históricas britânicas começaram a
mentam que a forma original de Stonehenge era desenvolver-se à sua volta, Stonehenge este-
sem dúvida circular, tal como a das Pedras de ve durante séculos numa área muito remota:
Aubrey e arredores, bem como a sua gémea, suficientemente remota para que um ou mais
Durrington Walls. blocos gigantescos pudessem ser demolidos,
No verão de 2013, novas provas pareciam removidos ou transportados impunemente pa-
surgir quando uma onda de calor atingiu a ra outro lugar.
ARCHIVO TK

Plano de Stonehenge. Os
buracos que não têm ou
nunca tiveram pedras são
mostrados como círculos
abertos. As pedras visíveis
são mostradas em cinzento
metros — sarsens de arenito — ou
azul — pedras importadas.

184
Um modelo à escala de

ARCHIVO TK
Stonehenge criado por
investigadores da
Universidade de
Salford para estudar
a acústica do
monumento numa
câmara anecóica.

As pessoas viriam de longe para assistir a cerimónias


que duravam um dia inteiro
teoria com factos como em Durrington Walls, deriam durar um dia inteiro, começando num
ao contrário de Stonehenge, não terem sido lugar e terminando no outro, numa celebração
encontrados restos funerários. Relativamen- simultânea de vida e morte, com os partici-
te à interligação dos dois monumentos, Fagan pantes a deslocarem-se ao longo do rio.
descreve-os como “um gigantesco observató-
rio astronómico”, uma vez que o alinhamento POR MUITO BEM FUNDAMENTADO QUE POS-
com o nascer do sol nos solstícios que ocorre SA PARECER, trata-se de uma questão de de-
em Stonehenge também ocorre nesta segunda dução, uma vez que não existe qualquer regis-
área: “Em meados do verão, Stonehenge es- to escrito sobre isto. Há também especulações
tá alinhado com o sol quando este aparece ao de que muitos dos enterrados em Stonehenge
amanhecer. A avenida de Durlington Walls e eram nobres ou governantes, o que explicaria
o círculo sul do local alinham-se com o sol de o número relativamente pequeno de sepultu-
verão à medida que desaparece no horizonte ras e a transferência de corpos de outros locais
ao pôr-do-sol”. a serem enterrados lá especificamente. Mas
fornece provas abundantes de sociedades mais
AMBOS OS LOCAIS TÊM TAMBÉM UMA ES- avançadas do que se poderia imaginar no iní-
TRADA QUE CONDUZ AO RIO AVON. Pearson cio, cujos conhecimentos sobre agricultura e
desenvolveu teorias que falam de cerimónias construção e os seus rudimentos de astrono-
complexas que tinham lugar em datas especí- mia deixaram um registo que alimentou uma
ficas, frequentadas por pessoas de longe, utili- investigação brilhante e deu ímpeto a muitas
zando as estradas sagradas. As cerimónias po- lucubrações fantasiosas. e

185
A ignorância ou a
SHUTTERSTOCK

intoxicação informativa
levou muitas pessoas a
acreditar que os nossos
antepassados não poderiam
ter conseguido erguer certos
monumentos megalíticos,
tais como Stonehenge, sem
a ajuda de extraterrestres.

Alienígenas na
pré-história

186
Há quem tenha visto na arte rupestre representações de discos
voadores e astronautas, indícios de visitas ancestrais de seres
de outros mundos, mas na realidade não há provas reais que
sustentem tais ideias.
POR LUIS ALFONSO GÁMEZ
Jornalista e autor do blog Magonia, dedicado à análise crítica das pseudociências

187
“É
fantástico como os homens primitivos Esta referência é chocante, uma vez que o es-
do Magdaleniano, equipados com fer- tudo da Universidade do Colorado, conduzi-
ramentas de pedra e vestidos com pe- do pelo físico Edward Condon e financiado pe-
les de animais, puderam, simplesmente la Força Aérea dos EUA, concluiu em 1968 que
com o poder da sua imaginação, conce- não havia nada de misterioso sobre o fenómeno
ber objetos tão semelhantes a máquinas erguidas OVNI. Contar com este trabalho para defender
sobre quatro pés, equipadas com antenas e esca- a presença de naves espaciais na arte rupestre
das, e exibindo superestruturas geométricas”, não parece muito lógico.
escreveu Aimé Michel na revista Flying Saucer
Review, em novembro de 1969. Num artigo in- DEFENSOR DA ORIGEM EXTRATERRESTRE
titulado Formas de OVNI paleolíticas, o ufólogo DOS OVNIS, Michel admitiu que existiam ou-
francês relatou ter descoberto em algumas grutas tras explicações possíveis para os claviformes e
do arco franco-cantábrico — El Castillo e Altami- tectiformes, incluindo a dos símbolos sexuais
ra, entre outras — representações do que lhe pa- defendidos pelo pré-historiador André Leroi-
reciam ser discos voadores. Aquilo a que os pré- -Gourhan. Mas inclinava-se mais para a ufo-
-historiadores chamam claviformes e tectifor- logia, uma vez que os sinais não foram encon-
mes, sinais cuja interpretação ainda hoje é objeto trados em mais lado nenhum na Europa com
de debate entre especialistas, representavam pa- vestígios da cultura Magdaleniana e a sua dis-
ra ele naves espaciais como as que eram notícia tribuição coincidiu com a linha BAVIC. Michel
de destaque nos jornais em junho de 1947, quan- tinha dado este nome à linha imaginária entre
do Kenneth Arnold viu o primeiro disco voador. Bayonne e Vichy, uma trajetória que, segundo
Segundo Michel, os artistas paleolíticos eram ele, tinha sido seguida por OVNIs vistos a 24 de
grandes mestres do realismo. “Estes desenhos setembro de 1954 e que corresponderia a um
mostram fielmente o que eles queriam mos- plano exploratório extraterrestre. E acreditava
trar. A sua fiabilidade é absoluta. Se estas obras que a descoberta de discos voadores pintados
— ele refere-se aos alegados ovnis — não repre- em grutas na região franco-cantábrica poderia
sentam nada, devemos perguntar-nos como ser uma prova do papel-chave dos extraterres-
é possível que artistas tão apegados ao realis- tres no nascimento da civilização ocidental.
mo noutros campos possam expressar as suas O italiano Peter Kolosimo pegou na ideia em
fantasias imaginando precisamente, com sur- 1972, com Astronavi sulla preistoria, um livro
preendente precisão, formas cuja existência só cheio de relíquias alegadamente apoiando as
seria demonstrada 15 000 ou 20 000 anos mais visitas passadas de extraterrestres. Nesse livro,
tarde, no Relatório Condon”, disse ele . apresentou Michel como investigador — não

AGE

188
Ufólogos e pseudo-historiadores são traídos pela sua
ignorância sobre arte parietal e pela sua credulidade
como ufólogo — que tinha encontrado uma cultura dos OVNIs. Uma exceção é o jornalista
explicação para sinais considerados “incom- e arqueólogo basco Julio Arrieta, para quem “o
preensíveis aos estudiosos da pré-história”. argumento ufológico falha na sua base”, uma
Em 1974, o pai da ufologia espanhola, Anto- vez que os artistas paleolíticos “não eram pin-
nio Ribera, apoiou a teoria do seu colega fran- tores realistas, ou melhor, eram e não eram co-
cês. “O que estes remotos antepassados repro- mo queriam”. Como ele assinala, “se olhar para
duziram nas paredes das suas grutas não eram o catálogo da arte rupestre europeia, verá tudo,
mais nem menos do que aquilo que desde 1947 desde o realismo do famoso bisonte de Altamira
se chama discos voadores”, escreveu ele no seu até à verdadeira abstração, entendida como su-
livro ¿De veras los ovnis nos vigilan? cessão de pontos, manchas, figuras geométricas
e traços soltos ou agrupados”.
CLAVIFORMES E TECTIFORMES TORNARAM- Os ufólogos e pseudo-historiadores são traí-
-SE ASSIM A MAIS ANTIGA EVIDÊNCIA de dos pela sua ignorância sobre arte parietal, pelos
visitação alienígena, e tornaram-se parte do seus preconceitos e pela sua credulidade. Os ar-
argumento dos apóstolos do que era então co- tistas magdalenianos são, nota Arrieta, “muito
nhecido como a antiga teoria dos astronautas, imaginativos e, por vezes, desconcertantes. Por
agora conhecida como a antiga teoria alieníge- exemplo, entre os bisontes de Altamira há um
na. A arte rupestre paleolítica foi acrescentada acefálico: será que o artista viu um bisonte sem
às linhas Nazca — que Erich von Däniken apre- cabeça a correr numa manada? Se assumirmos
sentou em 1968 como um aeroporto pré-histó- que os pintores paleolíticos são sempre realistas,
rico no seu bestseller Memories of the Future devemos concluir isso mesmo, não é verdade?”
—os Moai da Ilha de Páscoa, as pirâmides de Para o pré-historiador Alberto Lombo, da
Giza, figuras japonesas Dogū, mitos Dogon, e Universidade de Saragoça, “a interpretação dos
assim por diante. Mas haverá realmente discos claviformes diz mais sobre aqueles que inter-
voadores pintados nas paredes de Altamira, El pretam do que sobre os sinais interpretados”.
Château ou Rouffignac? Funcionam como uma espécie de teste de Rors-
Infelizmente, poucos pré-historiadores para- chach, em que o espetador projeta o que quer
ram para analisar as alegações destes autores, e ver: discos voadores, calendários lunares, ór-
ainda menos têm um conhecimento mínimo da gãos sexuais...

SHUTTERSTOCK

Alguns sinais com cerca de 15 000 anos


encontrados em algumas grutas, tais como
os claviformes de Altamira — nesta imagem
— ou os tectiformes de El Castillo — na do
lado — ambas na Cantábria, foram,
surpreendentemente, conotados como
representações de objetos extraterrestres.

189
PATRICK GRUBAN / CC

As composições pré-históricas de Tassili na Argélia


mostram danças e rituais, não seres de outro mundo
Assim, na gruta cantábrica de La Pasiega, Ri- que procuravam extraterrestres no passado.
bera ficou surpreendido ao ver, “num buraco Dois anos após a publicação do livro de Lhote,
escondido”, o perfil “da gigantesca nave espacial Louis Pauwels e Jacques Bergier propuseram, em
extraterrestre fotografada por Ed Keffel na cidade O Despertar dos Mágicos, que nos frescos des-
brasileira da Barra da Tijuca, em maio de 1952. A cobertos “na gruta de Tassili” os fusos que saíam
silhueta da nave, vista em perfil, era inconfundí- dos “cascos” de algumas das figuras poderiam
vel”. Ele poderia muito bem ter dito que parecia ser uma “representação de campos magnéticos”.
a Enterprise do Capitão Kirk, porque a série fo-
tográfica do OVNI da Barra da Tijuca é uma frau- OUTROS AUTORES PSEUDOCIENTÍFICOS TO-
de: o disco está preso nas imagens; nunca voou MARAM A BATUTA DE PAUWELS E BERGIER,
sobre este bairro do Rio de janeiro. O raciocínio incluindo, é claro, Von Daniken. “Parece-nos,
de Ribera, ilustra Arrieta, é “o mesmo que levou sem excecionalmente cansar a imaginação, que
Von Daniken a descobrir um astronauta sobre o Grande Deus Marciano é retratado num fato
uma lápide maia”. Os ufólogos procuram naves espacial ou num fato de mergulho. Nos seus
espaciais no passado, e todos sabemos o que diz ombros arredondados e sobredimensionados
o ditado: quem procura, encontra. É por isso que repousa um capacete, ligado ao tronco por al-
também temos alienígenas na arte pré-histórica. gum tipo de juntas”, escreve o suíço em Me-
O mais famoso é conhecido como o Grande mories of the Future. Para Juan José Benítez,
Deus Marciano. Foi descoberto em 1956 pelo estamos perante “um gigante de seis metros,
etnógrafo francês Henri Lhote no planalto de com um fato de mergulho, um olho, e um fa-
Tassili, no Sahara argelino. “O contorno é sim- to inchado, como os usados pelos astronautas.
ples, sem arte, e a cabeça é redonda. O seu único Oficialmente impossível”.
detalhe é uma oval dupla no centro da figura. O Grande Deus Marciano — se Lhote lhe ti-
Evoca a imagem que habitualmente temos dos vesse chamado outra coisa, teria acabado como
marcianos. Marcianos! Que título para um rela- um extraterrestre pré-histórico — é uma re-
tório sensacionalista”, descreve-o ironicamente presentação do período de cabeça redonda da
no seu trabalho Rumo à Descoberta dos Frescos arte rupestre sahariana, de que há exemplos na
de Tassili, de 1958. Seis metros de altura e entre Líbia, Argélia, Nigéria e Níger. Decora um abri-
9500 e 6300 anos — quando o Sahara era verde go na região de Jabbaren. Não se encontra nu-
— a figura chamou imediatamente a atenção dos ma caverna, como afirmam Pauwels e Bergier.

190
O Grande Deus Marciano, uma imagem com mais

CORDON
de 6000 anos encontrada num abrigo no planalto
de Tassili no sul da Argélia, não veste um fato de
mergulho, como alguns ufólogos afirmam.
Corresponde à tendência pictórica das cabeças
redondas, das quais existem numerosos exemplos
na área, tais como os de Jabbaren (ao lado),
onde vários dançarinos nus são retratados.

191
O falso astronauta de Fergana

E m primeiro plano, um astronauta está a olhar


para nós. No segundo, outro está a analisar
o terreno e um disco voador está prestes a ater-
tamente da sua autenticidade — e profunda-
mente reveladora do rigor de Von Daniken. Co-
nhece alguma arte parietal assinada? Não, pois
rar ou acabou de descolar. No céu, há quatro não? Bem, esta cena tem um autor conhecido:
sóis ou mundos. O solo do planeta é uma es- A. Brousnlov. Porque o que Von Daniken apre-
pécie de tabuleiro de xadrez. Erich von Däniken senta como uma pintura pré-histórica do Vale
conta que esta cena foi descoberta por um certo de Fergana é na realidade um desenho publica-
Viatcheslaw Zaitsev numa caverna no Vale de- do em 1967 na edição 1 de Spoutnik, a edição
Fergana (Uzbequistão) e pergunta em A Mensa- francesa da revista que era o equivalente sovié-
gem dos Deuses (1975): “O que é que aqueles tico da Seleções do Reader’s Digest americana.
que viram os nossos primeiros astronautas e Brousnlov criou a imagem para ilustrar um ar-
testemunharam as primeiras viagens à lua reco- tigo intitulado Des visiteurs du cosmos , no qual
nhecem aqui? Certamente, mesmo para os mais o licenciado em filosofia Viatcheslaw Zaitsev
céticos é impossível não ver o que o autor vê, argumentou que a Terra tinha sido visitada por
dois humanóides em fatos espaciais e um disco extraterrestres em tempos antigos. Nos seus
voador em voo. livros, von Daniken reproduz a imagem sem a
O chamado astronauta de Fergana é uma pe- assinatura do autor e transforma o desenho de
ça com um nível de detalhe impróprio da arte 1967 numa pintura pré-histórica para apoiar as
rupestre — qualquer amador duvidaria imedia- suas teorias.

SPOUTNIK

Para Von Daniken e outros apóstolos da antiga teoria alienígena, esta imagem de hipotéticos extraterrestres
encontrados perto da cidade uzbeque de Fergana provaria que os extraterrestres tinham tido contacto com os
nossos antepassados, mas na realidade é uma ilustração de1967 de A. Brousnlov para a revista Spoutnik.

192
Os alegados astronautas de Val Camonica
em Itália, petroglifos de há 3000 anos
atrás, transportam arcos e espadas, mas
alguns autores interpretam-nos como
alienígenas em fatos espaciais.

SHUTTERSTOCK

Se o contexto e os estudos de peritos forem ignorados, é fácil


transformar uma pintura rupestre em algo inexplicável
Este erro dos autores de O Despertar dos cestos nas suas cabeças. O capacete dänikenia-
Mágicos não deve ser considerado como um no pode ser simplesmente uma consequência
incidente isolado. As deturpações, omissões e da forma como estes artistas retratavam a figu-
falsificações são comuns no trabalho dos de- ra humana ou do facto de usarem máscaras.
fensores dos antigos astronautas. Se é ou não Tal como identificam os claviformes e tecti-
um ciclope, como Benítez propõe, também é formes do Magdaleniano com imagens do cre-
questionável, uma vez que, embora o ser tenha do OVNI, os promotores da visitação extrater-
um olho central, há um segundo verticalmente restre na antiguidade interpretam as pinturas
à esquerda do rosto. Estamos ou não a olhar pa- de Tassili à luz da astronáutica do século XX,
ra uma representação de um viajante espacial? quando, francamente, é muito difícil acreditar
que seres de outras estrelas, com o desenvolvi-
O MARCIANO DE HENRI LHOTE NÃO É UMA mento tecnológico que implicaria, usariam fa-
FIGURA EXCECIONAL. Existem outras figuras tos espaciais como os do projeto Apollo.
semelhantes do mesmo período que Von Dä- Todas as provas de alienígenas na arte ru-
niken e os seus colegas ignoram não inocen- pestre sofrem dos mesmos problemas que os
temente. “Alguns destes indivíduos de cabeça Marcianos Tassili e os discos voadores Mag-
redonda têm um peito pontiagudo. Além disso, dalenianos. É muito fácil tornar inexplicável
com exceção das pulseiras, esclavinas e cintos, uma pintura ou gravura rupestre: isolá-la do
estes astronautas parecem estar nus. Os seus seu contexto cultural, ignorá-la, descartar as
seios, dedos das mãos, dedos dos pés e outros interpretações dos pré-historiadores, e propor
detalhes que não seriam visíveis sob um fato uma explicação alternativa baseada na sua apa-
espacial estão claramente desenhados. Porque rente semelhança com a de um astronauta dos
é que os viajantes espaciais usariam capacetes tempos modernos ou de uma nave espacial de
espaciais sofisticados com antenas enquanto o fição científica. Assim, por exemplo, os cha-
resto dos seus corpos estão nus?” pergunta o mados astronautas de Val Camonica em Itália,
historiador americano William Stiebing no seu talhados na rocha há cerca de 3.000 anos nes-
livro “Astronautas da Antiguidade” (1984). te vale alpino, cobrem a cabeça com capacetes
Os supostos visitantes de outros mundos es- com antenas, de acordo com Von Däniken, e
tão semi-nus — os genitais tanto das mulheres são portanto visitantes de outros mundos. No
como dos homens são por vezes discerníveis — entanto, não parecem muito avançados: carre-
carregam arcos e flechas e por vezes carregam gam arcos nas mãos. e

193
Direção Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es)

REDAÇÃO
Redatora chefe Cristina Enríquez
(cenriquez@zinetmedia.es).
Coordenação de design Óscar Álvarez
(oalvarez@zinetmedia.es).

REDAÇÃO EM MADRID
C/ Alcalá, 79. 1º A. 28009 Madrid
Telefone: +34 810 583 412.
E-mail: mhistoria@zinetmedia.es

Colaboram neste número:


Martin Cagliani, Josep Casabó Bernad, Luis
Alfonso Gámez, Vicente Fernández de Bobadilla,
Mario García Bartual, Alison George,
Martí Mas Cornella, Roberto Ontañón Peredo,
Thierry Aubry, Direçao Regional de Cultura do
Alentejo, José Ruiz Mata, Roberto Sáez, Manuel
Santos Estévez y Elena Sanz.

Consultora Marta Ariño


Diretor Geral Financeiro Carlos Franco
CRO (Diretor Comercial) Alfonso Juliá
(ajulia@zinetmedia.es)
Diretor de Desenvolvimento de Marca
Óscar Pérez Solero (operez@zinetmedia.es)

DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.
A Super Interessante é uma publicação
registada na Entidade Reguladora
para a Comunicação Social com o n.º 118 348.
Depósito legal: 122 152/98.

© Zinet Media Global, S.L. Esta publicação é propriedade exclusiva


da Zinet Media Global, S.L., e a sua reprodução total ou parcial,
não autorizada, é totalmente proibida, de acordo com os termos
da legislação em vigor. Os contraventores serão perseguidos
legalmente, tanto a nível nacional como internacional. O uso,
cópia, reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com
autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.

Você também pode gostar