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A educação liberal

Erasmo de Roterdã
1ª edição — setembro de 2020 — CEDET
Títulos originais:
De pueris statim ac liberaliter instituendis
De ratione studii
Colloquium abbatis et eruditae
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Tradução e notas:
William Bottazzini Rezende
Revisão:
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Preparação de texto:
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Capa:
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Diagramação:
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Revisão de provas:
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Imagem da capa:
Estudo das mãos de Erasmo de Roterdã;
Hans Holbein, o Jovem
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Roterdã, Erasmo de.
A educação liberal / Erasmo de Roterdã (1466–1536);
tradução e notas de William Bottazzini Rezende –
Campinas, SP: Kírion, 2020.
Título original:
De pueris statim ac liberaliter instituendis;
De ratione studii;
Colloquium abbatis et eruditae
ISBN: 978-85-94090-41-6
1. Teoria e loso a da educação 2. Histórico 3. Educação liberal
I. Autor II. Título
CDD — 370-1 / 370-09 / 370-112
   
1. Teoria e loso a da educação – 370-1
2. Histórico – 370-09
3. Educação liberal – 370-112
Sumário
APRESENTAÇÃO

A EDUCAÇÃO LIBERAL

A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO LIBERAL PARA AS CRIANÇAS

O MÉTODO DE ESTUDO

DIÁLOGO ENTRE O ABADE E A MULHER ERUDITA,


ANTRÔNIO E MAGDÁLIA

NOTAS DE RODAPÉ
APRESENTAÇÃO
Tum Desiderii cessabit nomen Erasmi,
Cum Rhenus nullas siccus habebit aquas.

[Então cessará o nome de Desidério Erasmo,


Quando o Reno, seco, não tiver mais nada das suas águas]

— Verso extraído de um dos epitá os


que choram a morte do ilustre humanista de Roterdã

Se houvesse um panteão dedicado à memória dos maiores intelectuais da história, não


restam dúvidas de que Erasmo de Roterdã não só teria nele a sua edícula, como também esta
se encontraria no galarim do edifício, ladeada pelos maiores nomes das letras greco-latinas.
Ora, somente a profundidade com que abordou os mais diversos temas, a acuidade com que
dissecou os mais intrincados problemas do seu tempo e a contribuição que deu às mais
diferentes áreas do saber, da educação à religião, passando pela política, pela lingüística e pela
crítica social, já lhe fariam merecedor de tal honra; contudo, a elas o Príncipe dos Humanistas
aliou um estilo impecável e uma elegância mais que ciceroniana, o que faz da sua vasta obra
uma fonte inesgotável tanto de sabedoria quanto de beleza, razão pela qual se tornou modelo e
inspiração para um sem- m de mentes brilhantes do seu tempo — a nal, é impossível falar de
Humanismo e Renascimento sem mencionar o gênio de Roterdã — e das gerações posteriores.

Ademais, embora tenham sido escritos há cerca de cinco séculos, os textos de Erasmo
permanecem incrivelmente contemporâneos sob muitos aspectos, sobretudo os que versam
sobre a formação intelectual de crianças e jovens. Com efeito, nestes dias sombrios para a
educação, quando os índices que medem a qualidade da alfabetização da população brasileira
são cruelmente desalentadores, Erasmo refulge como um farol em noite de tempestade,
apontando o porto seguro da educação clássica para as naus alquebradas da educação
contemporânea que ameaçam soçobrar no mar tormentoso das más teorias pedagógicas. Ora,
quem quer que leve a educação realmente a sério e compreenda o seu papel essencial e
insubstituível para a formação da consciência, não pode ignorar as preciosas lições do mestre
de Roterdã, que não só escreveu sobre a alta educação, como também a vivenciou quer como
aluno, quer como professor.

Assim, no presente volume, o leitor tem diante dos olhos três belos escritos de Erasmo,
diligentemente selecionados, que versam sobre a boa educação. Não foi fácil, confessamo-lo,
escolher entre tantas pepitas de ouro puríssimo quais eram as mais valiosas; no entanto,
estamos seguros de ter compilado o que traria mais benefícios e seria de mais fácil aplicação
para o leitor contemporâneo. Colocados em prática, os preceitos erasmianos não têm outro
resultado, senão o mais absoluto êxito na formação de mentes brilhantes.
No primeiro texto, A importância da educação liberal para as crianças, Erasmo discorre
sobre o peso da educação infantil para toda a vida de uma pessoa e o zelo que os pais devem
ter para assegurar aos lhos uma boa formação intelectual desde a mais tenra idade. Ora, é
surpreendente observar que os mesmos erros e negligências censurados por Erasmo nos seus
dias ainda estão em voga nos nossos. Porém, é ainda mais surpreendente notar que as soluções
propostas por Erasmo para o seu tempo também se aplicam ao nosso. Além disso, o Príncipe
dos Humanistas dá diretrizes claras sobre como ensinar os pequenos e o que transmitir-lhes
para que tenham uma robusta formação moral e intelectual.

No segundo texto, O método de estudo, Erasmo, alicerçado na sua vasta experiência


educacional, nos orienta sobre como estudar e ensinar de forma frutífera. Em que ordem
devemos aprender as disciplinas, que autores devemos ler, que exercícios fazer, como ter uma
memória vigorosa: tudo isso é objeto da exposição de Erasmo. Visto que em nossos dias o
sistema educacional ao qual estamos submetidos não nos proporciona as ferramentas
pedagógicas para que tenhamos uma verdadeira autonomia intelectual, O método de estudo
emerge como um manual a nos ensinar como adquiri-las.

Por m, fechamos este livro com o delicioso Diálogo entre o abade e a mulher erudita. Por
um lado, Erasmo entoa um verdadeiro panegírico do cultivo da vida intelectual e da sabedoria
por parte das mulheres; por outro lado, repreende o autoritarismo e o desprezo pelas letras,
marcas inconfundíveis da frivolidade e da estupidez. Ora, no século , raras eram as
mulheres que tinham a oportunidade de dedicar-se à alta cultura, mas as que o faziam
encantavam com a beleza sublime do seu intelecto, e Erasmo se mostra, aqui, um grande
promotor da educação feminina.

Mas não nos alonguemos e deixemos que nos fale diretamente o Príncipe dos Humanistas.
Porquanto as águas do Reno ainda são volumosas, assim viceja gloriosamente o nome de
Erasmo de Roterdã.

William Bottazzini Rezende


Poços de Caldas, março de 2020.
A EDUCAÇÃO LIBERAL
A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO
LIBERAL PARA AS CRIANÇAS
De pueris statim ac liberaliter instituendis
A importância da educação liberal1 para
as crianças2
Ao ilustríssimo Príncipe Guilherme,3 Duque de Jülich-Cleves-Berg,
Conde de Mark, de Ravensberg etc., saudações da parte de Erasmo de
Roterdã.

Konrad Heresbach, homem do mais elevado nível, a quem para o


grande bem do Estado aconteceu de ser o formador da sua infância, ó
ilustríssimo príncipe, amiúde me descreveu nas suas cartas de tal
forma a sua índole, nascida tanto para a erudição quanto para a
virtude, que se eu tivesse um contato doméstico com Vossa Alteza por
vários meses, não me poderia ser mais conhecido. Ele, movido por um
amor especial para com Vossa Alteza que exalava de toda a sua
missiva, me instava com o maior ardor e por meio de muitos
argumentos para que com alguma obra literária não só esporeasse4
Vossa Alteza, como dizem, que já corre valorosamente nesse que é o
mais belo dos estádios, mas também para que desa asse outros jovens
ilustres pela linhagem à emulação de tão feliz exemplo. A tal ponto ao
meu espírito não repugnava esse dever que eu considerava um
benefício ter sido admoestado disso. Ora, a razão de termos adiado o
cumprimento desse dever ao longo de alguns anos não foi outra, creia-
me, senão que não ocorreu um argumento que parecesse em alguma
medida corresponder a Vossa Alteza. Com efeito, ele deu ao texto tal
tom que cou visível que não se contentaria com qualquer presente.
Ora, como não ocorria qual o tipo que queria, comecei, por m, a
arrepender-me da minha promessa; pareceu-me boa coisa imitar
certos vassalos pobres, porém astutos, que, devendo uma grande soma
aos seus senhores, mas não tendo dinheiro para pagá-los, acalmam-
nos com alguns presentinhos de seus jardins, para que tolerem mais
pacientemente o pagamento atrasado, atestando, assim, que não falta
disposição para os recursos, e sim recursos para a disposição.
Na Itália, eu esboçara a obra De duplici copia verborum ac rerum.5
Acrescentara o exemplo de um mesmo tema reduzido o máximo
possível a um resumo e, depois, tratado de forma mais profunda e
abundante. O homem6 ao qual em Roma eu a entregara, para que
transcrevesse, devolveu-me esta parte mutilada e com menos da
metade do conteúdo, de modo que o que me havia sobrado era inútil.7
Depois, porquanto era solicitado incessantemente por amigos eruditos
para que concluísse a obra a m de estimular os estudos das belas-
letras, que pareciam arrefecer, apesar de o meu espírito encontrar-se
bastante resistente, contudo, examinado o plano da obra, que continha
as proposições de todo o tema como colunas, e tendo tomado o texto
novamente nas mãos, decidi levá-lo a cabo. Pense nesse presentinho
como se fosse uma cereja. Acrescentei dois opúsculos que nunca
haviam sido publicados:8 pense que se trata de dois marmelos colhidos
de um jardim pobre. Damos esses presentinhos campestres,
nobilíssimo jovem, não com a intenção de que com eles nossa
promessa esteja cumprida, mas para dar provas de que há vontade de
cumpri-la. Ora, os credores humanos costumam processar menos
aqueles que, como se processassem a si mesmos, incessantemente
confessam a sua dívida; pois os que a dissimulam, parecem planejar
uma contestação. Todavia, eu deveria tratar dessa questão
preferencialmente com Heresbach, que poderia intimar-me a
comparecer perante o tribunal com base em nosso contrato. Mas
preferi tratá-la com Vossa Alteza, que eu sabia que me seria mais
favorável em um assunto do próprio interesse do que ele em um
alheio. Com efeito, ele tem tanto amor por Vossa Alteza e defende com
dividendos a honra e a dignidade de Vossa Alteza que, se for possível,
ao velar por elas parece ser capaz de deixar de lado o genuíno respeito.
Sim, príncipe honradíssimo, continue nesse seu belíssimo certame
para que ele ilumine Vossa Alteza com as melhores disciplinas, e Vossa
Alteza a ciência dele com incremento da felicidade e da dignidade.
Não me darei ao trabalho de recomendar a Vossa Alteza este opúsculo,
a não ser pelo fato de ser inédito e integralmente de minha lavra, e
também de ensinar como abordar muitas coisas com poucas palavras,
pois a ninguém mais convém esse modo de expressar-se do que aos
mais altos príncipes. (Apresentamos um único exemplo.9 Mais
exemplos estão à disposição em Santo Agostinho, que de quando em
quando aborda um salmo de forma admiravelmente breve, o qual logo
expõe com uma abundância de palavras e idéias muito considerável).
Por m, embora esse método de educação seja o mais adequado aos
lhos dos príncipes, visto que necessitam de uma reta instrução mais
do que todos, contudo não convém educar-se de outra forma, senão
segundo os preceitos das artes liberais.
Com os melhores cumprimentos, despeço-me.
Friburgo em Brisgóvia, 1º de julho de 1529.

     :


As crianças devem ser educadas para a
virtude e as letras por meio da educação
liberal, e isso deve ser feito logo após o
nascimento

       


  

Se me deres ouvidos,10 ou antes a Crísipo, lósofo muito perspicaz,


cuidarás que o teu rebento seja educado nas belas-letras o quanto
antes, enquanto a inteligência ainda se lhe encontra livre de
preocupações e vícios, a idade lhe é suave e maleável, o espírito se
mostra a tudo dócil e disposto e, ao mesmo tempo, retém com a
máxima rmeza o que apreende. Ora, na velhice nada se nos xa na
memória da mesma forma que as coisas de que fomos imbuídos em
nossos primeiros anos.

Que não te turbem as vozes desses homens que cam a repetir que tal
idade, em parte, não é su cientemente capaz das disciplinas e, em
parte, não tem condições de suportar os esforços exigidos pelos
estudos. Em primeiro lugar, a primeira fase da educação se assenta
sobretudo na memória, que, nos pequeninos, conforme já o disse,
retém muitíssimo. Ademais, porque a natureza nos gerou para o
conhecimento, não é possível que seja demasiado prematura a
dedicação àquilo cujas sementes ela mesma semeou em nós.
Acrescente-se a isso o fato de que, na fase adulta, também é preciso
que se conheçam certas coisas, as quais, graças a uma propensão
especial da natureza, a tenra idade, em comparação com os anos de
maior robustez, apreende não só com mais rapidez, como também
com mais facilidade, quais sejam o alfabeto, o domínio das línguas, os
apólogos e as fábulas poéticas. Por m, por que razão se deveria
estimar que tal idade, já adequada para o aprendizado dos bons
costumes, seja inadequada para as letras? Ademais, que farão de
melhor as crianças já capazes de falar, uma vez que é preciso que
ocupem o tempo de alguma maneira? Como é mais útil a essa idade
entreter-se com as letras que com frivolidades! Talvez alegues ser de
pouca relevância o que se produz nos primeiros anos. Por que
desprezar como insigni cante o que é necessário para algo de suma
importância? Ademais, por que negligenciar esse ganho — por menor
que seja continua sendo um ganho — para os estudos? Ora, se
acrescentares com freqüência uma coisa pequena à outra coisa
pequena, eis que aparecerá um monte de modo algum desprezível.11
Entrementes, considera ainda o seguinte: se a criança aprender as
coisas simples, o adolescente aprenderá as mais complexas nos anos
em que se deveriam aprender as simples. Finalmente, enquanto se
dedica a essas coisas, ao menos se mantém afastado dos vícios com
que vemos contaminar-se amiúde aquela idade. Ora, nada ocupa
melhor o espírito inteiro do homem do que os estudos. Com efeito, tal
ganho não deve ser subestimado. Ademais, concedamos que com esses
esforços algo se perca do vigor do corpo; não obstante, parece-me que
isso ca muito bem compensado com o ganho obtido para o intelecto,
pois mediante esforços moderados o espírito se torna mais pujante. E
se aqui houver algum perigo, pode-se evitá-lo com a nossa diligência.
À tenra idade deve-se oferecer um mestre que atraia pela doçura, e
não um que afaste pela violência. Ora, existem certas coisas que são a
um só tempo agradáveis de conhecer e como que a ns com o intelecto
infantil; coisas essas cujo aprendizado é antes brincadeira do que
trabalho. Embora os anos da infância não sejam assim tão delicados,
pois, justamente por serem anos de infância, são até mais aptos a
tolerar os trabalhos, uma vez que carecem do senso de trabalho. Da
mesma forma, se pensares em como perde a própria humanidade
quem ca desprovido das letras, em como é fugaz a vida humana, em
como tende para o mal a adolescência, em como se enreda em uma
série de ocupações o ser humano quando jovem, em como é estéril a
velhice e em como são poucos os que a alcançam, não permitirás que o
teu lho, no qual viverás como que renascido, deixe inculta alguma
fase de sua existência, sendo que é em tal fase que se pode preparar
algo que há de trazer-lhe grande benefício para toda a vida ou afastá-lo
dos males.

  ,     


  

Após o longo período de desesperança quanto à fecundidade de tua


esposa, chega a mim a notícia de que te tornaste pai, e de prole
masculina, que apresenta uma índole admirável, naturalmente a dos
pais, e, se se permitir conjecturar algo com base em sinais e indícios
dessa natureza, parece prometer uma virtude perfeita. Por isso, tens no
espírito a intenção de cuidar que o menino, que tanta esperança nutre,
assim que for maiorzinho, seja iniciado nas belas-letras, educado nas
melhores disciplinas e formado e instruído nos mais salutares
preceitos da loso a. Naturalmente, queres ser plenamente pai e que
ele te seja verdadeiramente lho, que não só exprima os traços do teu
rosto e o teu porte físico, mas também se te assemelhe nos dotes
intelectuais. De minha parte, assim como me regozijo com a felicidade
de um amigo especial, da mesma forma aprovo veementemente o
propósito da tua prudência.
Gostaria de fazer-te uma única advertência — atrevida, porém
amorosa: não permitas que, seguindo quer o juízo, quer o exemplo do
vulgo, os primeiros anos do teu lhinho transcorram sem nenhum dos
frutos da instrução, para só então pô-lo a aprender o alfabeto quando
não somente a idade for menos tratável, como também o
temperamento mais propenso aos males e, quiçá, ocupado pelos
espinheiros dos vícios mais tenazes. Faze-me, pois, o favor de buscar
um homem dotado de conduta ilibada e afável, bem como de notável
ciência, a cujos cuidados con es o teu pequenino como que para o
nutrimento de seu tenro espírito, a m de que a criança beba o néctar
das letras junto com o próprio leite. Da mesma forma, compartilha
igualmente o cuidado do teu menininho entre as amas-de-leite e o
preceptor, para que aquelas lhe robusteçam o corpinho com a melhor
seiva possível e este lhe embeba o espírito com as mais salutares e
louváveis disciplinas.

Ora, tampouco julgo conveniente que o homem mais culto de todos,


e também o mais prudente, dê atenção a essas mulherezinhas
insigni cantes, ou a homens muitíssimo semelhantes a mulherezinhas
insigni cantes, mesmo com exceção da barba, que, animados por certa
misericórdia cruel e benevolência inimiga, acreditam que os meninos
devam permanecer até a puberdade entre os beijos da mamãezinha, os
afagos das amas-de-leite e os divertimentos e frivolidades pouco
pudicos de criadas e serviçais, e pensam realmente que devam ser
afastados das letras como se fossem veneno, matraqueando que os
primeiros anos são, não só rudes demais para que sejam capazes das
disciplinas, como também delicados demais para que estejam aptos
aos trabalhos exigidos pelos estudos. Por m, crêem que os progressos
nessa fase sejam demasiadamente irrelevantes para que, por essa razão,
se devesse ou assumir uma despesa ou atormentar a fragilidade
infantil.

Enquanto refuto cada um desses argumentos, peço-te que


momentaneamente dedique a mim um espírito atento, que pondera as
coisas como realmente são: em primeiro lugar, isto foi escrito por um
homem que te quer bem como praticamente nenhum outro; em
segundo lugar, trata-se de assunto do teu maior interesse. Ora, que há
de mais caro que um lho, sobretudo único, ao qual desejaríamos
transferir não só os bens, mas até a nossa vida, se possível? Do mesmo
modo, quem não seria capaz de perceber que agem de forma ao
mesmo tempo perversa e prepóstera os que, ao cultivo dos campos, à
construção de edifícios e à criação de cavalos dedicam a máxima
atenção e sobre essas coisas se aconselham com homens sábios e
dotados de um conhecimento forjado por larga experiência, mas
quando se trata da educação e formação dos lhos, que são a razão da
aquisição de todas as outras coisas, dão à questão tão pouca
importância que não consultam o próprio parecer, nem buscam a
opinião dos homens sensatos, mas, como se se tratasse de um
passatempo, dão ouvidos a mulherezinhas ineptas e a quaisquer
homenzinhos da plebe? Isso não seria menos absurdo do que se
alguém, muito preocupado com o sapato, negligenciasse o próprio pé
ou, indiferente quanto à saúde do corpo, cuidasse com o maior zelo
para que não houvesse nenhum defeito na roupa.

***

Não te tomarei muito tempo aqui, caríssimo, com lugares-comuns: o


quanto a força da natureza, o quanto o amor, o quanto a lei divina, o
quanto as constituições humanas querem que os pais se obriguem para
com os lhos, pelos quais, na medida do possível, fugimos da
efemeridade e nos tornamos imortais. Todavia, alguns têm para si que
cumpriram muito bem a função de progenitores pelo simples fato de
terem gerado uma vida, sendo que esta é a menor porção de dedicação
que exige o título de pai. Para que sejas verdadeiramente pai, no
sentido integral do termo, deves cuidar do teu lho, e dar uma atenção
toda especial àquela área mediante a qual ele se sobrepõe aos animais e
se aproxima da semelhança com a divindade.

Como é grande a solicitude das mães em geral para que o lho não
que com algum grau de estrabismo, com bochechas caídas, com o
pescoço dobrado, corcunda, cambado, com os pés tortos ou com uma
simetria pouco harmoniosa entre as partes do corpo. Para isso,
costumam usar até, entre outras coisas, tiras de pano e ligaduras com
as quais lhe envolvem as faces. Entrementes, mantém-se também o uso
correto do leite, dos alimentos, dos banhos e dos movimentos, por
meio dos quais os médicos, nomeadamente Galeno, ensinaram em
muitos livros a como se preparar às crianças uma próspera saúde do
corpo. Tampouco eles adiam tais responsabilidades para o sétimo ou
décimo ano da criança, mas incitam a esses cuidados tão logo seja
retirada do abrigo uterino. E o fazem bem, visto que uma infância
negligenciada freqüentemente leva os homens a uma velhice mórbida
e sofrida, se porventura chegarem a ela. Ademais, mesmo antes do
parto, encontra-se vigilante a diligência materna: as grávidas não
comem quaisquer alimentos, evitam os movimentos incômodos e, se
por acaso algo cair-lhes no rosto, tendo-o arrancado com a mão,
imediatamente o colocam em uma parte encoberta do corpo.12 Graças
a esse remédio, sabe-se por muitas experiências que a deformidade
que haveria de ocorrer em uma parte visível do corpo da criança ca
escondida em uma parte mais oculta.

Ninguém chama de precipitados esses cuidados, que são voltados a


um aspecto assaz inferior do ser humano. Por que, então, se
negligencia por tantos anos aquela parte em razão da qual recebemos
propriamente a denominação de seres humanos? Acaso não age de
forma absurda aquele que enfeita o chapéu, mas deixa a cabeça
desgrenhada e escabiosa? Pois bem, muito mais absurdo é dedicar ao
corpo mortal um justo cuidado, mas não ter nenhuma consideração
pela imortalidade do espírito. Quando a alguém nasce em sua
propriedade um potro ou um cãozinho que demonstrem alguma
característica de uma natureza mais nobre, vê se não inicia
incontinenti a adestrá-lo, pois tanto mais agirá de bom grado, quanto
mais dócil se tornar a tenra idade à vontade daquele que a instrui.
Desde cedo ensinas um papagaio a reproduzir as palavras humanas,
não ignorando que, quanto mais idade tiver, menos dócil será;
adverte-o também o seguinte dito popular: “Papagaio velho não se
importa com a vara”.13 Ora, como é possível que estejamos atentos às
aves, mas inativos em relação aos lhos? E os lavradores que não são
inertes? Acaso com o enxerto não ensinam as plantinhas ainda
delicadas a se despojarem do caráter silvestre, em vez de esperar até
que ganhem robustez? Tampouco somente cuidam que não cresça
encurvada ou contraia algum outro defeito, mas, caso o contraia,
apressam-se em corrigi-lo enquanto ainda é exível e obediente à mão
de quem a molda. Ora, que animal ou planta é capaz de corresponder
aos votos e necessidades de seus donos e lavradores se nossa diligência
não auxiliar a natureza? Quanto mais cedo se faz algo, mais feliz é o
resultado.

Com efeito, a mãe natureza acrescentou aos animais brutos uma


proteção maior para que pudessem cumprir as funções que lhes são
próprias, mas, porquanto a providência divina somente ao homem,
entre todos os animais, atribuiu a faculdade da razão, deixou à
instrução a parte mais importante. Como certa feita escreveu alguém
com muito acerto: a instrução correta e a educação legítima são o
começo, o meio e o m, isto é, a essência de toda a felicidade humana.
Na verdade, com essa máxima Demóstenes recomendou a
pronuntiatio14 correta; certamente não o fez sem razão, mas a
instrução correta é de longe mais importante para a sabedoria do que a
pronuntiatio para a eloqüência. Ora, a fonte de toda virtude é uma
educação diligente e virtuosa. Da mesma forma, o começo, o meio e o
m para a estupidez e a maldade é a instrução negligente e
corrompida. Foi sobretudo esta última que nos foi deixada. Essa é a
mesma razão do porquê de a natureza ter atribuído aos demais
animais a velocidade, a capacidade de voar, a visão aguçada, o corpo
grande e forte, as escamas, a pelagem, os pêlos, as lâminas, os chifres,
as unhas e os venenos: com essas coisas podem não só proteger sua
incolumidade, mas também providenciar alimentos para si e criar os
lhotes. O homem é o único que a natureza gera frágil, nu e inerme;
no entanto, no lugar de todas aquelas coisas, concedeu-lhe um
intelecto apto às disciplinas, de modo que tudo esteja somente nele,
desde que exercitado. E, quanto menos apto às disciplinas é um
animal, maior é a previdência inata que possui. As abelhas não
aprendem a construir alvéolos, colher a seiva e produzir o mel. As
formigas não são instruídas a fazer de suas toquinhas armazéns
durante o verão para que tenham meios de subsistência durante o
inverno, mas tudo isso é realizado por instinto natural. O homem,
porém, não sabe comer, andar ou falar a menos que seja ensinado.
Portanto, se sem os cuidados da enxertia uma árvore, ou não gera
nenhum fruto, ou gera frutos insípidos, se sem o concurso da nossa
dedicação o cão nasce inútil para a caça; o cavalo, incapaz da atividade
eqüestre; e o boi, inepto para a aragem, que animal selvagem e inútil
não há o homem de tornar-se, se não for oportuna e diligentemente
moldado pela educação? Como não há ninguém que não o tenha
ouvido várias vezes, não te repetirei aqui o exemplo de Licurgo,
apresentado por ele ao público: o cãozinho de boa raça, mas mal
adestrado, correu em direção à comida, ao passo que o outro, nascido
de pais indolentes, mas treinado com desvelo, deixando de lado a
comida, saltou sobre a fera. A natureza é uma coisa poderosa, mas a
educação, mais poderosa, supera-a. Os homens cuidam para que
tenham um bom cão com que caçar e um cavalo vivaz com que viajar,
e nisso nenhuma diligência é considerada precoce. Ademais, que
tenham um lho que aos pais não seja só ornamento, mas também
benefício, no qual depositem boa parte dos cuidados com os assuntos
da família, cujo senso de dever acalente e sustente o peso dos seus
anos, que se mostre defensor el da sua estirpe, bom cônjuge para a
esposa, cidadão forte e útil para o Estado: não cuidam disso em
absoluto ou só tardiamente? Em favor de quem semeiam? Em favor de
quem aram? Em favor de quem edi cam? Em favor de quem buscam
riquezas por terra e por mar?15 Acaso não é em favor dos lhos? Mas
que utilidade ou glória têm essas coisas se aquele a quem cedem todas
elas não as sabe usar? Adquirem-se posses com zelo desmedido; no
entanto, não há nenhuma preocupação em relação ao possuidor.
Quem compra uma cítara para alguém que ignora música? Quem
organiza uma biblioteca para quem desconhece as letras? Mas
adquirem-se tantas riquezas em favor de quem nunca aprendeu como
usá-las? Se adquires essas coisas em favor de alguém que tenha sido
bem educado, provês-lhe de instrumentos para as virtudes, mas se o
faz em favor de um intelecto inculto e selvagem, que outra coisa zeste
senão fornecer-lhe matéria para a prática da iniqüidade e dos crimes?
Em que coisa se pode pensar que seja mais insensata do que esse tipo
de pais? Cuidam para que o corpo do lho careça de defeitos e seja
capaz das ações comuns, mas negligenciam o espírito, de cujo governo
depende toda ação virtuosa. Para não mencionar, entrementes, que,
riquezas, dignidade, prestígio, bem como a boa saúde, coisas que
desejam aos lhos com votos tão angustiantes, não há nada que as
engendre mais a uma pessoa do que a retidão moral e a educação.
Desejam-lhes a presa, no entanto não lhes dão a lança para que
possam capturá-la. Aquilo que é o mais excelente de tudo não podes
dar ao lho, mas nesses conhecimentos, com os quais se adquire o que
há de melhor, podes instruí-lo. Isso já é notavelmente absurdo, mas
ca ainda mais absurdo porque têm em casa um cão cuidadosamente
adestrado e um cavalo domado e treinado com grande zelo, mas um
lho que carece de qualquer instrução em uma disciplina liberal. Têm
um campo belamente cultivado, mas um lho horrivelmente inculto.
Têm uma casa decorada com toda sorte de ornamentos, mas um lho
vazio de quaisquer ornamentos verdadeiros.

Aqueles que, segundo a opinião do vulgo, parecem ter grande


sabedoria em relação a essas coisas ou adiam os cuidados com a
formação intelectual para uma idade indócil, ou simplesmente não
fazem qualquer uso dela, mas se preocupam de modo admirável com
os bens fortuitos e externos, mesmo antes que venha à luz aquele que
destinaram para ser senhor de todos eles. Ora, que coisa há que não os
vemos fazer? O ventre da esposa ainda está inchado, mas já se convoca
um adivinho: os pais querem saber se virá um menino ou uma
menina. Perscrutam o destino. Se o astrólogo tiver a rmado com base
no horóscopo que a prole haverá de ser bem-aventurada na guerra,
dizem: “Dedicaremos este à corte real”. Se prometer dignidades
eclesiásticas, dizem: “Procuraremos para ele o episcopado ou uma
abadia abastada. Faremos dele um superior ou um deão”. Essa
preocupação não lhes parece prematura, embora anteceda o próprio
nascimento da criança, mas lhes parece prematura a preocupação que
se tem pela formação intelectual dos lhos? Cuidas com tanta pressa
para que tenhas um lho general de guerra ou magistrado, mas ao
mesmo tempo não cuidas para que seja um salutar general ou
magistrado do Estado? Tratas antes do tempo para que tenhas um
lho bispo ou abade, mas não o formas para que cumpra corretamente
o ofício de bispo ou de abade? Tu o colocas na carruagem, mas não o
ensinas como governá-la. Leva-lo para o leme, mas não cuidas para
que aprenda o que um comandante deve saber. Por m, em todas as
tuas posses, nada tens mais negligenciado do que aquele que nada tens
de mais precioso e para o qual se adquirem todas as demais coisas.
Vicejam os campos, brilha a casa, resplandecem os vasos, as vestes e
toda a mobília, os cavalos são bem ensinados, os serviçais têm
excelente instrução, só o intelecto do lho está em desalinho, sujo,
horrendo. Compraste um escravo da pedra,16 como se costuma dizer,
homem bárbaro e vil; se for rude, observas para que coisa seria útil, e
logo o treinas para alguma arte, quer seja a da culinária, a da medicina,
a da agricultura ou a da administração; só descuidas do lho, como se
ele tivesse nascido para o ócio. Dizem: “Terá algo com que possa viver,
mas não terá nada com que possa viver virtuosamente”. Geralmente,
quanto mais rica é uma pessoa, menos se preocupa com a educação
dos lhos. Dizem: “Qual a necessidade da loso a? Terá dela o que for
su ciente”. Ora, quanto mais tiverem, tanto mais precisarão dos
auxílios da loso a. Quanto maior for o barco e a quantidade de
mercadoria transportada, tanto mais necessitará de um comandante
bem treinado. Como é grande o zelo com que trabalham os príncipes
para que deixem aos lhos o maior domínio possível, e nenhum cuida
menos da educação deles naquelas artes sem as quais o principado não
pode ser bem administrado. Como é maior o benefício daquele que
fornece os meios para bem viver do que daquele que só fornece a vida!
Devem muitíssimo pouco aos pais os lhos que só foram gerados por
eles, mas não também educados para a vida virtuosa. Celebra-se o dito
de Alexandre: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes”.
Repreende-o com muito acerto Plutarco, pois tanto mais deveria
desejar a loso a de Diógenes, quanto maior fosse o seu império. Mas
ainda mais vergonhosa é a negligência daqueles que não só não
educam corretamente os lhos, como também os pervertem para a
iniqüidade.
Quando Crates de Tebas notou esse absurdo no costume das pessoas,
não sem razão ameaçou subir no local mais elevado da cidade para
dali repreender com o maior clamor de que fosse capaz a cidade por
sua loucura pública com palavras como: “Que loucura vos impele,
desgraçados! Dedicais uma preocupação tão angustiante à aquisição
de dinheiro e de propriedades, mas não tendes absolutamente
nenhuma preocupação com os lhos para os quais adquiris essas
coisas?”. Assim como mal são mães pela metade aquelas que só parem
mas não criam, da mesma forma mal são pais pela metade aqueles
que, embora provejam as coisas necessárias ao corpo dos lhos até o
luxo, não se preocupam em aperfeiçoar o seu intelecto com nenhuma
disciplina liberal. Árvores talvez nasçam, embora estéreis ou com fruto
agreste. Cavalos nascem, embora inúteis. Mas os seres humanos,
acredita em mim, não nascem, mas são forjados. Os primitivos
mortais que levavam a vida em orestas sem nenhuma lei, nenhuma
disciplina e em promiscuidade sexual eram mais verdadeiramente
feras do que homens. É a razão que faz o homem. Ela não tem espaço
onde tudo se faz segundo o arbítrio das paixões. Se a forma zesse o
homem, também as estátuas seriam incluídas na raça humana.

Questionado por certo homem estulto e rico sobre que utilidade a


erudição proporcionava à juventude, Aristipo disse-lhe com elegância:
“Pelo menos para que, no teatro, uma pedra não se sente sobre outra”.
Graciosamente outro lósofo — Diógenes, se não me engano —,
carregando uma lâmpada ao meio-dia, perambulava pela praça
pública apinhada de gente. Perguntado sobre o que procurava, disse:
“Procuro um homem”. Sabia haver ali uma multidão: porém de gado,
não de seres humanos. Quando certo dia convocara de um local
elevado uma assembléia popular, clamando: “Apresentai-vos,
homens!”, e um grande número de pessoas já se tivesse reunido, mas
ele não dizia outra coisa senão: “Apresentaivos, homens!”, alguns, um
pouco irritados, protestaram: “Nós, homens, estamos presentes; dize,
caso tenhas algo”. Então respondeu: “Quero que homens estejam
presentes, não vós, que sois tudo, menos homens”, e os expulsou dali a
cajadadas. Certamente, é bem verdade que um homem não instruído
nem pela loso a nem por nenhuma disciplina é um animal em certa
medida pior do que os selvagens. Visto que os animais nada mais
fazem do que obedecer aos instintos, o homem, se não for formado
pelos preceitos das letras e da loso a, é arrastado para paixões mais
do que animalescas. Nenhum animal é mais selvagem ou danoso do
que o homem guiado pela ambição, cobiça, ira, inveja, luxo e
concupiscência. Por isso, aquele que não se preocupa em dotar o lho
o quanto antes de saberes excelentes nem é ele próprio um homem,
nem lho de um homem.

Acaso não se considera uma aberração abominável um intelecto


humano no corpo de um animal? Assim como lemos que os homens
que estavam na casa de Circe foram transformados por meio de
sortilégios em leões, ursos e porcos, de modo que neles, no entanto,
permanecesse a mente humana. Apuléio contou-nos que a mesma
coisa aconteceu com ele próprio. Tampouco Santo Agostinho deixou
de acreditar que homens sejam transformados em lobos. Quem
toleraria ser chamado pai de tal monstro? Todavia, um intelecto bestial
em um corpo humano é uma monstruosidade mais espantosa, e a
maior parte dos homens, que parece bastante sábia aos próprios olhos
e ao povaréu, se deleita em ter tal prole. Diz-se que as ursas parem
uma massa informe, e a modelam e formam lambendo-a por longo
tempo. Porém, nenhum lhote de ursa é tão informe quanto o ser
humano, que nasce com um intelecto em estado bruto. Se não o
moldares e formares com muito zelo, serás pai de um monstro, não de
um ser humano. Se te nascer um lho com o crânio no formato de um
cone, deformado por uma corcunda, com pernas tortas ou com seis
dedos na mão, como te desagradará, como te será constrangedor ser
chamado pai, não de um ser humano, mas de um monstro! Mas não te
envergonhas de seres chamado pai de um intelecto tão horrendo?
Como é desanimador para os pais se a esposa der à luz um lho
estúpido e de intelecto rude! Ora, parece-lhes que geraram não um ser
humano, mas sim um monstro, e se o temor das leis não impusesse
obstáculos, entregariam à morte o que lhes nasceu. Acusas a natureza
por ter negado ao teu rebento a mente de um ser humano, mas tu
mesmo fazes que teu lho que desprovido de uma mente humana?
Mas é melhor ter uma mente rude que perversa. Ou antes: é melhor
ser um porco que um homem ignorante e mau. Quando te dá um
lho, a natureza não te entrega outra coisa senão uma massa rude. O
teu papel é moldar essa matéria dócil e maleabilíssima para que
alcance o melhor estado possível. Se deixares de fazê-lo, terás um
animal selvagem; se fores vigilante, terás, por assim dizer, um ser
divino. Assim que nasce, a criança se encontra dócil para aquelas
coisas que são próprias do ser humano. Por isso, de acordo com o
oráculo de Virgílio: “Dedica-lhe um esforço especial já desde os
primeiros anos”.17 Trata a cera sem demora, enquanto está molíssima.
Modela a argila ainda úmida. Enche o vaso de barro com os melhores
líquidos enquanto ainda carece de polimento.18 Tinge a lã enquanto
vem cândida do pisoeiro, não contaminada por nenhuma mancha.
Antístenes acenou para isso de forma bastante alegre. Ao receber o
lho de certo homem para educá-lo, foi questionado pelo pai do
mancebo sobre que coisas eram necessárias, e respondeu: “Um livro
novo, um estilo novo e uma tabuinha nova”.19 O lósofo procurava,
sem dúvida, uma mente inculta e vazia. Tu não podes ter uma massa
em estado bruto. Se não deres a ela a forma de um homem,
corromper-se-á espontaneamente para assumir as feições monstruosas
das feras. Visto que deves cumprir este dever para com Deus e a
natureza, mesmo que a ti não haja nenhuma esperança do retorno de
frutos, considera em teu espírito quanto consolo, quanta utilidade e
quanta dignidade proporcionam aos pais os lhos bem educados
desde a mais tenra idade.

Por outro lado, em que vergonhas e desgraças os lhos mal-educados


lançaram os seus pais. Não me é necessário apresentar-te exemplos
extraídos das crônicas dos antigos; basta que faças o teu pensamento
perambular pelas famílias da tua cidade: quantos exemplos aparecerão
de todas as partes? Sei que ouves com freqüência palavras deste tipo:
“Como eu seria feliz se não tivesse mais lhos! Como eu seria bem-
aventurada se nunca tivesse dado à luz!”. Certamente, coisa trabalhosa
é educar os lhos; admito-o. Porém, ninguém nasce para si mesmo e
ninguém nasce para o ócio. Quiseste ser pai: é preciso que sejas um
bom pai. Geraste lhos para o Estado, não só para ti; ou, para falar
mais cristãmente, geraste lhos para Deus, não para ti.

Paulo escreve que as mulheres só se salvam se tiverem gerado lhos e


os tiverem educado de tal forma que perseverem no amor pela
piedade.20 Deus cobrará dos pais tudo aquilo em que pecarem os
lhos. Destarte, se não educas logo com modos honestos aquele que te
nasceu, tornas-te, em primeiro lugar, injusto para contigo próprio, que
preparas para ti algo que é mais grave ou nocivo do que dois inimigos
seriam capazes de desejar um para o outro. Depois de conduzi-lo para
a corte, Dionísio efeminou com prazeres o lho jovenzinho do
desertor Dião. Ele sabia que isso seria mais triste para o pai do que se o
executasse à espada. Pouco depois, quando o adolescente passou a ser
pressionado pelo pai, que havia retornado, para que voltasse à antiga
virtude, jogou-se do alto de um sobrado. Disse com muita verdade
certo hebreu: “O lho sábio alegra o pai, o lho tolo é a tristeza da
mãe”.21 Mas o lho sábio não é só um deleite para seu pai, mas é
também ornamento, socorro e, por m, vida para o seu pai. Por outro
lado, o lho tolo e perverso não traz somente tristeza para os pais, mas
também vergonha, pobreza e velhice prematura; por m, atrai a morte
para aqueles dos quais obteve o início de sua vida. Mas para que
relatar isso? Todos os dias estão diante dos olhos exemplos de cidadãos
que os costumes depravados dos lhos levaram da riqueza à
mendicância, que o lho enforcado ou a lha que se prostitui em um
lupanar torturam e atormentam com uma ignomínia intolerável.

Conheci magnatas notáveis aos quais de muitos lhos quase não


sobrou um que casse incólume. Um, corroído pela lepra abominável
que os eufemistas chamam de sarna francesa,22 anda por aí como
morto-vivo; outro se arrebentou em uma competição de bebedeira;
outro, freqüentando prostíbulos mascarado durante a noite,
desgraçadamente morreu dilacerado. Qual a razão disso? É que os pais
julgam ser su ciente ter gerado os lhos e tê-los provido de bens. Não
há nenhuma preocupação com a educação. As leis usam de rigor com
aqueles que abandonam os seus rebentos e os lançam a alguma oresta
a m de que sejam devorados pelas feras. Contudo, não há gênero
mais cruel de abandono do que entregar a paixões ferinas aquilo que a
natureza concedeu para que fosse moldado com os mais excelentes
meios para a virtude. Se houvesse alguma bruxa23 que com feitiços
pudesse e tentasse transformar o teu lho em um porco ou em um
lobo, acaso não julgarias que não haveria suplício su cientemente
adequado para o seu crime? Ora, o que execras nela, tu próprio o fazes
com gosto. Como é monstruosa e feroz a concupiscência! Que besta
voraz e insaciável é a luxúria! Que fera descontrolada é a embriaguez!
Que animal funesto é a ira! Que fera horrível é a ambição! Expõe o
próprio lho a essas feras todo aquele que não o acostuma a amar já
desde a mais tenra idade o que é virtuoso e a ter pavor do que é torpe.
Ademais, não somente o lançam às feras, o que costumam fazer os
mais cruéis abandonadores, mas, e isso é mais grave, alimenta para a
sua própria destruição uma fera terrível e perniciosa.

O tipo mais execrável de ser humano é aquele que prejudica o corpo


das crianças com sortilégios. Que se deve pensar dos pais que, com sua
negligente e errônea forma de educar, submetem o intelecto a
sortilégios? Chamam-se infanticidas os que assassinam o lho recém-
nascido, e eles matam somente o corpo. Quão maior impiedade é
matar o espírito? Ora, que outra coisa é a morte da alma senão a
estupidez, a ignorância e a maldade? Entrementes, tampouco menos
iníquo é para com a pátria à qual, evidentemente no que depender de
si mesmo, entrega um cidadão nocivo. É ímpio para com Deus, de
quem recebeu uma prole para que a educasse para a piedade. Donde se
vê com clareza como não é irrelevante nem isolado o crime que
cometem os que descuidam da educação da infância.

***

No entanto, conforme eu mencionara, pecam ainda mais gravemente


do que aqueles os que não somente não o formam para a virtude,
como também impregnam o tenro e rude vasinho do pequenino para
a maldade, e este aprende os vícios antes de saber o que é vício. Como
será um homem modesto e desprezador do orgulho se engatinha em
púrpura? Ainda não é capaz de pronunciar as primeiras palavras, mas
já compreende o que é escarlate, já pede a púrpura, já sabe o que são o
sargo e a tainha, e com altivez rejeita alimentos comuns. Como poderá
ser respeitoso quando crescer aquele que na infância começou a ser
moldado para a indecência? Como será generoso quando for grande
aquele que tão pequeno aprendeu a admirar as moedas e o ouro?
Como se absterá do luxo o jovem cujo paladar corrompemos antes de
lhe termos começado a formar os costumes? Se houver algum novo
tipo de roupa recentemente descoberto, visto que todos os dias a arte
dos alfaiates, como outrora a África, engendra alguma novidade,
colocamo-lo na criança. Ela é ensinada a agradar a si mesma e, se se
lho tirar, exige-o de volta, irada. Como odiará a embriaguez quando
for grande aquele que aprendeu quando criança a ser dado ao vinho?
Inculcam-lhes palavras que di cilmente seriam permitidas, como
a rma Quintiliano, na boca dos mocinhos criados nas delícias de
Alexandria.24 Se o menino profere algo dessa natureza, acolhem-no
com beijos. Não é, pois, de espantar que não reconheçam a
degeneração de seus lhos, visto que a sua vida nada mais é senão um
exemplo de iniqüidade. A criança bebe as carícias imorais das amas e é
moldada, como que pela mão, como dizem, para contatos licenciosos.
Vê o pai notavelmente bêbado, ouve-o tagarelar coisas que devem ser
ditas e coisas sobre as quais se deve calar. Participa de festins
suntuosos e pouco decentes, ouve a casa ressoar com pantomimos,
autistas, cantoras e dançarinas. Acostuma-se o menino de tal forma a
esses hábitos que o costume se torna parte da sua natureza.

Há povos que formam os meninos que ainda enrubescem diante da


mãe para a ferocidade militar. Aprendem a lançar olhares
ameaçadores, a amar a espada e a desferir golpes. Desses primeiros
ensinamentos são entregues a um preceptor. E admiramo-nos ao
perceber que são indóceis à virtude aqueles que desde cedo beberam
os vícios junto com o próprio leite? Mas ouço alguns defenderem sua
estupidez de tal modo que dizem que com esse prazer, tomado da falta
de pudor das crianças, se compensa o enfado da amamentação. Que
ouço? Pode ser mais agradável a um verdadeiro pai se o lho exprimir
algo indecentemente feito ou indignamente dito do que se proferir
uma sentença salutar com a sua lingüinha balbuciante, ou se imitar
outra coisa piedosamente feita? A natureza deu à primeira idade a
facilidade de imitar, no entanto a imitação se encontra um pouco mais
propensa para a perversidade do que para virtude. Acaso é mais
deleitável ao homem bom a torpeza do que a virtude, sobretudo nos
lhos? Se alguma sujeira cair na pele da criança, limpa-la, mas infectas
a sua mente com manchas tão horríveis? Ora, nada se xa mais
rmemente do que aquilo que se inculca em mentes vazias. Dize-me,
quanto de coração materno têm aquelas mulheres que mantêm os
lhos em seu regaço até quase os sete anos de vida e praticamente os
tratam como retardados? Se lhes é tão prazeroso brincar, por que não
adquirem macacos e cadelinhas maltesas?25 “São crianças”, dizem. São
sim, mas não é fácil encontrar palavras que expressem quanta
importância aqueles primeiros ensinamentos da infância têm para a
condução de toda a vida e como aquela educação mole e dissoluta, que
chamam de condescendência, mas que na verdade é corrupção, torna
o menino difícil e intratável ao professor. Acaso não se aplica
admiravelmente contra tais mães uma ação judicial por maus tratos?
Ora, trata-se evidentemente de um tipo de venefício, um tipo de
licídio. São punidos pelas leis os que enfeitiçam as crianças ou
prejudicam os seus frágeis corpinhos: que coisa merecem essas
mulheres que corrompem a parte mais importante da criança com os
piores venenos? É menos grave matar o corpo que o espírito. Se o
menino é educado entre vesgos, gagos e mancos, estraga-se-lhe o
corpo por contágio; com efeito, os vícios da mente saltam para dentro
dela de forma mais oculta, mas com maior velocidade, e os males do
espírito enraízam-se mais profundamente. De fato, com muita razão o
apóstolo Paulo honrou o verso de Menandro a ponto de citá-lo em
suas cartas: “As más conversações corrompem os bons costumes”.26
Ora, em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que nas crianças.
Aristóteles, questionado por certo homem sobre o que poderia fazer
para ter um excelente cavalo, respondeu: “Que ele seja treinado entre
cavalos de boa raça”.

***
Ora, se nem o amor nem a razão puderem nos ensinar quanto
cuidado se deve à primeira idade dos lhos, poder-se-á, ao menos,
tomar o exemplo dos animais irracionais. Com efeito, não deve ser
incômodo aprender com eles algo que será de tão grande utilidade,
com os quais a raça humana já aprendeu outrora tantas coisas
frutuosas, visto que foi o hipopótamo que nos mostrou a sangria
venosa e o íbis, ave egípcia, mostrou-nos o uso do clister, que os
médicos aprovam efusivamente.

Aprendemos com os cervos que o dictamno é uma planta e caz para


a extração de echas. Também foram eles que nos ensinaram que a
ingestão de caranguejos é um remédio contra picada de tarântula.
Ademais, tendo os lagartos por mestres, aprendemos que o dictamno
traz alívio contra picada de cobra. De fato, essa espécie de animal
mantém uma guerra natural contra as cobras; feridos por elas, foram
surpreendidos buscando naquela planta o remédio. As andorinhas nos
indicaram a celidônia e deram nome à planta.27 A tartaruga nos
ensinou que a segurelha é útil contra picada de cobra. A doninha nos
recomendou a arruda como apropriada para remédios. A cegonha, o
orégano. Os javalis demonstraram que a hera trata doenças. As cobras
nos ensinaram que o funcho faz bem para os olhos. A serpente nos
advertiu que a náusea estomacal é reprimida com alfaces. As panteras
nos ensinaram que os excrementos humanos têm poder contra o
acônito, e com esses aprendemos inúmeros outros remédios com os
animais irracionais. Além disso, técnicas não pouco necessárias à vida.
Os porcos nos mostraram o modo de lavrar o campo. A andorinha nos
mostrou como dispor muros de barro. Para não me alongar, não há
praticamente nada que seja útil à vida das pessoas cujo exemplo a
natureza não nos tenha proposto nos animais, a m de que os que não
aprenderam a loso a e as disciplinas sejam, pelo menos, advertidos
por eles dos seus deveres. Acaso não vemos que cada animal não só
gera e cria os seus lhotes, como também os forma para o
desempenho da sua função natural? A ave nasce para voar; percebes
que para isso é ensinada e moldada pelos pais. Em casa vemos que os
gatos vão à frente e exercitam os seus lhotes na caça de ratos e
passarinhos, pois é daí que lhes sai o sustento. Mostram a presa ainda
viva, ensinam como agarrá-la com um pulo enquanto foge, por m
ensinam a comê-la. E os cervos? Acaso não exercitam os lhotes
paridos na corrida, não os ensinam a preparar a fuga, não os
conduzem a precipícios e demonstram como saltar, pois com essas
técnicas estão seguros contra as armadilhas dos caçadores? Conta-se
de certa disciplina quase pedagógica dos elefantes e gol nhos na
educação dos lhotes. Nos rouxinóis percebemos as funções do que
ensina e do que aprende: o mais velho precede, faz voltar e corrige; o
mais jovem repete e corrige. Ora, assim como o cão nasce para a caça;
o pássaro, para o vôo; o cavalo, para a corrida; o boi, para o arado; do
mesmo modo o homem nasce para a loso a e para as ações virtuosas;
e assim como cada um dos animais aprende muito facilmente aquilo
para que nasceu, da mesma forma o homem aprende com
pouquíssimo esforço a disciplina da virtude e da retidão, para a qual a
força da natureza introduziu em nós certas sementes ardentes,
contanto que se acrescente à propensão natural a diligência do mestre.

Ora, que há de mais absurdo do que animais desprovidos de razão


saberem qual é o seu dever para com os lhotes e lembrarem-se dele,
mas o homem, que se diferencia dos animais pela prerrogativa da
razão, desconhecer o que deve à natureza, à virtude e a Deus? Todavia,
o gênero dos irracionais não espera da sua prole nenhum prêmio pela
nutrição e educação, a menos que talvez se queira acreditar que as
cegonhas alternadamente alimentem os pais debilitados pela idade e os
carreguem nas costas. Mas entre os homens, visto que nenhuma idade
desfaz a gratidão pelo amor recebido, que consolo, glória e baluarte
prepara para si aquele que cuida para que o lho seja corretamente
educado? A natureza coloca nas tuas mãos um terreno arroteado,
vazio sim, porém de solo fértil: tu, por negligência, permites que seja
tomado por sarças e espinheiros, que posteriormente não poderão ser
arrancados por praticamente nenhuma diligência. Em tão pequeno
grão, que grande árvore está latente! Se desabrochar, que frutos ela há
de dar! Toda essa produção perece, a menos que metas a semente no
sulco, sustentes com cuidado a tenra plantinha em desenvolvimento e
como que a domestique com enxerto. Ora, velas na domesticação de
uma planta, mas dormes quando se trata do lho? Com efeito, todo o
estado da felicidade humana constitui-se principalmente de três
elementos: natureza, método e prática. Chamo “natureza” a docilidade
e a propensão semeadas em nosso interior para as coisas virtuosas.
Denomino “método” o ensino, que consiste em admoestações e
preceitos. Digo “prática” o uso daquela disposição que a natureza
semeou em nós e que o método fez desenvolver-se. A natureza requer
o método; a prática, se não for governada pelo método, está sujeita a
muitos perigos e erros.

Muito se enganam, portanto, os que julgam su ciente ter nascido:


tampouco erram menos os que crêem que se adquire a sabedoria ao
lidar com as coisas e administrar os negócios sem os preceitos da
loso a. Dize-me: quando se tornará bom o corredor que corre
decerto com a nco, mas na escuridão ou desconhecedor do caminho?
Quando será bom o gladiador que de olhos fechados brande a espada
para cima e para baixo a esmo? Os preceitos da loso a são como os
olhos da mente e de certa forma alumiam para que vejas o que é
preciso fazer e o que não é. Com efeito, uma longa experiência em
muitas coisas traz grande vantagem, mas ao sábio instruído
diligentemente nos preceitos do reto agir. Avalia o que zeram e por
que coisas passaram ao longo da vida os que, com a experiência das
coisas adquiriram para si um saber qualquer, embora deplorável, e
pensa se desejas ao teu lho tantos males. Acrescente-se o fato de que
a loso a ensina mais em um único ano do que a experiência das
coisas, por maior que seja, em trinta. E ensina com segurança, porque
ao experimentar algo é maior o número dos que se tornam infelizes do
que o dos que se tornam sábios, de modo que não sem razão os
antigos diziam que aquele que tentava algo por meio da experiência
arriscava-se e corria perigo.

Dize-me: se uma pessoa desejasse que o lho se especializasse em


medicina, preferiria que ele abrisse livros de médicos ou que
aprendesse pela experiência que coisa causaria dano por seu veneno
ou ajudaria por seu poder de cura? Que infeliz é o saber quando o
marinheiro aprendeu a arte da navegação por meio de freqüentes
naufrágios e o príncipe a desempenhar as suas funções por meio de
guerras, tumultos e males públicos! Esse saber é típico dos tolos, e
custa muito caro tornar-se nalmente sábio depois de afetado por
algum mal. Aprende por alto preço quem errando aprende a não errar.
Filipe admoestou com seriedade o lho Alexandre para que se
mostrasse dócil a Aristóteles e aprendesse com ele a loso a para não
fazer muitas das coisas que ele próprio se arrependia de ter feito. No
entanto, elogia-se em Filipe sua extraordinária capacidade intelectual.
Ora, que pensas deve-se esperar das pessoas comuns? O método,
porém, nos mostra de forma sucinta o que se deve seguir e o que se
deve evitar; tampouco adverte depois que algo ruim aconteceu: “Isso
deu errado; tome cuidado da próxima vez”. Mas, antes que inicies a
empreitada, clama: “Se zeres isso, ganharás para ti a infâmia e a
ruína”.

Entrelacemos, pois, essas três cordas a m de que o método guie a


natureza e a prática aperfeiçoe o método. Já nos animais observamos
que cada um deles aprende com suma facilidade aquilo que é o mais
próprio da sua natureza e em primeiro lugar está a autopreservação,
que consiste em evitar as coisas que causam dano ou morte. Esse senso
se encontra presente até nas plantas, não só nos animais. Com efeito,
vemos que também as árvores localizadas onde há maresia ou onde
sopra o vento norte contraem a folhagem e os ramos e se abrem na
direção de um clima mais suave. Mas o que é o mais próprio do
homem? Viver de acordo com a razão, e por isso não só é chamado de
animal racional, mas também se diferencia dos irracionais. Mas qual é
a coisa mais prejudicial ao homem? A estupidez. Portanto, a nenhuma
outra coisa será tão dócil quanto à virtude e de nenhuma outra coisa
aprenderá a ter tanta repugnância quanto da estupidez, contanto que a
diligência dos pais ocupe de imediato a natureza vazia. Mas ouvimos
as inacreditáveis queixas do vulgo de como a natureza das crianças é
propensa ao vício e de como é difícil atraí-la para o amor da virtude.
Acusam a natureza sem razão. Deve-se atribuir a maior parte desse
mal à nossa imperfeição moral, pois corrompemos a inteligência com
vícios antes de transmitir-lhe as virtudes. Não é de estranhar que os
tenhamos pouco dóceis para as virtudes, porquanto já se encontram
instruídos para a iniqüidade. E quem ignora que o trabalho de
desensinar não só é anterior ao de ensinar, mas também mais difícil?
Ora, o comum dos homens peca de três modos neste aspecto: ou
porque negligencia completamente a educação dos lhos, ou porque
começa tarde demais a moldar o espírito deles para a loso a, ou
porque os con a a homens com os quais aprendem o que deverá ser
desaprendido. Foi demonstrado que homens do primeiro tipo são
indignos de serem chamados de pais, diferem muito pouco daqueles
que abandonam os lhos recém-nascidos para morrer e devem ser
justamente punidos pelas leis, que também prescrevem
cuidadosamente de que modo se deve educar a infância e, em seguida,
a adolescência. O segundo tipo é o mais difundido, e é principalmente
contra ele que me foi dado combater neste momento. O terceiro tipo
peca de dois modos, em parte por ignorância, em parte por
negligência. Mas assim como é raro e vergonhoso ignorar a quem
con as o cuidado de um cavalo ou de uma fazenda, quão mais
vergonhoso é desconhecer o nível de retidão daquele a quem entregas
a parte mais preciosa dos seus bens! Naquela primeira situação, há um
desejo de aprender, porquanto tens pouca experiência, e te aconselhas
com os maiores especialistas; na segunda, crês não haver nenhuma
importância a quem con as o teu lho. Não repartes ao acaso as
funções entre todos os teus servos. Examinas aquele a quem
encarregas de cultivar o teu campo, a quem destinas o cuidado da
cozinha, a quem delegas as funções de administrador. Mas se há
alguém completamente inútil para qualquer função, lento, preguiçoso,
estúpido e glutão, a ele se con a a educação do menino, e aquilo que
requer o mais excelente pro ssional é con ado ao mais baixo dos
criados. Se neste aspecto os homens não têm uma mente funesta, o
que há de funesto? Existem aqueles cujo espírito mesquinho os
impede de contratar um preceptor quali cado, e o palafreneiro é
contratado por maior preço do que o professor do lho. Contudo, ao
mesmo tempo permitem-se banquetes suntuosos, joga-se o nocivo
dado noite e dia, gasta-se muito com caçadas e bufos. Somente são
parcimoniosos e sovinas naquilo por cuja razão se poderia justi car a
economia nas demais coisas. Oxalá fossem em menor número os que
gastam mais com uma prostituta fétida do que com a educação do
lho! O satirista28 a rma que nada será mais barato para um pai do
que um lho. Talvez não seja fora de propósito mencionar aqui aquele
célebre registro contábil outrora atribuído a Crates. Ele nos foi
transmitido do seguinte modo: “Paga dez minas ao cozinheiro, uma
dracma ao médico, cinco talentos ao bajulador, fumaça29 ao
conselheiro, um talento à meretriz, um trióbulo30 ao lósofo”. Que falta
a essa contabilidade às avessas senão acrescentar um centavo ao
professor do lho? Embora eu acredite que nesse contexto o preceptor
esteja designado sob o título de lósofo. Depois de perguntar a
Aristipo quanto cobraria para educar o seu lho, e após este ter pedido
quinhentas dracmas, certo homem bem-aventurado no dinheiro, mas
pobre de intelecto, disse: “Pedes uma quantia imensa! Essa soma
poderá comprar um escravo”. Então o lósofo respondeu de forma
bastante elegante: “Mas agora, pelo preço de um haverás de ter dois:
um lho capaz de cumprir os seus deveres e um lósofo mestre do
lho”.

Ora, caso uma pessoa pergunte à outra se ela gostaria de ganhar cem
cavalos pelo preço da morte de um único lho, se tiver uma migalha
de sanidade mental, creio eu, responderá que de jeito nenhum.
Portanto, por que o cavalo custa mais caro e é cuidado com maior zelo
do que o lho? Por que se compra um bufo por maior preço do que se
educa um lho? Que a ocasião para a frugalidade esteja alhures! Ser
frugal neste aspecto não é parcimônia, mas demência. Por outro lado,
há aqueles que não escolhem ao acaso um preceptor para os lhos,
mas cedem às preces dos amigos. Pretere-se um pro ssional
quali cado para a formação da criança e escolhe-se um inútil pela
única razão de ter sido recomendado pelos rogos dos amigos. Que
fazes, insano? Ao navegar, não levas em consideração os sentimentos
dos que te fazem recomendações, mas empregas no leme aquele que é
o mais capacitado para comandar a embarcação: quanto ao lho, pois
não somente ele está em perigo, mas o pai e a mãe, a família inteira e
mesmo o próprio Estado, não usas do mesmo juízo? O cavalo está
enfermo; escolhes um veterinário pela recomendação dos amigos ou
pela quali cação para o tratamento? Quê? Acaso o lho te vale menos
do que um cavalo? Ou melhor, acaso tu vales menos a ti mesmo do
que um cavalo? Visto que isso é deplorável nos cidadãos de condição
modesta, quão mais deplorável o é nas pessoas de alta classe? Em um
único jantar, chocando-se contra o dado, o pior dos escolhos, e
naufragando, perdem trinta mil, e chamam de despesa se gastam mil
para dar boa formação ao lho.

***

Ninguém pode conceder a natureza nem a outro nem a si mesmo,


embora neste aspecto o cuidado dos pais também tenha algum peso. O
primeiro fator é que o homem escolha para si uma boa esposa,
oriunda de boa família, bem educada e, além disso, com boa saúde.
Ora, visto que é estreitíssima a a nidade entre o corpo e o espírito, não
é possível que um não seja auxiliado ou lesado pelo outro. O segundo
é que o marido, quando atuar na geração de lhos, não o faça nem
conturbado, nem embriagado, uma vez que essas inclinações passam
para o embrião por meio de certo contágio misterioso. Não
inabilmente certo lósofo parece tê-lo notado; ao observar um
adolescente comportando-se com pouca sobriedade, disse: “Seria
incrível que o teu pai não te tivesse gerado estando bêbado”. Com
efeito, creio rmemente que haja alguma relação com isso se o pai e a
mãe estiverem com a mente livre de todo crime e com a consciência
em paz, decerto em todos os momentos, mas especialmente nos
períodos da concepção e da gestação. Ora, nada pode ser mais
tranqüilo e mais feliz do que uma mente assim. É nesse momento que
seria conveniente que se iniciasse a preocupação com a educação, e
não aos dez anos de idade ou, como o fazem muitos, aos dezessete. O
terceiro é que ou a mãe alimente a criança com os seus seios, ou, por
causa de alguma necessidade que não o permita, escolha uma ama-de-
leite saudável, com leite puro e bons costumes, que não seja temulenta,
briguenta ou despudorada: ora, os vícios, tanto os do corpo quanto os
do espírito, sorvidos na mais tenra infância cam arraigados até a
idade adulta. Nesse ponto, diz-se que exercem in uência também
aqueles que o bebê tem por colaços e colegas de brincadeiras. O quarto
é que seja logo con ado a um preceptor escolhido entre muitos,
aprovado por unanimidade e avaliado sob diversos aspectos.

***

A escolha deve ser feita uma só vez e com diligência. Homero


condena a poliarquia,31 e segundo um antigo provérbio grego: “A
grande quantidade de líderes destruiu a Cária”. E não foi a poucos que
a mudança freqüente de médicos trouxe a morte. Não há nada mais
inútil do que trocar com freqüência de preceptor. Ora, desse modo a
tela de Penélope se tece e destece. Mas eu conheci meninos que antes
dos doze anos tiveram mais de catorze professores, e isso por causa da
irre exão dos pais. Tampouco neste momento cessará a diligência dos
pais. Observarão tanto o professor quanto o lho, e não afastarão de si
o desvelo da mesma forma que costumam transferir ao esposo toda a
responsabilidade pela lha, mas o pai revisitará repetidas vezes para
examinar em que progrediu, lembrando-se do que os antigos disseram
de forma grave e ao mesmo tempo sábia: “A fronte vem antes do
occipício, nada engorda mais rapidamente o cavalo do que o olho do
dono e nenhum adubo torna mais fértil o campo do que as pegadas do
senhor”.32 Re ro-me aos pequeninos, pois de vez em quando convém
afastar os maiores para longe dos olhos, algo que, à semelhança do
enxerto, acima de tudo costuma amansar o caráter dos jovens. Entre as
notáveis virtudes de Emílio Paulo, louva-se também o fato de que,
sempre que os assuntos do governo lhe permitiam, costumava
participar dos exercícios dos lhos. Tampouco Plínio, o Jovem,
relutava em visitar a escola de tempos em tempos por causa do lho de
certo amigo, um menino que ele havia tomado sob os seus cuidados a
m de proporcionar-lhe uma boa educação.

***

Ora, o que foi dito sobre a natureza não é unívoco. Com efeito, existe
uma natureza comum à espécie: por exemplo, é próprio do homem o
uso da razão. Contudo, existe uma natureza peculiar a este ou àquele
indivíduo: por exemplo, dizes que alguns nasceram para a matemática,
outros para a teologia, estes para a retórica ou para a poesia, aqueles
para o exercício militar. São atraídos para esses estudos com tanto
ímpeto que não podem ser desencorajados de nenhuma forma. Ou
então sentem tão grande repulsa por eles que teriam mais prontidão
em lançar-se em uma fogueira do que dedicar o espírito a uma
disciplina odiosa. Tive um amigo próximo muito bem educado em
latim e grego e instruído em todas as artes liberais com esmero; um
arcebispo, por cuja generosidade havia sido criado, forçou-o por meio
de cartas a começar a freqüentar as aulas de professores de direito, o
que era contrário à sua natureza. Quando me apresentou essa queixa,
pois compartilhávamos o quarto, exortei o homem a obedecer ao seu
benfeitor, que haveria de ser mais leve o que no início era duro, e que
dedicasse àquele estudo ao menos alguma parte de seu tempo. Quando
ele expôs algumas citações de prodigiosa estultice, que, no entanto,
aqueles professores, semideuses, ensinavam aos alunos com grande
autoridade, respondi-lhe que não as desprezasse e que extraísse delas o
que ensinavam corretamente; e depois de eu ter pressionado o homem
com muitos argumentos, ele respondeu: “Isso me a ige de tal modo
que, todas as vezes que me volto àqueles estudos, parece-me que uma
espada penetra no meu peito”. Não penso que os homens nascidos
assim devam ser forçados contra a sua inclinação natural, para que
não conduzamos um boi ao ringue e um asno à lira. Talvez se possam
perceber certas marcas dessa propensão também nos pequenos. Há
quem costume fazer previsões dessa natureza com base no horóscopo;
quanto valor se deva atribuir ao juízo dessas pessoas, deixo que cada
um o avalie livremente. Contudo, seria vantajoso descobri-lo o quanto
antes, pois aprendemos com suma facilidade aquilo para que a
natureza nos forjou. Na verdade, não penso que seja coisa vã fazer
conjecturas sobre a índole de uma pessoa fundamentando-se na forma
e no aspecto de seu rosto bem como do restante do corpo; em todo
caso, Aristóteles, tão grande lósofo, não se recusou a publicar um
livro, nem medíocre, nem mal elaborado, acerca da siognomonia.
Assim como a navegação é mais cômoda quando a maré e o vento a
favorecem, da mesma forma somos instruídos com mais facilidade
naquilo a que nos inclina a predisposição de nossas qualidades inatas.
Virgílio nos mostrou os sinais por meio dos quais podes concluir se
um boi é adequado para o arado ou se uma vaca está apta para
aumentar o rebanho. “A melhor vaca é a de olhar feroz”.33 Ele nos
ensina por quais sinais notarás se um potro há de ser útil para os jogos
olímpicos. “A prole de uma raça nobre entra sem demora nos campos”
etc. Ora, tu conheces o poema. Erram os que pensam que a natureza
não concedeu ao homem nenhum sinal por meio do qual se podem
conhecer as suas disposições naturais; pecam, porém, os que não
observam os que foram dados. Todavia, em minha opinião, não há
praticamente nenhuma disciplina à qual o temperamento do homem
não nasça dócil, contanto que insistamos nos preceitos e no exercício.
Ora, o que não há de aprender o homem, visto que com treinamento
um elefante caminha sobre a corda, um urso se torna dançarino e um
asno faz papel de bufo? Portanto, assim como a ninguém foi dado
dispor da natureza como bem entender, da mesma forma ensinamos
que há coisas em que conseguimos ajudar a natureza de alguma forma.

Quanto ao mais, o método e a prática dependem exclusivamente da


nossa diligência. Do que é capaz o método, mostra-nos principalmente
o fato de vermos todos os dias pesos serem levantados por meio de
máquinas e tecnologia, pesos esses que, de outra forma, nenhuma
força poderia levantar. Ora, qual seja a importância da prática,
declara-o su cientemente aquele dito muito célebre do antigo sábio
que atribuiu tudo à diligência e à meditação. Com efeito, o método
requer a aptidão para aprender, enquanto a prática, esforço. Porém,
a rmam: “O esforço não convém à tenra idade; e, a nal, que aptidão
para aprender pode haver em crianças que mal sabem que são seres
humanos?”. Respondo a ambas as coisas com poucas palavras: qual a
coerência em considerar que uma idade, que se encontra apta a
moldar-se pelos bons costumes, seja inapta para aprender as letras?
Ora, assim como há os princípios elementares das virtudes, da mesma
forma há os das disciplinas. A loso a tem a sua infância, adolescência
e maturidade. O potro, que já apresenta a índole da boa raça, não é
forçado de imediato com freios demasiadamente ásperos a levar em
suas costas um cavaleiro armado: ele aprende a preparar-se para a
guerra com exercícios suaves. O bezerro destinado ao arado não é
imediatamente sobrecarregado com verdadeiros jugos, tampouco é
forçado com aguilhões pontiagudos, mas, como o ensinou
elegantemente Virgílio:

Primeiramente amarram em sua cerviz círculos folgados


feitos de vime
Em seguida, quando o seu pescoço livre estiver habituado
à servidão
Atados pelas próprias coleiras, ligam-nos de dois em dois,
E forçam os novilhos a se moverem.
[...]

E agora carros vazios são conduzidos por eles amiúde


Pela terra e suas pegadas deixam marcas na superfície do
pó.
Depois, o eixo de faia avançando com esforço sob o
grande peso
Range e o timão de bronze puxa as rodas que a ele estão
unidas.34

Os lavradores sabem levar a idade em consideração quando lidam


com bois e adaptam os exercícios de acordo com as suas forças: isso
deve ser feito com muito mais diligência quando se trata da educação
dos lhos. Para isso, a providência da natureza inseriu de forma
peculiar certa habilidade nos pequenos. Uma criança pequena ainda
não está em condições para que lhe leias e expliques o Dos deveres, de
Cícero, ou a Ética, de Aristóteles, ou os opúsculos morais de Sêneca ou
Plutarco, ou as epístolas de Paulo, admito-o; entretanto, se ela faz algo
inconveniente durante uma refeição, é advertida; advertida, comporta-
se segundo o exemplo demonstrado. É conduzida ao templo, aprende a
ajoelhar-se, a juntar as mãozinhas, a descobrir a cabeça e a conformar
toda a postura do corpo ao culto divino; recebe ordem de calar-se
enquanto se realizam os mistérios e de voltar os olhos para o altar. A
criança aprende esses princípios elementares de modéstia e piedade
antes de saber falar, e como eles cam arraigados até quando for mais
velha, trazem algum proveito para a verdadeira religião. No início, não
há nenhuma diferença para a criança entre os seus pais e as pessoas
estranhas. Logo, aprende a reconhecer a mãe, depois o pai. Aos poucos
aprende também a respeitá-los, obedecer-lhes e amá-los. Desaprende a
ira, a vingança, pois recebe a ordem de dar um beijo na pessoa que era
objeto da sua indignação, e a tagarelice inoportuna. Aprende a
levantar-se em sinal de respeito por um idoso e a descobrir a cabeça
diante da imagem de um cruci xo.

Os que pensam que esses elementos de virtude, por menores que


sejam, não têm nenhuma importância para a probidade, estão muito
enganados, em minha opinião. Certo adolescente, repreendido por
Platão por jogar dados, queixou-se de ter sido censurado tão
duramente por uma falta tão pequena. Ao que Platão respondeu:
“Embora jogar dados seja uma falta leve, no entanto é falta grave
acostumar-se com isso”. Portanto, assim como é um grande mal
acostumar-se com pequenos males, da mesma forma é um grande
bem acostumar-se com pequenas coisas boas. E aquela tenra idade é
mais apta ao aprendizado dessas coisas, porque por sua própria
natureza se dobra facilmente a todo modo de ser, ainda não foi tomada
por nenhum vício e também se regozija em imitar se se ditar-lhe algo.
E como ela comumente se acostuma com os vícios antes de entender o
que é o vício, assim também poderá acostumar-se com a virtude quase
com a mesma facilidade. O melhor é acostumar-se o quanto antes com
as melhores coisas. Faz-se duradouro aquele modo de ser para o qual
forjaste o oco e tenro espírito. “Mesmo que expulses a natureza com
um forcado, ela sempre reaparece”,35 escreveu Horácio. Escreveu-o, e
seguramente com muita verdade, mas escreveu sobre uma árvore
adulta. Portanto, o lavrador prudente dispõe sem demora a plantinha
segundo a aparência que deseja ser perene na árvore. Converte-se logo
em natureza aquilo que infundir-lhe antes de qualquer coisa. A argila
demasiado úmida não conserva a forma impressa; a cera pode ser tão
mole que é imprópria para o escultor. Ora, praticamente não existe
idade tão tenra que não seja capaz de receber educação.

A rma Sêneca: “Em nenhuma idade é tarde para aprender”. Não sei
se isso é verdade; com efeito, é difícil aprender certas coisas em idade
avançada. Isto é indiscutível: não existe idade jovem demais que não
esteja apta à instrução, sobretudo daquelas coisas para as quais a
natureza moldou o homem. Ora, a natureza acrescentou à infância,
como eu dizia há pouco, um desejo peculiar de imitar, justamente para
que as crianças anseiem imitar tudo o que virem ou ouvirem e se
alegrem se tiverem a impressão de tê-lo conseguido. Dirias que são
uns macaquinhos. E daí surge a primeira conjectura das suas
disposições naturais e aptidão para o aprendizado. Portanto, assim que
o homem nasce, está logo apto para aprender os bons costumes. Tão
logo tenha começado a falar, torna-se capacitado para o aprendizado
das letras. Concedeu-se de imediato a aptidão para aprender aquilo
cujo conhecimento vem em primeiro lugar. Com efeito, embora a
erudição tenha in nitas vantagens, contudo, se não estiver a serviço da
virtude, faz mais mal do que bem. Com razão foi rejeitada pelos sábios
a opinião daqueles que julgaram que as crianças com menos de sete
anos de idade não devem ser expostas às letras; muitos acreditaram
que Hesíodo era o autor dessa sentença, embora Aristófanes, o
Gramático, negue que a obra Preceitos de Quíron, na qual se disse isso,
seja de Hesíodo. Contudo, é preciso que tenha sido um escritor notável
que publicou esse livro para que aos eruditos também parecesse trazer
a paternidade de Hesíodo. Ora, mesmo que fosse de Hesíodo fora de
qualquer controvérsia, a autoridade de nenhum homem deve exercer
tanto poder sobre nós que nos seja incômodo seguir o que é melhor se
alguém no-lo anunciar. No entanto, quem quer que tenha
compartilhado dessa opinião não julgou que se devesse car todo esse
tempo até os sete anos livre de todo cuidado com a educação, mas que
antes dessa idade as crianças não devem ser sobrecarregadas com a
empreitada dos estudos, durante os quais se devem engolir
completamente certos aborrecimentos, como o de aprender de cor a
lição, repeti-la e escrevê-la. Ora, terias di culdade em encontrar um
temperamento tão dócil, tratável e obediente que se acostumasse
completamente com essas coisas sem azorragues. Crísipo deu três anos
às amas-de-leite, não para que nesse ínterim a criança casse sem
instrução, especialmente no campo da moral e da linguagem, mas para
que por meios mais brandos a criança fosse preparada para a virtude e
as letras, quer pelas amas-de-leite, quer pelos pais, cujo caráter tem
indiscutivelmente a máxima importância para a formação das
crianças.

***

Ora, porquanto a primeira fase da educação das crianças consiste em


fazê-las aprender a falar com clareza e correção, outrora as amas-de-
leite e os pais prestavam um auxílio valioso neste aspecto. Essa
primeira fase não só tem grande importância para o desenvolvimento
da eloqüência, mas também para a formação do juízo e o
conhecimento de todas as disciplinas. Ora, a ignorância de línguas
extinguiu ou corrompeu todas as disciplinas, inclusive a teologia, a
medicina e o direito. Foi em outros tempos admirável a eloqüência dos
irmãos Graco, mas deviam uma boa parte dela à mãe, Cornélia,
segundo a opinião de Cícero. Diz ele: “Parece que os lhos foram
educados não tanto no colo da mãe quanto na sua maneira de falar” —
portanto, o colo materno foi-lhes a primeira escola. Ademais, também
Lélia reproduzia na sua forma de falar a elegância do pai, Caio Lélio.
Que há de surpreendente nisso? Ora, ainda iletrada fora impregnada
entre os seus braços com o seu elóquio. O mesmo aconteceu a duas
irmãs36 suas, Múcia e Licínia, netas de Caio Lélio. Louva-se, porém,
em especial a elegância oratória de Licínia, que foi lha de Lúcio
Crasso e esposa de um dos Cipiões, se não me engano.37 Para que
alongar-nos? Toda a casa e toda a família, até os netos e bisnetos,
freqüentemente reproduziu a elegância retórica dos antepassados. A
lha de Quinto Hortênsio expressava de tal forma a eloqüência
paterna que outrora existiu um discurso seu proferido diante dos
triúnviros, não somente, a rma-o Quintiliano, por deferência para
com o seu sexo. Mas para que se fale com correção, as amas-de-leite,
os pedagogos e os companheiros de brincadeiras da criança
desempenham um papel não desprezível. Ora, no que se refere a
idiomas, é tão grande a disposição para o aprendizado daquela idade
que em poucos meses um menino alemão aprende o francês, e o faz de
modo inconsciente e enquanto se distrai com outras coisas, e em
nenhuma outra época da vida isso ocorre de forma mais exitosa do
que nos anos mais rudes. Se isso acontece com uma língua bárbara e
irregular, que tem uma ortogra a diferente da fonética e que contém
ruídos e sons que quase não são humanos, quão mais facilmente o
seria com o grego ou o latim? Lê-se que o Rei Mitrídates dominava a
tal ponto 22 idiomas que administrava a justiça a cada povo na sua
própria língua e sem intérprete. Temístocles aprendeu perfeitamente a
língua persa no espaço de um ano a m de que pudesse conversar com
o rei mais confortavelmente. Se a idade adulta consegue fazer isso, o
que não se deve esperar de uma criança? Ora, toda essa atividade
consiste principalmente em duas coisas: memória e imitação. Já
ensinamos que há nas crianças um gosto natural pela imitação; além
disso, os maiores sábios até atribuem à infância a mais vigorosa
memória. Mas se descon amos de sua autoridade, a nossa própria
experiência nos fornece provas abundantes disso. O que vimos quando
éramos crianças está tão arraigado em nosso espírito como se o
tivéssemos visto ontem. O que, já velhos, lemos hoje, se tornamos a lê-
lo dentro de dois dias, parece-nos uma novidade. Ademais, quão
poucos são os que vemos bem-sucedidos em obter conhecimento de
línguas na fase adulta? E se a alguém aconteceu de ser bem-sucedido
em alcançar esse conhecimento, a ninguém ou a pouquíssimos
ocorreu de adquirir um sotaque e uma pronúncia naturais. Ora, não se
devem chamar à regra comum os exemplos raríssimos. Não devemos
incitar os meninos para o aprendizado de línguas depois que
completarem dezesseis anos, porque Catão, o Velho, aprendeu tarde o
latim e o grego aos setenta anos de idade. Catão, o Jovem, porém, não
somente muito mais douto que o anterior, como também muito mais
eloqüente, desde criança esteve na companhia do pedagogo Sarpedão.

***

E é nesse momento que se deve prestar mais atenção, pois aquela


idade, porquanto se guia mais pela sensação do que pelo juízo,
impregna-se com igual facilidade, talvez até com maior facilidade,
tanto do que é errado quanto do que é certo. Ademais, o que é certo
cai mais facilmente no esquecimento do que desaprendemos o que é
mau. Perceberam-no e impressionaram-se os lósofos pagãos: mas
não puderam rastrear a causa; ela nos foi revelada pela loso a cristã,
que nos ensina que essa inclinação para o mal se enraizou em nós a
partir de Adão, o pai dos povos. Assim como isso não pode ser falso,
da mesma forma é muito verdadeiro que a maior parte desse mal
emana da convivência indecente e da má educação, especialmente
daquela idade, tenra e exível para tudo. Escreveu-se que Alexandre, o
Grande, impregnou-se de certos vícios de Leônidas, seu pedagogo, e
que não o abandonaram nem quando adulto e glorioso em seu
império. Portanto, enquanto esteve em vigor entre os latinos aquela
antiga integridade dos costumes, a criança não era con ada a um
formador assalariado, mas era educada pelos próprios pais e parentes,
como tios paternos e maternos e avós, segundo o que escreve Plutarco.
Ora, pensavam que a glória da família consistia principalmente em ter
o maior número possível de membros distintos pela educação liberal,
ao passo que hoje a aristocracia se preocupa quase que inteiramente
com pinturas e esculturas da sua genealogia, bailes, caçada e jogos de
dados. Diz-se que Espúrio Carvílio,38

homem cuja condição era a de liberto e que tivera por senhor


Carvílio, o primeiro a introduzir o exemplo do divórcio, foi o primeiro
a abrir uma escola de gramática. Antes disso, considerava-se como o
principal ofício do senso dos deveres que cada um educasse os seus
familiares para a virtude e a erudição. Hoje a única preocupação é que
se obtenha para o menino uma esposa com um bom dote. Feito isso,
crêem que já não devem nada ao cumprimento dos seus deveres. Ora,
como as coisas humanas têm inclinação para o que é pior, os prazeres
nos convenceram a con ar esse aspecto dos deveres a um pedagogo
doméstico, e um homem livre passou a ser entregue a um escravo.
Com efeito, se nisso se zesse uma escolha criteriosa, haveria menos
perigo, pois o preceptor não só estaria constantemente sob os olhos
dos pais, mas estaria sob o seu poder, caso cometesse alguma falta. Os
mais sensatos compravam escravos letrados ou cuidavam que fossem
educados nas letras para que os encarregassem da formação da
infância dos seus lhos. Mas como seria mais prudente se os próprios
pais aprendessem as letras para que as ensinassem os seus lhos! Com
efeito, nesse modo de proceder há uma dupla utilidade, assim como há
uma dupla vantagem quando o bispo se mostra piedoso a m de
in amar o maior número possível de pessoas no ardor da piedade.

Dirás que nem todos têm tempo livre para isso e que tão grande
empreitada provoca enfado. Mas vejamos, ó ilustre senhor, re itamos
quanto tempo perdemos com jogos de dados, bebedeiras, espetáculos
e bufões e nos causará vergonha, penso eu, alegar que falta tempo livre
para aquilo que, renunciadas todas as demais coisas, se devia fazer. Há
tempo su ciente para todos os deveres, contanto que seja repartido
com a conveniente frugalidade. Ora, o dia, cuja maior parte
desperdiçamos, nos é breve. Pondera agora quanta porção de tempo se
concede algumas vezes aos frívolos assuntos dos amigos. Se não é
possível atender a todos, evidentemente deve-se dar precedência aos
lhos. Ora, que trabalho recusamos para deixar aos lhos um
magní co e bem estabelecido patrimônio? Mas para preparar-lhes
aquilo que é superior a tudo isso, causa enfado assumir a empresa,
especialmente quando o amor natural e o progresso daqueles que nos
são mais caros adoçam todos os incômodos? Se não fosse assim,
quando as mães tolerariam os tão longos incômodos da gestação e da
alimentação dos lhos? Ama pouco o lho aquele a quem é fastidioso
educá-lo. Ora, o modo de educar foi mais fácil aos antigos, porque a
língua dos que conheciam a fundo as letras e do povo inculto era a
mesma, exceto pelo fato de que os eruditos falavam com mais
correção, elegância, sabedoria e eloqüência. Confesso que seria um
grande atalho para a erudição se isso permanecesse assim em nossos
dias. E não faltou quem tentasse resgatar o exemplo antigo, como os
Canter39 entre os frisões,40 e a Rainha Isabel, esposa de Fernando, entre
os espanhóis, de cuja família saíram muitas mulheres admiráveis tanto
pela erudição quanto pela piedade.41 Entre os ingleses, o ilustríssimo
senhor omas More, a quem, apesar de encontrar-se ocupadíssimo
com os assuntos do reino, não foi fastidioso desempenhar o papel de
professor para a esposa, as lhas e o lho, primeiramente no que se
refere à piedade, depois no que tange ao conhecimento de ambas as
literaturas.42 Com efeito, dever-se-ia ter esse cuidado com aqueles que
destinamos à erudição. E não existe o perigo de que ignorem a língua
do povo: aprendê-la-ão, querendo-o ou não, no contato com as
pessoas. Mas se em casa ninguém for letrado, deve-se contratar de
imediato um pro ssional especializado, porém avaliado não só nos
seus costumes, mas também na sua erudição. É estultice testar no lho,
como se este fosse um cário, como dizem,43 para saber se o homem
que acolheste conhece ou não as letras e se é moralmente reto ou não.
Que se conceda o perdão ao que dorme nas outras coisas; mas nisto, é
necessário que sejas um Argos44 e que vigies com todos os olhos.
Como dizem: na guerra não se pode errar duas vezes; nisto, não é
lícito errar nem sequer uma única vez. Ademais, quanto antes a
criança for entregue a um preceptor, tanto mais bem-sucedida será a
sua educação.

***

Sei que neste ponto alguns alegam que existe o risco de o esforço dos
estudos tornar fraca a saúde do tenro corpinho. Aqui eu poderia
responder que, mesmo que algo do vigor do corpo desaparecesse, tal
prejuízo seria bem compensado por tão excelentes bens do espírito.
Ora, não estamos a formar um atleta, mas um lósofo, um governante
do Estado, a quem é o bastante ter boa saúde, mesmo que não tenha a
força de Mílon.45 Admito, contudo, que se deva ser indulgente com a
idade em algumas coisas para que se torne mais vigorosa; entretanto,
muitos temem insensatamente pelos seus lhos o perigo das letras,
mas não temem o perigo muito mais grave do excesso de comida, por
que a inteligência dos pequenos não é menos prejudicada do que o
corpo, e dos tipos de alimentos e bebidas que não convêm à idade.
Levam seus lhos para banquetes fartos e longos, às vezes estendidos
até tarde da noite, e enchem-nos de pratos salgados e quentes por
vezes até vomitarem. Apertam e sobrecarregam os tenros corpinhos
com vestes incômodas por ostentação, assim como alguns enfeitam
macacos com trajes humanos, e de outros modos efeminam os seus
lhos, mas em nenhuma outra ocasião se teme mais afetuosamente
pela saúde deles do que quando se começa a tratar das letras, ou seja,
daquela coisa que é a mais salutar e necessária de todas.
O que se disse da saúde pode-se dizer do cuidado com a aparência,
que, se por um lado, confesso-o, não deve ser negligenciada, por outro,
é pouco digno de um homem ocupar-se dela com demasiada
inquietação. Tampouco tememos por ela mais em decorrência de
outra coisa do que dos estudos, embora ela se estrague muito mais
com a glutonaria, a bebedeira, as noitadas, as brigas e ferimentos e, por
m, essa terrível lepra46 da qual quase nenhum jovem de vida
desregrada escapa. Que afastem os seus lhos antes dessas coisas do
que das letras aqueles que tão excessivamente temem pela sua saúde e
aparência. Embora por nossa diligência também se possa acautelar-se
para que haja o mínimo de esforço e, portanto, o mínimo de perda.
Isso acontecerá se não forem inculcadas nos pequenos nem muitas
coisas nem coisas tomadas sem critérios, mas somente o que for
excelente e adequado à idade, que é cativada mais pelas coisas
agradáveis do que pelas sutis. Em seguida, um método carinhoso de
ensinar fará que pareça uma brincadeira, não um trabalho. Ora, aqui
deve ser seduzida com encantos aquela idade que ainda não pode
compreender quanto fruto, quanta dignidade e quanto prazer lhe
trarão as letras no futuro. Em parte realizarão isso a doçura e a
afabilidade do preceptor, em parte a inteligência e a habilidade, com as
quais imaginará vários artifícios para tornar as letras agradáveis à
criança e afastar a sensação de trabalho. Ora, nada é mais prejudicial
do que quando os costumes do preceptor fazem com que comecem a
odiar os estudos antes que possam entender por que devem ser
amados. O primeiro passo do aprendizado é o amor do professor. Com
o passar do tempo acontecerá que a criança, que no início começara a
amar as letras por causa do mestre, ame depois o mestre por causa das
letras. Com efeito, da mesma forma que muitos presentes são
sumamente agradáveis porque nos chegam da parte daqueles pelos
quais nutrimos um carinho especial, assim também ocorre com as
letras: embora elas ainda não possam deleitar os pequenos pelo
discernimento, contudo se lhes tornam agradáveis pelo afeto que têm
para com o mestre. Com muito acerto foi dito por Isócrates que
aprende muitíssimo aquele que é ávido por aprendizado. Ora,
aprendemos de bom grado com aqueles que amamos. Porém, há
alguns de costumes tão desagradáveis que não conseguem ser amados
nem pela esposa: trazem uma expressão ameaçadora, a sua companhia
é sombria, parecem irados mesmo quando são favoráveis, não
conseguem dizer nada com brandura, mal são capazes de retribuir um
sorriso; dirias simplesmente que nasceram quando as Graças estavam
iradas. Creio que esses homens di cilmente estejam aptos para que
lhes con es o treinamento de cavalos indômitos, tanto estou longe de
pensar que lhes deva ser con ada aquela frágil e quase lactente idade.
Mas é especialmente esse tipo de homem que alguns crêem que deva
ser colocado para educar a primeira idade, enquanto pensam que
severidade é sinônimo de santidade. Ora, não é seguro acreditar na
aparência; sob aquela máscara sombria, freqüentemente se escondem
costumes os mais efeminados. Tampouco se deve mencionar entre
homens pudicos a que ignomínias por vezes esses carrascos abusam
do terror das crianças. Nem sequer os pais podem educar
corretamente os lhos se somente forem temidos. O primeiro cuidado
é ser amado; aos poucos, sucede não o terror, mas certa reverência
generosa, que tem mais peso do que o medo.

***

Portanto, como se vela bem por aquelas crianças que mal


completaram quatro anos de idade e são enviadas a uma escola
primária dirigida por um preceptor desconhecido, bruto e de
costumes pouco sóbrios, às vezes nem sequer de cérebro são,
freqüentemente lunático, sujeito à epilepsia ou à lepra que hoje o povo
chama de sarna francesa! Ora, não vemos hoje ninguém tão abjeto,
incapaz e inútil que o povo não pense estar apto para dirigir uma
escola primária. E é impressionante o quanto eles, julgando que
tomaram posse de um reino, agem com violência, porquanto estão no
comando, não contra animais, como o diz Terêncio, mas contra aquela
idade que devia ser acalentada com toda doçura. Dirias que não se
trata de uma escola, e sim de um lugar de tortura: ali não se ouve nada
além do estalido dos chicotes, do estrépito das varas, dos prantos e dos
soluços, das ameaças atrozes. Que outra coisa aprenderão com isso as
crianças senão a odiar as letras? Uma vez que esse ódio se tenha
instalado nas mentes, mesmo quando forem mais velhas terão
repugnância aos estudos.

É ainda muito mais estúpido que alguns enviem os seus lhos a uma
mulherzinha dada à bebedeira para que adquiram a habilidade de ler e
escrever. É contra a natureza que uma mulher domine sobre os
homens; ademais, não há nada mais rude do que este sexo se alguma
ira agitar-lhe o espírito; in ama-se com extrema facilidade, mas mal
consegue acalmar-se, a não ser que tenha saciado o seu desejo de
vingança. De resto, não só os monastérios como também as
comunidades de irmãos47 — assim chamam a si mesmos — estão à
espreita de lucrar com isso, e em esconderijos educam a inculta idade
por meio de homens normalmente pouco instruídos, ou melhor, mal
instruídos, embora em contrapartida concedamos que sejam pudicos e
prudentes. De qualquer modo, outros aprovam esse tipo de educação;
nenhuma pessoa que deseja que o seu lho receba uma educação
liberal os seguirá por sugestão minha.

É preciso que ou não exista escola nenhuma ou que ela seja pública.48
Com efeito, o que normalmente se faz é tomar o caminho mais curto.
Ora, é mais fácil que muitos alunos sejam coagidos por um só
professor por via do medo do que um só aluno receber de um só
professor uma educação liberal.49 Ora, não é grande coisa governar
asnos ou bois; mas proporcionar aos lhos uma educação liberal é, por
um lado, algo di cílimo, por outro o que há de mais belo. É típico dos
tiranos oprimir os cidadãos pelo medo; mantê-los no cumprimento
dos deveres com benevolência, moderação e prudência é próprio dos
reis. Quando Diógenes, capturado pelos eginetas,50 foi colocado à
venda, o pregoeiro perguntou-lhe com que título gostaria de ser
recomendado aos compradores. Diógenes respondeu: “Dize: se alguém
quiser comprar um homem que sabe governar homens livres”. Muitos
riram diante desse anúncio insólito. Certo homem, que tinha lhos
pequenos em casa, abeirou-se do lósofo para perguntar-lhe se
verdadeiramente sabia fazer o que propunha. Diógenes respondeu-lhe
que sim. Em um breve diálogo, percebeu não se tratar de uma pessoa
comum, mas que sob o manto sujo se ocultava uma notável sabedoria.
Tendo-o comprado, conduziu-o à sua casa e con ou-lhe a educação
dos seus lhos.

Segundo os escoceses, não há nada mais sádico do que os professores


franceses. Quando se lhes conta isso, costumam responder que aquela
gente, como se escreveu sobre os frígios, não se emenda, senão por
meio de pancadas. Se isso é verdade ou não, deixo-o para o juízo de
outros; no entanto, admito que haja alguma diferença de um povo para
outro, mas muito mais das propriedades do temperamento de uma
pessoa para outra. Existem pessoas que tu matarias antes de corrigi-las
com açoites; no entanto, conduzirias essas mesmas pessoas para onde
quisesses com bondade e admoestações afáveis. Confesso que fui uma
criança com essa índole; quando o professor a quem eu era mais
querido que os outros, porquanto dizia que concebia uma grande
esperança sobre mim, era mais vigilante, quis testar um dia quantas
varadas eu era capaz de suportar, acusou-me de uma falta que eu
nunca sonhara em cometer e me bateu. Esse fato arrancou de mim
todo o amor pelos estudos, e de tal modo abateu o meu espírito
infantil que faltou muito pouco para que eu me de nhasse de
desgosto; com efeito, àquela tristeza sucedeu uma febre quartã.
Quando ele, por m, compreendeu o seu erro, lamentava com os seus
amigos: “Quase destruí aquele talento antes de conhecê-lo”. Ora, não
era um homem estúpido, nem inculto, nem, penso-o, mau.
Arrependeu-se, mas tarde demais para mim. Agora, com base nisso,
considera, distinto senhor, quantos talentos fecundíssimos destroem
esses carrascos ignorantes, mas orgulhosos pela convicção de
possuírem ciência, rabugentos, ébrios, cruéis e que batem até mesmo
por diversão; sem dúvida, têm o temperamento tão truculento que
sentem prazer com a tortura alheia. Seria conveniente que homens
desse tipo fossem açougueiros ou carrascos, não formadores da
infância.

Ora, ninguém tortura mais as crianças do que aqueles que não têm
nada para ensinar-lhes. Que fazem esses homens nas escolas, a não ser
passar o dia a golpear e altercar? Conheci um teólogo, e bem de perto,
homem de grande nome, cujo espírito nenhuma crueldade contra os
alunos era capaz de satisfazer, embora tivesse professores
diligentemente sádicos. Julgava que isso era particularmente útil não
só para abater a ferocidade dos temperamentos, mas também para
domar a impudicícia da idade. Nunca organizava um festim com a sua
trupe, a não ser para que, assim como as comédias terminam com um
feliz desenlace, da mesma forma após a comida um ou dois fossem
arrastados à frente para ser dilacerados pelos açoites; e por vezes agia
com violência também contra os inocentes, naturalmente para que se
acostumassem com os açoites. Eu mesmo certa vez estive presente
quando depois da refeição, como de costume, chamou um menino de,
creio eu, dez anos de idade. Ora, fazia pouco tempo que a mãe o tinha
enviado àquela trupe. Começou a falar que sua mãe era uma mulher
das mais virtuosas e que o menino lhe fora vivamente con ado por ela;
em seguida, a m de que tivesse uma ocasião para bater nele, começou
a censurá-lo por certo caráter feroz, embora não houvesse nada que o
menino aparentasse menos, e fez um sinal àquele a quem havia
entregado a inspetoria do colégio, e que por isso ganhara o apelido de
“cão de guarda”, para que batesse nele; ele sem demora golpeou de tal
forma o menino já caído como se este tivesse cometido um sacrilégio.
O teólogo interpelou repetidas vezes: “É o su ciente, é o su ciente”.
Mas o torturador, ensurdecido pelo ardor da ação, executou a sua
tortura até o menino quase perder os sentidos. Em seguida, o teólogo
se voltou para nós e disse: “Não fez nada de errado, mas precisava ser
humilhado”, pois usou essa palavra.51 Quem é que alguma vez educou
desse modo um escravo, ou melhor, um jumento? O cavalo de boa
raça é mais bem domado com sons da boca e carícias do que com
látego e esporas. Se o tratares com mais aspereza, torna-se rebelde, dá
coices, morde e recua. Se pressionas muito o boi com aguilhões, ele
sacode o jugo e ataca o aguilhoador. Deve-se tratar um caráter nobre
da mesma forma que é tratado o lhote do leão. Somente a habilidade
doma os elefantes, não a violência, e não existe nenhum animal tão
feroz que não se amanse pela delicadeza, nem nenhum animal tão
manso que não se exaspere com a crueldade desmedida. É coisa servil
ser castigado por medo de algum mal; ora, o costume comum chama
os lhos de liberi,52 pois lhes convém uma educação liberal, muito
distinta da servil: embora os que têm bom senso ajam
preferencialmente por meio de brandura e benefícios para que os
servos se dispam da pele da escravidão, pois se lembram de que eles
também são seres humanos, não animais.

Relatam-se exemplos admiráveis de servos para com os seus


senhores; certamente, estes não os encontrariam com tal qualidade, se
somente os submetessem por meio de açoites. Se o servo for de caráter
corrigível, emenda-se melhor com admoestações, tratamento honroso
e delicadezas do que com pancadas; se incorrigível, endurece até a
extrema maldade ou rouba o senhor fugindo ou trama a sua morte por
meio de algum artifício. Por vezes, mesmo com a perda da própria
vida, vinga-se da crueldade do senhor. Ora, nenhum animal é tão
temível quanto o homem, a quem a injúria atroz ensinou o desprezo
pela própria conservação. Portanto, o que se diz freqüentemente em
forma de provérbio, que cada pessoa tem tantos inimigos quantos
servos tiver, se é verdadeiro, penso que deva ser atribuído
principalmente à iniqüidade dos senhores. Com efeito, governar os
servos é uma questão de habilidade, não de sorte. Se os senhores mais
sensatos se dedicam para que tenham servos tais que sirvam
liberalmente e pre ram ter libertos a servos, quão absurdo é tornar
pela educação servos os que são livres por natureza? Não sem razão
aquele velho da comédia de Terêncio pensa haver grande diferença
entre um pai e um senhor.53 O senhor somente coage; o pai, com
honradez e liberalidade, acostuma o lho a agir espontaneamente de
forma correta de preferência a fazê-lo por medo de outra pessoa e a ser
o mesmo tanto na sua presença quanto na sua ausência; diz ele que
quem não é capaz disso confessa que não sabe governar os lhos. Mas
deve haver um pouco mais de diferença entre um pai e um senhor do
que entre um rei e um tirano. Afastamos o tirano do governo, e ou
contratamos tiranos para os nossos lhos, ou nós mesmos exercemos a
tirania contra eles. Embora esse vil nome de servidão devesse ser
completamente removido da vida dos cristãos. São Paulo recomenda
Onésimo a Filêmon,54 já não como servo, mas, em vez de servo, como
irmão caríssimo. E, ao escrever aos efésios, adverte os senhores para
que abandonem a severidade e as ameaças no tratamento com os
servos, lembrando-se de que são antes servos junto com eles do que
senhores, pois ambos têm um senhor comum nos céus que não punirá
menos os senhores, se pecarem em algo, do que os servos.55 O
Apóstolo não quer que os senhores sejam nem ameaçadores, muito
menos espancadores — ora, ele não diz: “Abandonando os açoites”,
mas “abandonando as ameaças”. E nós não queremos outra coisa para
os nossos lhos, senão que apanhem, atitude esta que di cilmente os
chefes de trirremes ou os piratas têm para com os seus remadores.
Ora, que preceitua sobre os lhos o mesmo Apóstolo? A tal ponto não
quer que apanhem de modo servil que ordena que até das advertências
e da repreensão estejam ausentes a violência e a rispidez. Diz: “Vós,
pais, não exaspereis os vossos lhos, mas educai-os na disciplina e na
admoestação do Senhor”.56 Ora, como é a disciplina do Senhor,
compreendê-lo-á facilmente quem considerar com que suavidade,
mansidão e caridade o Senhor Jesus ensinou, suportou, acalentou e,
pouco a pouco, fez que progredissem os seus discípulos.

As leis humanas regulam o pátrio poder e essas mesmas leis


permitem aos servos que processem os senhores por maus tratos; e de
onde vem essa crueldade entre cristãos? Certa vez, um homem
chamado Áuxon, romano da ordem eqüestre, ao corrigir
destemperadamente o lho com açoites, matou-o. Essa crueldade
causou tanta comoção no povo que pais e lhos, sem nenhuma
consideração pela dignidade eqüestre do homem, que havia sido
arrastado até o foro,57 perfuraram-no com estilos,58 e Otávio Augusto
teve di culdade para afastá-lo do perigo. Mas quantos Áuxons vemos
hoje, que pela violência dos açoites prejudicam a saúde das crianças,
deixam-nas caolhas, debilitam-nas e não raro matam-nas! Para a
violência de alguns, as varas de nada servem: virando-as, batem com o
cabo, dão bofetadas e socos nos pequenos, e o que quer que por acaso
esteja à mão, agarram-no e lançam-no contra eles. As atas dos juristas
contam que certo sapateiro, ao acertar o discípulo na parte de trás da
cabeça com uma forma de sapatos feita de madeira, arrancou-lhe um
dos olhos e, por esse fato, foi punido pelas leis. Que se deve dizer
daqueles que às torturas acrescentam um ultraje abominável? Eu
nunca acreditaria nisso se não tivesse conhecido de perto não só o
menino, mas também o autor de uma crueldade. Trataram de forma
tão desumana o menino, cujo décimo segundo ano de vida mal havia
começado e cujos pais, pessoas honradíssimas, tinham sido prestativos
para com o preceptor, que di cilmente um Mezêncio ou um Fálaris59
poderiam portar-se de modo mais cruel. Meteram uma quantidade tão
grande de fezes humanas na boca do pequeno que ele não conseguia
cuspir, mas era obrigado a engolir uma boa parte delas. Que tirano
alguma vez praticou essa sorte de ultraje? Diz o provérbio grego:
“Manda nos teus próprios escravos”.60 Após tais banquetes, exerce-se o
poder. O menino, nu, após lhe terem en ado cordas sob as axilas, foi
suspenso no ar para que aplicassem o infame suplício dado aos
ladrões, e não há nada mais execrável do que isso para os alemães. Em
seguida, sevicia-se o menino com varadas de todos os lados, quase até
a morte. Ora, quanto mais o menino negava ter cometido o malfeito,
mais se intensi cava o tormento. Agora acrescenta a isso a própria
gura do carrasco, quase mais temível que o suplício: olhos viperinos,
boca pequena e contraída, voz aguda, como se diz ser a dos fantasmas,
tez pálida, cabeça vertiginosa, ameaças e insultos, que lhe eram
fornecidos por sua esplêndida cólera. Dirias que era uma espécie de
Tisífone.61 Qual foi a conseqüência disso? Logo após os suplícios, uma
doença tomou conta do menino, causando grande perigo não só para
a sua sanidade mental, como para a sua vida. Então o carrasco tomou,
ademais, a iniciativa de fazer uma queixa: escreveu ao pai que tinha
consumido em vão toda a medicina com o estado irremediável do
menino e que levasse embora o seu lho o quanto antes. Embora a
doença do corpo tenha sido expulsa de algum modo pelos remédios,
no entanto o seu espírito estava de tal forma atordoado que temíamos
que ele nunca mais retornasse ao antigo vigor mental. E esses não
foram maus tratos de um só dia: enquanto o menino viveu junto dele,
não se passava nem um dia sem que apanhasse cruelmente várias
vezes. Sei que há bastante tempo suspeitas, ó leitor, que cometeu uma
falta enorme aquele em quem se empregou um remédio tão atroz.
Tratarei disso em poucas palavras. Encontraram-se os livros
manchados de tinta, as roupas rasgadas e os calçados sujos com
excrementos humanos tanto daquele que apanhou quanto de outros
dois. Aquele que fazia essa brincadeira era um menino nascido para
toda sorte de crimes e que, mais tarde, demonstrou com outros delitos
a veracidade dos anteriores; ademais, era sobrinho daquele mestre
insano por parte da mãe. Já preludiava naquela época às coisas que os
soldados costumam fazer na guerra ou nos seus atos de rapina:
hóspede na casa de certo homem, após ter removido a tampa de um
recipiente, deixou o vinho escorrer para o chão, e, como alguém muito
prestimoso, alertou que estava sentindo cheiro de vinho; com outro
menino, companheiro seu, lutava todos dias com a espada, não por
brincadeira, mas com seriedade, de modo que já reconhecerias que
haveria de ser um ladrão, um assassino ou, coisa muitíssimo
semelhante, um soldado mercenário. Embora aquele professor o
apoiasse, no entanto, temendo que os meninos se lanhassem
mutuamente, dispensou o parente. Com efeito, do outro ele recebia
uma bela paga: ora, era do número dos evangélicos62 aos quais nada é
mais doce do que o dinheiro. O pai, homem excelente, estava
convencido de que o lho estava morando com um professor santo,
amigo e diligente, embora vivesse com um carrasco hipócrita e
desempenhasse as funções de ministro e assistente de um homem
semilouco e continuamente doente. Portanto, como era mais propício
para com aquele que lhe era próximo pelos laços de sangue e também
para com o outro de onde lhe provinha uma feliz messe, lançou a
suspeita contra um inocente, a quem se atribuía tanta malícia a ponto
de rasgar e sujar as próprias roupas para evitar que se suspeitassem
dele. Mas o menino era lho de pais excelentes, nunca dera nenhum
indício de falta de caráter e hoje não há nada que seja mais
incompatível com toda sorte de malícia do que o seu modo de
proceder; e agora, livre de todo medo, conta de forma ordenada tudo
conforme aconteceu.

Cidadãos honrados entregam a tais pedagogos os lhos, que são o


que têm de mais precioso, e esses indivíduos reclamam que não se lhes
paga um salário digno do seu trabalho. Tampouco o torturador
deixara de perceber o seu erro, mas preferiu enlouquecer cada vez
mais a reconhecer a sua culpa: e contra pessoas desse tipo não se
instaura um processo por maus tratos, tampouco o rigor das leis tem
força contra uma crueldade tão feroz. Ninguém tem a ira mais
implacável do que aqueles que são vizinhos da epilepsia. Quantas
coisas se insinuaram na vida dos cristãos, que não são dignas de frígios
nem de citas,63 das quais indicarei uma que, naturalmente, não foge
desse assunto. Os que vão pela primeira vez às escolas públicas64 são
forçados a passar por uma sessão de trote; para uma coisa bárbara
encontrou-se um vocábulo igualmente bárbaro.65 O jovem de boa
família foi enviado para lá para aprender as artes liberais. Contudo,
com que infames abusos é iniciado! Primeiramente, deixam o seu
queixo de molho como se fossem raspar-lhe a barba; para esse m,
usam urina ou alguma loção ainda pior. Esse líquido lhe é en ado na
boca e ele não pode cuspi-lo. Com golpes molestos batem nele como
se estivessem arrancando-lhe chifres; naturalmente, por vezes os
jovens são obrigados a beber uma grande quantidade de vinagre ou
sal, ou alguma outra coisa que aprouver à petulância desenfreada dos
jovens. Ora, os que estão para começar a brincadeira exigem dele o
juramento de que obedecerá a todos os comandos. Por m, levantam-
no e batem as suas costas contra a ombreira da porta quantas vezes
lhes aprouver. A esses abusos selvagens sucedem por vezes uma febre
ou uma incurável dor na coluna. Com efeito, a brincadeira termina em
um banquete de bebedeira. Depois de tais exórdios, iniciam os estudos
das artes liberais. Ora, sob tais auspícios convinha que se iniciassem
um carrasco, um torturador, um proxeneta, um cário de vida venal ou
um remador, não um menino destinado ao culto das Musas e das
Graças. É surpreendente que jovens dedicados aos estudos liberais
ajam de forma tão insana, mas é ainda mais surpreendente que sejam
aprovados pelos guias da juventude. Para imbecilidades tão horríveis e
cruéis usa-se como pretexto o nome de “costume”, como se o costume
de fazer uma coisa má fosse outra coisa senão um erro inveterado e
que deve ser extirpado com maior zelo, pois já se espalhou entre
muitos. Assim, mantém-se até entre os teólogos o costume da colação
de grau,66 pois designam uma coisa absurda com um nome absurdo,
antes digna de truões do que de teólogos. Ora, é preciso que também
sejam liberais os divertimentos daqueles que professam as artes
liberais.

***

Mas retomo o tema da infância, à qual nada é mais danoso do que


acostumar-se com pancadas, cujo exagero faz com que uma índole boa
se torne intratável e uma ruim caia no desespero: a assiduidade delas
faz com que não só o corpo se torne insensível aos açoites, mas
também que o espírito se torne duro às palavras. Aliás, tampouco se
deve empregar com freqüência uma repreensão áspera. Um remédio
mal administrado agrava a doença, não a alivia; administrado
assiduamente, aos poucos deixa de ser remédio e não tem um efeito
diferente do que costuma ter uma comida ruim e pouco saudável.
Nesse aspecto, algumas pessoas nos entoam os oráculos dos hebreus:
“Quem poupa o uso da vara odeia o lho; e quem ama o seu lho
aplica-lhe assiduamente os agelos”;67 e ainda: “Curva a cerviz do lho
na juventude e bate nos seus ancos enquanto é criança”.68 Talvez esse
modo de castigo fosse apropriado aos judeus em outros tempos. Hoje é
preciso interpretar os ditos dos hebreus de forma mais branda. E se
alguém nos perturbar com letras e sílabas,69 que é mais absurdo do que
dobrar a cerviz de um menino e bater nos ancos de uma criança?
Acaso não pensas que se esteja a ensinar um touro para o arado ou um
jumento para a albarda, mas não um homem à virtude? Ora, que
prêmio nos promete? Diz: “Para que não bata na porta dos
próximos”.70 Teme pela pobreza do lho como o pior dos males. Que
há de mais vão do que essa sentença? Que a nossa vara seja a exortação
generosa, às vezes também a repreensão, mas temperada com a
mansidão, não com a aspereza. Apliquemos assiduamente esse agelo
nos nossos lhos, para que, bem educados em casa, adquiram o modo
de bem viver e não sejam forçados a mendigar dos vizinhos conselhos
para cuidar dos seus assuntos. O lósofo Lícon nos mostrou dois
aguilhões muito pontiagudos para despertar a inteligência dos
meninos — o recato e o elogio: o recato é o medo da justa censura; o
elogio, por sua vez, é o altor de todas as artes. Espetemos a inteligência
dos lhos com esses aguilhões! Agora, se aprouver, mostrarei também
o porrete com que baterás no anco dos teus lhos. “O trabalho
persistente tudo vence”,71 diz o mais excelente dos poetas. Vigiemos,
exortemos, insistamos, exigindo, repetindo, inculcando: com esse
porrete batamos nos ancos dos nossos lhos! Que aprendam
primeiramente a amar e a admirar a virtude e as letras e a ter horror da
desonra e da ignorância. Que ouçam uns serem celebrados por suas
boas ações e outros serem repreendidos por suas más ações; que se
apresentem exemplos daqueles aos quais a erudição engendrou grande
glória, riquezas, prestígio e autoridade. Em seguida, daqueles aos quais
os maus costumes e uma inteligência não cultivada por nenhuma
disciplina trouxeram infâmia, desprezo, pobreza e morte. Esses sem
dúvida são os porretes dignos dos cristãos, discípulos do
mansuetíssimo Jesus.

Mas se não se zer nenhum progresso nem com admoestações,


súplicas, emulação, recato, elogios e as demais técnicas, é preciso que o
próprio castigo com varas, se a situação, por m, o exigir, seja não só
generoso, mas também comedido. Ora, o próprio fato de desnudar o
corpo de pessoas de boa família, especialmente diante dos olhos de
muitos, é uma espécie de abuso. Entretanto, Quintiliano condena
absolutamente o costume adquirido de bater em crianças de boa
família. Alguém dirá: “O que se fará com aqueles que não podem ser
impelidos aos estudos, senão por meio de pancadas?”. Respondo
prontamente: o que farias com jumentos e bois que viessem à escola?
Acaso não os tocaria para o campo e entregarias uns para o moinho e
outros para o arado? Ora, há homens não menos nascidos para a
rabiça do arado e o moinho do que bois e jumentos. Dizem: “Mas,
enquanto isso, o grupo diminui”. E então? “Também a renda”. Isso é
duro! Aí está a razão do choro! É-lhes mais precioso o lucro do que o
desenvolvimento das crianças. Mas praticamente toda a turba de
professores é desse jeito.

***
Admito que, assim como os lósofos descrevem um sábio, e os
mestres de retórica um orador que di cilmente encontrarias em algum
lugar, da mesma forma é muito mais fácil indicar como é preciso que
os professores sejam do que encontrar muitos que correspondam à
forma prescrita. Ora, essa deveria ser uma preocupação pública, tanto
da parte das autoridades civis quanto da do alto clero: assim como as
pessoas recebem formação para atuar na guerra e cantar nos templos,
da mesma maneira devem receber uma formação bem maior para que
instruam os lhos dos cidadãos de forma correta e liberal. Vespasiano
tirava dos seus rendimentos cem mil sestércios por ano para os
mestres de retórica latinos e gregos. Também Plínio, o Jovem, retirou
uma enorme soma dos seus recursos pessoais para esse mesmo m.
Ora, se a administração pública cessa de fazer a sua parte,
naturalmente cada um deve cuidar da própria casa.

Dizes: “Que farão os pobres, que mal alimentam seus lhos e que
estão tão longe de poderem contratar um educador assim?”. Quanto a
isso, nada tenho que dizer, a não ser citar aquele trecho da comédia:
“Vivemos como podemos, visto que não o podemos como
queremos”.72 Nós ensinamos o melhor método de ensinar; não
podemos dar as condições para isso. A não ser que também nisso a
generosidade dos ricos deva socorrer os que nasceram dotados de boas
capacidades, mas que, por causa das di culdades nanceiras, não são
capazes de exercer os seus talentos naturais.

A rmo que a afabilidade do professor deve ser temperada de tal


forma que o desprezo, companheiro da intimidade, não lance fora o
recato e o respeito. Dizem que Sarpedão, preceptor de Catão, o Jovem,
era assim. Por seu caráter afável, ele granjeara para si uma elevada
estima aos olhos do menino; por sua integridade, uma autoridade do
mesmo nível — não havia nenhum medo de vergastadas. Mas esses
homens que não aprenderam outra coisa, senão a bater, o que fariam
se recebessem a missão de educar os lhos do imperador ou dos reis,
nos quais não se pode bater? Dirão que os lhos dos homens ilustres
estão dispensados dessa regra. Que ouço? Acaso os lhos dos cidadãos
comuns são menos seres humanos do que os dos reis? Acaso o lho
não deve ser a todo homem tão caro como se tivesse nascido de um
rei? Se as condições forem mais modestas, tanto mais se faz necessário
o auxílio da educação e das letras para que se levantem do chão. Mas
se forem boas, a loso a é indispensável para bem administrar os seus
negócios. Que dizer do fato de que não poucos são chamados da sua
condição humilde para o principado e, às vezes, até para o mais alto
grau da dignidade ponti cal? Nem todos chegam a isso, mas todos
devem ser educados para isso.

Pararei de contender com os espancadores, se acrescentar só mais


uma coisa: são condenadas pelos sábios as leis e os magistrados que
somente aterrorizam com penas, mas não atraem por meio de
recompensas, e que punem os crimes cometidos, mas não cuidam para
que não se cometa nada que deva ser punido. O mesmo se deve pensar
da turba dos preceptores que só açoitam por causa das faltas
cometidas, mas não educam o espírito para que não queira incorrer
em transgressões. Exige-se a leitura; se o menino se enganar em
alguma coisa, apanha. Como isso acontece todos os dias a m de que o
pequeno se acostume cada vez mais, julgam que cumpriram muito
bem o dever de professor. Mas a criança deveria ser, primeiramente,
incentivada a amar as letras e a ter receio de ofender os sentimentos do
professor. Mas talvez alguns tenham a impressão de que falei sobre isso
mais do que o su ciente, e teriam razão nessa impressão, se
praticamente todos não pecassem tão gravemente nesse aspecto que
nunca se pode dizer o su ciente a respeito.

Ademais, não será de pouco auxílio se aquele que recebeu a missão


de educar uma criança tomar a resolução de revestir-se do afeto dos
pais. Assim, o resultado será não somente que o menino aprenderá
com mais prazer, mas também que sentirá menos aborrecimento com
o trabalho. Com efeito, em todas as atividades o amor elimina grande
parte das di culdades. Ora, porquanto “o semelhante regozija-se com
o semelhante”, de acordo com o antigo provérbio, é preciso que o
preceptor de alguma forma volte a ser criança para que seja amado
pela criança. Contudo, não me agrada o fato de con arem crianças que
devem ser instruídas nos princípios elementares das letras aos
cuidados de velhos de idade avançada e que se encontram
praticamente senis, pois são verdadeiramente crianças: não simulam
nem ngem um balbucio, mas verdadeiramente balbuciam. Eu optaria
por alguém jovem,73 por quem a criança não tenha aversão e que não
se incomode de assumir quaisquer papéis. Nesse ponto, atuará na
formação da inteligência da mesma forma que os pais e as amas-de-
leite costumam agir na constituição do corpo. No início, como
ensinam a criança a reproduzir os sons da voz humana? Ajustam o seu
modo de falar ao balbucio infantil fazendo uso de uma língua
balbuciante. Como ensinam a comer? Elas próprias comem antes da
criança o mingau de leite e, mastigado, o introduzem aos pouquinhos
na boca da criança. Como ensinam a andar? Dobram o corpo e
diminuem os seus passos de acordo com o ritmo da criança. Nem a
alimentam com qualquer comida, nem lhe dão mais do que pode
receber, e paulatinamente, com o desenvolvimento da idade, a
conduzem para coisas mais sólidas. Primeiramente, procura-se um
alimento a m, não muito diferente do leite; contudo, se for en ado na
boca em quantidade muito grande, ou sufoca a criança ou, posto pra
fora, suja a sua roupa. Dado de forma lenta e gradual, deleita. O
mesmo vemos acontecer com os vasos pequenos que tem a boca
estreita: se colocares algo dentro deles em muita quantidade, torna a
sair em borbulhas o que se coloca. Por outro lado, se o zeres em
pequenas porções e, por assim dizer, em gotas, de forma gradual e
lenta, enchem-se de fato. Portanto, assim como os tenros corpinhos se
nutrem com pouca comida dada várias vezes, da mesma forma a
inteligência das crianças por meio de disciplinas a ns, mas que são
ensinadas lentamente e como que por brincadeira, se acostuma
gradualmente às mais complexas; entrementes, tampouco se faz sentir
o cansaço, pois os pequenos acréscimos enganam o senso de trabalho
de tal modo que, entretanto, contribuem para o mais elevado grau de
progresso: como se narra de certo atleta que, tendo-se acostumado a
carregar diariamente um bezerro por alguns estádios,74 não teve
nenhuma di culdade em carregá-lo quando já se havia tornado um
touro.75 Não sentia o crescimento que cada um dos dias acrescentava
ao peso. Mas há aqueles que exigem que as crianças se tornem logo
anciãos, não tendo consideração pela idade, medindo a inteligência
delas com base nas próprias forças. Logo as pressionam asperamente,
logo exigem atenção total, logo franzem a testa se a criança
corresponde menos à expectativa, e cam tão transtornados como se
estivessem lidando com um adulto, esquecendo-se, certamente, de que
também já foram crianças. Como é mais humana a fala que Plínio usa
para admoestar certo professor demasiadamente severo. Diz ele:
“Lembra-te de que ele é jovem e de que tu o foste”.76 Mas muitos agem
com tanta ferocidade contra aquela frágil idade como se não se
lembrassem de que eles próprios e os alunos são seres humanos.

***

Pedirás que te mostre as coisas a ns com as características da idade e


que devem ser logo inculcadas nos pequenos. Em primeiro lugar, o
uso de idiomas, que sem qualquer estudo cabe às crianças, ao passo
que os adultos di cilmente adquirem essa habilidade, mesmo com
enorme dedicação. A isso incita os pequenos, como o dissemos, certo
prazer natural em imitar, e vemos traços disso nos estorninhos e nos
papagaios. Que há de mais agradável do que as fábulas dos poetas?
Usando o deleite como um atrativo, elas agradam tanto os ouvidos das
crianças que, mesmo quando forem adultas, não serão poucas as
vantagens que trarão não só para o conhecimento da língua, mas
também para o juízo e para o enriquecimento de sua capacidade de
expressão. O que o menino ouve com mais prazer do que os apólogos
de Esopo? No entanto eles transmitem, por meio do riso e dos
gracejos, preceitos sérios de loso a, e este fruto se encontra também
nas demais fábulas dos poetas antigos. O menino ouve que os
companheiros de Ulisses foram transformados em porcos e em outras
formas de animais pela arte de Circe. Ri-se da história. Entretanto, o
menino aprende ao mesmo tempo aquilo que é o mais importante em
loso a moral: os homens que não são governados pela reta razão,
mas que são arrastados pelo arbítrio das paixões, não são homens, e
sim animais. O que um estóico diria de mais grave? Entretanto, uma
fábula engraçada ensina a mesma coisa. Não te deterei com muitos
exemplos de uma coisa evidente. Ora, que há de mais espirituoso do
que a poesia bucólica? Que há de mais doce do que a comédia?
Porquanto trata dos costumes das pessoas, ela mexe tanto com os
incultos quanto com as crianças. Ora, quão grande parte da loso a se
aprende aqui por meio de brincadeiras? Acrescenta a isso as palavras
que dão nome a todas as coisas, nas quais é surpreendente o quanto
andam mal atualmente até aqueles que são considerados notavelmente
cultos. Por m, frases breves e elegantes, como o são verdadeiramente
os provérbios, e as máximas dos homens ilustres: outrora se costumava
ensinar loso a ao povo somente com elas.

Ora, entrementes aparece nas próprias crianças uma disposição


peculiar para certas disciplinas, como a música, a aritmética e a
cosmogra a. Pois eu mesmo tive a experiência de ver alguns que eram
muito lentos para os preceitos da gramática e da retórica revelarem-se
muito dóceis àquelas disciplinas bastante sutis. Portanto, deve-se
ajudar a natureza naquela área para a qual se inclina por si só. Ora, no
declive o esforço é mínimo, assim como, por outro lado, “nada dirás
ou farás que seja contrário às disposições naturais”.77 Conheci um
menino ainda incapaz de falar para o qual nada era mais prazeroso do
que, aberto o livro, dar-se ares de leitor. E embora zesse isso por
muitas horas, não era tomado por nenhum aborrecimento. Nunca
chorava tão amargamente que não se acalmasse quando se lhe trazia o
livro. Isso dava aos pais a boa esperança de que um dia seria um
homem douto. A isso se acrescentava ainda o nome que trazia em si
um bom augúrio. Ora, chamava-se Jerônimo. Não sei como está agora,
pois não o vi depois de grande.

Para o domínio da língua, será de enorme importância que seja


educado entre pessoas que falem bem. A criança aprenderá as fábulas
e os apólogos com mais prazer e lembrar-se-á melhor delas se lhe
colocarem diante dos olhos os seus temas habilmente desenhados, e
tudo o que se lhe narrar oralmente, que se lhe mostre em uma
ilustração. Isso também valerá para o aprendizado do nome das
árvores, das plantas e dos animais bem como das suas características,
especialmente daquelas coisas que não são tão fáceis assim de
encontrar por toda parte, como o rinoceronte, o tragélafo,78 o pelicano,
o unicórnio79 e o elefante. A ilustração traz um elefante que uma
serpente aperta com o seu abraço, estando as patas anteriores do
animal envolvidas pela cauda. A nova espécie de pintura agrada o
menino. Que fará o professor neste momento? Advertirá que o animal
grande é chamado em grego de elêfas e que tem um nome semelhante
em latim, a não ser pelo fato de que por vez, em consonância com a
forma da in exão latina, dizemos elephantus, elephanti. Mostrará
aquilo que os gregos chamam de proboskís e os latinos chamam de
manus,80 pois o usam para se alimentarem.81 Advertirá que aquele
animal não respira pela boca, como nós, mas pela tromba: mostrará os
dentes salientes de ambos os lados, donde provém o mar m que é
apreciado pelos ricos, e ao mesmo tempo apresentará um pente de
mar m. Em seguida, ensinará que na Índia existem serpentes de corpo
tão enorme. Ora, ensinará que drákon é uma palavra grega comum
com o latim,82 a não ser pelo fato de a declinarmos segundo o nosso
costume, porquanto os gregos dizem drákontos, assim como lêontos,83
donde as formas femininas do latim dracaena, assim como laena.84
Advertirá que entre essas serpentes e os elefantes existe uma guerra
natural e atroz. E se o menino for bastante ávido em aprender, poderá
mencionar muitas outras coisas sobre as características dos elefantes e
das serpentes.85 Muitos gostam de ver imagens de caçadas: neste
momento, quantas espécies de árvores, plantas, aves e quadrúpedes
podem ser aprendidas de forma lúdica? Também neste ponto não te
deterei com exemplos, visto que é fácil conjecturar todos com base em
um só.

Ao escolhê-los, o professor prestará atenção para que proponha


principalmente o que julgar mais agradável às crianças, mais a m com
elas, mais amável a elas e, por assim dizer, orido. A colheita da
primeira idade, como a da primavera, consta de orezinhas docemente
deleitáveis e ervas alegremente verdejantes, até que a idade viril, o
outono, abarrote os celeiros com frutos maduros. Portanto, assim
como seria absurdo procurar uvas maduras na primavera e rosas no
outono, da mesma forma o preceptor deve observar o que é
apropriado a cada idade. Convêm à infância as coisas alegres e
agradáveis. Todavia, a tristeza e a truculência devem estar
completamente ausentes dos estudos. Se eu não me engano, os antigos
também quiseram dá-lo a entender. Eles atribuíram às Musas virgens
uma notável beleza, a cítara, os cantos, as danças e os divertimentos
pelos aprazíveis prados verdejantes, e acrescentaram-lhes as Graças: o
progresso nos estudos consiste principalmente na mútua benevolência
dos corações, por isso os antigos também os chamaram de
humanidades.

Ora, nada impede que o útil seja companheiro do agradável e que a


virtude esteja unida à alegria. E todas essas coisas tão frutíferas o
menino aprende sem nenhum fastio. Ora, o que obsta a que aprenda
uma bela fábula dos poetas, uma sentença graciosa, uma historinha
ilustre ou um apólogo erudito com o mesmo esforço com que
absorvem e decoram uma canção tola, no mais das vezes também
burlesca, cções ridículas de velhinhas delirantes e meras frivolidades
de mulherzinhas? Quantos sonhos, quantas charadas vãs, quantas
canções de ninar inúteis sobre almas do além, espectros, fantasmas,
estriges,86 lâmias,87 íncubos,88 seres das orestas e demônios, quantas
mentiras perniciosas dos contos populares, quantos absurdos, quanta
coisa dita perversamente retemos na memória mesmo sendo homens
feitos e que, sentados junto à roca e entre abraços e brincadeiras,
ouvimos do papai, da avó, da mamãe e das aias quando éramos
criancinhas? Ora, quanto progresso no aprendizado não se teria feito
se em vez dessas coisas mais vãs do que as treliças de junco dos
sicilianos,89 como dizem, não só frívolas, mas também danosas,
absorvêssemos as coisas que há pouco citamos? Dirás: “Que homem
douto se rebaixará a essas coisas tão pequenas?”. Ora, Aristóteles, tão
grande lósofo, não se sentiu incomodado de desempenhar a função
de professor primário para ensinar a Alexandre. Quíron formou a
infância de Aquiles, ao qual sucedeu Fênix. O sacerdote Eli educou
Samuel. Além disso, hoje há pessoas que ou por causa de um pequeno
lucro ou por prazer assumem um trabalho praticamente maior para
adestrar um corvo ou um papagaio. Há pessoas que, por causa da
religião, enfrentam peregrinações longínquas e ao mesmo tempo
perigosas, e sofrimentos quase intoleráveis. Por que a piedade não nos
incita ao cumprimento desse encargo que é o mais agradável a Deus?
Contudo, ao ensinar essas coisas que mencionamos, faz-se necessário
que o professor não exerça pressão nem seja severo, mas que seja mais
constante do que excessivo. A constância não faz mal, se for
moderada, se for temperada com a variedade e com a alegria e, por
m, se essas coisas forem ensinadas de tal forma que não haja o
pensamento de que trata de trabalho, mas que o menino pense que
tudo se faz por brincadeira.

***

Neste momento, o próprio desenvolvimento do discurso nos chama a


atenção para que expliquemos em poucas palavras como se faz para
que as letras se tornem doces para o menino, algo de que antes
começamos a tratar parcialmente. A habilidade de falar, como cou
dito, se adquire pela prática sem aborrecimento. A ela sucede o
cuidado com a escrita e a leitura, que traz em si mesmo um pouco de
fastio, mas se tira grande parte dele com a competência do professor,
se se temperá-lo com certos atrativos. Encontrarias, com efeito, alguns
que passam longo tempo e se fatigam para reconhecer e juntar as letras
naqueles primeiros rudimentos da gramática, embora tenham a
capacidade de aprender mais rapidamente as coisas mais complexas. O
enfado dessas coisas deve ser remediado com o auxílio de técnicas e
alguns dos antigos nos mostraram o modo de fazê-lo. Alguns
modelavam as letras com guloseimas de que as crianças gostam para
que de certa forma as devorassem. Ao que dizia o nome da letra se
dava a própria letra como um pequeno prêmio. Outros esculpiam as
letras em mar m, ou de alguma outra coisa pela qual aquela idade se
interessa de forma especial, para que o menininho brincasse com elas.
Os britânicos são atraídos principalmente pelo gosto do tiro com arco
e não há outra coisa que ensinem primeiro aos lhos. Por isso, certo
pai dotado de uma inteligência na, notando no lho um prazer
incrível na prática do tiro com arco, comprou-lhe um arco e algumas
echas de grande beleza; em tudo, tanto nos arcos quanto nas echas,
havia letras desenhadas. Em seguida, como alvos, colocou letras,
primeiro gregas, depois latinas. Quando o menino acertava a letra e
dizia o seu nome, além dos aplausos, recebia como prêmio uma cereja
ou outra coisa com que se alegram os pequenos. Colhe-se mais fruto
dessa brincadeira se acrescentares dois ou três adversários à
participação na competição. Ora, aqui a esperança da vitória e o medo
da vergonha os deixam mais atentos e animados. Por esse estratagema
se consegue que a criança brincando por alguns dias domine bem as
formas e os sons de todas as letras, algo que o comum dos professores
com açoites, ameaças e insultos di cilmente consegue realizar em três
anos. Contudo, não aprovo a dedicação excessiva de alguns a esses
métodos, que planejam isso por meio de jogos de damas ou de dados.
Ora, visto que as próprias brincadeiras superam a capacidade das
crianças, como aprenderão as letras por meio delas? Isso não é ajudar a
inteligência das crianças, mas dar-lhes mais trabalho. Assim como há
certas técnicas tão trabalhosas que trazem lentidão à execução da
atividade. Geralmente são dessa natureza as coisas que alguns
inventaram sobre a arte da memória visando mais ao lucro e à
ostentação do que à utilidade. Ora, essas coisas antes corrompem a
memória. A melhor técnica de memorização é compreender
profundamente, ordenar o que foi compreendido e, por m,
recapitular várias vezes aquilo de que queres lembrar-te. Ademais, é
natural nos pequenos o desejo de vencer, bem como certo gérmen de
rivalidade; além disso, o medo da vergonha e o amor pelo elogio,
sobretudo naqueles dotados de uma inteligência mais elevada e de
uma índole mais impetuosa. O professor se servirá dessas paixões para
os progressos nos estudos. Se não progredir nada por meio das
súplicas e dos agrados, nem com as pequenas recompensas infantis e
os elogios, dever-se-á simular um torneio com os coetâneos. Que o
companheiro seja elogiado na frente do preguiçoso. O sentimento de
competição desperta aquele que não pôde ser despertado só pela
admoestação. Contudo, não é bom que se entregue o prêmio ao
vencedor como se fosse perpétuo, mas que neste momento se dê ao
vencido a esperança de compensar a vergonha com a diligência, algo
que os generais costumam fazer na guerra. Por vezes, deve-se permitir
que o menino pense que é o vencedor, embora seja inferior.
Finalmente, pela alternância de elogios e repreensões alimentará neles,
como o diz Hesíodo, uma rivalidade saudável.

***

Talvez seja incômodo para uma pessoa de personalidade mais séria


descontrair-se assim entre crianças. Mas à mesma pessoa não é
incômodo nem constrangedor passar uma boa parte do dia a brincar
com cadelinhas maltesas ou com macaquinhos, a conversar com um
corvo ou com um papagaio, ou a gracejar com algum bobo. Por meio
daqueles divertimentos faz-se uma coisa de extrema seriedade e é
incrível que homens respeitosos encontrem nelas menos prazer, visto
que o amor e a esperança de grandes frutos costumam tornar alegres
até coisas que por si só são austeras. Admito que no começo o ensino
de gramática tenha algo de sério e que seja mais necessário do que
divertido. Mas a habilidade do professor também suprime uma boa
parte do enfado. Primeiramente se deve ensinar somente o que é
excelente e facílimo. Ora, neste momento com quantas obscuridades e
di culdades se torturam os meninos enquanto aprendem os nomes
das letras antes de reconhecer a sua forma e são forçados a aprender
nas exões dos substantivos e dos verbos a quantos casos, modos e
tempos corresponde uma mesma palavra, como musae, genitivo e
dativo do singular, nominativo e vocativo do plural, e legeris,90
presente do indicativo da voz passiva, pretérito perfeito do subjuntivo
da voz ativa e futuro perfeito do indicativo da voz ativa! Que agelos
ressoam então na escola quando se exigem essas coisas das crianças?
Alguns professores primários, para ostentar a sua erudição, costumar
acrescentar diligentemente algumas di culdades a essas coisas. Esse
vício torna o início do aprendizado de praticamente todas as
disciplinas confuso e enfadonho, sobretudo na dialética. Se lhes
mostras o método de ensino mais cômodo, respondem que foram
educados daquela maneira e não aceitam que algo possa ser melhor
aos meninos do que aconteceu com eles próprios quando eram
crianças. Portanto, deve-se evitar toda di culdade desnecessária ou
fora de tempo. Torna-se mais suave o que se faz no tempo correto. Mas
quando já for tempo de absorver uma di culdade necessária, então o
pro ssional de educação infantil, na medida do possível, se dará ao
trabalho de imitar os médicos bons e amigáveis que, quando estão
para oferecer um remédio amargo, como o a rma Lucrécio, untam a
boca dos copos com mel a m de que a criança, seduzida pelo prazer
do doce, não receie o salutar amargor, ou então misturam açúcar ou
outra coisa de sabor agradável no próprio remédio. Ademais, ngem
que não é remédio. Ora, às vezes a mera imaginação causa horror. Por
m, vence-se com facilidade esse aborrecimento se as coisas forem
ensinadas não de uma só vez e sem moderação, mas gradualmente e
em intervalos. Embora não se deva duvidar exageradamente das
capacidades das crianças se por acaso for preciso executar algo que dê
certo trabalho. A criança não é robusta na força física, mas na
constância e nas capacidades naturais. Não é forte como o touro, mas
como a formiga. Sob certo aspecto, até o elefante é superado pela
mosca. Todas as coisas são fortes naquilo para que foram formadas
pela natureza. Acaso não vemos crianças pequeninas correr o dia
inteiro com uma agilidade admirável e não sentir cansaço? Se Mílon
zesse a mesma coisa, caria fatigado. Por quê? Porque a brincadeira é
a m com a idade e imaginam que se trata de uma brincadeira, não de
um esforço. Ora, em qualquer atividade a maior parte do
aborrecimento está na imaginação, que por vezes nos traz a sensação
de que há algo mau, mesmo onde não há nada de mau. Portanto, visto
que a providência da natureza tirou esse tipo de imaginação dos
pequenos, de modo que sejam auxiliados por esse aspecto na mesma
proporção do que lhes falta de força física, o papel do professor será,
como o dissemos antes, lançá-la fora de muitas formas e com
diligência introduzir a roupagem do lúdico. Há também tipos de
divertimentos não impróprios aos lhos com os quais se deve relaxar a
tensão dos estudos quando tiver chegado a hora de serem chamados a
coisas mais complexas, que não podem ser aprendidas sem dedicação
e esforço, como o tratamento dos temas,91 a tradução do latim para o
grego ou do grego para o latim, ou o estudo de cosmogra a. Mas a
maior contribuição de todas será se o menino acostumar-se a amar e
respeitar o professor, a amar e admirar as letras, a temer a ignomínia e
a cativar-se pela honra.
***

Resta só mais aquele escrúpulo que costumam objetar os que dizem


que o progresso que se adquire para a criança naqueles três ou quatro
anos é pequeno demais para que valha a pena assumir tão grande
esforço com o ensino ou gastar tanto dinheiro. Ora, com efeito, essas
pessoas me dão a impressão de que não cuidam tanto dos lhos
quanto poupam os seus bens ou o professor. Ora, eu negaria o título de
pai a quem, quando se trata da educação do lho, calculasse os gastos
com excesso de atenção. Ademais, seria uma clemência ridícula que
desperdiçasse alguns anos do lho porque o professor lucra com o
trabalho. Com efeito, concedamos que seja verdadeiro, e Quintiliano
não o nega, que em um ano se realiza mais do que naqueles três ou
quatro primeiros anos: qual é o motivo para desprezarmos esse ganho,
qualquer que seja ele, em algo tão precioso? Admitamos que é muito
pequeno, no entanto era melhor que a criança zesse isso do que não
fazer absolutamente nada ou aprender coisas que devem ser
desaprendidas. Com que tarefas se ocupará melhor aquela idade tão
logo comece a falar e que não pode car completamente ociosa?
Depois, por menor que seja aquilo com que aquela primeira idade
contribui, no entanto a criança aprenderá algumas coisas mais
complexas naquele mesmo ano em que coisas mais simples deviam ser
aprendidas, a menos que se tivesse ocupado delas antes. Diz
Quintiliano: “Isso, continuado ao longo de cada um dos anos, perfaz
uma soma e a quantidade de tempo empregado na infância traz
vantagens para a adolescência”.92 Para não repetir que se aprendem
facilmente certas coisas naqueles primeiros anos que, nos anos
posteriores, se assimilam com maior di culdade. Ora, aprende-se com
suma facilidade aquilo que se aprende no tempo certo. Concedamos
que sejam coisas simples, desde que admitamos que sejam necessárias.
Embora, de fato, não me pareça um passo tão pequeno para a erudição
ter obtido, senão a uência, ao menos uma degustação em ambas as
línguas; depois, os nomes de tantas coisas; e, por m, ter-se iniciado
nas habilidades de ler e escrever prontamente. Não nos causa
incômodo investir o que pudermos em coisas muito mais vis, embora
de ín mo lucro, que os gregos, se não me engano, chamam de “adiante
no caminho”.93 O comerciante dedicado não negligencia o lucro de um
asse ou terúncio,94 pensando assim consigo: “Por si mesmo é
certamente muito pouco, mas aumenta a soma, e uma coisa pequena
acrescentada com freqüência a outra coisa pequena forma
rapidamente um grande monte”. Os fundidores de cobre se levantam
antes da aurora como que para lucrar uma parte do dia. Os lavradores
fazem certas coisas em casa nos dias de feriado para que consigam
concluir mais trabalhos nos demais dias. E nós, em relação aos lhos,
não damos nenhuma importância à perda de quatro anos, visto que
nenhuma despesa é mais preciosa que o tempo e nenhum bem é mais
precioso do que as letras? Nunca se começa cedo o bastante o que
nunca acaba. Ora, sempre teremos o que aprender enquanto vivermos.
Mas nas demais coisas, o lucro negligenciado por uma pausa nas
atividades pode ser compensado pela diligência. Uma vez que o tempo
tenha ido embora, e vai embora muito rapidamente, não poderá
retroceder com nenhuma fórmula mágica. Com efeito, gracejam os
poetas que mencionam uma fonte na qual os velhos como que se
rejuvenescem; enganam os médicos que por meio de certa quinta-
essência prometem aos idosos o rejuvenescimento. Portanto, aqui se
devia empregar o mais alto grau de parcimônia, pois a perda do tempo
não pode ser compensada de nenhum modo. Acrescente-se a isso o
fato de que a primeira parte da vida é considerada a melhor, por isso
deve ser despendida com mais moderação. Hesíodo não aprova a
parcimônia nem no nível mais alto nem no mais baixo, pois quando o
tonel está cheio, ela parece precipitada, quando está vazio, é tardia: por
isso, ordena que se use de moderação no nível médio. Mas quanto ao
tempo, não se deve em nenhum momento abrir mão da parcimônia, e
se se deve agir com parcimônia quando o tonel está meio cheio, pois o
vinho que se encontra na metade é o melhor, deve-se agir com a
máxima parcimônia com os primeiros anos, que é a melhor parte da
vida se a exercitares, mas é a mais fugaz. O lavrador que é um pouco
mais diligente não permite que nenhuma parte do campo esteja em
absoluto repouso, e, quanto àquela parte do terreno imprópria para a
produção de cereais, planta nela moitas, deixa-a para a pastagem ou
guarnece-a de hortaliças. E nós aceitaremos que a melhor parte dos
anos escape sem nenhum dos frutos das letras? O terreno recém-
arroteado deve ser ocupado com algum produto, pelo menos, para
que, sem cultivo, não nasça nele o joio. Ora, é absolutamente
necessário que produza algo. Da mesma forma a mente da criança, se
não for logo ocupada com ensinamentos frutíferos, cobrir-se-á de
vícios. O vaso de barro recende o odor do líquido com que foi enchido
pela primeira vez e desaprende com di culdade. Mas se pode
preservar um vaso de barro recente e vazio para o líquido que quiseres.
A mente produz bons frutos, se lançares nela uma boa semente, ou, se
a negligenciares, será ocupada por coisas inúteis e que deverão ser logo
extirpadas. Não lucrou pouco aquele que fugiu do prejuízo. Tampouco
contribuiu pouco para a virtude aquele que lançou fora o vício.

***

Mas por que alongar-me? Queres ver qual a importância de formar-


se ou não cedo para a erudição? Observa o quanto se sobressaíram os
antigos ainda na or da idade e como hoje são estéreis os que
envelheceram nos estudos. Ovídio escreveu elegias amorosas quando
era bastante jovem. Que velho conseguira fazer a mesma coisa
atualmente? Que adolescente foi Lucano, declaram-no as suas obras
literárias. Donde vem isso? Ora, levado para Roma quando não tinha
mais do que seis meses de idade, foi logo con ado a dois gramáticos
muito ilustres, Palemo e Cornuto. Teve como companheiros de
estudos Saleio Basso95 e Aulo Pérsio, um célebre como historiador, o
outro como poeta satírico. Naturalmente é daí que vem aquele saber
enciclopédico96 perfeito sob todos os aspectos e a eloqüência tão
admirável em um jovem que na poesia se destaca não menos como
excelente orador do que como poeta. Tampouco faltam ao nosso
tempo exemplos de uma feliz educação, embora sejam mais raros, e
isso em ambos os sexos. Poliziano celebrou o gênio da virgem
Cassandra. Ora, que há de mais admirável do que Orsini, um menino
de onze anos de idade? Com efeito, em uma carta absolutamente
elegante, o mesmo homem recomendou a memória do menino à
memória dos séculos. Quão poucos homens encontrarias hoje que
poderiam recitar duas cartas ao mesmo tempo a dois secretários de
modo que em cada uma as frases estivessem coesas e em nenhum
momento escapasse um solecismo? Aquele menino o fazia em cinco,
mesmo que os assuntos lhe fossem dados de improviso, e o realizava
sem preparação prévia. Ao ver isso, alguns, julgando que tal coisa
excede as forças humanas, atribuem-no à magia. Com efeito, é por
meio de magia que isso acontece, mas se trata de um feitiço e caz: ser
con ado precocemente a um professor douto, bom e diligente. A
poção poderosa é aprender desde cedo com eruditos e entre eruditos
as coisas mais excelentes. Foi por meio de procedimentos mágicos
dessa natureza que Alexandre, o Grande, ainda adolescente, tinha
concluído, além da retórica, o estudo de todas as partes da loso a, e,
se o amor pelas guerras e o encanto pelo poder não tivessem
arrebatado o seu espírito, poderia ter sido o primeiro entre os maiores
lósofos. Por meio dos mesmos sortilégios o adolescente Júlio César
foi tão vigoroso na eloqüência e nas disciplinas da matemática; a maior
parte dos imperadores, Cícero, Virgílio e Horácio se sobressaíram
tanto ainda na or da idade não só pelo saber, mas também pela
eloqüência, porque, logo nos primeiros anos, aprenderam com os pais
e com as amas-de-leite a elegância do falar e com os maiores eruditos,
as artes liberais, como a poética, a retórica, a história, o conhecimento
da Antigüidade, a aritmética, a geogra a, a ética, a política e as
ciências naturais.97

***

Mas e quanto a nós? Retemos os nossos meninos em casa além da


puberdade e, corrompidos pelo ócio, pelo luxo e pela moleza, com
di culdade, en m, os enviamos a uma escola pública. Lá, se tudo der
certo, degustam um pouco de gramática; em seguida, tão logo tenham
aprendido a exionar as palavras e a unir corretamente o substantivo
ao adjetivo, concluem os estudos de gramática e são conduzidos à
confusa dialética, que precisam desaprender mesmo que tenham
aprendido a falar corretamente. Mas era pior aquela época, quando eu
era criança, que torturava os meninos com modis signi candi98 e
questiúnculas ex qua vi,99 não ensinando outra coisa senão a falar mal.
Com efeito, aqueles professores, a m de não parecerem estar a ensinar
coisas pueris, obscureciam-nas com di culdades gramaticais,
dialéticas e metafísicas, naturalmente para que, fora de tempo, já mais
velhos e depois das disciplinas mais avançadas, aprendessem a
gramática, algo que vemos acontecer hoje com alguns teólogos mais
sensatos: depois de tantas láureas, depois de tantos títulos, quando já
não se lhes permite ignorar o que quer que seja, são forçados a
retornar aos livros que se costumam ler às crianças. Não os censuro: é
melhor que se aprenda tarde o que é necessário conhecer do que
nunca. Meu Deus, que tempos eram aqueles quando, com grande
pompa, se narravam aos jovens os dísticos de João de Garlandia por
meio de comentários custosos e prolixos! Quando se consumia uma
grande parte do tempo com versinhos tolos que deviam ser ditados,
repetidos e examinados! Quando se aprendiam de cor o Florista100 e o
Floretus!101 Na verdade, sou da opinião de que Alexandre de Villedieu
deva ser contado entre os toleráveis. Ademais, quanto tempo se perdia
com a sofística e com os labirintos supér uos dos dialéticos? Para não
me alongar, como era confusa a forma com que se ensinavam todas as
disciplinas e como era incômoda a maneira com que cada professor,
para ostentar-se, logo no início en ava nos alunos aquelas coisas
di cílimas, por vezes também fúteis! Ora, nem sempre algo é
admirável porque é difícil, como jogar um grão de mostarda de longe e
fazê-lo passar pelo buraco de uma agulha: certamente é algo di cílimo,
mas estúpido; assim como atar e desatar nós cassióticos:102 coisa
certamente de trabalhosa sutileza, mas inútil. Acrescente-se a isso o
fato de que às vezes essas coisas são ensinadas por homens iletrados
ou, o que é pior, mal letrados; por vezes, por homens indolentes e de
mau-caráter, aos quais o salário vem muito antes do desenvolvimento
dos alunos. Visto que a educação geral é assim, admiramo-nos de que
somente poucos alcancem a erudição antes da velhice? A melhor parte
dos anos se perde no ócio e nos vícios; contaminados por eles,
dedicamos uma porção mínima do tempo aos estudos e a maior parte
dele aos relacionamentos amorosos, aos banquetes e aos jogos. E a
uma matéria-prima ruim soma-se um artista nada melhor que ou
ensina frivolidades, ou ensina coisas que devem ser desaprendidas.
Depois disso tudo, alegamos como pretexto a fragilidade da idade, o
caráter ainda indócil, o progresso pequeno e muitas outras coisas,
quando, na verdade, todo o mal deve ser imputado a uma educação
ruim.

***

Não tomarei o teu tempo com um discurso prolixo. Somente apelarei


para essa tua prudência, tão perspicaz nas demais coisas. Que ela
considere que bem precioso é o lho e que coisa variada e trabalhosa é
a erudição, mas ao mesmo tempo o quanto é admirável, e como é
grande a habilidade da inteligência infantil para aprender todas as
coisas, como é grande a vivacidade da mente humana, como se
aprendem com facilidade as coisas que são excelentes e conformes à
natureza, máxime se forem ensinadas de forma lúdica por homens
cultos e afáveis. Ademais, como se agarram rmemente no espírito
inculto e vazio aquelas coisas de que primeiramente fomos
impregnados e que, quando somos mais velhos, não só são mais
difíceis de serem aprendidas, mas também são esquecidas mais
rapidamente. Além disso, como o tempo é valioso e o seu dispêndio
irreparável, qual a importância de começar cedo e de tratar todas as
coisas no devido tempo, do que é capaz a constância, como cresce bem
o monte de Hesíodo mediante o acréscimo de coisas bem pequenas,
como os anos são passageiros, como a juventude é atarefada e a velhice
indócil. Se re etires nessas coisas, nunca permitirás que, não digo sete
anos, mas nem sequer três anos da vida do teu lho se percam, anos
estes em que, qualquer que seja o seu progresso, poderia preparar-se
ou instruir-se para a erudição.

Eis o que eu tinha para dizer-te.


O MÉTODO DE ESTUDO
De ratione studii
O método de estudo
A Pierre Vitré, exímio professor das artes liberais, saudações da parte
de Erasmo de Roterdã.

Caro e dulcíssimo Pierre, certamente não só percebes com agudeza,


mas também julgas com gravidade e verdade que importa muitíssimo
com que método e ordem empreendes algo, e que isso é da maior
relevância em todas as coisas, mas especialmente nos estudos das
belas-letras. Acaso não vemos que, se empregares a tecnologia, pesos
enormes são levantados com um mínimo de esforço e que de outra
forma não poderiam mover-se por nenhuma força? Do mesmo modo,
também na guerra não importa tanto com quantas tropas e com
quanta força atacas o inimigo quanto com quão bem alinhado exército,
com que planejamento e com que ordem começas a batalha. E os que
conhecem os atalhos chegam muito mais rapidamente ao destino do
que os que seguem um rio como guia, como diz Plauto,103 e,
desprezando as palavras de Pitágoras, tomam as vias principais104 ou
ainda são levados de um lado para o outro pelas várias sinuosidades
das andanças aventurosas. Assim, pedes que te prescreva uma ordem e
um caminho para os estudos de modo que tu, seguindo-o tal qual o
de Ariadne, não só consigas viver nos labirintos dos autores sem errar,
mas também elevar-te à mais alta erudição, ou cuidar mais dos estudos
de outros, os quais tu educas nas belas-letras, visto que praticamente já
chegaste ao cume da erudição. Certamente, na medida das minhas
forças, não obedecerei de mau grado a um homem tão amigo que, se
pedisse qualquer coisa, seria ilícito negá-la, quanto mais uma coisa tão
honesta e frutífera. Se julgares que este nosso conselho te foi útil em
algo, caberá à tua boa-fé indicar o caminho com o dedo também a
outros que se esforçam em progredir nas belas-letras.

   ,    



Em primeiro lugar, o conhecimento como um todo parece dividir-se
em duas partes: o conhecimento das coisas e o das palavras. O
conhecimento das palavras é anterior, o das coisas é mais importante.
Mas enquanto alguns se apressam em aprender as coisas com os pés
sujos,105 como dizem, negligenciam o cuidado com a linguagem e,
tendo ambicionado mal uma vantagem, incorrem em um enorme
prejuízo. Com efeito, visto que não se conhecem as coisas, senão por
meio dos sinais das palavras, quem não conhecer a fundo a essência da
linguagem necessariamente será míope, enganar-se-á e delirará a cada
passo também no juízo das coisas. Por m, verias que não há ninguém
que mais so sme por toda a parte sobre ín mas sutilezas verbais do
que os que se vangloriam de deixar de lado as palavras e contemplar a
realidade em si. Por esse motivo, em ambos os gêneros deve-se
aprender desde cedo o que é o mais excelente e, certamente, com os
melhores. Com efeito, que há de mais tolo do que aprender com
grande esforço o que posteriormente serás forçado a desaprender com
um esforço maior ainda? Ora, não se aprende nada mais facilmente do
que aquilo que é reto e verdadeiro. Porém, se o mal xar-se alguma vez
na inteligência, é espantoso dizer como é impossível arrancá-lo.

Portanto, a gramática reivindica para si o primeiro lugar, e se deve


ensiná-la logo às crianças sob duas modalidades, a saber, a grega e a
latina. Não só porque parece que quase tudo que é digno de ser
conhecido foi transmitido nessas duas línguas, mas também porque
uma tem a nidade com a outra, de modo que ambas podem ser
aprendidas mais rapidamente de forma concomitante do que uma sem
a outra; em todo caso, do que a latina sem a grega. Quintiliano prefere
que iniciemos pelo grego, mas de tal forma que, tendo-o aprendido,
não se passe um intervalo longo para que o latim suceda a ele. Na
verdade, adverte que ambas devem ser mantidas com a mesma
diligência e que, assim, se dará que uma não cause obstáculos à outra.
Portanto, devem-se assimilar os rudimentos de ambas as línguas não
só precocemente como também de um excelente professor. Se por
acaso não houver um disponível, então, como a segunda melhor coisa,
se deve certamente fazer uso dos melhores autores, os quais sem
dúvida eu gostaria que fossem poucos, mas criteriosamente
selecionados. Entre os gramáticos gregos não há ninguém que não
atribua a Teodoro de Gaza o primeiro lugar; o segundo, em minha
opinião, Constantino Láscaris reivindica para si com justiça. Entre os
latinos mais antigos, Diomedes. Entre os mais recentes não vejo muita
diferença, a não ser pelo fato de que Nicolau Perotti parece ser o mais
diligente, mas nada de extraordinário. Ora, assim como eu admito que
preceitos dessa natureza sejam necessários, da mesma forma eu
gostaria que na medida do possível fossem mínimos, desde que
excelentes. Nunca aprovei o comum dos professores primários que,
para inculcá-los nos alunos, os retém por muitos anos.

Ora, a melhor maneira de adquirir a verdadeira habilidade de falar


corretamente é não só no diálogo e no convívio com as pessoas que
falam com correção, mas sobretudo na leitura constante dos autores
eloqüentes; dentre eles, devem ser assimilados em primeiro lugar
aqueles cujo discurso além de sumamente escorreito, também deleita
os aprendizes por certo encanto do assunto. Com efeito, nesse gênero
eu atribuiria o primeiro lugar a Luciano, o segundo a Demóstenes e o
terceiro a Heródoto. Por outro lado, entre os poetas, eu concederia o
primeiro lugar a Aristófanes, o segundo a Homero e o terceiro a
Eurípides. Na verdade, eu daria até o primeiro lugar a Menandro, mas
não temos as suas obras. Novamente, entre os latinos que mestre
ensina com mais proveito a falar do que Terêncio? Puro, elegante e
próximo da fala do dia-a-dia; ademais, agradável à juventude pelo
próprio tipo de assunto. Caso alguém julgue que a ele devem-se
acrescentar algumas comédias de Plauto que estejam livres de
obscenidades, certamente em nada me oponho. O segundo lugar será
de Virgílio, o terceiro de Horácio, o quarto de Cícero e o quinto de
Júlio César. Se alguém julgar que Salústio deve ser incluído, não
contenderei muito com essa pessoa; com efeito, penso que esses
autores sejam su cientes para o conhecimento de ambas as línguas.
Ora, não me agradam aqueles que consomem toda a vida na leitura
desses autores, e mesmo na de quaisquer autores, para esse proveito,
considerando imediatamente como criança aquele a quem um
pequeno escrito escapar.
Portanto, adquirida a habilidade da linguagem, senão faustosa, ao
menos correta, deve-se em seguida conduzir o espírito para a
compreensão das coisas. Embora mesmo desses autores que lemos
com o objetivo de aprimorar a linguagem também se obtenha de
passagem um conhecimento não medíocre das coisas, contudo
tradicionalmente deve-se buscar nos autores gregos praticamente toda
a ciência das coisas. Pois de onde, en m, hauririas de modo mais puro,
rápido e agradável, senão das próprias fontes? Mas em que ordem se
devem aprender as disciplinas e com que professores de preferência,
mostrá-lo-emos alhures talvez de forma mais apropriada.
Entrementes, retornemos aos estudos da primeira idade. Assim sendo,
para que colhas desses autores, nos quais dissemos que se deve
procurar a riqueza da linguagem, frutos não só mais rapidamente, mas
também mais abundantes, penso que devas ler com diligência Lorenzo
Valla, que escreveu com a máxima elegância sobre a elegância da
língua latina. Auxiliado pelos preceitos desse autor, perceberás não
poucas coisas por ti mesmo. Ora, não gostaria que te colocasses a
serviço dos preceitos de Lorenzo em todos os aspectos, como um
escravo. Também ajudará se decorares as guras gramaticais106
ensinadas por Donato e Diomedes, se retiveres todas as regras e
padrões da poesia, se tiveres à mão o essencial da retórica, isto é, as
proposições, os tópicos comuns, os ornamentos, as ampli cações e as
fórmulas de transição.107 Com efeito, essas coisas contribuem não só
para o espírito crítico, mas também para a imitação.

Portanto, munido dessas coisas, ao ler os autores com atenção,


observarás se aparece alguma palavra notável, alguma coisa dita de
modo arcaico ou novo, algum argumento encontrado de forma sutil
ou tratado com habilidade, algum ornamento retórico admirável,
algum provérbio, algum exemplo ou alguma frase digna de ser
guardada na memória. Esse trecho deve ser destacado com alguma
nota apropriada. Ora, não somente se devem usar várias notas, mas
também adequadas, de modo que instantaneamente alertem do que se
trata. Se alguém decidir que a isso se deve adicionar a dialética, não
me oporei muito, contanto que a aprenda com Aristóteles, e não com
esse tipo tagarela de so stas, nem, por outro lado, que estacionado
nisso e como que envelheça nas rochas das sereias, como diz Aulo
Gélio.

Ora, entrementes te lembrarás de que o estilo108 é o melhor mestre de


retórica. Portanto, ele deverá ser diligentemente exercitado na poesia,
na prosa e em todo tipo de tema. Tampouco se deve descuidar da
memória, o tesouro da leitura. Embora eu não negue que ela possa ser
auxiliada por lugares109 e imagens, entretanto uma excelente memória
consta principalmente de três coisas: compreensão, ordem e diligência.
Com efeito, uma boa parte da memória consiste em ter compreendido
algo profundamente. Em seguida, a ordem faz com que reconduzamos
à mente, como que por poslimínio,110 mesmo aquilo que alguma vez
tiver caído no esquecimento. Finalmente, a diligência é de suma
importância em todas as coisas, não só nesse aspecto. Portanto, deve-
se repassar com mais atenção e freqüência as coisas de que queres
lembrar-te; em seguida, nós mesmos devemos fazer um exame delas,
de modo que seja restituído aquilo que porventura tiver escapado.
Embora seja demasiado minucioso, contudo não é indigno que se
advirta que ajudará não pouco se aquelas coisas cuja memória é
decerto necessária, porém um pouco difícil, como a dos lugares
ensinados pelos cosmógrafos, a dos pés da métrica poética, a das
guras gramaticais, a das genealogias e assim por diante, desenhadas
em quadros na medida do possível da forma mais breve e bonita,
forem penduradas nas paredes do quarto, para que quem expostas
por toda parte até aos que estão a fazer outras coisas. Da mesma
forma, se houver coisas ditas de modo breve, porém notável, como
apotegmas, provérbios e frases, tu as inscreverás no início e no nal de
cada caderno, algumas tu insculpirás nos anéis e nas taças, algumas tu
pintarás sobre as portas e mesmo nos vitrais, para que em nenhum
lugar deixe de ir ao encontro dos olhos o que contribuir para a
erudição. Ora, embora todas essas coisas pareçam insigni cantes em si
mesmas, contudo reunidas em um único acervo aumentam com lucro
o tesouro do saber, de modo algum deve ser deixado de lado τῶ εἰς
ἄφενον σπεύδοντι111 (tó eis áfenon spêudonti), isto é, por quem se
apressa por enriquecer-se com esses bens. Por m, não contribuirá
muito somente para um único objetivo, mas para todos ao mesmo
tempo, se também ensinares outros com freqüência. Em nenhuma
outra ocasião, pois, perceberás melhor o que entendes e o que não
entendes. Ademais, enquanto ocorrem ao que explica e disserta
algumas coisas novas, não há nada que não se xa profundamente no
espírito.

      

Mas vejo que desejas que também mencionemos algo sobre o método
de ensino. Bem, que se faça a vontade de Vitré, embora eu veja que
Quintiliano tenha dado preceitos sobre essas coisas com a máxima
diligência, de modo que escrever sobre elas depois dele parece algo
absolutamente impudente. Portanto, quem quiser educar alguém
cuidará para que ensine logo o que é excelente; ora, para que ensine o
que é excelente de forma corretíssima é preciso que saiba tudo ou, se
isso for negado à inteligência humana, ao menos os fatos mais
importantes de cada disciplina. Nesse aspecto, não me contentarei com
aqueles dez ou doze autores, mas exigirei aquele círculo de
conhecimentos,112 de modo que mesmo quem se prepara para ensinar
as coisas mais elementares não ignore nada. Portanto, deverá vaguear
por todo tipo de escritores de modo que leia primeiramente cada um
dos melhores, mas que não deixe de degustar nenhum autor, mesmo
que não seja muito bom. E para que faça isso com maior fruto, que
tenha de antemão preparados certos tópicos, categorias e fórmulas a
m de que, em todo lugar que lhe ocorrer algo que deva ser anotado,
seja acrescentado à sua devida categoria. Ora, de que forma isso deva
ser feito, demonstramo-lo na segunda parte do De copia.113 Mas se a
alguém faltar tempo livre ou uma grande quantidade de livros, Plínio,
o Velho, por si só fornecerá uma enorme quantidade de coisas;
Macróbio e Ateneu, muitas coisas; Aulo Gélio, coisas variadas.
Entretanto, deve-se acima de tudo correr às fontes mesmas, ou seja,
aos gregos e aos antigos. Ensinarão loso a com a máxima excelência
Platão e Aristóteles; também o discípulo deste, Teofrasto; por m,
Plotino, in uenciado por um e por outro. Entre os teólogos, depois das
Sagradas Escrituras, não há ninguém melhor do que Orígenes,
ninguém mais sutil e agradável que Crisóstomo, ninguém mais
venerável que Basílio. Entre os latinos, existem ao menos dois notáveis
nesta área: Ambrósio, admirável nos simbolismos, e Jerônimo,
extremamente versado nas Sagradas Letras. Mas se não houver tempo
livre para deter-se em cada um deles, contudo julgo que todos devam
ser degustados; no momento não é razoável compor um catálogo
deles. Certamente, em razão da exposição114 dos poetas, que têm o
costume de temperar os seus escritos com toda sorte de saberes, deve-
se dominar uma grande quantidade de mitos. Donde a requisitarias de
preferência, senão de Homero, pai de todos os mitos? Todavia, as
Metamorfoses e os Fasti de Ovídio não serão de pouca importância,
mesmo que escritos em latim. Deve-se dominar a cosmogra a, que
também é útil na história, para não dizer nos poetas. Ensina-a com
muita concisão Pompônio Mela, com muita erudição Ptolomeu, com
muita diligência Plínio. Ora, Estrabão115 não trata somente disso. Aqui
a parte mais importante é observar qual a correspondência entre os
nomes de montes, rios, regiões e cidades correntemente admitidos e os
antigos. Deve-se ter o mesmo cuidado com os nomes de árvores,
plantas, animais, instrumentos, roupas e pedras preciosas. É
impressionante como o comum dos professores primários não entende
nada sobre eles. O conhecimento dessas coisas se obtém em parte com
os diversos autores que escreveram sobre a agricultura,116 a arte da
guerra,117 a arquitetura,118 a culinária,119 as pedras preciosas, as plantas
e as propriedades dos animais. Embora Júlio Pólux120 tenha ensinado
magistralmente sobre os nomes das coisas — oxalá os tivesse separado
tão cuidadosamente121 quanto os reuniu ricamente — em parte com
base na etimologia, em parte com base nas línguas que preservam até
os nossos dias os vestígios manifestos de um idioma antigo e
incorrupto, como a dos bizantinos, a dos italianos e a dos espanhóis,
pois o falar dos franceses degenerou mais. Deve-se ter o domínio das
coisas relativas à Antigüidade, que se obtém não somente com os
autores do passado, mas também com as moedas antigas, com as
inscrições e com as pedras. Deve-se aprender de cor também a
genealogia dos deuses: os mitos estão recheados disso por toda a parte.
Depois de Hesíodo, Bocácio122 a ensinou com mais felicidade do que se
esperaria da sua época. Não se deve ignorar a astronomia, sobretudo a
de Higino, pois os poetas a salpicam nas suas criações por todos os
lados. Devem-se dominar a essência e a natureza de todas as coisas,
visto que é daí que costumam tomar de empréstimo analogias,
epítetos, comparações, imagens,123 metáforas e outras guras de
linguagem desse tipo. Ademais, se alguém quiser explicar Prudêncio,
entre os cristãos o único poeta verdadeiramente eloqüente, é preciso
que conheça a fundo as Sagradas Escrituras. Finalmente, não há
nenhum saber, nem o da arte da guerra, nem o da agricultura, nem o
da música, nem o da arquitetura, que não seja útil aos que assumem a
empreitada de explicar os poetas ou os oradores antigos. Mas vejo que
há muito franzes a testa. Dizes: “Certamente tu impões um fardo
imenso também ao professor primário”. Sobrecarrego, sim, mas
somente a um, a m de libertar o maior número possível. Quero que
um só leia tudo para que todos não tenham que ler tudo.124

Ora, sobre a formação da expressão oral das crianças e o ensino das


formas das letras como que por meio de brincadeiras e jogos,
Quintiliano fez recomendações su cientes. Com efeito, após o ensino
dos primeiros elementos, eu preferiria que a criança fosse chamada de
imediato para o exercício da retórica. Na verdade, uma vez que dentro
de muito poucos meses essa idade reproduz os sons de qualquer língua
bárbara, o que impede de fazer-se o mesmo na língua grega ou na
latina? Mas isso não tem lugar em um grande grupo de crianças e
requer a companhia domiciliar de um preceptor. Embora também na
escola primária o professor deva esforçar-se para falar com a máxima
correção possível, quer dirija a palavra a vários, quer a um só em
particular. Que explique algumas coisas de passagem e exorte a que
imitem. Que os elogie algumas vezes enquanto falam, se algo for dito
de modo bastante conveniente, ou que os corrija quando errarem. Isso
fará com que eles também se acostumem a falar com mais
circunspeção e esmero e observem com mais atenção o professor
enquanto fala. Também ajudará se, propostas pequenas recompensas
ou punições, como que por uma lei forem estimulados a que também
eles próprios se corrijam mutuamente. Além disso, o preceptor elegerá
alguns dos alunos mais avançados para que encerrem uma
controvérsia. Tampouco será sem proveito propor aos meninos, com
algumas fórmulas, que linguagem devem usar nas brincadeiras, nas
reuniões e nas refeições. Precisam ser de tal modo cultas que sejam ao
mesmo tempo, não só fáceis, mas também agradáveis. Ademais, esse
mestre diligente, douto e de juízo penetrante não sentirá incômodo
em, reunidos todos os preceitos dos gramáticos, escolher alguns não
só dos mais simples, na medida do possível, mas também dos mais
breves, estabelecida em seguida a ordem mais cômoda possível.

Depois de ensinar essas coisas, que os alunos sejam imediatamente


levados a algum autor sumamente adequado para esse objetivo e ao
hábito de falar e escrever. Neste momento, o professor inculcará com
diligência nos alunos os ensinamentos transmitidos anteriormente,
conforme surgirem, e os paradigmas, aos quais também acrescentará
algo, como que já então preparando para coisas mais complexas. Em
seguida, devem ser exercitados nos tópicos. Neles se deve, antes de
tudo, cuidar para que não sejam — o que costuma acontecer — de
senso tolo ou de linguagem insossa, mas que tenham algum aforismo
engenhoso e elegante, e que ele não seja muito incompatível com a
inteligência das crianças, de modo que enquanto se distraem também
aprendam ao mesmo tempo algo que há de ser útil nos estudos
superiores. Portanto, que tenha um tema que propor às crianças ou
uma história memorável. São desse tipo os seguintes: “O ardor
precipitado de Marcelo arruinou o Estado romano; a hesitação
prudente de Fábio o restabeleceu”. Embora aqui esteja subentendido
também um aforismo, naturalmente, que conselhos precipitados
costumam ter resultados pouco felizes. Da mesma forma: “Seria difícil
avaliar qual dos dois foi mais estulto, se Crates, que jogou o ouro no
mar, ou Midas, que julgou que nada era melhor do que o ouro”.
Igualmente: “A eloqüência imoderada foi a destruição de Cícero e
Demóstenes”. Ademais: “Nenhum louvor pode igualar-se aos méritos
do Rei Codro, que acreditou que a salvação dos cidadãos devia ser
remida com a perda da sua própria vida”. Mas não haveria muita
di culdade de obter uma grande quantidade desse tipo dos
historiadores, sobretudo de Valério Máximo. Ou que tenha um mito,
como: “Hércules adquiriu para si a imortalidade ao derrotar monstros.
As Musas só se comprazem com as fontes e os bosques: sentem repulsa
pelas cidades enfumaçadas”. Ou um apólogo, como: “Ensinou
corretamente a cotovia que não se deve con ar aos amigos um negócio
que podes realizar por ti mesmo”. E ainda: “Todos vêem o alforje que
está pendurado no peito; o que pende das costas, ninguém o vê”.
Ademais: “Era sensata a raposa que preferiu reter as moscas já quase
saciadas a, dispensadas estas, admitir as vazias e sedentas que
beberiam o que lhe restasse de sangue”. Ou um apotegma, como:
“Discordava muito do comum dos homens da nossa época aquele que
preferiu um homem sem dinheiro ao dinheiro sem um homem”.
Ademais: “Com razão Sócrates despreza aqueles que não comem para
viver, mas que vivem para comer. Acertadamente não aprovou Catão
aqueles que sabem mais pelo paladar do que pela inteligência”. Ou um
provérbio, como: “Que o sapateiro não vá além das sandálias”;125 e
“navegar para Corinto não é para qualquer um”. Com efeito, depois da
publicação de tantos adágios, nós zemos com que não fosse difícil
encontrá-los.126 Ou um aforismo, como: “Nada custa mais caro do que
aquilo que se adquire por meio de súplicas”. E: “A complacência gera
amigos; a verdade, o ódio”. Também: “Amigos que estão longe não são
amigos”. Ou uma propriedade notável de uma coisa qualquer, como:
“O ímã atrai para si o ferro; a naa, o fogo”. Ademais: “Tal é a natureza
da palmeira que, colocado um peso sobre ela, não só não se rebaixa ao
chão, como também se esforça em pôr-se na vertical e se ergue mais
alto”. Ademais: “É admirável a habilidade do choco, que muda a cor
segundo a aparência do solo subjacente para driblar as armadilhas do
pescador”. Ou uma gura notável, por exemplo, a gradação: “As
riquezas dão origem ao luxo; o luxo, ao excesso; o excesso, à crueldade;
a crueldade, ao ódio de muitos; o ódio, à destruição”. Ou uma analogia,
como: “Da mesma forma que acontece com o ferro — se o usas, gasta-
se pelo uso; se não o usas, é devorado pela ferrugem — assim também
se passa com a inteligência — se a usas, consome-se pelo trabalho; se
não a usas, é mais prejudicada pelo ócio e pelo abandono”. Ou uma
alegoria, como: “Não se deve acrescentar fogo ao fogo, não se deve
acrescentar óleo ao incêndio”. Ou um quiasmo, como: “Não julgo que
sejas assim porque te amo muito, mas te amo muito porque julguei
que fosses assim”. Ou uma distribuição: “É tolo demais para que possa
calar-se, infantil demais para que possa falar, simples demais para que
possa mentir, sério demais para que o queira”. Mas me é su ciente
apenas tê-lo indicado. Ou alguma elegância requintada: não é
necessário apresentar exemplos disso. Ora, nada impede que várias
comodidades literárias ocorram em um mesmo discurso, como o
aforismo, a história, o provérbio e a linguagem gurada. Portanto, o
preceptor, que deve encontrar-se constantemente entre os bons
autores, colherá em toda parte como que ores desse tipo127 e, após tê-
las selecionado, as proporá às crianças; ou ainda as alterará para uma
forma tal que estejam adaptadas à sua capacidade de compreensão.

Quando, mediante essas abordagens, o menino tiver progredido a


certa habilidade no uso da linguagem, então, se parecer oportuno, que
seja levado aos preceitos mais complexos da gramática, que devem ser
ensinados de tal forma através de tópicos e categorias que em primeiro
lugar sejam apresentados os aspectos mais simples e de forma breve.
Depois, quando a inteligência amadurecer de alguma forma, será
preciso, assim, apresentar cada um dos aspectos mais complexos nos
seus respectivos tópicos. Podes tomar um modelo da gramática de
Teodoro de Gaza de como é esse sistema. Tampouco eu desejaria que
se detivessem por muito tempo nisso, mas que logo fossem
conduzidos aos autores de maior peso, especialmente se dominarem o
essencial da retórica, do qual tratei, bem como as estruturas e as
formas das poesias.128 Entrementes, devem exercitar-se também em
temas mais difíceis; que busquem um preceptor diligente e douto para
selecioná-los e expô-los. Se ele for mediano, desde que seja modesto,
não se incomodará em solicitá-los de outro mais erudito. Ora, as
estruturas dos temas podem ser geralmente deste modo. Que em um
momento apresente em vernáculo o assunto, porém expressivo, de
uma breve carta que deve ser desenvolvido em latim ou em grego ou
em ambas as línguas.129 Em outro momento, um apólogo; em outro,
uma narrativa curta que não seja insípida; em outro, uma sentença que
conste de quatro partes, com paralelismo de duas partes com as outras
duas ou com a introdução de uma razão.130 Em outro, uma
argumentação, que deve ser tratada nas cinco partes;131 em outro, um
dilema nas duas; em outro, uma ampli cação, como costumam
chamar, que deve ser explicada em sete partes.132 De quando em
quando, como que preludiando a retórica, que tratem um dos
membros separadamente; Aônio escreveu assim o seu
Progymnasmata. De quando em quando, um elogio, uma censura, um
mito, uma analogia, uma comparação. De quando em quando, uma
gura retórica, ou uma descrição, uma distribuição,133 um
dialogismo,134 algumas perguntas e respostas retóricas, uma
caracterização.135 Que recebam algumas vezes a instrução de escrever
certo poema em prosa; outras vezes, a instrução de metri car um texto
em prosa. De vez em quando, que imitem uma epístola de Plínio ou de
Cícero quanto ao vocabulário e ao estilo. De vez em quando, que
expressem repetidas vezes uma mesma sentença variando o
vocabulário e o estilo. De vez em quando, que variem a mesma
sentença ao mesmo tempo em grego e em latim e em verso e em prosa.
De vez em quando, que expliquem a mesma sentença por meio de
cinco ou seis tipos de poemas que o professor estabelecer. De vez em
quando, que remodelem a mesma sentença pela maior variedade
possível de tópicos136 e guras de linguagem. Ora, há um benefício
enorme na tradução dos textos gregos. Por isso, será conveniente que
se exerçam com muita freqüência e com a máxima diligência nisso.
Ora, ao mesmo tempo não só se exercita a inteligência na
compreensão das frases, mas também se analisam profundamente o
vigor e as peculiaridades de cada idioma, e ainda se apreende o que é
comum entre nós e os gregos e o que não o é. Por m, para verter o
tom da língua grega, é preciso que perscrutes todos os recursos da
língua latina. Se no início essas coisas parecerem difíceis às crianças,
em parte se tornarão mais fáceis com a prática, em parte o gênio e a
diligência do preceptor retirarão grande parte da di culdade das
crianças, indicando aquilo que julgar estar acima da capacidade delas.
E que entrementes se misturem com esses exercícios freqüentes
leituras em voz alta137 dos autores, a m de que se forneça material
para imitação. Embora aquele que ensina, proposto um tema, deva
indicar ao mesmo tempo uma boa quantidade de palavras bem como
de guras de linguagem. Logo após isso, que sejam estimulados
também ao trabalho da invenção:138 propostos os argumentos crus de
tal forma que cada um descubra pelos próprios esforços o que servirá
para tratar, ornamentar e enriquecer o tema. E neste ponto requererei
da parte da diligência de um preceptor erudito a seleção e a variedade;
enquanto isso, exibirei uma demonstração. Proporá com bastante
freqüência o argumento de uma epístola suasória, dissuasória,
exortativa, desencorajadora, narrativa, congratulatória, reivindicatória,
recomendatória ou consolatória, e indicará a natureza de cada gênero,
bem como certos pontos e fórmulas comuns; em seguida, também os
peculiares do argumento proposto. Vez ou outra, como declamatório,
dará um tema em diversos gêneros. Por exemplo, se os mandar
censurar Júlio César ou louvar Sócrates no gênero demonstrativo.
Ademais, no gênero suasório: “As coisas excelentes devem ser
aprendidas logo”; “a felicidade não se encontra nas riquezas”; “a mãe
deve nutrir com o próprio leite aquele que pariu”; “uma pessoa não
deve dedicar-se ao estudo do grego, ou deve”; “o homem deve casar-se,
ou não deve”; “deve-se fazer uma peregrinação, ou não se deve”.
Ademais, “Marcos Horácio não merece o suplício”, no gênero judicial.
Ora, aos que entram pela primeira vez nessa arena, aquele que
assumiu a missão de ensinar não sentirá incômodo em indicar, em
primeiro lugar, com quantas proposições pode-se tratar desse
argumento. Além disso, mostrará a ordem das proposições e como
uma depende da outra. Na seqüência, em que razões cada proposição
e em que comprovações cada razão deve sustentar-se. Então, as
circunstâncias e os tópicos donde essas coisas podem ser obtidas.
Depois, com que analogias, contrastes, exemplos, comparações,
sentenças, provérbios, mitos e fábulas cada parte pode locupletar-se.
Que mostre também as guras de linguagem, se algumas parecerem
ter espaço de maneira notável, que tornam o discurso mais penetrante,
mais imponente, mais claro ou mais agradável. Se houver algo para
ampli car, que demonstre o método, seja mediante os tópicos comuns,
seja mediante aqueles modos que Quintiliano distribui em quatro
tipos.139 Se aparecerem as emoções, também advertirá de que forma
devem ser tratadas. Ademais, prescreverá os modos de se fazer
concatenações e que transição haverá de ser a melhor: da introdução à
narrativa, da narrativa à divisão, da divisão à argumentação, da
proposição à proposição, da razão à razão, da argumentação ao
epílogo ou à peroração. Que apresente também algumas fórmulas com
que possam nesse momento iniciar o discurso com comodidade e até
encerrá-lo. Por m, se puder, indicará alguns trechos nos autores
donde podem tomar algo que imitar em decorrência da a nidade dos
temas. Quando isso for feito sete ou oito vezes, então começarão,
como o diz Horácio, “a nadar sem cortiça”,140 e será o su ciente
oferecer um tema cru, tampouco será preciso, como se faz com bebês,
sempre introduzir na boca um alimento previamente mastigado.

Tampouco me desagrada aquele tipo de exercício que vejo ter sido


usado entre os antigos, de modo que se lêem de vez em quando temas
de Homero, Sófocles, Eurípides, Virgílio ou mesmo dos textos de
história. Por exemplo, que Menelau reclame de volta Helena diante da
assembléia dos troianos. Ou que Fênix exorte Aquiles a voltar à
batalha. Ou que Ulisses exorte os troianos a devolver Helena em vez de
enfrentar a guerra. Existem alguns exercícios retóricos desse tipo feitos
por Libânio e Aristides. Além disso, que algum amigo exorte Cícero a
não aceitar a condição oferecida por Marco Antônio, argumento este
que se encontra em Sêneca, o Velho; que Fálaris exorte os habitantes
de Delfos a consagrar o touro de bronze ao deus deles. Pertencem a
esse tipo as cartas que circulam sob os nomes de Fálaris e Bruto. Ao
corrigir, elogiará efusivamente se tiver a impressão de que tenha
havido uma invenção, um desenvolvimento ou uma imitação
demasiado feliz; se algo for omitido ou estiver fora de lugar, se algo for
dito com excesso, de forma muito atenuada, de forma muito obscura
ou ainda com pouca elegância, chamará a atenção e mostrará como
pode ser mudado e ordenará que seja mudado várias vezes. Ora,
atiçará sobretudo o espírito dos alunos com a comparação do
progresso, despertado, por assim dizer, certo espírito de competição
entre eles.

Ademais, na leitura comentada dos autores,141 eu não gostaria que


zesses o que faz hoje o comum dos professores por certa ambição
perversa, de modo que tentes dizer tudo em todos os trechos, mas tão
somente aquilo que é conveniente à explicação do trecho presente, a
não ser que em algum momento pareça oportuno fazer uma digressão
com o objetivo de provocar deleite.142 Se me solicitares um método
também para fazer isso, o seguinte me parecerá certamente o melhor.
Em primeiro lugar, para ganhar as boas graças dos ouvintes, exporá
em poucas palavras os méritos daquele cuja obra tomou para fazer
uma leitura comentada. Em seguida, que mostre o encanto e a
utilidade do argumento. Depois, que explique e distinga, se por acaso
(como acontece na maior parte dos casos) tiver várias aplicações, o
teor do argumento. Em outras palavras, se for explanar uma comédia
de Terêncio (para tomarmos um exemplo), que antes de tudo discorra
brevemente sobre as circunstâncias do autor, o talento e a elegância do
seu uso da linguagem; depois, sobre quanto a leitura de comédias tem
não só de prazer, mas também de utilidade; em seguida, o que signi ca
aquela palavra e qual a sua origem, e também quantos são os tipos de
comédias e quais são as regras da comédia; depois, que explique os
elementos principais do enredo na medida do possível não só com
clareza, mas também com concisão. Que aponte diligentemente o tipo
de verso usado, depois ordene tudo de uma maneira bastante simples
e, em seguida, explique cada coisa de forma detalhada. Após isso, que
chame a atenção diligentemente se houver alguma elegância notável,
algum arcaísmo, algum neologismo, algum helenismo, algo que cou
muito obscuro ou longo, uma sintaxe muito arti cial ou confusa,
alguma etimologia, alguma derivação ou composição143 de que vale a
pena tomar conhecimento, alguma questão ortográ ca, alguma gura
de linguagem, algum tópico de retórica, algum ornamento ou algo
corrompido. Em seguida, que compare passagens análogas dos
autores: se há algo diverso, algo a m, uma imitação, uma alusão, algo
recolhido de fontes diferentes ou tomado de empréstimo, visto que a
maior parte do que é dos latinos proveio dos gregos, e nem sequer
sobre isso se cale. Por m, que venha à loso a e com habilidade
aplique os mitos dos poetas à moral, ou como exemplos; assim, o mito
de Pílade e Orestes para o valor da amizade; o mito de Tântalo para a
execração da avareza. Nisso Eustácio, comentarista de Homero,
auxiliará muito o professor. E assim se fará que (contanto que o
preceptor tenha uma inteligência ágil), mesmo se aparecer algo que
possa contaminar aquela idade, não só não prejudique a moral, como
ainda produza algum benefício, estando o espírito certamente em
parte concentrado nas anotações, em parte desviado para
pensamentos mais elevados. Por exemplo, se alguém tiver a intenção
de fazer a leitura comentada da segunda écloga de Virgílio, que a
prepare com uma introdução apropriada, ou melhor, que proteja o
espírito dos ouvintes de tal modo que diga: a amizade não se forma
senão entre semelhantes, pois a semelhança é a medianeira da mútua
benevolência, por outro lado, a dessemelhança é a mãe do ódio e da
discórdia. Quanto maior, mais verdadeira e mais sólida for a
semelhança, tanto mais rme e mais estreita é a amizade.
Naturalmente, esse é o signi cado de tantos provérbios encontrados
na literatura. “Os bons se achegam aos banquetes dos bons mesmo não
tendo sido convidados”; e “os semelhantes se regozijam entre si”; e “os
iguais se deleitam mutuamente”; e “busca para ti uma esposa da
mesma condição que a tua”; e “pois Deus sempre conduz alguém a
quem lhe é semelhante”; e “a gralha está sempre perto de outra gralha”;
e “os lábios têm alfaces semelhantes”; e “os iguais se reúnem muito
facilmente”; e “um velho se casa com uma velha”; e “um gago entende
melhor outro gago”; e “uma cigarra é cara à outra, e uma formiga à
outra formiga”; e “um cretense se entende com um egineta”.144 Por
outro lado, os tantos provérbios que versam sobre a dessemelhança
não signi cam outra coisa senão que entre aqueles que têm diferentes
condições, diferentes estilos de vida e diferentes interesses a amizade
não se forma em absoluto ou, se vier a formar-se, não se estreita e
rapidamente se desfaz. E por essa razão acontece de o ignorante odiar
o homem letrado; o leigo, o sacerdote; o camponês, o cortesão; o
jovem, o velho. E na mesma classe: o epicureu, o estóico; o lósofo, o
jurista; o poeta, o teólogo; o gago, o eloqüente. Daí quase ter-se
rompido a amizade dos irmãos gêmeos An ão e Zeto, pois um se
dedicava à lira, o outro se regozijava com a agricultura; e se teria
rompido se An ão, lançada fora a lira, não tivesse cedido à
personalidade do irmão. Pelo mesmo motivo esteve viciada a amizade
de Castor e Pólux, e não careceu da infâmia de uma tentativa de
assassinato — embora ambos tivessem saído de um mesmo ovo, de
modo que não poderiam ser mais gêmeos — porque um era pugilista e
o outro se comprazia com cavalos. Daí ter havido um mau
entendimento entre Remo e Rômulo, pois um era de caráter mais
taciturno e severo, o outro mais afável; donde também o nome foi
mudado de Romo para Rômulo.145 Péssimo foi o entendimento entre
Caim e Abel, pois foram atraídos por estilos de vida diversos. Ora, o
mais alto grau de amor é companheiro do mais alto grau de
semelhança, e por isso foi representado pelos poetas, como Narciso
que, anteriormente avesso a todo tipo de relacionamento, tão logo
contemplou a sua própria imagem em uma fonte cristalina,
imediatamente começou a arder de um amor in amadíssimo. Ora, que
pode ser mais semelhante a nós do que a própria imagem? Portanto,
quando um erudito ama outro erudito, um sóbrio, outro sóbrio, um
modesto, outro modesto, um virtuoso, outro virtuoso, ambos não
amam outra coisa, senão a própria imagem no outro, ou seja, a si
mesmos, mas de outro modo. Entretanto, essa semelhança, se estiver
de fato assentada nos bens do espírito, que são verdadeiramente bens,
isto é, na virtude,146 na justiça e na temperança, então nasce uma
amizade da mesma natureza daquelas coisas por meio das quais se
granjeia a amizade, ou seja, honesta, verdadeira, genuína, estável e
eterna. Por outro lado, mostrará que se estiver assentada em coisas
materiais, efêmeras ou mesmo torpes, não é verdadeiramente amizade,
nem deleitável, nem duradoura. Por isso, Platão concebeu duas Vênus,
uma celeste e outra terrena.147 E ainda dois Cupidos, cada um
correspondendo à sua respectiva mãe. A celeste engendra as
verdadeiras formas, e o lho desta infunde os amores verdadeiros e
virtuosos. Entre os bons, o amor é sempre mútuo; entre as pessoas
comuns, geralmente um ama, o outro odeia; um persegue, o outro
trata de fugir. Isso normalmente acontece devido à dessemelhança de
temperamentos e de estilos de vida. Com efeito, é isso que o Cupido
elegantemente ilustra nos poetas, que por vezes transpassa um com
uma seta de ouro, outro, com uma de chumbo, o primeiro para que
ame, o segundo para que sinta repulsa, e nada pode ser mais infeliz do
que esse tipo de amizade. Portanto, Virgílio apresenta nesta écloga
como que um retrato dessa amizade pouco rme. Córidon é
camponês, Aléxis, citadino; Córidon é pastor, Aléxis, cortesão;
Córidon é inculto (pois chama os versos dele de desordenados),
Aléxis, culto; Córidon é avançado em idade, Aléxis, jovem; Córidon é
feio; o outro, belo. Em suma, tudo é diferente. Assim, é próprio do
homem prudente escolher um amigo que esteja em harmonia com o
seu modo de ser, se quiser ser amado reciprocamente. A rmo que se
disser essas coisas como um prefácio, mas na seqüência indicar as
passagens que demonstram a descabida e rústica afetação da
personagem camponesa, creio que nada de indecente virá à mente dos
ouvintes, a não ser que compareça alguém de mente já corrompida.
Ora, essa pessoa não sorveu dali o veneno, mas o trouxe consigo.
Expus esse exemplo de modo mais prolixo a m de que nos demais
casos todos também encontrem para si meios semelhantes com mais
facilidade.

Ademais, ao abordar cada obra, geralmente será interessante


demonstrar qual é a natureza do tema e o que é o mais importante de
observar. Por exemplo, que nos epigramas se louva a brevidade
engenhosa. Depois, apontará os modos de gracejar que ensinam
Quintiliano e Cícero.148 Que esse gênero de expressão se compraz
principalmente com os epifonemas comodamente acrescentados no
nal para deixar um pensamento como que pungente no espírito do
leitor. Que na tragédia devem observar-se sobretudo as emoções, de
ordinário pelo menos as mais intensas. Nesse momento, mostrará em
poucas palavras com que recursos elas são excitadas. Na seqüência, os
argumentos como se fossem parte de exercícios retóricos. Finalmente,
por vezes as descrições dos lugares, das circunstâncias e das coisas
bem como os debates profundos que ocorrem e que devem ser
expressos ora com dísticos, ora com versos isolados, ora com
hemistíquios. Que na comédia deve observar-se antes de tudo a
conveniência149 e a imitação da vida comum e que as emoções são
mais brandas e mais agradáveis do que impetuosas. Mas que se
observa não só a conveniência comum, de modo que os jovens amem,
os proxenetas perjurem, a prostituta adule, o velho repreenda, o
escravo tapeie, o soldado se vanglorie e outras coisas desse tipo, mas
também certa conveniência peculiar que o poeta, de acordo com o seu
arbítrio, atribui aos diferentes personagens. Por exemplo, em Andria,
Terêncio apresenta dois velhos de temperamentos muito diferentes:
Simão é severo e um pouco rabugento, no entanto não é tolo nem
mau; por outro lado, Cremes é gentil e calmo, tem autocontrole em
todas as situações, paci ca tudo na medida do possível, mas é sereno
sem ser idiota. E também dois jovens com caráter distinto: Pân lo é
sensato demais para a sua idade e re exivo, mas bastante áspero, de
modo que podes reconhecê-lo como lho de Simão; em contrapartida,
Carino é infantil, inepto e desprovido de sabedoria. E ainda dois
escravos com personalidades diversas: Davo é matreiro e cheio de
estratagemas, promotor obstinadíssimo de esperanças.
Diametralmente oposto, Bírria é estúpido e nada mais do que fonte
perpétua de desespero para o senhor. Do mesmo modo em Adelfos.
Micião é afetuoso e alegre mesmo quando censura; Dêmea é amargo
mesmo quando afaga. Ademais, não há nada que Ésquino não ouse
fazer devido ao hábito da vida urbana e à con ança de Micião, mas de
tal modo que percebes que é de bom caráter, dedicado ao irmão e el à
sua amada; por outro lado, Ctesifão é um pouco grosseiro e medroso
devido à inexperiência naquelas coisas; Siro é esperto e atrevido e não
há nada que não simule e dissimule, de forma que só a embriaguez
revela os seus disfarces; Dromão é imbecil e obtuso. Contudo, não faz
parte deste intento expor essas coisas pormenorizadamente; para o
presente momento, é su ciente que se tenha mostrado o caminho. Que
nas éclogas advirta tratar-se de uma representação da idade de ouro e
daquele primitivo estilo de vida. Por isso, o que houver ali de
aforismos, analogias ou comparações, é tomado da vida pastoril: as
emoções são simples, deleitam-se com cantigas, aforismos e
provérbios, atraem-se por crendices e presságios. Da mesma forma,
cuidará de chamar a atenção para o que têm de próprio a poesia
heróica, a história, o diálogo, a fábula, a sátira, a ode e os demais
gêneros literários. Em seguida, não sentirá aborrecimento em apontar
quais são as qualidades ou ainda os defeitos de cada autor em temas
individuais, a m de que os jovens se habituem àquilo que é o mais
importante em tudo: a capacidade de emitir juízos. E neste aspecto,
além da técnica e do talento, também será de auxílio ao professor o
opúsculo de Cícero De claris oratoribus150 e as análises críticas sobre os
autores feitas por Quintiliano, Sêneca, o Velho, e Giovanni Antonio
Campani,151 bem como os antigos comentaristas, sobretudo Donato,152
que se ocupou disso de modo especial.

Aqui interessa também a re exão sobre as intenções; por exemplo:


por que Cícero, durante a defesa de Milão, ngiu que estava com
medo? E por que Virgílio enaltece tanto Turno, inimigo de Enéas? E
por que no diálogo de Luciano o médico renegado não prejudica a
madrasta, mas mais a louva, e é mais severo para com o pai do que
para com ela? Mas também isso se estende ao in nito. Ora, alguém há
de pensar que essas coisas são muito trabalhosas. Pelo que me toca,
desejo um professor erudito e treinado por uma vasta experiência. Se
se encontrá-lo, as crianças adquirirão tais conhecimentos até mesmo
com facilidade. Se algumas coisas forem muito duras no início, tornar-
se-ão maleáveis com o progresso nos estudos e o hábito. Certamente,
são coisas excelentes, salvo engano, e convém acostumar-se o quanto
antes com o que é excelente, embora não se devam inculcar essas
coisas todas em todos os momentos, a m de que o intelecto dos
alunos não que sobrecarregado de tédio, mas conforme aparecerem
coisas demasiado importantes. Ora, tampouco o preceptor empregará
menos zelo ao cobrar o que transmitiu do que ao fazer a leitura
comentada. Em todo caso, esse trabalho é pesadíssimo para o
professor, mas utilíssimo para os alunos. Que tampouco cobre só o
plano geral; mas tudo o que lhes for comunicado do que é digno de ser
conhecido, que se acostumem a devolvê-lo com delidade. Ora, que
não os afaste disso uma di culdade que se supera até mesmo no
espaço de um mês. Nunca me agradou que os jovens escrevam tudo o
que for falado, pois desse modo ocorre que o cultivo da memória seja
negligenciado, a menos que alguns queiram tomar poucas coisas em
pequenas notas, e isso durante todo o tempo até que, robustecida a
memória pela prática, não necessitem mais do apoio de um escrito.

Por m, julgo ser de tanta importância para o método apropriado de


ensino que se encontre um preceptor ao menos diligente e culto, que
não hesitaria em correr o risco de prometer que levaria os jovens a
uma eloqüência ainda que mediana em ambas as línguas, contanto que
se me proporcionassem inteligências não absolutamente estéreis, com
menos di culdade e em muito menos anos do que esses professores
primários que arrastam os seus a alguma forma do seu balbucio, ou
melhor, à sua incapacidade de expressar-se. Portanto, que o menino
imbuído desses rudimentos na educação primária se dirija
posteriormente sob bons auspícios às disciplinas superiores e, para
onde quer que se volte o seu interesse, exprimirá com facilidade o
quanto importa ter começado os estudos com os melhores métodos.
Caríssimo Pierre, no momento era isso que tinha para escrever-te
sobre o método de estudo; se te aprouver, usa-o; caso contrário, que ao
menos aceites de bom grado nossa solicitude por tua lealdade.
Somente continua, como o dispuseste, a te dedicares às belas-letras e
abrilhanta a tua França, sob outros aspectos já bastante luminosa,
também com os estudos liberais. Até mais.
DIÁLOGO ENTRE O ABADE E A
MULHER ERUDITA, ANTRÔNIO E
MAGDÁLIA
Colloquium abbatis et eruditae
Diálogo entre o abade e a mulher erudita,
Antrônio153 e Magdália
: Que mobília é esta que vejo aqui?

: Acaso não é elegante?

: Não sei o quanto é elegante, mas certamente é pouco


decente não só para uma moça, mas sobretudo para uma mãe de
família.

: Por quê?

: Porque está tudo cheio de livros.

: Tu, tão longevo, e ainda por cima abade e cortesão, nunca
viste livros nas casas das senhoras nobres?

: Vi-os, mas escritos em francês. Aqui vejo gregos e latinos.

: Por acaso são somente os livros escritos em francês que


ensinam a sabedoria?

: Mas convém às senhoras nobres que tenham algo com


que se entreter nos momentos de ócio.

: Por acaso é lícito somente às senhoras nobres ter


sabedoria e levar uma vida prazerosa?

: Relacionas impropriamente a sabedoria e a vida prazerosa


entre si. Não é coisa de mulher ter sabedoria, mas é próprio das
senhoras nobres levar uma vida prazerosa.

: Acaso viver virtuosamente não é para todos?

: Penso que sim.


: Mas como pode levar uma vida prazerosa quem não vive
com virtude?

: Pelo contrário — como pode levar uma vida prazerosa


quem vive virtuosamente?

: Portanto, tu louvas aqueles que vivem mal, desde que de


forma prazerosa?

: Penso que vivem bem os que vivem de forma prazerosa.

: Mas esse prazer, donde provém — das coisas externas ou


do espírito?

: Das coisas externas.

: Ó abade sutil, mas lósofo crasso! Dize-me: com que


coisas mensuras esse prazer?

: Sono, banquetes, liberdade de fazer o que quiser,


dinheiro, honras.

: Mas se a essas coisas Deus acrescentar a sabedoria, acaso


viverás de forma prazerosa?

: Que coisa chamas de sabedoria?

: Se entenderes que o homem não é feliz senão com os


bens do espírito, isso é sabedoria. Riquezas, honras e linhagem não
tornam ninguém mais feliz nem melhor.

: Eu quero é distância dessa sabedoria!

: Mas e se me for mais prazeroso ler um bom autor do que


o é para ti caçar, beber ou jogar dados, não te parecerei ter vida
prazerosa?

: Não seria vida para mim.


: Não pergunto o que te é mais prazeroso, mas o que
deveria ser prazeroso.

: Eu não gostaria que os meus monges fossem assíduos


freqüentadores de livros.

: Ora, o meu marido o aprova intensamente. Mas por que


motivo, a nal, não o aprovas entre os teus monges?

: Porque percebo que estão menos obedientes. Retrucam


com base em decretos, decretais, Pedro e Paulo.

: Então tu dás ordens que contradizem Pedro e Paulo?

: Desconheço o que eles ensinam. No entanto, não gosto de


monge respondão nem gostaria que algum dos meus soubesse mais do
que eu.

: Isso pode ser evitado assim, se te dedicares a ser o mais


sábio que puderes.

: Não tenho tempo.

: Como assim?

: Porque não me sobra tempo livre.

: Não te sobra tempo livre para ser sábio?

: Não.

: Que te impede?

: As orações longas, a administração da casa, a caçada, os


cavalos, os trabalhos da corte.

: Desse modo, são-te essas coisas superiores à sabedoria?


: Assim nos aconteceu.

: Agora, dize-me o seguinte — se algum Júpiter te desse o


poder de ser capaz de transformar tanto os teus monges como a ti
mesmo no animal que quisesses, acaso transformá-los-ias em porcos e
a ti mesmo em cavalo?

: De modo algum.

: Contudo, assim evitarias que ninguém fosse mais sábio


do que tu.

: Não me importo muito com o tipo de animal que os


monges seriam, contanto que eu fosse homem.

: Acaso pensas ser homem quem não tem sabedoria nem
queira adquiri-la?

: Sou sábio para mim.

: Também os porcos são sábios para si.

: Pareces-me uma dessas so stas, de tal modo tagarelas.

: Não direi o que tu me pareces. Mas por que não te


agradas a mobília?

: Porque as armas da mulher são o fuso e a roca.

: Acaso não é função da mulher casada administrar a casa


e educar os lhos?

: Sim.

: Pensas que se pode administrar algo tão grande sem a


sabedoria?

: Não creio nisso.


: Ora, os livros me ensinam essa sabedoria.

: Em casa tenho 62 monges; no entanto, não encontrarás


nenhum livro no meu quarto.

: Então aqueles monges estão bem cuidados.

: Tolerarei os livros, mas não os latinos.

: Por quê?

: Porque essa língua não convém às mulheres.

: Aguardo uma razão para isso.

: Porque não contribui muito para a preservação da sua


castidade.

: Portanto, os livros escritos em francês, repletos de


histórias as mais frívolas, contribuem para a castidade?

: Há outra coisa.

: Seja o que for, dize-o abertamente.

: Estão mais protegidas dos sacerdotes se desconhecerem o


latim.

: Pelo contrário, daí é que, graças à vossa maneira de


proceder, o perigo é mínimo, visto que trabalhais com todo o
empenho para que ignoreis o latim.

: O povo pensa assim, pois é raro e incomum que uma


mulher saiba latim.

: Por que me citas o povo, que dá péssimos conselhos sobre


aquilo que deve ser bem executado? Por que me citas a usança, mestra
de tudo que é ruim? Devemos habituar-nos ao que há de melhor.
Assim, torna-se comum o que era incomum, agradável o que era
desagradável, conveniente o que parecia inconveniente.

: Estou escutando.

: Acaso não é conveniente que uma mulher nascida na


Alemanha aprenda o francês?

: Sobremaneira.

: Por quê?

: Para que converse com as pessoas que conhecem o


francês.

: Mas julgas que não me é conveniente se eu aprender


latim para que todos os dias dialogue com tantos autores, tão
eloqüentes, tão eruditos, tão sábios, tão leais conselheiros?

: Os livros arrancam às mulheres grande parte de seu


cérebro; embora, de qualquer modo, sobre-lhes pouco.

: Não sei o quanto vos sobra; quanto a mim, por menor
que me seja, preferiria consumi-lo em bons estudos a consumi-lo em
orações recitadas sem disposição, em banquetes que duram a noite
inteira, em esvaziamentos de grandes taças.

: A intimidade com os livros enlouquece.

: Será que não são as conversas dos companheiros de


bebedeiras, dos dissolutos e dos bufos que te enlouquecem?

: Pelo contrário, afastam o enfado.

: Ora, como é que interlocutores tão agradáveis me


enlouquecem?

: É o que dizem.


: A própria realidade, porém, diz outra coisa. Quantos não
são aqueles, postos diante dos nossos olhos, que a bebedeira
desregrada, os banquetes intempestivos, as vigílias de embriaguez e as
paixões tirânicas enlouqueceram?

: De minha parte, certamente não gostaria de ter uma


esposa culta.

: E eu me felicito de ter tido a sorte de casar-me com um


marido diferente de ti; com efeito, a erudição aumentou o meu amor
por ele e o dele por mim.

: Adquire-se a erudição por meio de esforços enormes, e


depois vem a morte.

: Dize-me, ó ilustre senhor, se morresses amanhã,


preferirias morrer mais estulto ou mais sábio?

: Se sem esforço se zesse a sabedoria...

: Se nesta vida nada acontece ao homem sem esforço, e, no


entanto, tudo que se adquiriu, independentemente do tamanho do
esforço com que se o adquiriu, deve ser deixado aqui, por que motivo
nos enfadamos em dedicar um pouco de esforço naquilo que é o mais
precioso que há e cujos frutos acompanham-nos também na outra
vida?

: Ouvi dizer freqüentemente por toda a parte que uma


mulher sábia é duas vezes estulta.

: É certo que se costuma dizer isso, mas da parte dos


estultos. Uma mulher verdadeiramente sábia não parece sábia a si
mesma. Por outro lado, aquela que, embora não saiba nada, parece
sábia a si mesma, esta sim é duas vezes estulta.

: Não sei como isso se dá; assim como a albarda não
convém ao boi, da mesma forma as letras não convêm à mulher.154
: Mas não podes negar que a albarda é mais adequada ao
boi do que a mitra a um asno ou a um porco. Que pensas da Virgem
Mãe?

: As mais excelentes coisas.

: Acaso ela não se ocupava com os livros?

: Ocupava-se, mas não com esses.

: Então que lia?

: As horas canônicas.

: De acordo com qual costume?

: Da Ordem Beneditina.

magdália: Admitamos que isso seja verdade. E quanto a Paula e


Eustóquia,155 acaso não se ocupavam com os livros sagrados?

: Mas isso agora é raro.

: Da mesma forma, outrora era coisa rara um abade


inculto, agora não há nada de mais comum. Outrora os príncipes e
imperadores se destacavam pela erudição não menos do que pela
autoridade. No entanto, tampouco é algo tão raro quanto o julgas.
Existem na Espanha e na Itália não poucas mulheres da alta nobreza
que são capazes de fazer frente a qualquer homem; há as mulheres da
família de omas More156 na Inglaterra; na Alemanha, há as mulheres
da família de Willibald Pirckheimer e da família de Ambrosius
Blarer.157 Assim, se não tomardes cuidado, acontecerá, por m, de
presidirmos as escolas teológicas e de fazermos o sermão nos templos.
Ocuparemos as vossas mitras!

: Que Deus afaste isso de nós!


: Antes caberá a vós afastá-lo. Se continuardes como
começastes, os gansos hão de começar a discursar antes de ter que
aturar-vos como pastores mudos. Vedes que o palco do mundo se
inverte. Ou se abandona o personagem, ou cada um cumpre o seu
papel.

: Como é que eu fui topar com esta mulher? Se vieres nos
visitar algum dia, eu te receberei com mais afabilidade.

: Como?

antrônio: Dançaremos, beberemos muito, sairemos para caçar,


brincaremos e riremos.

: Na verdade, estou com vontade de rir agora mesmo.


NOTAS DE RODAPÉ
1 O adjetivo “liberal” empregado nesta obra não deve ser tomado, em hipótese alguma,
como sinônimo de “costumes frouxos”, “progressismo” ou “coisa relativa ao liberalismo
econômico”, mas, sim, no sentido de “voltado para o aperfeiçoamento da inteligência e do senso
estético e moral”.

2 O título em latim da obra é De pueris statim ac liberaliter instituendis, que em tradução


literal ca Sobre as crianças que devem ser educadas o quanto antes e de forma liberal.

3 Na época com treze anos de idade.

4 Erasmo usa o provérbio latino calcar addere currenti, que signi ca “incentivar”, “estimular”
e outros.

5 Obra de Erasmo dividida em duas partes cujo escopo é ensinar como expressar-se com
mais riqueza e elegância. Na primeira parte, o autor trata da copia verborum, isto é, de como
usar as palavras e as guras de linguagem para adquirir uma capacidade de expressão mais rica;
na segunda, versa sobre a copia rerum, a saber, como ampliar e aprofundar os temas abordados
em um discurso ou redação.

6 William ale, que traiu a con ança de Erasmo.

7 Com efeito, o De pueris statim ac liberaliter instituendis foi concebido como um exemplo
de exercício retórico para integrar o De duplici copia verborum ac rerum.

8 Liber de apologia David e De David interpellatione, ambos de Santo Ambrósio.

9 A saber, de como exercitar a abundância de estilo sobre um tema proposto.

10 O interlocutor é ctício.

11 A imagem é tirada dos versos 361 e 362 da obra Os trabalhos e os dias, de Hesíodo.

12 Trata-se de uma superstição ainda em voga entre os mais velhos na região da Flandres.
Acredita-se que, caso uma grávida leve um susto, haja danos físicos à criança em seu ventre.
Assim, se a gestante for tocada repentinamente por uma pessoa ou um animal, a criança
nascerá ou com uma má-formação, como o lábio leporino, ou com uma marca de formato
idêntico ao do responsável pelo toque, no mesmo local em que houve o contato no corpo da
mãe. Portanto, na hipótese mencionada no texto de uma grávida ser tocada subitamente no
rosto, nada mais lhe restaria, a m de proteger a integridade da criança, senão remover o mais
depressa possível o toque recebido naquela parte visível do corpo e colocá-lo em algum lugar
escondido sob as vestes, conforme o exposto na seqüência.
13 Ditado que versa sobre a di culdade de ensinar algo a uma pessoa de mais idade. Em
português, provérbios de sentido semelhante são: “Burro velho não toma andadura”, “cachorro
velho não aprende truques novos”, entre outros.

14 Também chamada de actio, trata-se aqui da última das cinco partes da retórica clássica no
processo de elaboração do discurso. As outras são a inventio (encontrar o que dizer), a
dispositio (a ordenação dos elementos do discurso), a elocutio (a ornamentação do discurso
tendo em vista coisas como clareza, elegância e correção) e a memoria (a memorização do
discurso). A pronuntiatio, por sua vez, é a apresentação mesma do discurso, o ato de proferi-lo,
atentando-se para a dicção e os gestos adequados.

15 A expressão latina terra marique signi ca, em sentido gurado, “com toda a diligência”.

16 A expressão latina é de lapide emptus e literalmente quer dizer “comprado da pedra”.


Metaforicamente, designa o homem desprezível e de origem obscura. A expressão faz referência
a uma elevação de pedra existente na Roma Antiga onde os escravos eram expostos para a
venda.

17 Virgílio, Geórgicas, iii, 74.

18 Alusão ao célebre verso de Horácio: “Quo semel est imbuta recens, servabit odorem testa
diu” [O vaso de barro novo conservará por longo tempo o odor daquilo de que uma vez se
impregnou].

19 O estilo era uma haste metálica usada pelos antigos para exercitar a escrita em tabuinhas
cobertas com cera. Esse instrumento era pontudo em uma extremidade, para escrever, e
achatado na outra, para apagar.

20 1Tm 2, 15.

21 Pr 10, 1.

22 Trata-se da sí lis.

23 O latim traz aqui thessala mulier, literalmente “mulher tessálica”. Os habitantes da


Tessália, região da Grécia, eram famosos nos tempos antigos por suas poções mágicas e feitiços,
donde, por antonomásia, o adjetivo thessalus signi car muitas vezes “mágico”, “feiticeiro”.

24 Por causa do seu ambiente aprazível e próspero, Alexandria tinha fama na Antigüidade de
efeminar os moços e incliná-los à luxúria e outros vícios. Os servos oriundos de Alexandria,
destarte, eram especialmente requisitados nos banquetes para entreter os convivas com ditos
jocosos e não raro obscenos.

25 Os cães de Malta não serviam nem para a caça nem para a proteção; sua única utilidade
era o deleite dos seus donos.

26 1Cor 15, 33.

27 Erasmo pensa no nome grego do animal.


28 Juvenal, vii, 187–188.

29 Ou, como costumamos dizer em português, “um abraço”, “um aperto de mão”, “meu
muito obrigado”, ou algo semelhante quando insinuamos que não pagaremos nada por algo.

30 Mina, dracma, talento e trióbulo são moedas da Grécia Antiga. A relação entre elas era
aproximadamente a seguinte: 2 trióbulos equivaliam a 1 dracma; 100 dracmas a 1 mina; 600
minas a um talento.

31 Homero, Ilíada, ii, 204.

32 O ditado latino signi ca que, se uma pessoa quiser que algo do seu interesse seja bem
executado, deve cuidar disso pessoalmente.

33 Virgílio, Geórgicas, iii, 72 e ss.

34 Virgílio, Geórgicas, iii, 166 e ss.

35 Horácio, Epístolas, i, 10.

36 A palavra “irmãs” parece ser empregada em sentido gurado para designar pessoas
ligadas entre si por inclinações comuns ou algum laço de parentesco, a menos que se queira
pensar em um possível equívoco do autor.

37 Lélia se casou com Quinto Múcio Cévola, eminente jurista romano, e concebeu dele duas
lhas, ambas chamadas Múcia, pois as meninas romanas daquele período, séculos i e ii antes de
Cristo, recebiam o nome da gens, ou seja, da família, à qual pertencia o pai. A mais nova,
célebre por sua desenvoltura retórica, uniu-se em matrimônio com o orador Lúcio Licínio
Crasso e, assim como sua mãe, teve duas lhas, ambas de nome Licínia. A mais velha,
igualmente louvada pelos seus dotes oratórios, casou-se com Públio Cornélio Cipião Násica.
Do exposto, percebe-se que Licínia foi mais precisamente bisneta de Caio Lélio.

38 Preferimos essa gra a à forma Carbílio de Erasmo.

39 Família de sábios e eruditos da Holanda. Erasmo teve contato principalmente com Jacob
Canter.

40 Habitantes da Frísia, antiga região holandesa.

41 Alusão à brilhante estirpe de soberanas católicas: Isabel, Joana, Maria e Catarina, que se
tornaria célebre por seu casamento com Henrique viii da Inglaterra.

42 A saber, a latina e a grega.

43 Erasmo se refere aqui ao ditado latino In Care periculum facere, que signi ca “testar algo
em um cário”. O sentido do ditado é o seguinte: se for preciso fazer uma experiência arriscada, é
melhor que se o faça em algo ou alguém de pouco valor, pois caso as coisas dêem errado, o
prejuízo será pequeno. Os cários, habitantes da Cária, região hoje localizada na Turquia, eram
conhecidos por seu apreço pela guerra, por sua atuação como mercenários e por seus costumes
considerados bárbaros pelos gregos, por isso se lhes atribuía pouco valor.
44 Personagem da mitologia grega dotado de cem olhos que nunca se fechavam ao mesmo
tempo.

45 Trata-se de Mílon (ou Milão) de Crotona, conhecido por sua força descomunal.

46 A sí lis, como já mencionado acima.

47 Trata-se da comunidade Irmãos da Vida Comum, majoritariamente formada por leigos, e


fundada na Holanda no século xiv. Erasmo chegou a passar um tempo junto dos membros
dessa comunidade.

48 Por schola publica Erasmo entende a escola estabelecida sob uma autoridade pública,
eclesiástica ou estatal, em contraposição à escola fundada e organizada pela iniciativa exclusiva
do seu diretor, cujos métodos de recrutamento de professores e de ensino dão margem a
diversas críticas.

49 O cerne do argumento de Erasmo aqui é que o principal é ofertar às crianças uma


educação verdadeiramente liberal e que as escolas deveriam ter isso como princípio. No
entanto, a maior parte dos professores opta pelo caminho mais prático para lidar com grandes
grupos, isto é, usam da coerção e do medo. Nesse sentido, proporcionar uma educação liberal a
uma só criança em aulas particulares é mais trabalhoso do que conter pelo temor vários alunos
reunidos.

50 Naturais de Egina, ilha da Grécia Antiga.

51 Erasmo salienta a deformação escandalosa do sentido do verbo “humilhar”.

52 Em latim, o termo empregado para designar os lhos e lhas é liberi, palavra


etimologicamente relacionada a “livre”, “liberdade”, “liberal” e outras semelhantes. Assim, a
educação digna dos lhos de um homem livre é a liberal, entendida como a educação da
inteligência, distinta da servil, voltada a trabalhos práticos.

53 Terêncio, Andria, i, 76–77.

54 Fm 1, 10–18.

55 Ef 6, 9.

56 Ef 6, 4.

57 Praça pública na Roma Antiga.

58 Ponteiro metálico mencionado anteriormente.

59 Tiranos célebres na Antigüidade.

60 Teócrito, Idyllia, 15, 90. Erasmo parece valer-se aqui de um jogo de palavras só
perceptível se se tiver diante dos olhos o original grego. Ora, o particípio aoristo πασσάμενος
[passámenos], presente no provérbio, pode vir tanto do verbo πάομαι [páomai], que signi ca
“eu adquiro”, donde literalmente se leria: “Depois de adquirires, manda”, quanto do verbo
πατέομαι [patêomai], que signi ca “eu como”, em alusão aos fatos narrados, cujo sentido literal
seria: “Depois de comer, manda”.

61 Uma das três erínias, personi cações da vingança na mitologia grega.

62 Por evangélicos se devem entender tanto os monges católicos quanto os adeptos da


Reforma Protestante.

63 Povos citados freqüentemente pelos humanistas como bárbaros por antonomásia.

64 Diferentemente do que ocorre acima, aqui a expressão schola publica tem sentido
pejorativo, isto é, lugar de encontro de alunos de boa e de má índole.

65 Erasmo utiliza a expressão beanum exuere, que literalmente signi ca “deixar de ser
calouro”, “deixar de ser novato”, e por extensão “passar por um rito de iniciação para ser aceito
pelos veteranos”. A palavra beanus, traduzida por “novato” ou “calouro”, vem do francês
medieval béjaune, e por isso Erasmo quali ca o termo beanus de bárbaro. Identi cando a
situação descrita na seqüência com o atual trote aplicado em alguns lugares, optamos pelo
emprego dessa palavra, visto que como beanus também tem origens bárbaras, isto é, fora do
léxico greco-latino.

66 Erasmo usa a palavra vesperia, que consistia no último ato realizado nas universidades
para que se alcançasse a dignidade de doutor.

67 Pr 13, 24.

68 Eclo 30, 12.

69 Ou seja, com a mera literalidade.

70 Eclo 30, 1.

71 Virgílio, Geórgicas, i, 145–146.

72 Terêncio, Andria, 805.

73 Erasmo pensa aqui em alguém entre trinta e quarenta anos de idade.

74 Medida antiga que equivale a 185 metros.

75 Trata-se de Mílon, já mencionado anteriormente.

76 Plínio, o Jovem, Epístolas, ix, 12.

77 Horácio, Arte poética, 385.

78 Tipo de antílope africano.

79 A existência desse animal mitológico era plausível na época em que o texto foi escrito por
causa da autoridade de fontes antigas como Ctésias de Cnido (Indiká), Aristóteles (História dos
animais, ii, 1) e Plínio, o Velho (História natural, xi, 106) bem como da versão latina de certas
passagens bíblicas, como Sl 22, 21. Na tradição dos textos latinos, o unicórnio era chamado,
entre outros, de asinus Indicus, burro da Índia, nome adotado por Erasmo no texto. Alguns
estudiosos vêem no asinus Indicus alguma espécie de rinoceronte.

80 Além de “mão”, essa palavra pode signi car, entre outros, “tromba”.

81 A palavra grega para tromba, proboskís (προβοσκίς), traz na sua composição o verbo
grego bôsko (βόσκω), que signi ca “alimentar”, “nutrir”.

82 Drákon (δράκων) é a forma grega, ao passo que draco, a latina. Dessa palavra provém o
nosso vocábulo “dragão”.

83 As formas drákontos (δράκοντος) e leontos (λέοντος) estão no genitivo em grego e à letra


signi cam “da serpente” e “do leão”, respectivamente.

84 Formas femininas de draco [serpente] e leo [leão], respectivamente.

85 Plínio, o Velho, História natural, viii, 10.

86 Espécie de coruja que, de acordo com a mitologia romana, sugava o sangue das crianças.

87 Monstro ou bruxa da mitologia que matava crianças sugando-lhes o sangue.

88 Demônios que atormentam o sono das pessoas, muitas vezes tomados simplesmente
como sinônimo de pesadelo.

89 Provérbio latino para signi car “tolices”, “bagatelas”, “frivolidades” etc.

90 A mesma forma das palavras mencionadas por Erasmo pode ter diversos signi cados.
Assim, respectivamente, a forma musae, pode signi car “da musa” e “para a musa” no singular e
“as musas e “ó musas” no plural, e a forma legeris pode signi car “és lido”, “tenhas lido” e “terás
lido”.

91 No sentido técnico empregado aqui por Erasmo, entende-se por “tema” a seleção de
passagens extraídas dos grandes autores da Antigüidade para o aprimoramento moral e a
prática de exercícios de retórica e redação.

92 Quintiliano, Instituição oratória, i, 1, 19.

93 A imagem da expressão, tirada da realidade militar, sugere um andar para diante, um


marchar, um avançar, donde posteriormente veio o sentido metafórico de “útil” ou “vantajoso”.

94 Moedas romanas antigas de baixo valor, sendo o terúncio inferior ao asse.

95 Provavelmente Césio Basso, poeta lírico. Erasmo parece ter-se equivocado com o
primeiro nome desse escritor.

96 O domínio das artes liberais.

97 Note-se que para Erasmo merecem o título de “liberais” outros saberes além dos sete que
compunham o Trivium e o Quadrivium.
98 Literalmente, “modos de signi car as coisas”. Erasmo aproveita o uso dessa expressão
para fazer uma alusão ao tratado gramatical em forma de poema De modis signi candi, de
Marvila, composto no século xiv e muito conhecido na época. Nesse poema, distinguem-se as
“modalidades da essência”, que se referem às coisas em si, e as “modalidades do sentido”,
dependentes do espírito. Ora, não depende do espírito que uma palavra designe um substantivo
ou um verbo; mas depende dele que uma palavra tenha valor essencial (“o branco”) ou
acidental (“o cavalo branco”). Ademais, tomemos as palavras “amo” e “amor”: a expressão que
as designa (vox) é a mesma, e elas se diferenciam unicamente por suas modalidades (modi
essendi) ou propriedades. Assim, “amor” exprime a idéia per modum permanentis (valor
substantivo) e “amo”, per modum uxus ( exão verbal). Portanto, há dois modi essendi, mas o
mesmo modus signi candi. Erasmo critica o ensino de tais sutilezas a crianças.

99 Literalmente, “em virtude de”. Em vez de explicar os fatos gramaticais com objetividade,
os gramáticos daquele tempo tinham adquirido o hábito de redigir pequenas questões
silogísticas e muitos sutis, por vezes meramente tautológicas e mesmo ridículas, que faziam a
alegria dos professores sádicos e aterrorizavam os alunos. Vejamos um exemplo de questões
assim: dignor te [concedo-te a dignidade] e iudico te dignum [julgo-te digno] são expressões
equivalentes. Contudo, pronunciadas essas palavras, o espírito pede algo a mais, um
complemento: digno de quê? Considerando que o signi cado depende da coisa signi cada de
forma indireta, ele exige o ablativo em latim. Por quê? Em virtude da natureza das palavras
pronunciadas, isto é, por causa de sua “força”, pois em latim dignor e dignum regem ablativo.
Note-se que todo esse volteio nada mais faz do que chegar a uma mera tautologia: o
complemento daquelas expressões é um ablativo porque as palavras usadas nelas regem o
ablativo.

100 Gramática em versos dedicada especialmente à sintaxe e escrita por Ludolfo de Luco.

101 Coletânea de trechos recolhidos de diversos autores e que trata do dogma e da moral
católicos.

102 O mesmo que “nó górdio”.

103 Plauto (Poenulus, iii, 3, 14–15) se refere mais precisamente às pessoas que,
desconhecendo o caminho para o mar, são forçadas a tomar algum rio como guia, em outras
palavras, percorrem caminhos incertos.

104 Ou seja, freqüentadas por muita gente, cando, assim, sujeitos à opinião do vulgo, coisa
pouco con ável; ademais, Pitágoras manifesta certa preocupação com possíveis contaminações.

105 Expressão grega que metaforicamente signi ca “falta de preparo”.

106 Na Ars Grammatica de Donato, essas guras estão divididas em esquemas e tropos.

107 Erasmo emprega vários termos técnicos da retórica: as proposições (propositiones) são
os pontos importantes do discurso em torno dos quais gravita a argumentação; os tópicos
comuns (loci probationum; loci communes) são os assuntos comumente discutidos,
comentados e meditados por diversos autores; os ornamentos (exornationes) se referem às
guras de linguagem; as ampli cações (ampli cationes) consistem no desenvolvimento de um
assunto por meio do acréscimo de informações e detalhes; por m, as fórmulas de transição
(formulae transitionum) versam sobre como empregar certas palavras e expressões para dar
coesão ao texto.

108 Haste metálica usada para escrever, já mencionada.

109 Erasmo tem em mente aqui a antiga técnica conhecida hoje como “palácio da memória”.

110 Disposição do direito romano que permitia restituir os direitos civis a quem os havia
perdido por motivo de prisão ou ausência. Erasmo faz, pois, uma analogia tirada do direito
romano para ilustrar a recuperação de um dado da memória que se encontrava perdido.

111 Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 24.

112 Trata-se do saber enciclopédico no sentido clássico da ἐγκύκλιος παιδεία (enkíklios


paidéia), ou seja, do conhecimento de todas as sete artes liberais.

113 Mais precisamente na seção Ratio colligendi exempla [O método de coletar exemplos].
Ali Erasmo trata mais profusamente do modo de registrar e ordenar as informações obtidas
durante os estudos. De forma resumida, Erasmo propõe que o estudante divida as suas
anotações em tópicos com algumas subdivisões, por exemplo: tópico fé; subdivisões: fé em
Deus, fé humana, perfídia etc. Em seguida, os tópicos e as suas subdivisões devem receber
de nições e comentários, como: o que é a fé, que frutos produz, de que males padecem os que
não têm fé entre outros. Ademais, pode-se também criar um tópico de discussão comparativa,
por exemplo: seria a república superior ou inferior à monarquia? Por m, as seções atribuídas a
cada tópico e subdivisão devem ter espaços para que sejam preenchidos com as máximas, os
comentários, as fábulas, as parábolas, as explicações e os exemplos — naturalmente
relacionados com aquele tópico — que o estudante encontrar no curso das suas leituras. Assim,
quando compuser um texto, terá à mão um grande número de referências para enriquecê-lo e
torná-lo mais elegante.

114 Trata-se da enarratio, isto é, da leitura comentada dos textos, método que esteve na base
da educação defendida pelos humanistas.

115 Renomado geógrafo grego que viveu entre 63 a.C. e 19 d.C.

116 Por exemplo, Catão, Virgílio e Columela.

117 Por exemplo, Júlio César e Vegécio.

118 Por exemplo, Vitrúvio.

119 Por exemplo, Catão e Xenofonte.

120 Erudito grego que viveu no segundo século da era cristã e autor do Onomasticon, obra
mencionada por Erasmo.

121 Erasmo alude ao fato de Júlio Pólux ter separado as palavras por temas, não por ordem
alfabética.

122 Trata-se da obra De genealogia deorum gentilium.


123 Chama-se em latim imago a gura de linguagem usada para criar na mente do leitor
uma representação quase pictórica de algo ou alguém, como: “Vênus reluzia em suas vestes
douradas à semelhança do fogo e do sol”.

124 Segundo o sistema pedagógico de Erasmo, um só professor deve assegurar a boa


educação de um ou de vários alunos por vários anos e, para isso, deve ser possuidor de um
saber global e enciclopédico.

125 Provérbio que signi ca que uma pessoa não deve opinar em coisas que estão fora do seu
campo de especialização ou da sua competência. A origem do provérbio é a seguinte: quando
terminava uma pintura, Apeles, renomado artista grego, tinha o hábito de expô-la ao público
para que este desse o seu julgamento. O artista, escondido atrás do quadro, ouvia tudo o que
diziam do seu trabalho. Certa feita, um sapateiro notou que um dos calçados de um par pintado
por Apeles tinha um defeito. O pintor escutou a crítica com atenção e tratou de corrigir o
problema. No dia seguinte, o mesmo sapateiro retornou ao ateliê de Apeles e, ao ver que o
quadro havia sido corrigido, sentiu tanto orgulho de ver o efeito causado por suas observações
que logo tratou de encontrar outro problema para o mesmo quadro a m de testar o seu poder
de persuasão. Assim, passou a falar mal do modo como havia sido pintada a perna da
personagem retratada. Neste instante, Apeles saltou do seu esconderijo e exclamou: “Ó
sapateiro, não queiras julgar além das sandálias!”. Essa anedota deu origem à palavra
ultracrepidário, pertencente ao léxico português.

126 Erasmo se refere à sua obra monumental Adagia, que contém a explicação detalhada de
milhares de provérbios.

127 Erasmo trata aqui da idéia de antologia ou trechos selecionados.

128 Trata-se da métrica latina.

129 Erasmo não vê nenhum valor pedagógico nas línguas vernáculas. A única utilidade delas
seria enunciar o tema; o desenvolvimento, porém, deve ser feito em latim ou em grego.

130 Erasmo explica esse tópico com mais profundidade no seu De copia. De maneira
sintética, extraímos o seguinte desse texto: a primeira dessas sentenças-modelos (utrique simili)
é composta de duas partes (ou termos) que se opõem às outras duas que compõe a segunda.
Exemplo: “A complacência (primeira parte) gera amigos (segunda parte); a verdade (terceira
parte), o ódio (quarta parte)”. O segundo tipo (ratione subiecta) comporta a mesma antítese nas
duas proposições, mas cada uma é sustentada por uma razão (ratio) extraída dos tópicos
comuns (loci communes). Exemplo: “À juventude convém a laboriosidade (primeira parte),
(introduz-se a razão — segunda parte) pois é desonroso consumir no ócio e em torpes prazeres
os dons que a natureza concedeu para a aquisição das artes liberais; mas à velhice convém a
opulência (terceira parte), (introduz-se a razão — quarta parte) para que aquela fase da vida,
bastante destituída das proteções naturais se sustente de algum modo mediante o apoio das
coisas externas”.

131 A saber, a propositio (juízo sobre uma matéria que se deve provar), a ratio (o que prova),
a con rmatio (prova da prova), a exornatio (a ilustração da matéria) e a complexio (síntese de
cada divisão).
132 Diz Erasmo no seu De copia: “Copiosissima expolitio septem constat partibus:
propositione, ratione, duplici sententia cui ratio item duplex subiici potest, contrario, simili,
exemplo, conclusione”.

133 Por exemplo, tratar individualmente de cada grupo que compõe a sociedade e suas
funções.

134 Atribuir um discurso congruente com as características de certa personagem, como um


rei, um soldado, um agricultor etc.

135 Ao de nir o termo latino notatio, Erasmo a rma o seguinte no seu De copia: “Descrição
de algo por meio da indicação dos sinais que o acompanham”. Assim, por “ira”, alguém pode
dizer: “Efervescência do espírito e da bile que cobre o rosto de palidez, os olhos de ardor e
espalha o tremor em todos os membros do corpo”.

136 Por exemplo, uma mesma sentença trabalhada no tópico bem deve sofrer alterações se
for tratada no tópico amizade.

137 Trata-se da praelectio. Para Erasmo, na esteira de Quintiliano, o professor deve ler textos
selecionados em voz alta e explicá-los; os alunos, por sua vez, devem acompanhá-lo nos seus
próprios textos. Ademais, os alunos também devem ser estimulados a ler em voz alta para
praticar a pronúncia das palavras.

138 A inventio retórica.

139 A saber, incremento, comparação, raciocínio e acumulação.

140 Horácio, Sátiras, i, 4, 120. Provérbio equivalente ao nosso “nadar de braçada”, ou seja,
não ter di culdade em executar certa atividade.

141 Novamente a praelectio.

142 Segundo Quintiliano, a digressão (digressio) atende especialmente a quatro objetivos, a


saber, censurar, ornar, deleitar ou preparar.

143 A composição (compositio) ocorre quando um mesmo verbo ca subentendido em


diversas frases, por exemplo: O amor venceu o ódio; a esperança, o medo; a fé, a incerteza. Pode
equivaler à elipse e, por vezes, mais precisamente ao zeugma.

144 Os cretenses e os eginetas eram proverbialmente conhecidos por sua desonestidade.


Com exceção do adágio “os iguais se reúnem muito facilmente”, todos os demais são explicados
detalhadamente por Erasmo na sua obra Adagia, respectivamente sob os números 935, 121,
120, 701, 122, 123, 971, 162, 877, 124 e 127.

145 Rômulo é forma diminutiva de Romo para indicar um temperamento mais manso. Essa
explicação é dada por Mário Sérvio Honorato na sua obra Commentarii in Vergilii Aeneidos
libros, i, 273.

146 O texto latino faz uso do termo pietas, que em latim designa amiúde o senso dos deveres
para com a religião, a pátria, os pais, a família e assim por diante, aproximando-se por vezes
daquilo que entendemos por “caridade”. Optamos por traduzir o vocábulo neste trecho por
“virtude”, visto que correntemente a palavra “piedade” tem meramente o sentido de devoção
religiosa ou de comiseração, distanciando-se muito do original latino do ponto de vista
semântico.

147 Platão expõe essa teoria no livro O banquete. O neoplatonismo teve forte in uência no
Renascimento.

148 Trata-se da iocandi ratio. Cf. Quintiliano, Instituição oratória, v, 10 e vi, 3 e Cícero, De
oratore, ii, 59–71.

149 O termo latino é decorum, palavra que corresponde à expressão latina quod decet [o
que convém] e que transmite a regra máxima dos humanistas e dos autores clássicos. Trata-se
de um conceito que se aplica aos aspectos morais e físicos e marcam uma profunda harmonia
intelectual e afetiva. No seu Dos deveres, Cícero identi ca o decorum com o que é moralmente
correto. Nesse trecho, o termo indica a congruência entre determinados tipos e o seu caráter,
donde nossa opção por “conveniência”.

150 Isto é, o Brutus.

151 Trata-se do livro In varios auctores censurae.

152 Erasmo se refere à obra Commentarius in Terentium.

153 Erasmo usa aqui o seguinte provérbio latino: clitellae non conveniunt bovi. Aplica-se
esse provérbio quando se quer dizer que não é prudente con ar certa responsabilidade a uma
pessoa incapaz dela.

154 Mãe e lha, respectivamente, correspondentes de São Jerônimo e mulheres


exemplarmente cultas e piedosas.

155 Humanista inglês nascido em 1478 e falecido em 1535.

156 Intelectuais alemães cujos anos de nascimento e falecimento são respectivamente 1492 e
1564 e 1470 e 1530. O primeiro foi pensador humanista; o segundo, reformador protestante.

157 O nome dado ao abade por Erasmo é bastante revelador. Há um adágio latino que reza
Antronius asinus, o asno de Antrones, e é usado para referir-se a alguém corpulento, mas
excepcionalmente estúpido. A cidade de Antrones localizava-se na Tessália, região da Grécia.
Os asnos dessa cidade tinham fama de ser enormes. O nome do abade, portanto, faz referência,
a um só tempo, à sua compleição e à sua pouca inteligência.

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