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A Educação Liberal - Erasmo de Roterdã
A Educação Liberal - Erasmo de Roterdã
Erasmo de Roterdã
1ª edição — setembro de 2020 — CEDET
Títulos originais:
De pueris statim ac liberaliter instituendis
De ratione studii
Colloquium abbatis et eruditae
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela
eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem
permissão expressa do editor.
Editor:
Felipe Denardi
Tradução e notas:
William Bottazzini Rezende
Revisão:
Daniel Marcondes
Preparação de texto:
Beatriz Mancilha
Capa:
Vicente Pessôa
Diagramação:
Mariana Kunii
Revisão de provas:
Beatriz Costa
Julhiana Bandechi
Imagem da capa:
Estudo das mãos de Erasmo de Roterdã;
Hans Holbein, o Jovem
Os direitos desta edição pertencem ao
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Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
()
Roterdã, Erasmo de.
A educação liberal / Erasmo de Roterdã (1466–1536);
tradução e notas de William Bottazzini Rezende –
Campinas, SP: Kírion, 2020.
Título original:
De pueris statim ac liberaliter instituendis;
De ratione studii;
Colloquium abbatis et eruditae
ISBN: 978-85-94090-41-6
1. Teoria e loso a da educação 2. Histórico 3. Educação liberal
I. Autor II. Título
CDD — 370-1 / 370-09 / 370-112
1. Teoria e loso a da educação – 370-1
2. Histórico – 370-09
3. Educação liberal – 370-112
Sumário
APRESENTAÇÃO
A EDUCAÇÃO LIBERAL
O MÉTODO DE ESTUDO
NOTAS DE RODAPÉ
APRESENTAÇÃO
Tum Desiderii cessabit nomen Erasmi,
Cum Rhenus nullas siccus habebit aquas.
Ademais, embora tenham sido escritos há cerca de cinco séculos, os textos de Erasmo
permanecem incrivelmente contemporâneos sob muitos aspectos, sobretudo os que versam
sobre a formação intelectual de crianças e jovens. Com efeito, nestes dias sombrios para a
educação, quando os índices que medem a qualidade da alfabetização da população brasileira
são cruelmente desalentadores, Erasmo refulge como um farol em noite de tempestade,
apontando o porto seguro da educação clássica para as naus alquebradas da educação
contemporânea que ameaçam soçobrar no mar tormentoso das más teorias pedagógicas. Ora,
quem quer que leve a educação realmente a sério e compreenda o seu papel essencial e
insubstituível para a formação da consciência, não pode ignorar as preciosas lições do mestre
de Roterdã, que não só escreveu sobre a alta educação, como também a vivenciou quer como
aluno, quer como professor.
Assim, no presente volume, o leitor tem diante dos olhos três belos escritos de Erasmo,
diligentemente selecionados, que versam sobre a boa educação. Não foi fácil, confessamo-lo,
escolher entre tantas pepitas de ouro puríssimo quais eram as mais valiosas; no entanto,
estamos seguros de ter compilado o que traria mais benefícios e seria de mais fácil aplicação
para o leitor contemporâneo. Colocados em prática, os preceitos erasmianos não têm outro
resultado, senão o mais absoluto êxito na formação de mentes brilhantes.
No primeiro texto, A importância da educação liberal para as crianças, Erasmo discorre
sobre o peso da educação infantil para toda a vida de uma pessoa e o zelo que os pais devem
ter para assegurar aos lhos uma boa formação intelectual desde a mais tenra idade. Ora, é
surpreendente observar que os mesmos erros e negligências censurados por Erasmo nos seus
dias ainda estão em voga nos nossos. Porém, é ainda mais surpreendente notar que as soluções
propostas por Erasmo para o seu tempo também se aplicam ao nosso. Além disso, o Príncipe
dos Humanistas dá diretrizes claras sobre como ensinar os pequenos e o que transmitir-lhes
para que tenham uma robusta formação moral e intelectual.
Por m, fechamos este livro com o delicioso Diálogo entre o abade e a mulher erudita. Por
um lado, Erasmo entoa um verdadeiro panegírico do cultivo da vida intelectual e da sabedoria
por parte das mulheres; por outro lado, repreende o autoritarismo e o desprezo pelas letras,
marcas inconfundíveis da frivolidade e da estupidez. Ora, no século , raras eram as
mulheres que tinham a oportunidade de dedicar-se à alta cultura, mas as que o faziam
encantavam com a beleza sublime do seu intelecto, e Erasmo se mostra, aqui, um grande
promotor da educação feminina.
Mas não nos alonguemos e deixemos que nos fale diretamente o Príncipe dos Humanistas.
Porquanto as águas do Reno ainda são volumosas, assim viceja gloriosamente o nome de
Erasmo de Roterdã.
Que não te turbem as vozes desses homens que cam a repetir que tal
idade, em parte, não é su cientemente capaz das disciplinas e, em
parte, não tem condições de suportar os esforços exigidos pelos
estudos. Em primeiro lugar, a primeira fase da educação se assenta
sobretudo na memória, que, nos pequeninos, conforme já o disse,
retém muitíssimo. Ademais, porque a natureza nos gerou para o
conhecimento, não é possível que seja demasiado prematura a
dedicação àquilo cujas sementes ela mesma semeou em nós.
Acrescente-se a isso o fato de que, na fase adulta, também é preciso
que se conheçam certas coisas, as quais, graças a uma propensão
especial da natureza, a tenra idade, em comparação com os anos de
maior robustez, apreende não só com mais rapidez, como também
com mais facilidade, quais sejam o alfabeto, o domínio das línguas, os
apólogos e as fábulas poéticas. Por m, por que razão se deveria
estimar que tal idade, já adequada para o aprendizado dos bons
costumes, seja inadequada para as letras? Ademais, que farão de
melhor as crianças já capazes de falar, uma vez que é preciso que
ocupem o tempo de alguma maneira? Como é mais útil a essa idade
entreter-se com as letras que com frivolidades! Talvez alegues ser de
pouca relevância o que se produz nos primeiros anos. Por que
desprezar como insigni cante o que é necessário para algo de suma
importância? Ademais, por que negligenciar esse ganho — por menor
que seja continua sendo um ganho — para os estudos? Ora, se
acrescentares com freqüência uma coisa pequena à outra coisa
pequena, eis que aparecerá um monte de modo algum desprezível.11
Entrementes, considera ainda o seguinte: se a criança aprender as
coisas simples, o adolescente aprenderá as mais complexas nos anos
em que se deveriam aprender as simples. Finalmente, enquanto se
dedica a essas coisas, ao menos se mantém afastado dos vícios com
que vemos contaminar-se amiúde aquela idade. Ora, nada ocupa
melhor o espírito inteiro do homem do que os estudos. Com efeito, tal
ganho não deve ser subestimado. Ademais, concedamos que com esses
esforços algo se perca do vigor do corpo; não obstante, parece-me que
isso ca muito bem compensado com o ganho obtido para o intelecto,
pois mediante esforços moderados o espírito se torna mais pujante. E
se aqui houver algum perigo, pode-se evitá-lo com a nossa diligência.
À tenra idade deve-se oferecer um mestre que atraia pela doçura, e
não um que afaste pela violência. Ora, existem certas coisas que são a
um só tempo agradáveis de conhecer e como que a ns com o intelecto
infantil; coisas essas cujo aprendizado é antes brincadeira do que
trabalho. Embora os anos da infância não sejam assim tão delicados,
pois, justamente por serem anos de infância, são até mais aptos a
tolerar os trabalhos, uma vez que carecem do senso de trabalho. Da
mesma forma, se pensares em como perde a própria humanidade
quem ca desprovido das letras, em como é fugaz a vida humana, em
como tende para o mal a adolescência, em como se enreda em uma
série de ocupações o ser humano quando jovem, em como é estéril a
velhice e em como são poucos os que a alcançam, não permitirás que o
teu lho, no qual viverás como que renascido, deixe inculta alguma
fase de sua existência, sendo que é em tal fase que se pode preparar
algo que há de trazer-lhe grande benefício para toda a vida ou afastá-lo
dos males.
***
Como é grande a solicitude das mães em geral para que o lho não
que com algum grau de estrabismo, com bochechas caídas, com o
pescoço dobrado, corcunda, cambado, com os pés tortos ou com uma
simetria pouco harmoniosa entre as partes do corpo. Para isso,
costumam usar até, entre outras coisas, tiras de pano e ligaduras com
as quais lhe envolvem as faces. Entrementes, mantém-se também o uso
correto do leite, dos alimentos, dos banhos e dos movimentos, por
meio dos quais os médicos, nomeadamente Galeno, ensinaram em
muitos livros a como se preparar às crianças uma próspera saúde do
corpo. Tampouco eles adiam tais responsabilidades para o sétimo ou
décimo ano da criança, mas incitam a esses cuidados tão logo seja
retirada do abrigo uterino. E o fazem bem, visto que uma infância
negligenciada freqüentemente leva os homens a uma velhice mórbida
e sofrida, se porventura chegarem a ela. Ademais, mesmo antes do
parto, encontra-se vigilante a diligência materna: as grávidas não
comem quaisquer alimentos, evitam os movimentos incômodos e, se
por acaso algo cair-lhes no rosto, tendo-o arrancado com a mão,
imediatamente o colocam em uma parte encoberta do corpo.12 Graças
a esse remédio, sabe-se por muitas experiências que a deformidade
que haveria de ocorrer em uma parte visível do corpo da criança ca
escondida em uma parte mais oculta.
***
***
Ora, se nem o amor nem a razão puderem nos ensinar quanto
cuidado se deve à primeira idade dos lhos, poder-se-á, ao menos,
tomar o exemplo dos animais irracionais. Com efeito, não deve ser
incômodo aprender com eles algo que será de tão grande utilidade,
com os quais a raça humana já aprendeu outrora tantas coisas
frutuosas, visto que foi o hipopótamo que nos mostrou a sangria
venosa e o íbis, ave egípcia, mostrou-nos o uso do clister, que os
médicos aprovam efusivamente.
Ora, caso uma pessoa pergunte à outra se ela gostaria de ganhar cem
cavalos pelo preço da morte de um único lho, se tiver uma migalha
de sanidade mental, creio eu, responderá que de jeito nenhum.
Portanto, por que o cavalo custa mais caro e é cuidado com maior zelo
do que o lho? Por que se compra um bufo por maior preço do que se
educa um lho? Que a ocasião para a frugalidade esteja alhures! Ser
frugal neste aspecto não é parcimônia, mas demência. Por outro lado,
há aqueles que não escolhem ao acaso um preceptor para os lhos,
mas cedem às preces dos amigos. Pretere-se um pro ssional
quali cado para a formação da criança e escolhe-se um inútil pela
única razão de ter sido recomendado pelos rogos dos amigos. Que
fazes, insano? Ao navegar, não levas em consideração os sentimentos
dos que te fazem recomendações, mas empregas no leme aquele que é
o mais capacitado para comandar a embarcação: quanto ao lho, pois
não somente ele está em perigo, mas o pai e a mãe, a família inteira e
mesmo o próprio Estado, não usas do mesmo juízo? O cavalo está
enfermo; escolhes um veterinário pela recomendação dos amigos ou
pela quali cação para o tratamento? Quê? Acaso o lho te vale menos
do que um cavalo? Ou melhor, acaso tu vales menos a ti mesmo do
que um cavalo? Visto que isso é deplorável nos cidadãos de condição
modesta, quão mais deplorável o é nas pessoas de alta classe? Em um
único jantar, chocando-se contra o dado, o pior dos escolhos, e
naufragando, perdem trinta mil, e chamam de despesa se gastam mil
para dar boa formação ao lho.
***
***
***
Ora, o que foi dito sobre a natureza não é unívoco. Com efeito, existe
uma natureza comum à espécie: por exemplo, é próprio do homem o
uso da razão. Contudo, existe uma natureza peculiar a este ou àquele
indivíduo: por exemplo, dizes que alguns nasceram para a matemática,
outros para a teologia, estes para a retórica ou para a poesia, aqueles
para o exercício militar. São atraídos para esses estudos com tanto
ímpeto que não podem ser desencorajados de nenhuma forma. Ou
então sentem tão grande repulsa por eles que teriam mais prontidão
em lançar-se em uma fogueira do que dedicar o espírito a uma
disciplina odiosa. Tive um amigo próximo muito bem educado em
latim e grego e instruído em todas as artes liberais com esmero; um
arcebispo, por cuja generosidade havia sido criado, forçou-o por meio
de cartas a começar a freqüentar as aulas de professores de direito, o
que era contrário à sua natureza. Quando me apresentou essa queixa,
pois compartilhávamos o quarto, exortei o homem a obedecer ao seu
benfeitor, que haveria de ser mais leve o que no início era duro, e que
dedicasse àquele estudo ao menos alguma parte de seu tempo. Quando
ele expôs algumas citações de prodigiosa estultice, que, no entanto,
aqueles professores, semideuses, ensinavam aos alunos com grande
autoridade, respondi-lhe que não as desprezasse e que extraísse delas o
que ensinavam corretamente; e depois de eu ter pressionado o homem
com muitos argumentos, ele respondeu: “Isso me a ige de tal modo
que, todas as vezes que me volto àqueles estudos, parece-me que uma
espada penetra no meu peito”. Não penso que os homens nascidos
assim devam ser forçados contra a sua inclinação natural, para que
não conduzamos um boi ao ringue e um asno à lira. Talvez se possam
perceber certas marcas dessa propensão também nos pequenos. Há
quem costume fazer previsões dessa natureza com base no horóscopo;
quanto valor se deva atribuir ao juízo dessas pessoas, deixo que cada
um o avalie livremente. Contudo, seria vantajoso descobri-lo o quanto
antes, pois aprendemos com suma facilidade aquilo para que a
natureza nos forjou. Na verdade, não penso que seja coisa vã fazer
conjecturas sobre a índole de uma pessoa fundamentando-se na forma
e no aspecto de seu rosto bem como do restante do corpo; em todo
caso, Aristóteles, tão grande lósofo, não se recusou a publicar um
livro, nem medíocre, nem mal elaborado, acerca da siognomonia.
Assim como a navegação é mais cômoda quando a maré e o vento a
favorecem, da mesma forma somos instruídos com mais facilidade
naquilo a que nos inclina a predisposição de nossas qualidades inatas.
Virgílio nos mostrou os sinais por meio dos quais podes concluir se
um boi é adequado para o arado ou se uma vaca está apta para
aumentar o rebanho. “A melhor vaca é a de olhar feroz”.33 Ele nos
ensina por quais sinais notarás se um potro há de ser útil para os jogos
olímpicos. “A prole de uma raça nobre entra sem demora nos campos”
etc. Ora, tu conheces o poema. Erram os que pensam que a natureza
não concedeu ao homem nenhum sinal por meio do qual se podem
conhecer as suas disposições naturais; pecam, porém, os que não
observam os que foram dados. Todavia, em minha opinião, não há
praticamente nenhuma disciplina à qual o temperamento do homem
não nasça dócil, contanto que insistamos nos preceitos e no exercício.
Ora, o que não há de aprender o homem, visto que com treinamento
um elefante caminha sobre a corda, um urso se torna dançarino e um
asno faz papel de bufo? Portanto, assim como a ninguém foi dado
dispor da natureza como bem entender, da mesma forma ensinamos
que há coisas em que conseguimos ajudar a natureza de alguma forma.
A rma Sêneca: “Em nenhuma idade é tarde para aprender”. Não sei
se isso é verdade; com efeito, é difícil aprender certas coisas em idade
avançada. Isto é indiscutível: não existe idade jovem demais que não
esteja apta à instrução, sobretudo daquelas coisas para as quais a
natureza moldou o homem. Ora, a natureza acrescentou à infância,
como eu dizia há pouco, um desejo peculiar de imitar, justamente para
que as crianças anseiem imitar tudo o que virem ou ouvirem e se
alegrem se tiverem a impressão de tê-lo conseguido. Dirias que são
uns macaquinhos. E daí surge a primeira conjectura das suas
disposições naturais e aptidão para o aprendizado. Portanto, assim que
o homem nasce, está logo apto para aprender os bons costumes. Tão
logo tenha começado a falar, torna-se capacitado para o aprendizado
das letras. Concedeu-se de imediato a aptidão para aprender aquilo
cujo conhecimento vem em primeiro lugar. Com efeito, embora a
erudição tenha in nitas vantagens, contudo, se não estiver a serviço da
virtude, faz mais mal do que bem. Com razão foi rejeitada pelos sábios
a opinião daqueles que julgaram que as crianças com menos de sete
anos de idade não devem ser expostas às letras; muitos acreditaram
que Hesíodo era o autor dessa sentença, embora Aristófanes, o
Gramático, negue que a obra Preceitos de Quíron, na qual se disse isso,
seja de Hesíodo. Contudo, é preciso que tenha sido um escritor notável
que publicou esse livro para que aos eruditos também parecesse trazer
a paternidade de Hesíodo. Ora, mesmo que fosse de Hesíodo fora de
qualquer controvérsia, a autoridade de nenhum homem deve exercer
tanto poder sobre nós que nos seja incômodo seguir o que é melhor se
alguém no-lo anunciar. No entanto, quem quer que tenha
compartilhado dessa opinião não julgou que se devesse car todo esse
tempo até os sete anos livre de todo cuidado com a educação, mas que
antes dessa idade as crianças não devem ser sobrecarregadas com a
empreitada dos estudos, durante os quais se devem engolir
completamente certos aborrecimentos, como o de aprender de cor a
lição, repeti-la e escrevê-la. Ora, terias di culdade em encontrar um
temperamento tão dócil, tratável e obediente que se acostumasse
completamente com essas coisas sem azorragues. Crísipo deu três anos
às amas-de-leite, não para que nesse ínterim a criança casse sem
instrução, especialmente no campo da moral e da linguagem, mas para
que por meios mais brandos a criança fosse preparada para a virtude e
as letras, quer pelas amas-de-leite, quer pelos pais, cujo caráter tem
indiscutivelmente a máxima importância para a formação das
crianças.
***
***
Dirás que nem todos têm tempo livre para isso e que tão grande
empreitada provoca enfado. Mas vejamos, ó ilustre senhor, re itamos
quanto tempo perdemos com jogos de dados, bebedeiras, espetáculos
e bufões e nos causará vergonha, penso eu, alegar que falta tempo livre
para aquilo que, renunciadas todas as demais coisas, se devia fazer. Há
tempo su ciente para todos os deveres, contanto que seja repartido
com a conveniente frugalidade. Ora, o dia, cuja maior parte
desperdiçamos, nos é breve. Pondera agora quanta porção de tempo se
concede algumas vezes aos frívolos assuntos dos amigos. Se não é
possível atender a todos, evidentemente deve-se dar precedência aos
lhos. Ora, que trabalho recusamos para deixar aos lhos um
magní co e bem estabelecido patrimônio? Mas para preparar-lhes
aquilo que é superior a tudo isso, causa enfado assumir a empresa,
especialmente quando o amor natural e o progresso daqueles que nos
são mais caros adoçam todos os incômodos? Se não fosse assim,
quando as mães tolerariam os tão longos incômodos da gestação e da
alimentação dos lhos? Ama pouco o lho aquele a quem é fastidioso
educá-lo. Ora, o modo de educar foi mais fácil aos antigos, porque a
língua dos que conheciam a fundo as letras e do povo inculto era a
mesma, exceto pelo fato de que os eruditos falavam com mais
correção, elegância, sabedoria e eloqüência. Confesso que seria um
grande atalho para a erudição se isso permanecesse assim em nossos
dias. E não faltou quem tentasse resgatar o exemplo antigo, como os
Canter39 entre os frisões,40 e a Rainha Isabel, esposa de Fernando, entre
os espanhóis, de cuja família saíram muitas mulheres admiráveis tanto
pela erudição quanto pela piedade.41 Entre os ingleses, o ilustríssimo
senhor omas More, a quem, apesar de encontrar-se ocupadíssimo
com os assuntos do reino, não foi fastidioso desempenhar o papel de
professor para a esposa, as lhas e o lho, primeiramente no que se
refere à piedade, depois no que tange ao conhecimento de ambas as
literaturas.42 Com efeito, dever-se-ia ter esse cuidado com aqueles que
destinamos à erudição. E não existe o perigo de que ignorem a língua
do povo: aprendê-la-ão, querendo-o ou não, no contato com as
pessoas. Mas se em casa ninguém for letrado, deve-se contratar de
imediato um pro ssional especializado, porém avaliado não só nos
seus costumes, mas também na sua erudição. É estultice testar no lho,
como se este fosse um cário, como dizem,43 para saber se o homem
que acolheste conhece ou não as letras e se é moralmente reto ou não.
Que se conceda o perdão ao que dorme nas outras coisas; mas nisto, é
necessário que sejas um Argos44 e que vigies com todos os olhos.
Como dizem: na guerra não se pode errar duas vezes; nisto, não é
lícito errar nem sequer uma única vez. Ademais, quanto antes a
criança for entregue a um preceptor, tanto mais bem-sucedida será a
sua educação.
***
Sei que neste ponto alguns alegam que existe o risco de o esforço dos
estudos tornar fraca a saúde do tenro corpinho. Aqui eu poderia
responder que, mesmo que algo do vigor do corpo desaparecesse, tal
prejuízo seria bem compensado por tão excelentes bens do espírito.
Ora, não estamos a formar um atleta, mas um lósofo, um governante
do Estado, a quem é o bastante ter boa saúde, mesmo que não tenha a
força de Mílon.45 Admito, contudo, que se deva ser indulgente com a
idade em algumas coisas para que se torne mais vigorosa; entretanto,
muitos temem insensatamente pelos seus lhos o perigo das letras,
mas não temem o perigo muito mais grave do excesso de comida, por
que a inteligência dos pequenos não é menos prejudicada do que o
corpo, e dos tipos de alimentos e bebidas que não convêm à idade.
Levam seus lhos para banquetes fartos e longos, às vezes estendidos
até tarde da noite, e enchem-nos de pratos salgados e quentes por
vezes até vomitarem. Apertam e sobrecarregam os tenros corpinhos
com vestes incômodas por ostentação, assim como alguns enfeitam
macacos com trajes humanos, e de outros modos efeminam os seus
lhos, mas em nenhuma outra ocasião se teme mais afetuosamente
pela saúde deles do que quando se começa a tratar das letras, ou seja,
daquela coisa que é a mais salutar e necessária de todas.
O que se disse da saúde pode-se dizer do cuidado com a aparência,
que, se por um lado, confesso-o, não deve ser negligenciada, por outro,
é pouco digno de um homem ocupar-se dela com demasiada
inquietação. Tampouco tememos por ela mais em decorrência de
outra coisa do que dos estudos, embora ela se estrague muito mais
com a glutonaria, a bebedeira, as noitadas, as brigas e ferimentos e, por
m, essa terrível lepra46 da qual quase nenhum jovem de vida
desregrada escapa. Que afastem os seus lhos antes dessas coisas do
que das letras aqueles que tão excessivamente temem pela sua saúde e
aparência. Embora por nossa diligência também se possa acautelar-se
para que haja o mínimo de esforço e, portanto, o mínimo de perda.
Isso acontecerá se não forem inculcadas nos pequenos nem muitas
coisas nem coisas tomadas sem critérios, mas somente o que for
excelente e adequado à idade, que é cativada mais pelas coisas
agradáveis do que pelas sutis. Em seguida, um método carinhoso de
ensinar fará que pareça uma brincadeira, não um trabalho. Ora, aqui
deve ser seduzida com encantos aquela idade que ainda não pode
compreender quanto fruto, quanta dignidade e quanto prazer lhe
trarão as letras no futuro. Em parte realizarão isso a doçura e a
afabilidade do preceptor, em parte a inteligência e a habilidade, com as
quais imaginará vários artifícios para tornar as letras agradáveis à
criança e afastar a sensação de trabalho. Ora, nada é mais prejudicial
do que quando os costumes do preceptor fazem com que comecem a
odiar os estudos antes que possam entender por que devem ser
amados. O primeiro passo do aprendizado é o amor do professor. Com
o passar do tempo acontecerá que a criança, que no início começara a
amar as letras por causa do mestre, ame depois o mestre por causa das
letras. Com efeito, da mesma forma que muitos presentes são
sumamente agradáveis porque nos chegam da parte daqueles pelos
quais nutrimos um carinho especial, assim também ocorre com as
letras: embora elas ainda não possam deleitar os pequenos pelo
discernimento, contudo se lhes tornam agradáveis pelo afeto que têm
para com o mestre. Com muito acerto foi dito por Isócrates que
aprende muitíssimo aquele que é ávido por aprendizado. Ora,
aprendemos de bom grado com aqueles que amamos. Porém, há
alguns de costumes tão desagradáveis que não conseguem ser amados
nem pela esposa: trazem uma expressão ameaçadora, a sua companhia
é sombria, parecem irados mesmo quando são favoráveis, não
conseguem dizer nada com brandura, mal são capazes de retribuir um
sorriso; dirias simplesmente que nasceram quando as Graças estavam
iradas. Creio que esses homens di cilmente estejam aptos para que
lhes con es o treinamento de cavalos indômitos, tanto estou longe de
pensar que lhes deva ser con ada aquela frágil e quase lactente idade.
Mas é especialmente esse tipo de homem que alguns crêem que deva
ser colocado para educar a primeira idade, enquanto pensam que
severidade é sinônimo de santidade. Ora, não é seguro acreditar na
aparência; sob aquela máscara sombria, freqüentemente se escondem
costumes os mais efeminados. Tampouco se deve mencionar entre
homens pudicos a que ignomínias por vezes esses carrascos abusam
do terror das crianças. Nem sequer os pais podem educar
corretamente os lhos se somente forem temidos. O primeiro cuidado
é ser amado; aos poucos, sucede não o terror, mas certa reverência
generosa, que tem mais peso do que o medo.
***
É ainda muito mais estúpido que alguns enviem os seus lhos a uma
mulherzinha dada à bebedeira para que adquiram a habilidade de ler e
escrever. É contra a natureza que uma mulher domine sobre os
homens; ademais, não há nada mais rude do que este sexo se alguma
ira agitar-lhe o espírito; in ama-se com extrema facilidade, mas mal
consegue acalmar-se, a não ser que tenha saciado o seu desejo de
vingança. De resto, não só os monastérios como também as
comunidades de irmãos47 — assim chamam a si mesmos — estão à
espreita de lucrar com isso, e em esconderijos educam a inculta idade
por meio de homens normalmente pouco instruídos, ou melhor, mal
instruídos, embora em contrapartida concedamos que sejam pudicos e
prudentes. De qualquer modo, outros aprovam esse tipo de educação;
nenhuma pessoa que deseja que o seu lho receba uma educação
liberal os seguirá por sugestão minha.
É preciso que ou não exista escola nenhuma ou que ela seja pública.48
Com efeito, o que normalmente se faz é tomar o caminho mais curto.
Ora, é mais fácil que muitos alunos sejam coagidos por um só
professor por via do medo do que um só aluno receber de um só
professor uma educação liberal.49 Ora, não é grande coisa governar
asnos ou bois; mas proporcionar aos lhos uma educação liberal é, por
um lado, algo di cílimo, por outro o que há de mais belo. É típico dos
tiranos oprimir os cidadãos pelo medo; mantê-los no cumprimento
dos deveres com benevolência, moderação e prudência é próprio dos
reis. Quando Diógenes, capturado pelos eginetas,50 foi colocado à
venda, o pregoeiro perguntou-lhe com que título gostaria de ser
recomendado aos compradores. Diógenes respondeu: “Dize: se alguém
quiser comprar um homem que sabe governar homens livres”. Muitos
riram diante desse anúncio insólito. Certo homem, que tinha lhos
pequenos em casa, abeirou-se do lósofo para perguntar-lhe se
verdadeiramente sabia fazer o que propunha. Diógenes respondeu-lhe
que sim. Em um breve diálogo, percebeu não se tratar de uma pessoa
comum, mas que sob o manto sujo se ocultava uma notável sabedoria.
Tendo-o comprado, conduziu-o à sua casa e con ou-lhe a educação
dos seus lhos.
Ora, ninguém tortura mais as crianças do que aqueles que não têm
nada para ensinar-lhes. Que fazem esses homens nas escolas, a não ser
passar o dia a golpear e altercar? Conheci um teólogo, e bem de perto,
homem de grande nome, cujo espírito nenhuma crueldade contra os
alunos era capaz de satisfazer, embora tivesse professores
diligentemente sádicos. Julgava que isso era particularmente útil não
só para abater a ferocidade dos temperamentos, mas também para
domar a impudicícia da idade. Nunca organizava um festim com a sua
trupe, a não ser para que, assim como as comédias terminam com um
feliz desenlace, da mesma forma após a comida um ou dois fossem
arrastados à frente para ser dilacerados pelos açoites; e por vezes agia
com violência também contra os inocentes, naturalmente para que se
acostumassem com os açoites. Eu mesmo certa vez estive presente
quando depois da refeição, como de costume, chamou um menino de,
creio eu, dez anos de idade. Ora, fazia pouco tempo que a mãe o tinha
enviado àquela trupe. Começou a falar que sua mãe era uma mulher
das mais virtuosas e que o menino lhe fora vivamente con ado por ela;
em seguida, a m de que tivesse uma ocasião para bater nele, começou
a censurá-lo por certo caráter feroz, embora não houvesse nada que o
menino aparentasse menos, e fez um sinal àquele a quem havia
entregado a inspetoria do colégio, e que por isso ganhara o apelido de
“cão de guarda”, para que batesse nele; ele sem demora golpeou de tal
forma o menino já caído como se este tivesse cometido um sacrilégio.
O teólogo interpelou repetidas vezes: “É o su ciente, é o su ciente”.
Mas o torturador, ensurdecido pelo ardor da ação, executou a sua
tortura até o menino quase perder os sentidos. Em seguida, o teólogo
se voltou para nós e disse: “Não fez nada de errado, mas precisava ser
humilhado”, pois usou essa palavra.51 Quem é que alguma vez educou
desse modo um escravo, ou melhor, um jumento? O cavalo de boa
raça é mais bem domado com sons da boca e carícias do que com
látego e esporas. Se o tratares com mais aspereza, torna-se rebelde, dá
coices, morde e recua. Se pressionas muito o boi com aguilhões, ele
sacode o jugo e ataca o aguilhoador. Deve-se tratar um caráter nobre
da mesma forma que é tratado o lhote do leão. Somente a habilidade
doma os elefantes, não a violência, e não existe nenhum animal tão
feroz que não se amanse pela delicadeza, nem nenhum animal tão
manso que não se exaspere com a crueldade desmedida. É coisa servil
ser castigado por medo de algum mal; ora, o costume comum chama
os lhos de liberi,52 pois lhes convém uma educação liberal, muito
distinta da servil: embora os que têm bom senso ajam
preferencialmente por meio de brandura e benefícios para que os
servos se dispam da pele da escravidão, pois se lembram de que eles
também são seres humanos, não animais.
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Admito que, assim como os lósofos descrevem um sábio, e os
mestres de retórica um orador que di cilmente encontrarias em algum
lugar, da mesma forma é muito mais fácil indicar como é preciso que
os professores sejam do que encontrar muitos que correspondam à
forma prescrita. Ora, essa deveria ser uma preocupação pública, tanto
da parte das autoridades civis quanto da do alto clero: assim como as
pessoas recebem formação para atuar na guerra e cantar nos templos,
da mesma maneira devem receber uma formação bem maior para que
instruam os lhos dos cidadãos de forma correta e liberal. Vespasiano
tirava dos seus rendimentos cem mil sestércios por ano para os
mestres de retórica latinos e gregos. Também Plínio, o Jovem, retirou
uma enorme soma dos seus recursos pessoais para esse mesmo m.
Ora, se a administração pública cessa de fazer a sua parte,
naturalmente cada um deve cuidar da própria casa.
Dizes: “Que farão os pobres, que mal alimentam seus lhos e que
estão tão longe de poderem contratar um educador assim?”. Quanto a
isso, nada tenho que dizer, a não ser citar aquele trecho da comédia:
“Vivemos como podemos, visto que não o podemos como
queremos”.72 Nós ensinamos o melhor método de ensinar; não
podemos dar as condições para isso. A não ser que também nisso a
generosidade dos ricos deva socorrer os que nasceram dotados de boas
capacidades, mas que, por causa das di culdades nanceiras, não são
capazes de exercer os seus talentos naturais.
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Mas vejo que desejas que também mencionemos algo sobre o método
de ensino. Bem, que se faça a vontade de Vitré, embora eu veja que
Quintiliano tenha dado preceitos sobre essas coisas com a máxima
diligência, de modo que escrever sobre elas depois dele parece algo
absolutamente impudente. Portanto, quem quiser educar alguém
cuidará para que ensine logo o que é excelente; ora, para que ensine o
que é excelente de forma corretíssima é preciso que saiba tudo ou, se
isso for negado à inteligência humana, ao menos os fatos mais
importantes de cada disciplina. Nesse aspecto, não me contentarei com
aqueles dez ou doze autores, mas exigirei aquele círculo de
conhecimentos,112 de modo que mesmo quem se prepara para ensinar
as coisas mais elementares não ignore nada. Portanto, deverá vaguear
por todo tipo de escritores de modo que leia primeiramente cada um
dos melhores, mas que não deixe de degustar nenhum autor, mesmo
que não seja muito bom. E para que faça isso com maior fruto, que
tenha de antemão preparados certos tópicos, categorias e fórmulas a
m de que, em todo lugar que lhe ocorrer algo que deva ser anotado,
seja acrescentado à sua devida categoria. Ora, de que forma isso deva
ser feito, demonstramo-lo na segunda parte do De copia.113 Mas se a
alguém faltar tempo livre ou uma grande quantidade de livros, Plínio,
o Velho, por si só fornecerá uma enorme quantidade de coisas;
Macróbio e Ateneu, muitas coisas; Aulo Gélio, coisas variadas.
Entretanto, deve-se acima de tudo correr às fontes mesmas, ou seja,
aos gregos e aos antigos. Ensinarão loso a com a máxima excelência
Platão e Aristóteles; também o discípulo deste, Teofrasto; por m,
Plotino, in uenciado por um e por outro. Entre os teólogos, depois das
Sagradas Escrituras, não há ninguém melhor do que Orígenes,
ninguém mais sutil e agradável que Crisóstomo, ninguém mais
venerável que Basílio. Entre os latinos, existem ao menos dois notáveis
nesta área: Ambrósio, admirável nos simbolismos, e Jerônimo,
extremamente versado nas Sagradas Letras. Mas se não houver tempo
livre para deter-se em cada um deles, contudo julgo que todos devam
ser degustados; no momento não é razoável compor um catálogo
deles. Certamente, em razão da exposição114 dos poetas, que têm o
costume de temperar os seus escritos com toda sorte de saberes, deve-
se dominar uma grande quantidade de mitos. Donde a requisitarias de
preferência, senão de Homero, pai de todos os mitos? Todavia, as
Metamorfoses e os Fasti de Ovídio não serão de pouca importância,
mesmo que escritos em latim. Deve-se dominar a cosmogra a, que
também é útil na história, para não dizer nos poetas. Ensina-a com
muita concisão Pompônio Mela, com muita erudição Ptolomeu, com
muita diligência Plínio. Ora, Estrabão115 não trata somente disso. Aqui
a parte mais importante é observar qual a correspondência entre os
nomes de montes, rios, regiões e cidades correntemente admitidos e os
antigos. Deve-se ter o mesmo cuidado com os nomes de árvores,
plantas, animais, instrumentos, roupas e pedras preciosas. É
impressionante como o comum dos professores primários não entende
nada sobre eles. O conhecimento dessas coisas se obtém em parte com
os diversos autores que escreveram sobre a agricultura,116 a arte da
guerra,117 a arquitetura,118 a culinária,119 as pedras preciosas, as plantas
e as propriedades dos animais. Embora Júlio Pólux120 tenha ensinado
magistralmente sobre os nomes das coisas — oxalá os tivesse separado
tão cuidadosamente121 quanto os reuniu ricamente — em parte com
base na etimologia, em parte com base nas línguas que preservam até
os nossos dias os vestígios manifestos de um idioma antigo e
incorrupto, como a dos bizantinos, a dos italianos e a dos espanhóis,
pois o falar dos franceses degenerou mais. Deve-se ter o domínio das
coisas relativas à Antigüidade, que se obtém não somente com os
autores do passado, mas também com as moedas antigas, com as
inscrições e com as pedras. Deve-se aprender de cor também a
genealogia dos deuses: os mitos estão recheados disso por toda a parte.
Depois de Hesíodo, Bocácio122 a ensinou com mais felicidade do que se
esperaria da sua época. Não se deve ignorar a astronomia, sobretudo a
de Higino, pois os poetas a salpicam nas suas criações por todos os
lados. Devem-se dominar a essência e a natureza de todas as coisas,
visto que é daí que costumam tomar de empréstimo analogias,
epítetos, comparações, imagens,123 metáforas e outras guras de
linguagem desse tipo. Ademais, se alguém quiser explicar Prudêncio,
entre os cristãos o único poeta verdadeiramente eloqüente, é preciso
que conheça a fundo as Sagradas Escrituras. Finalmente, não há
nenhum saber, nem o da arte da guerra, nem o da agricultura, nem o
da música, nem o da arquitetura, que não seja útil aos que assumem a
empreitada de explicar os poetas ou os oradores antigos. Mas vejo que
há muito franzes a testa. Dizes: “Certamente tu impões um fardo
imenso também ao professor primário”. Sobrecarrego, sim, mas
somente a um, a m de libertar o maior número possível. Quero que
um só leia tudo para que todos não tenham que ler tudo.124
: Tu, tão longevo, e ainda por cima abade e cortesão, nunca
viste livros nas casas das senhoras nobres?
: Não.
: Acaso pensas ser homem quem não tem sabedoria nem
queira adquiri-la?
: Sim.
: Sobremaneira.
: Não sei o quanto vos sobra; quanto a mim, por menor
que me seja, preferiria consumi-lo em bons estudos a consumi-lo em
orações recitadas sem disposição, em banquetes que duram a noite
inteira, em esvaziamentos de grandes taças.
: Não sei como isso se dá; assim como a albarda não
convém ao boi, da mesma forma as letras não convêm à mulher.154
: Mas não podes negar que a albarda é mais adequada ao
boi do que a mitra a um asno ou a um porco. Que pensas da Virgem
Mãe?
: Como é que eu fui topar com esta mulher? Se vieres nos
visitar algum dia, eu te receberei com mais afabilidade.
: Como?
4 Erasmo usa o provérbio latino calcar addere currenti, que signi ca “incentivar”, “estimular”
e outros.
5 Obra de Erasmo dividida em duas partes cujo escopo é ensinar como expressar-se com
mais riqueza e elegância. Na primeira parte, o autor trata da copia verborum, isto é, de como
usar as palavras e as guras de linguagem para adquirir uma capacidade de expressão mais rica;
na segunda, versa sobre a copia rerum, a saber, como ampliar e aprofundar os temas abordados
em um discurso ou redação.
7 Com efeito, o De pueris statim ac liberaliter instituendis foi concebido como um exemplo
de exercício retórico para integrar o De duplici copia verborum ac rerum.
10 O interlocutor é ctício.
11 A imagem é tirada dos versos 361 e 362 da obra Os trabalhos e os dias, de Hesíodo.
12 Trata-se de uma superstição ainda em voga entre os mais velhos na região da Flandres.
Acredita-se que, caso uma grávida leve um susto, haja danos físicos à criança em seu ventre.
Assim, se a gestante for tocada repentinamente por uma pessoa ou um animal, a criança
nascerá ou com uma má-formação, como o lábio leporino, ou com uma marca de formato
idêntico ao do responsável pelo toque, no mesmo local em que houve o contato no corpo da
mãe. Portanto, na hipótese mencionada no texto de uma grávida ser tocada subitamente no
rosto, nada mais lhe restaria, a m de proteger a integridade da criança, senão remover o mais
depressa possível o toque recebido naquela parte visível do corpo e colocá-lo em algum lugar
escondido sob as vestes, conforme o exposto na seqüência.
13 Ditado que versa sobre a di culdade de ensinar algo a uma pessoa de mais idade. Em
português, provérbios de sentido semelhante são: “Burro velho não toma andadura”, “cachorro
velho não aprende truques novos”, entre outros.
14 Também chamada de actio, trata-se aqui da última das cinco partes da retórica clássica no
processo de elaboração do discurso. As outras são a inventio (encontrar o que dizer), a
dispositio (a ordenação dos elementos do discurso), a elocutio (a ornamentação do discurso
tendo em vista coisas como clareza, elegância e correção) e a memoria (a memorização do
discurso). A pronuntiatio, por sua vez, é a apresentação mesma do discurso, o ato de proferi-lo,
atentando-se para a dicção e os gestos adequados.
15 A expressão latina terra marique signi ca, em sentido gurado, “com toda a diligência”.
18 Alusão ao célebre verso de Horácio: “Quo semel est imbuta recens, servabit odorem testa
diu” [O vaso de barro novo conservará por longo tempo o odor daquilo de que uma vez se
impregnou].
19 O estilo era uma haste metálica usada pelos antigos para exercitar a escrita em tabuinhas
cobertas com cera. Esse instrumento era pontudo em uma extremidade, para escrever, e
achatado na outra, para apagar.
20 1Tm 2, 15.
21 Pr 10, 1.
22 Trata-se da sí lis.
24 Por causa do seu ambiente aprazível e próspero, Alexandria tinha fama na Antigüidade de
efeminar os moços e incliná-los à luxúria e outros vícios. Os servos oriundos de Alexandria,
destarte, eram especialmente requisitados nos banquetes para entreter os convivas com ditos
jocosos e não raro obscenos.
25 Os cães de Malta não serviam nem para a caça nem para a proteção; sua única utilidade
era o deleite dos seus donos.
29 Ou, como costumamos dizer em português, “um abraço”, “um aperto de mão”, “meu
muito obrigado”, ou algo semelhante quando insinuamos que não pagaremos nada por algo.
30 Mina, dracma, talento e trióbulo são moedas da Grécia Antiga. A relação entre elas era
aproximadamente a seguinte: 2 trióbulos equivaliam a 1 dracma; 100 dracmas a 1 mina; 600
minas a um talento.
32 O ditado latino signi ca que, se uma pessoa quiser que algo do seu interesse seja bem
executado, deve cuidar disso pessoalmente.
36 A palavra “irmãs” parece ser empregada em sentido gurado para designar pessoas
ligadas entre si por inclinações comuns ou algum laço de parentesco, a menos que se queira
pensar em um possível equívoco do autor.
37 Lélia se casou com Quinto Múcio Cévola, eminente jurista romano, e concebeu dele duas
lhas, ambas chamadas Múcia, pois as meninas romanas daquele período, séculos i e ii antes de
Cristo, recebiam o nome da gens, ou seja, da família, à qual pertencia o pai. A mais nova,
célebre por sua desenvoltura retórica, uniu-se em matrimônio com o orador Lúcio Licínio
Crasso e, assim como sua mãe, teve duas lhas, ambas de nome Licínia. A mais velha,
igualmente louvada pelos seus dotes oratórios, casou-se com Públio Cornélio Cipião Násica.
Do exposto, percebe-se que Licínia foi mais precisamente bisneta de Caio Lélio.
39 Família de sábios e eruditos da Holanda. Erasmo teve contato principalmente com Jacob
Canter.
41 Alusão à brilhante estirpe de soberanas católicas: Isabel, Joana, Maria e Catarina, que se
tornaria célebre por seu casamento com Henrique viii da Inglaterra.
43 Erasmo se refere aqui ao ditado latino In Care periculum facere, que signi ca “testar algo
em um cário”. O sentido do ditado é o seguinte: se for preciso fazer uma experiência arriscada, é
melhor que se o faça em algo ou alguém de pouco valor, pois caso as coisas dêem errado, o
prejuízo será pequeno. Os cários, habitantes da Cária, região hoje localizada na Turquia, eram
conhecidos por seu apreço pela guerra, por sua atuação como mercenários e por seus costumes
considerados bárbaros pelos gregos, por isso se lhes atribuía pouco valor.
44 Personagem da mitologia grega dotado de cem olhos que nunca se fechavam ao mesmo
tempo.
45 Trata-se de Mílon (ou Milão) de Crotona, conhecido por sua força descomunal.
48 Por schola publica Erasmo entende a escola estabelecida sob uma autoridade pública,
eclesiástica ou estatal, em contraposição à escola fundada e organizada pela iniciativa exclusiva
do seu diretor, cujos métodos de recrutamento de professores e de ensino dão margem a
diversas críticas.
54 Fm 1, 10–18.
55 Ef 6, 9.
56 Ef 6, 4.
60 Teócrito, Idyllia, 15, 90. Erasmo parece valer-se aqui de um jogo de palavras só
perceptível se se tiver diante dos olhos o original grego. Ora, o particípio aoristo πασσάμενος
[passámenos], presente no provérbio, pode vir tanto do verbo πάομαι [páomai], que signi ca
“eu adquiro”, donde literalmente se leria: “Depois de adquirires, manda”, quanto do verbo
πατέομαι [patêomai], que signi ca “eu como”, em alusão aos fatos narrados, cujo sentido literal
seria: “Depois de comer, manda”.
64 Diferentemente do que ocorre acima, aqui a expressão schola publica tem sentido
pejorativo, isto é, lugar de encontro de alunos de boa e de má índole.
65 Erasmo utiliza a expressão beanum exuere, que literalmente signi ca “deixar de ser
calouro”, “deixar de ser novato”, e por extensão “passar por um rito de iniciação para ser aceito
pelos veteranos”. A palavra beanus, traduzida por “novato” ou “calouro”, vem do francês
medieval béjaune, e por isso Erasmo quali ca o termo beanus de bárbaro. Identi cando a
situação descrita na seqüência com o atual trote aplicado em alguns lugares, optamos pelo
emprego dessa palavra, visto que como beanus também tem origens bárbaras, isto é, fora do
léxico greco-latino.
66 Erasmo usa a palavra vesperia, que consistia no último ato realizado nas universidades
para que se alcançasse a dignidade de doutor.
67 Pr 13, 24.
70 Eclo 30, 1.
79 A existência desse animal mitológico era plausível na época em que o texto foi escrito por
causa da autoridade de fontes antigas como Ctésias de Cnido (Indiká), Aristóteles (História dos
animais, ii, 1) e Plínio, o Velho (História natural, xi, 106) bem como da versão latina de certas
passagens bíblicas, como Sl 22, 21. Na tradição dos textos latinos, o unicórnio era chamado,
entre outros, de asinus Indicus, burro da Índia, nome adotado por Erasmo no texto. Alguns
estudiosos vêem no asinus Indicus alguma espécie de rinoceronte.
80 Além de “mão”, essa palavra pode signi car, entre outros, “tromba”.
81 A palavra grega para tromba, proboskís (προβοσκίς), traz na sua composição o verbo
grego bôsko (βόσκω), que signi ca “alimentar”, “nutrir”.
82 Drákon (δράκων) é a forma grega, ao passo que draco, a latina. Dessa palavra provém o
nosso vocábulo “dragão”.
86 Espécie de coruja que, de acordo com a mitologia romana, sugava o sangue das crianças.
88 Demônios que atormentam o sono das pessoas, muitas vezes tomados simplesmente
como sinônimo de pesadelo.
90 A mesma forma das palavras mencionadas por Erasmo pode ter diversos signi cados.
Assim, respectivamente, a forma musae, pode signi car “da musa” e “para a musa” no singular e
“as musas e “ó musas” no plural, e a forma legeris pode signi car “és lido”, “tenhas lido” e “terás
lido”.
91 No sentido técnico empregado aqui por Erasmo, entende-se por “tema” a seleção de
passagens extraídas dos grandes autores da Antigüidade para o aprimoramento moral e a
prática de exercícios de retórica e redação.
95 Provavelmente Césio Basso, poeta lírico. Erasmo parece ter-se equivocado com o
primeiro nome desse escritor.
97 Note-se que para Erasmo merecem o título de “liberais” outros saberes além dos sete que
compunham o Trivium e o Quadrivium.
98 Literalmente, “modos de signi car as coisas”. Erasmo aproveita o uso dessa expressão
para fazer uma alusão ao tratado gramatical em forma de poema De modis signi candi, de
Marvila, composto no século xiv e muito conhecido na época. Nesse poema, distinguem-se as
“modalidades da essência”, que se referem às coisas em si, e as “modalidades do sentido”,
dependentes do espírito. Ora, não depende do espírito que uma palavra designe um substantivo
ou um verbo; mas depende dele que uma palavra tenha valor essencial (“o branco”) ou
acidental (“o cavalo branco”). Ademais, tomemos as palavras “amo” e “amor”: a expressão que
as designa (vox) é a mesma, e elas se diferenciam unicamente por suas modalidades (modi
essendi) ou propriedades. Assim, “amor” exprime a idéia per modum permanentis (valor
substantivo) e “amo”, per modum uxus ( exão verbal). Portanto, há dois modi essendi, mas o
mesmo modus signi candi. Erasmo critica o ensino de tais sutilezas a crianças.
99 Literalmente, “em virtude de”. Em vez de explicar os fatos gramaticais com objetividade,
os gramáticos daquele tempo tinham adquirido o hábito de redigir pequenas questões
silogísticas e muitos sutis, por vezes meramente tautológicas e mesmo ridículas, que faziam a
alegria dos professores sádicos e aterrorizavam os alunos. Vejamos um exemplo de questões
assim: dignor te [concedo-te a dignidade] e iudico te dignum [julgo-te digno] são expressões
equivalentes. Contudo, pronunciadas essas palavras, o espírito pede algo a mais, um
complemento: digno de quê? Considerando que o signi cado depende da coisa signi cada de
forma indireta, ele exige o ablativo em latim. Por quê? Em virtude da natureza das palavras
pronunciadas, isto é, por causa de sua “força”, pois em latim dignor e dignum regem ablativo.
Note-se que todo esse volteio nada mais faz do que chegar a uma mera tautologia: o
complemento daquelas expressões é um ablativo porque as palavras usadas nelas regem o
ablativo.
100 Gramática em versos dedicada especialmente à sintaxe e escrita por Ludolfo de Luco.
101 Coletânea de trechos recolhidos de diversos autores e que trata do dogma e da moral
católicos.
103 Plauto (Poenulus, iii, 3, 14–15) se refere mais precisamente às pessoas que,
desconhecendo o caminho para o mar, são forçadas a tomar algum rio como guia, em outras
palavras, percorrem caminhos incertos.
104 Ou seja, freqüentadas por muita gente, cando, assim, sujeitos à opinião do vulgo, coisa
pouco con ável; ademais, Pitágoras manifesta certa preocupação com possíveis contaminações.
106 Na Ars Grammatica de Donato, essas guras estão divididas em esquemas e tropos.
107 Erasmo emprega vários termos técnicos da retórica: as proposições (propositiones) são
os pontos importantes do discurso em torno dos quais gravita a argumentação; os tópicos
comuns (loci probationum; loci communes) são os assuntos comumente discutidos,
comentados e meditados por diversos autores; os ornamentos (exornationes) se referem às
guras de linguagem; as ampli cações (ampli cationes) consistem no desenvolvimento de um
assunto por meio do acréscimo de informações e detalhes; por m, as fórmulas de transição
(formulae transitionum) versam sobre como empregar certas palavras e expressões para dar
coesão ao texto.
109 Erasmo tem em mente aqui a antiga técnica conhecida hoje como “palácio da memória”.
110 Disposição do direito romano que permitia restituir os direitos civis a quem os havia
perdido por motivo de prisão ou ausência. Erasmo faz, pois, uma analogia tirada do direito
romano para ilustrar a recuperação de um dado da memória que se encontrava perdido.
113 Mais precisamente na seção Ratio colligendi exempla [O método de coletar exemplos].
Ali Erasmo trata mais profusamente do modo de registrar e ordenar as informações obtidas
durante os estudos. De forma resumida, Erasmo propõe que o estudante divida as suas
anotações em tópicos com algumas subdivisões, por exemplo: tópico fé; subdivisões: fé em
Deus, fé humana, perfídia etc. Em seguida, os tópicos e as suas subdivisões devem receber
de nições e comentários, como: o que é a fé, que frutos produz, de que males padecem os que
não têm fé entre outros. Ademais, pode-se também criar um tópico de discussão comparativa,
por exemplo: seria a república superior ou inferior à monarquia? Por m, as seções atribuídas a
cada tópico e subdivisão devem ter espaços para que sejam preenchidos com as máximas, os
comentários, as fábulas, as parábolas, as explicações e os exemplos — naturalmente
relacionados com aquele tópico — que o estudante encontrar no curso das suas leituras. Assim,
quando compuser um texto, terá à mão um grande número de referências para enriquecê-lo e
torná-lo mais elegante.
114 Trata-se da enarratio, isto é, da leitura comentada dos textos, método que esteve na base
da educação defendida pelos humanistas.
120 Erudito grego que viveu no segundo século da era cristã e autor do Onomasticon, obra
mencionada por Erasmo.
121 Erasmo alude ao fato de Júlio Pólux ter separado as palavras por temas, não por ordem
alfabética.
125 Provérbio que signi ca que uma pessoa não deve opinar em coisas que estão fora do seu
campo de especialização ou da sua competência. A origem do provérbio é a seguinte: quando
terminava uma pintura, Apeles, renomado artista grego, tinha o hábito de expô-la ao público
para que este desse o seu julgamento. O artista, escondido atrás do quadro, ouvia tudo o que
diziam do seu trabalho. Certa feita, um sapateiro notou que um dos calçados de um par pintado
por Apeles tinha um defeito. O pintor escutou a crítica com atenção e tratou de corrigir o
problema. No dia seguinte, o mesmo sapateiro retornou ao ateliê de Apeles e, ao ver que o
quadro havia sido corrigido, sentiu tanto orgulho de ver o efeito causado por suas observações
que logo tratou de encontrar outro problema para o mesmo quadro a m de testar o seu poder
de persuasão. Assim, passou a falar mal do modo como havia sido pintada a perna da
personagem retratada. Neste instante, Apeles saltou do seu esconderijo e exclamou: “Ó
sapateiro, não queiras julgar além das sandálias!”. Essa anedota deu origem à palavra
ultracrepidário, pertencente ao léxico português.
126 Erasmo se refere à sua obra monumental Adagia, que contém a explicação detalhada de
milhares de provérbios.
129 Erasmo não vê nenhum valor pedagógico nas línguas vernáculas. A única utilidade delas
seria enunciar o tema; o desenvolvimento, porém, deve ser feito em latim ou em grego.
130 Erasmo explica esse tópico com mais profundidade no seu De copia. De maneira
sintética, extraímos o seguinte desse texto: a primeira dessas sentenças-modelos (utrique simili)
é composta de duas partes (ou termos) que se opõem às outras duas que compõe a segunda.
Exemplo: “A complacência (primeira parte) gera amigos (segunda parte); a verdade (terceira
parte), o ódio (quarta parte)”. O segundo tipo (ratione subiecta) comporta a mesma antítese nas
duas proposições, mas cada uma é sustentada por uma razão (ratio) extraída dos tópicos
comuns (loci communes). Exemplo: “À juventude convém a laboriosidade (primeira parte),
(introduz-se a razão — segunda parte) pois é desonroso consumir no ócio e em torpes prazeres
os dons que a natureza concedeu para a aquisição das artes liberais; mas à velhice convém a
opulência (terceira parte), (introduz-se a razão — quarta parte) para que aquela fase da vida,
bastante destituída das proteções naturais se sustente de algum modo mediante o apoio das
coisas externas”.
131 A saber, a propositio (juízo sobre uma matéria que se deve provar), a ratio (o que prova),
a con rmatio (prova da prova), a exornatio (a ilustração da matéria) e a complexio (síntese de
cada divisão).
132 Diz Erasmo no seu De copia: “Copiosissima expolitio septem constat partibus:
propositione, ratione, duplici sententia cui ratio item duplex subiici potest, contrario, simili,
exemplo, conclusione”.
133 Por exemplo, tratar individualmente de cada grupo que compõe a sociedade e suas
funções.
135 Ao de nir o termo latino notatio, Erasmo a rma o seguinte no seu De copia: “Descrição
de algo por meio da indicação dos sinais que o acompanham”. Assim, por “ira”, alguém pode
dizer: “Efervescência do espírito e da bile que cobre o rosto de palidez, os olhos de ardor e
espalha o tremor em todos os membros do corpo”.
136 Por exemplo, uma mesma sentença trabalhada no tópico bem deve sofrer alterações se
for tratada no tópico amizade.
137 Trata-se da praelectio. Para Erasmo, na esteira de Quintiliano, o professor deve ler textos
selecionados em voz alta e explicá-los; os alunos, por sua vez, devem acompanhá-lo nos seus
próprios textos. Ademais, os alunos também devem ser estimulados a ler em voz alta para
praticar a pronúncia das palavras.
140 Horácio, Sátiras, i, 4, 120. Provérbio equivalente ao nosso “nadar de braçada”, ou seja,
não ter di culdade em executar certa atividade.
145 Rômulo é forma diminutiva de Romo para indicar um temperamento mais manso. Essa
explicação é dada por Mário Sérvio Honorato na sua obra Commentarii in Vergilii Aeneidos
libros, i, 273.
146 O texto latino faz uso do termo pietas, que em latim designa amiúde o senso dos deveres
para com a religião, a pátria, os pais, a família e assim por diante, aproximando-se por vezes
daquilo que entendemos por “caridade”. Optamos por traduzir o vocábulo neste trecho por
“virtude”, visto que correntemente a palavra “piedade” tem meramente o sentido de devoção
religiosa ou de comiseração, distanciando-se muito do original latino do ponto de vista
semântico.
147 Platão expõe essa teoria no livro O banquete. O neoplatonismo teve forte in uência no
Renascimento.
148 Trata-se da iocandi ratio. Cf. Quintiliano, Instituição oratória, v, 10 e vi, 3 e Cícero, De
oratore, ii, 59–71.
149 O termo latino é decorum, palavra que corresponde à expressão latina quod decet [o
que convém] e que transmite a regra máxima dos humanistas e dos autores clássicos. Trata-se
de um conceito que se aplica aos aspectos morais e físicos e marcam uma profunda harmonia
intelectual e afetiva. No seu Dos deveres, Cícero identi ca o decorum com o que é moralmente
correto. Nesse trecho, o termo indica a congruência entre determinados tipos e o seu caráter,
donde nossa opção por “conveniência”.
153 Erasmo usa aqui o seguinte provérbio latino: clitellae non conveniunt bovi. Aplica-se
esse provérbio quando se quer dizer que não é prudente con ar certa responsabilidade a uma
pessoa incapaz dela.
156 Intelectuais alemães cujos anos de nascimento e falecimento são respectivamente 1492 e
1564 e 1470 e 1530. O primeiro foi pensador humanista; o segundo, reformador protestante.
157 O nome dado ao abade por Erasmo é bastante revelador. Há um adágio latino que reza
Antronius asinus, o asno de Antrones, e é usado para referir-se a alguém corpulento, mas
excepcionalmente estúpido. A cidade de Antrones localizava-se na Tessália, região da Grécia.
Os asnos dessa cidade tinham fama de ser enormes. O nome do abade, portanto, faz referência,
a um só tempo, à sua compleição e à sua pouca inteligência.