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BOLETIM TELESSAÚDEBA | Ano 9 • Nº 6 • Junho 2022

Figura 1.

O SUS e a população LGBTQIA+

SAÚDE LGBTQIA+
POR · MARIANA ARRAES PIERRE CAVALCANTE · RESIDENTE tica Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE PELA FESF/SUS Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pela
(FIOCRUZ). CRM BA: 37.080 Portaria n° 2.836 de 2011, que tem como objetivos
principais eliminar a discriminação e o preconcei-

S
egundo o Observatório de Mortes Violentas to institucional, reduzir desigualdades e contribuir
no Brasil, no ano de 2020, foram registradas para a consolidação do Sistema Único de Saúde
237 mortes motivadas pela LGBTIfobia, das (SUS) como sistema universal, integral e equitativo
quais 70% tinham como vítimas mulheres trans ou e as necessidades de saúde desta população. (1,3)
travestis, população que, no nosso país, tem uma Partindo desse contexto, este boletim propõe
expectativa de vida de 35 anos. O Brasil é conside- uma reflexão sobre os cuidados à população LGBT-
rado o país mais perigoso do mundo para pessoas QIA+ e convida os profissionais de saúde a ampliar
transexuais. seu olhar, diminuindo estigmas ainda perpetuados
Todas as formas de discriminação devem ser na nossa sociedade.
consideradas na determinação social de sofrimento
e doença. Além disso, a comunidade LGBTQIA+, de CONHECENDO OS TERMOS
forma geral, enfrenta inúmeros obstáculos que difi- SEXO BIOLÓGICO: referente ao órgão genital iden-
cultam sua procura e adesão aos serviços de saúde, tificado ao nascimento.
o que aumenta sua vulnerabilidade.
• Fêmea, macho e intersexo (antigamente conhe-
Os direitos da comunidade LGBTQIA+ ainda cido como “hermafrodita”, refere-se à pessoa que
são desconhecidas por grande parte dos profissio- nasce com características anatômicas sexuais que
nais de saúde, mesmo com a implantação da Polí- não se encaixam nas vistas tipicamente).
IDENTIDADE DE GÊNERO: identificação e pertenci- PRINCIPAIS BARREIRAS E
mento a um tipo de gênero, independente do sexo ESPECIFICIDADES
biológico, que pode se aproximar do feminino, do
masculino, de ambos ou até mesmo de nenhum. O despreparo de profissionais de saúde e o des-
conhecimento sobre as espe-
• Uma pessoa que nasce
cificidades do cuidado da po-
biologicamente como fêmea,
pulação LGBTQIA+, devido ao
pode se identificar como mu-
preconceito, à pouca atenção
lher (mulher cisgênero) ou
dada ao tema durante a forma-
como homem (homem trans-
ção ou até à falta de interesse
gênero); alguém que nasce
em capacitar-se, criam um am-
biologicamente como macho,
biente pouco convidativo, por
pode se identificar como ho-
vezes hostil, violando o direito
mem (homem cisgênero) ou
Para o Conselho
à saúde integral.
como mulher (mulher trans-
gênero); “não-binário” é um Você sabia? Federal de Medi- Entre as dificuldades encon-
cina (CFM), travesti é a mulher trans que não fez tradas nos atendimentos
termo que se refere às identi-
ou não deseja realizar cirurgia de redesignação
dades de gênero que não são dessa população em unida-
genital. Para a comunidade LGBTQIA+, porém,
estritamente masculinas ou independente de cirurgia, trata-se de uma auto-
des de saúde, estão:
femininas. definição atrelada a um posicionamento político, • O desrespeito ao nome so-
que busca ressignificar um termo durante muito cial de pessoas trans;
ORIENTAÇÃO SEXUAL: refere-
tempo marginalizado. Deve SEMPRE ser usado no
-se à atração afetiva e/ou se- feminino (“A travesti”). • A heterossexualidade pre-
xual entre os indivíduos. sumida, o que acaba gerando
• Heterossexual - pessoa manejos clínicos errôneos;
que sente atração por outras • A falta de garantias sobre a
do gênero oposto; confidencialidade;
• Homossexual - alguém • Experiências prévias de dis-
que sente atração por pessoas criminação ou medo de que
do mesmo gênero, como os elas aconteçam após revelar a
gays e as lésbicas; orientação sexual;
• Bissexuais - sentem atra- • Associação do vírus HIV à
ção por indivíduos de ambos
os gêneros;
ELA, ELE OU ELU? comunidade, aumentando o
estigma existente;
ATENTE-SE AOS PRONOMES!
• Assexuais - sentem pouca Sempre pergunte ao usuário como ele gostaria • Tratamentos inadequados
ou nenhuma atração/desejo de ser chamado! O direito ao uso do nome social e omissão de direitos;
é reconhecido no Sistema Único de Saúde (SUS)
sexual por pessoas;
e ele pode constar no Cartão Nacional de Saúde, • Constrangimento e distan-
• Pansexuais - se sentem sem ser necessárias informações referentes ao ciamento por parte do profis-
atraídos por qualquer repre- sexo biológico e o nome de registro civil. (5,6) sional. (2,7)
sentação de gênero, não se li-
mitando a masculino e feminino.
EXPRESSÃO DE GÊNERO: como o indivíduo de-
monstra seu gênero, baseado nos papeis tradicio-
nais, através de roupas, comportamentos, estética.
(4)
Atenção: De forma geral, a população LGBTQIA+ está mais
vulnerável a transtornos depressivos, ansiosos,
suicídio, transtornos alimentares, uso abusivo de substância e violência
Mulheres cis lésbicas e bissexuais são menos propensas a receberem
procedimentos preventivos para câncer de mama e colo uterino, tendem a não
receber informações sobre prevenção de Infecções Sexualmente Trans-
doméstica, resultado da discriminação, do isolamento, do preconceito interna- missíveis (IST’s), são silenciadas pela suposição de que são heterossexuais e
lizado e da heterocisnormatividade compulsória. acabam recebendo prescrições de medicações muitas vezes desnecessárias,
como anticoncepcionais. (4,8)

CONDUÇÃO DO PROFISSIONAL 9 No atendimento aos homens trans, tam-


FRENTE A POPULAÇÃO LGBTQIA+ bém deve ser abordado o desejo ou a já rea-
lização de hormonização ou procedimentos
9 Mulheres trans devem ser questionadas cirúrgicos, modo de uso, contraindicações,
sobre já ter realizado, ou ter desejo de realizar, efeitos adversos e necessidade de seguimento
algum procedimento para modificação corpo- adequado.;
ral e informadas sobre os que estão disponíveis
9 Acessórios como o Binder (faixa elásti-
pelo SUS;
ca que, colocada em torno do tórax, diminui
9 A aplicação de silicone industrial, comum o volume das mamas) devem ser usados com
entre as mulheres trans e travestis, deve ser precaução, evitando materiais como ataduras,
contraindicada, devido ao maior risco de in- esparadrapos e faixas autocolantes, mantidos
fecção, necrose tecidual, embolia pulmonar e arejados e lavados com regularidades. Seu uso
morte; prolongado pode causar problemas respirató-
9 Outra prática comum é a ocultação do pê- rios, dor lombar, prurido local, diminuição da
nis e dos testículos, conhecida como “aquen- capacidade de expansão pulmonar;
dar”, na qual os testículos são empurrados pelo 9 Comumente negligenciados nesta popu-
canal inguinal em direção à cavidade abdomi- lação, os exames de rastreio de câncer de colo
nal e o pênis é dobrado para trás, prendendo-o uterino e de mama devem ser realizados;
com uma fita na região do períneo, dos glúteos
9 Em pessoas intersexo, uma prática bas-
ou da perna. Deve-se orientar uso de fitas sem
tante contestada é a cirurgia para “adequação”
látex, à prova de água, evitando uso prolonga-
da genitália, especialmente por ser realizada
do e prevenindo lacerações, dor, irritação ou
em bebês, que não podem expressar consenti-
torção testicular;
mento, além do risco de se atribuir um genital
9 Caso façam uso de terapia hormonal, de- discordante da futura identidade de gênero da
vem ser abordadas sobre posologia adminis- criança. (4)
trada, riscos do uso indiscriminado e importân-
cia da realização de exames de seguimento.

SE LIGA
O cuidado em saúde de pessoas LGBTQIA+ não deve ser reduzido
às IST’s! É necessário diminuir o estigma
Importante social e garantir a integralidade do cuidado, abordando sempre
90% das
Estima-se que até cerca de as mais diversas queixas de saúde.

mulheres trans e travestis estejam


na prostituição no Brasil, em grande
parte devido ao preconceito e impedimento de acesso O PROCESSO TRANSEXUAIZADOR
ao mercado formal de trabalho. Tal dado torna-as
NO BRASIL
mais expostas à IST’s, além das violências vivenciadas
No Brasil, segundo a Resolução n°2.265 de 2019, o processo de hormonização para a masculinização
socialmente. Juntamente às parcerias sorodiferentes,
ou feminização dos corpos de acordo com a identidade de gênero pode ser realizada a partir
aos homens que fazem sexo com homens (HSH) e aos de 16 anos, com acompanhamento de equipe multiprofissional e ambulatorial especializado. Os
trabalhadores do sexo, são uma das populações-chave medicamentos mais utilizados são estrógenos, antiandróginos e testosterona, iniciados em doses
para a prescrição da Profilaxia Pré-Exposição ao Vírus baixas que são gradualmente aumentadas. Procedimentos cirúrgicos podem ser realizados a partir
HIV (PrEP), que deve ser divulgada como integrante da dos 18 anos, somente após o acompanhamento prévio de no mínimo 1 ano. (9)

estratégia de prevenção combinada. (8)


O PAPEL DA ATENÇÃO PRIMÁRIA Saúde. 2020 julho-setembro. [Acesso em 14 abr.
2022]; 12 (3). Disponível em https://pssaucdb.em-
Para que haja maior visibilidade dos cuidados nuvens.com.br/pssa/article/view/1047/1145.
que devem ser prestados à população LGBTQIA+, e
3. GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório: Observató-
menor índice de violências vivenciadas nos serviços rio de mortes violentas de LGBTI+ no Brasil – 2020;
de saúde, a atenção primária tem papel fundamen- 2021. [Acesso em 14 abr. 2022]. Disponível em ht-
tal, através de: tps://assets-dossies-ipg-v2.nyc3.digitaloceanspa-
• Realização de ações de educação permanente ces.com/sites/3/2021/10/Observatorio-de-Mortes-
para que os profissionais sejam capacitados para li- -Violentas-de-LGBTI-0001.pdf.
dar com essa população de forma adequada, tendo 4. JUNIOR AL et al. Saúde LGBTQIA+: Práticas de
conhecimento da Política, dos termos e conceitos; cuidado transdisciplinar. 1. ed. São Paulo: Manole,
2021.
• Ações de educação popular a fim de: informar a
comunidade, desmistificar estereótipos e combater 5. BRASIL. Portaria n 1.820 de 13 de agosto de
a LGBTIfobia; 2009. Dispões sobre os direitos e deveres dos usuá-
rios da saúde. Diário Oficial da União. 13 ago 2019.
• Respeitar uso de nome social nos atendimen- Disponível em http://www.aids.gov.br/pt-br/legis-
tos, documentos e prontuários; lacao/portaria-no-1820-de-13-de-agosto-de-2009.
• Ampliar acesso aos serviços a essa população e 6. BRASIL. Núcleo Técnico do Cartão Nacional de
garantir a coordenação do cuidado. Saúde. Nota Técnica n. 18, de 24 de setembro de
2014. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-
IMPORTÂNCIA DO AGENTE -br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/cns/
COMUNITÁRIO DE SÁUDE legislacao-cns/nota-tecnica-nome-social-18-2014.
pdf/view.
No seu território de atuação, o agente comu-
7. SANTANA ADS et al. Dificuldades no acesso aos
nitário de saúde (ACS), conhecedor dos usuários
serviços de saúde por lésbicas, gays, bissexuais e
não apenas no âmbito da saúde, mas também nas transgêneros. Revista de Enfermagem UFPE on line.
questões sociais, culturais e ambientais, tem papel 2020. [Acesso em 14 abr. 2022]; 13:e243211. Dispo-
importante na construção do vínculo entre a po- nível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/revis-
pulação e a unidade de saúde, sendo responsável taenfermagem/article/viewFile/243211/34303.
por facilitar esse encontro. Tendo em vista as difi-
8. UNAIDS. Cartilha de Saúde LGBTI+: Polí-
culdades de acesso e adesão vivenciadas pela co- ticas, instituições e saúde em tempos de CO-
munidade LGBTQIA+, tem-se o ACS como potente VID-19; 2021 [Acesso em 28 abr. 2022]. Dispo-
articulador do cuidado, a quem também devem ser nível em https://unaids.org.br/wp-content/
direcionadas capacitações e treinamentos referen- uploads/2021/04/2021_04_16_CartilhaSaudeL-
tes à temática aqui discutida. GBT.pdf.
9. BRASIL. Resolução n. 2.265, de 20 de setem-
REFERÊNCIAS bro de 2019. Dispõe sobre o cuidado específico à
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional pessoa com incongruência de gênero ou trans-
de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra- gênero e revoga a Resolução CFM n. 1.955/2010.
vestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013. [Acesso em Diário Oficial da União. 9 jan 2020. Disponível em
14 abr. 2022]. Disponível em https://bvsms.saude. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-
gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_ -2.265-de-20-de-setembro-de-2019-237203294.
lesbicas_gays.pdf.
2. MELO IR et al. O direito à saúde da população
LGBT: desafios contemporâneos no contexto do
sistema único de saúde (SUS). Revista Psicologia e

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