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10.11606/issn.2318-8863.discurso.2022.

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Uma entrevista inédita de


Giannotti sobre Artigas
Por José Guilherme Pereira
Leite
No início de , por ocasião do cente-
nário de nascimento de João Batista
Vilanova Artigas (-), a Escola da
Cidade imaginou fazer um livro com refle-
xões sobre o arquiteto e sua obra. Artigas
tem importância para além da Universi- Werther Santana©

dade, cujo curso de arquitetura e urba- Não parecia cabível propor a um dos
nismo (FAU – USP) ajudou a fundar e es- criadores da escola que se submetesse a
truturar ao lado de Luiz Ignacio de Anhaia bancas examinadoras compostas por
Mello. Tendo formado sucessivas gera- seus ex-alunos, pessoas formadas por ele
ções, em quarenta anos de atuação do- ou na matriz curricular que ajudou a es-
cente, seu exemplo como criador e profes- tabelecer em  e cuja reconfiguração
sor espalhou-se pelo Brasil e emoldurou o liderara em . Ademais, de certa ma-
projeto de muitas instituições. É o caso da neira, isso ratificaria os efeitos deletérios
própria Escola da Cidade. Ao saber da- das aposentadorias compulsórias levadas
quele intento, procurei um dos colegas en- a cabo pelo Regime Militar. O concurso
volvidos e propus que a publicação conti- que o fez titular aconteceu em junho de
vesse um conjunto de entrevistas a respeito . A Banca foi composta por
do concurso de Artigas para professor titu- Eduardo Kneese de Mello – arquiteto
lar da FAU-USP, ocorrido em . veterano e colega de Artigas em diversas
Artigas foi cassado em abril de . De- aventuras projetuais e docentes; Flávio
pois de uma década errando pelo conti- Motta – educador convertido aos estu-
nente sul-americano, voltou a lecionar na dos de história da arte e não menos len-
FAU-USP em , mas a reintegração ge- dário que o próprio Artigas; Milton
rou uma situação peculiar. No momento da Vargas – o grande pensador da técnica
cassação, Artigas era auxiliar de ensino, não da Escola Politécnica da USP; Carlos
detendo qualquer título como mestrado ou Guilherme Motta – o membro mais jo-
doutorado. Ao regressar, seu grau de car- vem da banca, mas já reconhecido histo-
reira foi mantido sem alterações. Oficial- riador; e o filósofo José Arthur
mente, não havia problemas. Como, po- Giannotti.
rém, se tratava de uma óbvia distorção his- Dos cinco membros da Banca, três es-
tórica e política, a Congregação da FAU- tavam vivos em . Conversei com
USP optou pelo caminho da reparação e, Carlos Guilherme Motta e com José
para conferir a Artigas o status acadêmico Arthur Giannotti. Por razões políticas
compatível com sua envergadura, outor- internas, a Escola da Cidade decidiu não
gou-lhe o notório saber, o que lhe deu con- levar à frente o projeto de publicação do
dições de tornar-se professor titular.
discurso, v. 52, n. 2 (2022), p. 270-284 

José Guilherme – Poderíamos dividir a


conversa em duas frentes. Primeiro, uma
mais pessoal, lembranças do concurso,
esse tipo de coisa. Outra propriamente
analítica ou crítica daquela situação em
si e também do próprio Artigas, se você
quiser. Fiz uma conversa semelhante a
essa com o Carlos Guilherme [Mota], foi
ótima, ele ficou emocionado, você não
vai ficar porque não é dado a
sentimentalismos. Por onde você quer
começar? Pela nota pessoal?
volume para o qual esses depoimentos es-
José Arthur Giannotti – Não, nota pes-
tavam previstos.
soal eu não tenho a fazer, porque não co-
Conforme verá o leitor, a visão de
nheci o Artigas tanto assim. Eu quero di-
Giannotti sobre o trabalho intelectual de
zer algo, primeiro, a propósito do pró-
Artigas é bastante desabonadora, embora
prio concurso, que foi uma farsa. Certo?
o trabalho de Artigas como arquiteto pro-
O Artigas já era um grande arquiteto, já
priamente dito seja objeto de seus francos
tinha feito inclusive o prédio da FAU. Aí
elogios. Examinada com o devido cui-
ele foi aposentado, como a gente. E,
dado, a perspectiva de Giannotti é na ver-
como a universidade é maluca, e ela tem
dade generosa para com os arquitetos, na
artistas, mas quer que esses artistas cum-
medida em que os libera para serem
pram um currículo que é igual ao do fí-
aquilo que sabem ser. Ele não está co-
sico, ao do matemático, ao do sociólogo,
brando dos demais profissionais que mi-
o Artigas – que não tinha feito essa car-
metizem a filosofia, pelo contrário, está
reira – tinha sido aposentado [em ].
advogando o reconhecimento das singu-
E embora tivesse a autoridade de um
laridades. Isto, afirma ele, é tudo o que
professor titular, tinha sido aposentado
não tem sido feito, razão pela qual o de-
como auxiliar de ensino. Muito bem.
sempenho insatisfatório do intelectual
Quando ele volta [em ], quando to-
Artigas resulta, segundo Giannotti, não
dos nós voltamos, ele volta como auxiliar
tanto das pretensões diletantes de um pro-
de ensino. Até que a Congregação da
fissional da tectônica quanto das distor-
FAU foi generosa e o considerou como
ções causadas por uma carreira universitá-
“notório saber”, alguém que, portanto,
ria de estruturação monolítica. A entre-
poderia fazer o concurso de titulação.
vista foi realizada em  de março de
Coisa que não aconteceu, por exemplo –
, na casa do próprio Giannotti, no
você era muito jovem e não vai se lem-
bairro paulistano do Morumbi. Agradeço
brar disso –, com um biólogo que voltou
a Marco Giannotti, que permitiu a publi-
depois de uma carreira brilhante nos Es-
cação póstuma da transcrição na revista
tados Unidos, e também seria posto
Discurso.
como auxiliar de ensino, mas sei que de-
*** ram um jeito para melhorar. Então, o
 Discurso em resenha

Artigas foi obrigado a fazer um concurso desculpas à história” pela “condição de jo-
nos termos tradicionais, como faz um vem”, por ter usado certas palavras, ter
sociólogo, e nós fomos obrigados a exa- chamado o Frank Lloyd Wright de sa-
minar o Artigas como se ele fosse um es- fado…
critor. Ora, a obra escrita do Artigas não J. A. G. – Eu explorei justamente isso,
tem nada de excepcional. Ele é um grande para mostrar como os intelectuais da mi-
arquiteto. Então, o que é que eu pude nha geração tinham feito concessões
fazer? Encher o saco dele. [risos] Não que, em geral, nós não deveríamos ter
tinha outra coisa. feito. E ele aceitou muito bem, e tal, e
J. G. – Percebe-se. Lendo os anais da prova com isso nós terminamos. Foi isso o
e da arguição, isso fica claríssimo. E você concurso.
começa a sua fala, ali, dizendo justamente J. G. – Essa é uma versão muito reduzida
isso. Você diz, você deve se lembrar: do que aconteceu ali.
“Estamos cantando pela flauta enviesada da J. A. G. – Por que, teria outra dimensão?
burocracia, desta burocracia que abafa a J. G. – Eu acho que tem sim, e tem coisas
Universidade de São Paulo e que curiosas. Uma delas é que a arguição do
transforma este concurso num absurdo”… Milton Vargas, quando nós a lemos, o
J. A. G. – Que legal. Eu disse isso? que está discutido ali é o mesmo assunto
J. G. – Sim, e em seguida você diz que a do seu famoso capítulo de Trabalho e
sua primeira intenção era não argui-lo… reflexão, “O ardil do trabalho”. Pela
J. A. G. – Mas, então, o que eu fiz? Explo- ordem, uma discussão sobre a técnica, a
rei a ambiguidade desses intelectuais que técnica entre os gregos, as modificações
tinham passado pelo Partido Comunista e que essa concepção sofre na moderni-
tinham sido obrigados a exercer uma fun- dade, ou sob o capitalismo etc. Aparece a
ção pública que os degradava. questão da técnica, do artista, da matéria,
J. G. – Por que os degradava? da forma etc. Quando lemos aquilo, pela
J. A. G. – Por exemplo, um dos maiores primeira vez, o pensamento é dizer “bom,
físicos brasileiros, que era o [Mario] quando chegar a vez do Giannotti, isso
Schenberg – certo? –, participava do Par- vai crescer”. Mas você simplesmente não
tido Comunista. Eu às vezes o via, quando envereda por esse caminho, muda
frequentava encontros do Partido, ele ia, completamente de assunto. Você tinha
sentava-se, fechava os olhos e falava – e fa- acabado de escrever Trabalho e reflexão,
lava muito bem. Chegava o domingo, ele mas a conversa não lhe interessou, você
era utilizado para vender o jornal do Par- achou que ela estava encerrada e se deu
tido na Praça do Patriarca, ou por ali. Um por satisfeito. Ou achou que eles estavam
físico da qualidade intelectual do dizendo tanta “besteira” que resolveu
Schenberg, e o Partido não tinha outra falar de outra coisa?
coisa a fazer com ele a não ser mandá-lo J. A. G. – Não! Eu estou numa banca
vender jornal. Certo? para que o candidato se exprima. Não es-
J. G. – Num determinado momento da tou lá para exibir a minha sapiência, nem
conversa de vocês ele diz querer “pedir discutir, do ponto de vista da Grécia, ou
discurso, v. 52, n. 2 (2022), p. 270-284 

dos bantos, como é que a técnica se de- queça que aquele grupo tinha uma pre-
senvolve. Certo? tensão muito ampla que era dizer:
J. G. – Mas o Artigas quis discutir isso! Ele “Brasília está sendo feita desse jeito, nós
juntou esse material ao seu próprio memo- vamos fazer a USP de outro jeito”…
rial, aquela famosa aula magna dada na Então, começou com o Artigas, depois o
FAU, antes da cassação, “O desenho”, onde Paulinho [Paulo Mendes da Rocha] fez
ele – vá lá, que de forma um pouco o projeto para a Faculdade de Filosofia.
atabalhoada – diz coisas sobre o que poderia Está certo? A construção foi começada,
ser uma filosofia do desenho e do projeto. veio o golpe [] e ela foi enterrada.
A oportunidade estava dada. Depois fizeram aquela merda [sic] que
J. A. G. – Estava dada, mas veja só… Eu está lá. Antes, tinham feito já uma parte
não vou pegar o Artigas e começar a argui- do Crusp, mas suspenderam a
lo por aquilo em que ele é menor. Eu não construção daquele espigão dizendo que
tinha interesse nenhum em mostrar para os estudantes poderiam atirar através da
o Artigas que eu era um sabichão naquelas janela. Com o prédio já pela metade, ele
coisas, alguns professores, por exemplo, mandou destruir, e ofereceu à
sempre mostram isso. [risos] administração da Faculdade de Filosofia
J. G. – Havia professores da geração do que aproveitasse aquela estrutura
Artigas, eles estavam lá, entre amigos… deitando-a. É aquela coisa horrorosa,
J. A. G. – Sim, entre amigos eles diziam aquele salsichão que nós temos na
“você é sabichão em arquitetura, eu sou Universidade, onde está a administração
sabichão nessas coisas tais”. Não era do da FFCLH. Eu estava na Congregação,
meu interesse. Quando estou cumprindo mas nem tive a ideia, que era elementar,
uma função, eu a cumpro, não me exibo. de pelo menos cortar em dois e juntar fa-
J. G. – Mas, então, eu lhe pergunto, por zendo um H, e não aquele salsichão.
que você aceitou ir àquele concurso? O J. G. – Eu até concordo com você, tem
Artigas lhe interessava? pouco de arquitetura no debate do con-
J. A. G. – Ele era um colega para quem eu curso, e realmente, quando chega no fi-
tinha que reparar uma injustiça. O pro- nal, o Eduardo Kneesse tenta repor isso
blema ali era a justiça da universidade. O dizendo, certas coisas… Você releu re-
sujeito é um grande arquiteto, com todos centemente?
os defeitos que você pode apontar nele, J. A. G. – Não.
mas tinha sido aposentado e – mais ainda J. G. – Bom, só eu fiz a lição de casa?
– estava sendo humilhado, voltando J. A. G. – Me desculpe. A minha lição de
como auxiliar de ensino. Era minha fun- casa é dizer o que me lembro. Eu não iria
ção, em nome da dignidade universitária. preparar uma lição para essa entrevista.
Então, eu tinha que aceitar. Fui lá cum- J. G. – Pois bem. O Kneese, quando
prir a minha função. Mais nada. Agora, chega no final, diz algo assim: “Legal
eu lamento que o concurso não tenha sido tudo isso e tal, mas olha, o candidato é
um momento em que a arquitetura do um arquiteto então eu gostaria de dar a
Artigas pudesse ser discutida. Não se es- ele a oportunidade de comentar os seus
trabalhos”… E aí, a resposta dele ao
 Discurso em resenha

Kneese foi a de passar slides e ir falando inscrevi num partido foi quando nós
sobre várias casas e vários projetos que ti- fundamos o PT. Eu estava lá, no Colégio
nha feito, e fazendo comentários irônicos Sion. Mas, como a turma mais radical
sobre si mesmo… achou que tinha muito burguês
J. A. G. – Sim, tinha muito senso de humor. assinando a ata, roubaram a ata, como
J. G. – Você acha, de todo modo, que o você sabe.
concurso toma um rumo improdutivo? J. G. – Eu não sabia.
J. A. G. – Ele começou improdutiva- J. A. G. – É, roubaram a ata e aí me avi-
mente. Foi no final que deram a oportu- saram, “Giannotti, você tem que passar
nidade a ele de se mostrar como arquiteto. pela sede do partido para assinar livro
Agora, o concurso deveria ser um con- novamente”. Eu obviamente já não fui
curso com gente ligada à arquitetura, que mais. Se começa desse jeito, eu tô fora.
pudesse fazer um exame dos trabalhos do [risos] Agora acharam a ata, então eu vou
Artigas como arquiteto. Mas a Universi- requerer ao PT a carteirinha de sócio-
dade não incorpora… O meu problema é fundador. [risos]
que a Universidade não incorpora esse J. G. – Vai ter que se desfiliar do PSDB
tipo de trabalho até hoje! Os artistas pas- primeiro.
sam mal dentro da universidade. Porque J. A. G. – Eu não sou filiado ao PSDB.
eles têm que seguir o Currículo Lattes, Eu sou tucanóide, nunca tucano, e cada
que não é feito para avaliar artistas. vez menos.
J. G. – Em relação a essa questão do J. G. – Está bem. Desenvolva um pouco
Artigas e da militância comunista, há ali o problema dessa má relação da sua ge-
uma claríssima provocação sua em relação ração – ou do seu círculo intelectual –
ao “Partidão”, não? E você chega a dizer com essas ingerências do “Partidão”.
“eu já pertencia a uma outra geração, já lia J. A. G. – Não, não eram ingerências do
um pouco de Trotski”… Você fala isso… “Partidão”, veja bem. O problema é que
J. A. G. – Trotski era um nome feio… Eu nós precisamos compreender que vínha-
tenho a língua solta… mos de uma crítica do capitalismo. E essa
J. G. – Eu “já tinha uma certa desconfi- crítica do capitalismo, para nós, era radi-
ança em relação a essa utopia”, você diz… cal. Era fundamental, e assim por diante.
J. A. G. – Tem algo de mais sério ainda. Ora, a crítica se dava, politicamente, atra-
Veja. A minha geração ainda, uma boa vés dos movimentos ligados ao comu-
parte, passou pelas células comunistas. nismo, ao socialismo. Mas havia um lado
Eu, primeiro, não tenho disciplina para autoritário nesse processo, e demorou
entrar numa célula comunista. E, mais muito para que a gente fizesse o expurgo
ainda, já quando eu estava na faculdade, desse viés. Aliás, existem muitas pessoas
encontrei [Claude] Lefort, que foi um dos até hoje que não fizeram esse expurgo.
fundadores de “Socialisme ou Barbarie” e Essa é a questão. Então, o caso do Artigas,
um dos críticos virulentos da burocracia para mim, era exemplar de como uma ge-
soviética. Portanto, desde cedo, eu já ti- ração tinha de certo modo cortejado um
nha a desconfiança em relação à burocra- lado digamos assim… autoritário – certo?
cia soviética. A única vez em que eu me
discurso, v. 52, n. 2 (2022), p. 270-284 

–, num momento em que deveríamos re- Mies [van der Rohe]. Sabe? Você se lem-
forçar nossa democracia. Não entender o bra disso? Quando sai um pouco dessa
caráter ambíguo do próprio Wright é, a contradição…
meu ver, uma falha – não de caráter – mas J. A. G. – Veja bem, eu tinha que partir
de um tipo de formação que era ligada a esse da contradição evidente, eu tinha que
comunismo. partir daquele grande artista que tinha
J. G. – Quando você disse: “Artigas, você escrito aquelas besteiras.
é o artista comunista em extinção”, em J. G. – Mas isso não se aplica ao
que estava pensando? Niemeyer também?
J. A. G. – Estava pensando justamente na- J. A. G. – Eu não estava analisando o
quela geração dele, Portinari e assim por Niemeyer.
diante, que nunca mais… O último J. G. – Mas essa questão do artista que se
exemplar desse artista ambíguo que ainda filia ao partido comunista, ou coisa que
era capaz de não tomar distância desse o valha, e que depois termina virando…
lado autoritário e ditatorial foi o Você fala, ironicamente, sobre a casa da
Niemeyer, que nunca abandonou o Par- Elza Berquó, mas também sobre “a obra
tido. Certo? Ora, eu acho que, artista ou de classe média ilustrada”. São palavras
não, na medida em que você vem a ser um suas: “essa faculdade [FAU-USP] que
intelectual, a sua função é ser crítico, não você [Artigas] pensou como o templo de
só do seu trabalho, mas da vida cotidiana. ensino da arquitetura, é sem dúvida a es-
Enfim, língua solta é uma característica cola mais grã-fina da Universidade de
do intelectual. São Paulo”…
J. G. – Eu entendo isso, e vejo as razões. J. A. G. – Até que eu estava afiado.
Mas, com toda a liberdade que você sem- J. G. – Vá lá, mas isso não é algo que sai
pre inspirou em seus alunos, às vezes olho ao controle, escapa ao controle do cara?
aquela discussão de vocês e ela me parece J. A. G. – Mas, veja bem, quando nós
um pouco bizantina… O cara foi assimi- temos uma atividade social… Mas eu
lado pelo mercado, caiu no gosto… Isso não tenho controle daquilo que eu digo.
não é algo que aconteceria, de alguma Até certo ponto, sim, depois a vaca vai.
forma? Não é um esquema que se repete Pelo contrário, hoje, tudo o que eu digo
na história das artes? enviesam de uma forma escandalosa.
J. A. G. – A necessidade de ser absorvido J. G. – É que isso parece um pouco
pelo mercado ninguém desconhece. O aquela coisa do Pasolini, “eu abjuro a
problema é como você participa do mer- Trilogia da Vida porque ela foi assimi-
cado. Você participa do mercado jogando lada”, caiu no gosto da pequena burgue-
nele e depois fazendo a crítica comunista? sia, que eu odeio.
Desculpe. Essa contradição é que eu que- J. A. G. – Eu nunca fui pasoliniano. Em
ria apontar. que ano foi feito o concurso?
J. G. – Acho que você aponta, inclusive J. G. – .
com certa dureza. Mas acho que ela só se J. A. G. – Nós estávamos numa situação
torna uma discussão interessante quando totalmente diferente da de hoje.
vocês finalmente vão para o problema do J. G. – Então, que situação era aquela?
 Discurso em resenha

J. A. G. – Estávamos saindo de uma di- caminhando, um perigo para ela. Não


tadura, apostando numa democracia – esqueça que logo depois, no próprio
certo? –, com traços já de volta de uma Departamento de Filosofia houve um
política burocrática, que nós tínhamos racha. Porque as pessoas mais à esquerda
que combater. começaram a dizer que a lógica formal
J. G. – Onde estavam esses traços visíveis? era coisa do imperialismo americano e
Na própria universidade? forçaram justamente o Porchat a sair do
J. A. G. – Sim, na própria universidade. departamento. Ele aceitou, foi fundar o
Não esqueça que a universidade sempre CLE em Campinas, e levou consigo para
foi ambígua. Não esqueça que a universi- a Unicamp quatro professores da melhor
dade não foi violada pela ditadura. A uni- qualidade – Luiz Henrique [Lopes dos
versidade colaborou com a ditadura! Ela Santos], Carlos Alberto [Ribeiro de
fez uma comissão de expurgo. Essa comis- Moura] e os Loparics [Andrea e Zeljko].
são listou  pessoas a serem expurgadas. J. G. – O discurso ao seu ver se espelha?
Uma reação contra aquilo limitou o pro- A crítica do internacionalismo como ins-
cesso aos  que nós fomos. Mas, havia trumento de uma dominação imperia-
muito mais. A comissão era dirigida por lista… Philip Johnson… Mies… Na-
alguns professores. Então, desculpe, mas a quele momento, você escreve A universi-
universidade não vinha carregando essa dade em ritmo de barbárie…
cruz. E, portanto, naquele momento em J. A. G. – Sim, naquele momento eu já
que estávamos voltando para a universi- começo uma crítica dessas questões.
dade e queríamos voltar a pensar a univer- J. G. – Você acompanhou esse processo
sidade numa sociedade democrática, nós de burocratização quando estava fora?
tínhamos que fazer a crítica disso. E eu es- Ou foi na sua volta?
tava lá para fazer a crítica disso. Eu não J. A. G. – Não, veja bem. Embora nós
estava lá para enaltecer o Artigas apenas. estivéssemos aposentados, nós tínhamos
É óbvio que eu tinha que enaltecer o uma presença na universidade. Então,
grande arquiteto que ele tinha sido e es- mais ou menos, eu estava vendo. O que
tava sendo. Mas tinha também que mos- me deixou muito assustado foi a politi-
trar a ambiguidade do processo. zação das questões filosóficas, sociológi-
J. G. – Na sua visão de momento, de to- cas e assim por diante. De repente, tudo
dos os arguidores você é o que menos pa- parecia que tinha que passar pelo crivo
rece – digamos – sob influência dessa at- da crítica ideológica.
mosfera redentora que havia ali. J. G. – Mas o quê, exatamente, um
J. A. G. – É que eu sempre desconfiei do gauchismo?
caminho pelo qual a universidade estava J. A. G. – Um gauchismo soixante-
enveredando e tenho a impressão de que huitard, que terminou prejudicando
eu estava correto, porque a universidade enormemente a Universidade. Coisa que
hoje está inteiramente isolada e burocrati- ainda permanece atualmente. De um
zada. Então, eu via inclusive, no doutri- lado, você tem trabalhos de altíssima
namento para o qual a universidade estava competência, de outro lado, você tem os
professores ideológicos gritando a crise
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do capitalismo, a eterna crise do capita- J. G. – Aniquilou-se a si mesma?


lismo, sem pensar que o capitalismo se J. A. G. – Aniquilou-se não, pois há
modificou. A universidade entrou num gente de altíssima qualidade. Ela se cas-
casulo e não está saindo para fora. Hoje, trou. Agora chega, né?
na crítica da crise atual, em que nós es- J. G. – Chega.
tamos, você conta com a presença da J. A. G. – Não estou emocionado.
universidade? De jeito nenhum.

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